O País – A verdade como notícia

ARTIGOS DE OPINIÃO

– Vai casa, menino.
A velha pronunciou “minino”, como falam por aqui os que têm por língua mãe a língua das suas mães.
– Vai.
Primeiro foram as vozes, distantes, e a poeira que subia por cima das copas das árvores, das casas, do entrelaçado de fios urbanos, de tudo…
– Vai, menino. É perigoso – disse “pirigoso”.
O chão estremecia. Era a multidão que dobrava a esquina, martelando decididamente os passos.
A multidão gritava. Com os gritos, um cão interrompeu a preguiça, levantou-se, recolheu a cauda entre as pernas e retirou-se. O chão estremecia e ratos assustados abandonaram o chassis duma camioneta avariada, chiaram de emergência para o esgoto. Nas árvores, das folhas sacudidas os pássaros debandaram.
– Vai menino – disse “minino”.
Do outro lado da avenida, um bloqueio. Eram homens e veículos que lembravam os filmes de guerra do tempo dos soviéticos.
– Vai.
A velha, imóvel como uma estátua vendedeira, estava sentada num banco improvisado. Tinha duas caixas de papelão à frente, onde expunha frutas e legumes devidamente amontoados. Voltou-se para mim:
– Hiii. Esse menino… é teimoso – disse “timoso”
A precaução já me tinha mandado arrumar a minha loja improvisada: os meus fios, os meus alicates, as minhas chaves de fenda, os minhas capas de celular, as minhas baterias velhas e outras coisas que garantem à minha banca charme de loja de reparação de telemóveis.
– Menino… não ouve?
O menino, com uma mão na cintura e outra à altura do ombro, segurando uma bacia de amendoins torrados à venda, prestava atenção aos gritos da multidão que se aproximava. Agora ouvia-se melhor e percebia-se: Povo no poder! Povo no poder! Povo no poder!…
– É repe vovó. Estão a cantar repe. Povo no poder…
incomodados, os dos filmes de guerra soviéticos agitavam-se. Começavam a ensaiar poses teatralmente intimidatórias.
– Vai, menino. Não fica aqui. Vai para casa. Esses vão lutar. Os polícias vão disparar.
– Vão lutar por quê, vovó.
– É por causa de eleicões – disse “ilessonje”.
– O que é eleições?
– Menino não vai entender. Menino não entende política – pronunciou “pulítica”
Eu, já arrumado, pronto para me entrincheirar na entrada traseira dum edifício por ali, parei. Se estivéssemos em outras paragens e em outros tempos, depois daquela frase, poderia jurar que aquela vovó era a velha Chica do Valdemar Bastos, a dizer “Xe minino não fala política”.
– Vai
Ouviu-se um estalido, aquela ameaça de quem quer avisar que tem a arma carregada.
– Vai, menino – disse “minino”
Uma pedra maior do que a mão que a lançou sobrevoou tudo, ricocheteou em algo, quase quebrou a vidraça duma montra, e veio-nos cair bem próximo. O miúdo assustou-se.
– Vai.
Um tiro fez pah!
– Vovó não vem? Vai ficar aí? É perigoso, vovó.
A Velha não respondeu. Ficou em silêncio. Aquele silêncio expressivo da velha Chica. A velha Chica do Valdemar Bastos. A multidão gritava “Povo no poder”. Ouvia-se mais tiros. Fugia-se. Via-se mais pedras. Havia fumaça. Respirava-se gás. Gás lacrimogéneo. Povo no poder. A vovó em silêncio. Aquele silêncio da Velha Chica do Valdemar Bastos.
– Vovó não tem medo? Vamos vovó.
Naquele silêncio, a resposta poderia ser aquela parte em que o Valdemar Bastos cantava que a velha Chica dizia: “Xe minino posso morrer…”
– Vai para casa, menino – pronunciou “mínino”, enquanto desabrochava o rosto num sorriso.

(inspirado numa velha lenda urbana da minha cidade)
A regularização de sua conta bancária era o último empecilho para que a direcção de finanças do seu emprego desembolsasse o seu primeiro e muito aguardado salário.
Para dar conta da resolução do estorvo para o seu recebimento salarial, Lucas Chitato pediu dispensa ao departamento dos recursos humanos para tratar do assunto.
Ficou, aguardou espetado na fila desde das primeiras horas da manhã no balcão de uma das maiores instituições bancárias do país, sucursal localizada na cidade de Quelimane.
Posicionou-se em diversas poses que a sua mente concebia, cansou-se, sentou-se, levantou-se, acedeu às diversas plataformas das redes sociais até o telemóvel ficar sem carga, antes de ser atendido, nas vésperas do fechamento, finalmente atenderam-no.
Na manhã seguinte, quinta-feira, apresentou o comprovativo da regularização da conta, e esperou que o salário caísse, os colegas já desfrutavam das benesses providas pelos niqueis do ordenado.
Lucas, jovem recém licenciado em economia, teve que pagar, aliás pagou-o o pai para conseguir obter uma vaga numa instituição pública da cidade. E nos dias que se sucederam ao pagamento da vaga o remanescente salarial do pai só deu para o básico, as iguarias mensais a que estavam habituados a degustar desaguou num riacho de saudades.
A ânsia pelo recebimento do seu primeiro vencimento governava as suas emoções, queria ter a sua desejada independência financeira, os pais haviam feito todo o sacrifício para que ele tivesse uma boa educação, e ele estava deveras grato, queria também constituir sua própria prole.
Sexta feira ao meio da tarde o seu telemóvel dançou sob o tampo da sua secretária, olhou para tela descobriu a mensagem de texto enviado pelo banco com alerta de creditação na sua conta com o valor do salário.
Dançou na cadeira animado pelo ritmo vibratório que a mensagem produziu na sua mente, tamborilou o tampo da sua mesa, sem se aperceber que perturbava os colegas, quando percebeu da anomalia que protagonizava, desculpou-se.
Olhava obcecado o relógio, o tempo parecia ter parado, colegas veteranos já se preparavam para sair, eram 14:50h.
Não queria precipitar-se para a saída como faziam muitos dos seus colegas, precisava ser um trabalhador exemplar, aliás a educação que recebera conspirava para tal.
Finalmente chegou a hora, saiu para a rua, foi logo engolido pelo alvoroço, parou um táxi bicicleta, correu para o balcão do banco que ainda estaria aberto.
Levantou todo o seu salário, usando o mesmo táxi bicicleta, pediu que o conduzisse para casa.
O crepúsculo vespertino ia engolindo a cidade, as pessoas regressavam as suas casas, um tráfego de táxi-bicicletas impunha-se desafiando os automobilistas que tinham que finta-los para não se colidirem.
Candeeiros espetados nas ruas e avenidas derramavam seu de feixe emprestando um brilho artificial a cidade e periferia.
Chegou a casa, encontrou os pais abrigados no velho sofá, embriagando-se com notícias destiladas por uma estação de TV local.
Instantes depois Lucas juntou-se aos pais, quebrou o vínculo que vinham tendo com a TV, ganhou completa atenção deles e de seguida entregou o envelope que continha o seu primeiro salário.
O pai pegou no valor e sem conferir dividiu de forma aleatória, entregou uma parte do valor a Lucas enquanto fazia um discurso retórico e a sua mãe meneava a cabeça em gesto de concordância.
Sentiu-se impelido a celebrar aquele momento ímpar da sua vida, aperaltou-se, passou uma loção na sua tez de tom de jambire e fez o pente desbravar o cabelo encarapinhado, viu-se no espelho, sentiu que ultrapassava os seus 1.79m, largou um sorriso correspondido prontamente pelo seu duplo.
Tomou emprestada a motorizada de seu pai, emitiu uma mensagem de texto e enviou para o seu melhor amigo.
A rua pavimentada do bairro continuava movimentada, principalmente pelos táxis bicicletas, as barracas clonadas onde se salientava as cores vermelho, amarelo e verde, hospedavam clientes que vociferavam competindo com o som dos alto-falantes cantantes.
Lucas encontrou o amigo já na companhia de uma garrafa de cerveja, conversaram animados pelos novos rumos de suas vidas, o tempo ia sendo confiscado pela noite. A dona da barraca anunciou que a qualquer momento fecharia, pois as autoridades reguladoras estavam atentas aos descumpridores das normas.
Etilicamente energizado Lucas depois de se despedir do amigo dirigiu-se para a discoteca mais propalada da cidade.
Os únicos dançarinos que ocupavam a pista era a luz cromática, alguns clientes apeados no balcão que bebericavam e trocavam conversa, a medida que o tempo passava os fregueses multiplicavam-se.
Quando Lucas segurou o seu copo para dar um gole, um feixe de luz atingiu o rosto maquiado de uma rapariga que se sentava num canto da sala e emanava uma áurea arrebatadora.
Olhou, enlaçado no seu charme, estabeleceu-se um canal encriptado onde os dois falavam uma língua que o ruído da sala não perturbava. Caminhou sereno na direcção dela, e sem nada dizer pediu para dançar, aliás estendeu a sua mão e logo rodopiaram na pista.
Ao compasso rítmico, dançavam, entraram para um redoma isolando-se dos demais, Lucas acariciava-a estimulado pela coragem que o álcool produzia na sua pessoa.
A mudança rítmica protagonizada pelo “disco Joker” rompeu abruptamente o elo que se  estabelecera, o casal soltou-se, trocaram sorrisos, e foram acomodar-se em pequenas poltronas na esplanada da discoteca.
Conversaram informalmente como um velho casal de namorados, falava mais Lucas e ela limitava-se a responder ao seu inquérito.
A luz eléctrica da cidade continuava intensa mas não desarmava a noite que se adensava.
– Nunca te vi por aqui? – afirmou Lucas.
– Raramente apareço – confessou serena.
Continuaram a conversar por mais duas horas, até finalmente decidirem ir-se embora, era já madrugada de sábado.
Levo-a na garupa da sua motorizada, o motor roncou, engrenou e partiram, a brisa fina da madrugada fê-la estremecer, largou um calafrio, abraçou-o mais intensamente, Lucas parou a motorizada, tirou o casaco que usava e entrego-a, reiniciaram a partida.
Deixou-a na porta de casa.
– Quando posso voltar a ver-te?
-Quando quiseres. – respondeu ela com um sorriso.
– Ligo-te amanhã. – disse Lucas.
– Estou sem telefone.
– Como faço então para te contactar? – questionou ele.
– Vem ter comigo a minha casa. – disse ela.
– Os teus pais?
– Eles são muito compreensivos. – afirmou ela convicta.
– Certo, então até amanhã, aliás até logo.
Na despedida, beijaram-se, ele ainda a viu entrar e instantes depois foi-se embora.
Lucas só despertou quando eram 9:30h da manhã de sábado, com uma desagradável “babalaza”.
Depois de um banho fresco, correu para a barraca da dona “mimi” onde tudo começou, socorreu-se de um petisco e bebeu umas duas cervejas bem geladas, recuperou o episódio da noite passada com ênfase na moça que conhecera e se apaixonara. Precisava, logo revê-la.
Abandonou a barraca, parou um táxi bicicleta e embarcou.
– Para onde patrão? – questionou o taxista.
– Torrone velho. – asseverou Lucas.
A pedalada iniciou, a velocidade aumentou e a distância encurtou-se, chegou ao destino.
Ensaiou a abordagem correcta que devia praticar consoante a pessoa que lhe atenderia, pensou em desistir, um ímpeto encorajou-o, bateu a porta, esperou um bom tempo, ninguém atendia, quando pensava em desistir assomou a porta uma adolescente com parecença irrefutável com a moça que conhecera e se apaixonara na noite passada.
Trocaram olhares antes de Lucas pronunciar-se.
– Sim! – disse a menina.
– Posso falar com Zubeida? – articulou por fim Lucas.
Ela ficou petrificada sem saber o que dizer, dilatou as pupilas de seus olhos grandes, suspirou, mudou de posição dos pés para se reequilibrar, dos olhos nasceram lágrimas que transitavam pelo rosto, deixando-a completamente pálida, carpiu estrondosamente.
– O que se passa, filha? – questionou a mãe com voz profunda.
A mãe juntou-se à filha, soube das pretensões de Lucas. Conteve-se antes de responder e corajosamente disse:
– Minha filha faleceu, faz exactamente hoje um ano. – conferiu a senhora para depois soltar lágrimas que logo inundaram-lhe o rosto.
“Só podia estar a haver algum equívoco” – cogitou Lucas, arrependido, por bater a porta naquela moradia.
– Lamento imenso, minha senhora, talvez enganei-me na casa. – disse.
Lucas lembrou-se de algo que podia dissipar qualquer equívoco. Socorreu-se do seu telefone, acedeu a galaria e exibiu a foto que tirara com Zubeida.
– É, é minha filha. – afirmou a senhora com a voz entrecortada. –  Quando a conheceu? – questionou serena.
– Estava com ela ontem à noite.
Mãe e filha prantearam copiosamente.
O senhor Matias chegou, foi adentrando quando deu-se conta do celeuma que decorria na sua casa, procurou inteirar-se do que estava a acontecer.
Convidou Lucas a entrar e sentar-se e então tratou de explicar que não era possível que a pessoa que estivera com ele fosse Zubeida pois ela falecera, e ele vinha buscar a mulher e a filha para irem visitar a campa da falecida em celebração de um ano desde que ela partira.
Lucas manteve-se incrédulo, e então o senhor Matias decidiu convida-lo a acompanha-los ao cemitério.
Não demoraram para alcançar o cemitério que ficava na periferia da cidade, foram adentrando em direcção a ala leste, depois seguiram por uma vereda entre campas até alcançarem a sepulcro que buscavam.
Incrustada na lápide vertical estava inscrito palavras de ternura, mas a que mais saltou a vista de Lucas foi o nome “Zubeida António Chipenda” e a foto da falecida. Um baque sacudiu-lhe o peito e o medo tomou conta de si. “Estaria a enlouquecer?”
Quando dona Marta mãe da falecida, agachou-se para iniciar a limpeza da campa, eis que se depara com algo aveludado sobre a laje. Tomou em suas mãos o estranho objecto.
Todos olharam para o casaco mas foi Lucas quem ficou completamente petrificado com a descoberta.
– Esse é o casaco que emprestei para a Zubeida esta madrugada.

Neste artigo, pretende-se demonstrar o Realismo (em duas vertentes) que, de acordo com Barthes (1973:60), por um lado, decifra o real (o que se demonstra, mas não se vê); por outro lado, diz respeito à realidade (o que se vê, mas não se demonstra), através do traço que concorre para a construção do universo realístico – a denúncia dos desequilíbrios sociais, determinados, principalmente, pelo tempo e espaço.

Com efeito, denota-se, a priori, que o título da obra nos reenvia a um tempo específico: 2020 e 2021 [Vinte (e) Vinte (Um)], período em que o mundo se viu em desalento, devido à Covid-19. Ademais, todas as histórias se desenrolam entre a urbe e o subúrbio. A obra é constituída por catorze cronicontos, dos quais onze serão objecto de análise demonstrativa dos desequilíbrios sociais do Homem contemporâneo, a quem Nhangumele soube bem dar voz. Assim, o confronto entre as personagens e o imaginário colectivo, o culto da aparência, os factores naturais (temperamento, raça e clima) e culturais (ambiente e educação), determinam o comportamento das personagens: desde o enfoque ao Homem da época, ao adultério, ao relacionamento ocasional e/ou efémero, aos problemas concretos, aos dramas cotidianos que estão ancorados no presente histórico – características que permearão a análise.

O confronto entre a personagem e o imaginário colectivo depreende-se, por exemplo, com a personagem Ginoca, que age de forma contrária ao que o meio esperava. À revelia do grupo, com a ideologia de que quando a mulher é violentada é briga de casal; paradoxalmente, Ginoca tareia o marido, enfrenta o colectivo, continuando a dar porrada a ele, ainda que o espanto se tenha manifestado na voz do chefe do quarterão.

Em «Ginoca Foi a Matalane, Sim!» evidencia-se, ainda, o culto da aparência, pois Ginoca se junta a Beny, baseando-se na aparência deste, todavia, a realidade ficcional da convivência entre ambos tratou de revelar o contraste entre a aparência e o comportamento. A escrita de Nhangumele decifra essa realidade: eventos que se demonstram, mas não se vêem; os motivos da violência de Beny, por exemplo, quando o narrador nos dá a conhecer o desabafo de Ginoca ao abandonar Beny, cansada do tormento a que estava condenada, depreende-se em: “Ah! Sempre me expulsavas, dizias que não tenho família, que nem a gravidez que tinha do Júnior sabias se era tua.” (Nhangumele, 2021:82) (Grifos nossos).

A escrita do realismo é revelada objectivamente pela elipse dos acasos e milagres do romantismo. As personagens aparecem condicionadas a factores naturais (temperamento, raça e clima) e culturais (ambiente e educação). A história de Khambula é uma decifração da realidade por parte do autor, a personagem encontra justificativa para a sua condição de infértil, supostamente devido à vacina contra a Covid-19.

No croniconto intitulado «Por Culpa da Covid-19», são convocados factores históricos e naturais, o fenómeno da pandemia, a sua percepção e prevenção, os possíveis efeitos colaterais (…) A influência educacional de Khambula reflecte-se nas suas escolhas em querer melhorar as suas condições de vida. No Realismo, a vida é feita de sacrifícios; a personagem, em idade concebida pelo meio de procriar, abriu mão de ter filhos em nome de uma vida melhor: organizar-se. Dito de outro modo, Khambula, professor universitário de profissão, arrepende-se de ter deixado de engravidar Telinha para ir fazer o Mestrado em Linguística Aplicada em Portugal. Eis que, depois da formação, se vivem tempos da Covid-19, onde teve de se prevenir, e a consequência, passados dez anos, fora dolorosa, tal como se pode inferir em: “(…) Sim. Eu não faço filhos. Não me caíram bem. A vacina evitou a minha morte por Covid-19, mas matou-me por dentro. Matou o meu futuro. Matou a minha descendência (…)” (Nhangumele, 2021:23).

Estes eventos não são justificados por acasos, milagres e magias, mas por razões lógicas da educação, do ambiente e do momento. Por exemplo, a pressão social vai demarcar-se relevante para o arrependimento de Khambula: “Agora me arrependo, méu! (…) A família está a pressionar, os meus pais, os dela. A sociedade, brô.” (Nhangumele, 2021:22) (Grifos nossos). Gamito vai atiçar-lhe a derramar lágrimas com a evocada citação de obrigação e de pressão, representado em Vozes Anoitecidas, de Mia Couto, e recuperado na obra em análise: “(…) homem pode ter barba, não-barba, mas um filho tem que tirar: um documento exigido pelos respeitos.” (Couto s/d, apud Nhangumele, 2021:22) (Grifos nossos), o que decifra que Khambula foi contra as origens, os princípios e, porque o meio é forte, contra o meio pelo qual sofre.

Entende-se ainda que a perspectiva continua na diegese do senhor Khetile, quando este faz uma conversa de desabafo e de lição de vida com Mataka, de arrependimento pelo tempo perdido, por não se ter relacionado com mulheres quando jovem: “Tive pouco tempo para brincar” (Nhangumele, 2021:54). Por causa da formação superior, esta personagem casa-se depois de procurar emprego e estabilizar-se financeiramente. À medida que era promovido no trabalho, para garantir o ritmo da sua prestação, bebia para se estimular, e nada fazia pela esposa, família, sem se aperceber que matava a sua máquina (metáfora do sistema reprodutor masculino), tal que foi o motivo do desprezo da parceira, razão dos seus fantasmas. Por detrás de um homem respeitado profissionalmente, existia um homem “deveras magoado e derrotado pela estrada da vida” (Nhangumele, 2021:56).

O realismo é o determinismo associado ao Lamarckismo do uso e desuso, que se observa no texto, denunciando a impotência de Khetile. Aliás, o outro intelectual cujo percurso também não compensou é Khambula, pois que ficou infértil. Confesso que não sei o que é mais grave: tornar-se impotente devido ao álcool ou a uma vacina tomada devido a uma pandemia que assolou o mundo após decidir fazer filhos, depois de estar financeiramente estável. Facto é que se denota um arrependimento profundo em ambos. Ora, já não são os iletrados, os Magaízas Mandevo, os Mampara Magaíza que logram escolhas sem sucesso; são, agora, intelectuais, académicos que alcançam respeito e estabilidade financeira, todavia sucumbem no imaginário e nas leis da natureza, da procriação e da erecção. Isto é o que Nhangumele e o seu Vinte (e) Vinte (Um) nos trazem, despindo as máscaras do que se vê, mas não se demonstra.

Sublinha-se ainda, na obra, uma acentuada preferência pelo enfoque ao adultério, pelo relacionamento ocasional e/ou efémero, despido de qualquer compromisso, pela aventura na simples satisfação de desejos carnais, factores que o realismo encara como os que causam destruição da família e da sociedade. Quem experimenta essa desestruturação é a personagem Marito que, vivendo maritalmente com Jéssica, decide sair, num fim-de-semana, para beber cerveja com Fidjó, na companhia de duas mulheres. Ao longo da bebedeira, atiçados por estas, cogitam saciar as vontades da carne e sem protecção (widas) nem remorso. Não tardou e, quatro meses depois, a esposa, que estava grávida, durante a pilha de exames de rotina, descobre que havia contraído HIV. Em decorrência disto, Marito também havia contraído a Sidinha, diminutivo do substantivo Sida (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida), cujo som e a grafia coincidem com o nome próprio mais humano, atribuindo-se, assim, o título ao texto e criando-se no leitor a ideia de que o texto fala de um perfil de uma mulher, todavia, lendo-o é que se percebe que Sidinha é, porém, uma doença.

Estes eventos marcam, deveras, o ano 2020 e 2021. O tempo e os seus efeitos fizeram-se determinar para a morte em «A Triste História de Pedrito», por exemplo. Pedrito, em tempos de Covid-19, convidou alguém que conheceu numa festa clandestina (uma vez que o Decreto Presidencial impedia que ocorressem), instado por substâncias para a demonstração da potência sexual (gonazololo). Para o seu azar, a parceira não consegue se fazer presente devido ao Recolher Obrigatório, tendo procurado por outras, já que são múltiplas. Ainda assim, os eventos do dia não lhe favoreceram. Pedrito foi levado ao hospital, onde viria a perder a vida.

Não muito distante do amor fisiológico, percebe-se, quando depois de catorze dias internado devido à Covid-19, foi declarado óbito o protagonista de «Beijei Covid-19», que se envolveu sexualmente com a namorada, que estaria infectada pela Covid-19.

O momento de caus pandémico propicia, por causa do isolamento, vontades. Então, isolar a Natureza da Biologia não é fácil. Ao longo da leitura, lê-se a história de Chiquinho, que conheceu Chelsea no Facebook e, dentro de 24 horas, consumara o que é próprio de casados: manter cópula. Após acompanhá-la a casa, ela pergunta-lhe o que afinal eram. Chiquinho respondeu que eram “Sensíveis Seres Humanos”, dando, assim, título ao texto. Título este que se encaixa perfeitamente no Realismo do que se vê mas não se demonstra.

Na escrita de Nhangumele não são apenas personagens jovens que se perdem. O pecado, no sentido de erro, gere consequências, pelo que a morte é a punição, consequência óbvia. Ninguém escapa nem por benevolência, misericórdia ou milagre. Por outro lado, o adultério deteriora a família. Razão: o amor fisiológico. Em «O Bom Filho Sempre Volta a Casa», pai de Ntavasi abandona um casamento de quarenta e cinco anos, devido a uma terceira esposa: jovem, de atributos jamais vistos que, quando este denotou estar doente, decidiu regressar a casa, debilitado e envergonhado. Consequência: não levou duas semanas, perdeu a vida.

A denúncia dos desequilíbrios sociais, os conflitos do Homem da época (2020 e 2021), os problemas concretos, os dramas cotidianos que estão ancorados no presente histórico, são evidenciados de maneira objectiva, própria do Realismo. O cúmulo desses dramas são retratados, por exemplo, em «Redes Sociais», onde Mathauzi, motorista de transporte público, se faz, cedo e junto do seu cobrador, ao parque dos transportes, onde se põem a carregar os passageiros. Neste ínterim, Mathauzi é surpreendido pela morte, enquanto embalava um sono profundo do qual não acordou mais. Facto curioso do tempo é a falta de humildade e empatia. O comportamento dos motoristas, passageiros e fiscais ao perceber que Mathauzi não dava sinal de vida não era de prestar primeiros socorros, mas, sim, registar com as câmaras fotográficas a situação, de forma a partilhar nas redes sociais, rematando, assim, a harmonia entre o texto e a epígrafe: “Rede social é ilusão, atrai quem está longe e distancia quem está perto”. Trata-se, portanto, da realidade que se demonstra e se vê.

Bibliografia:

Nhangumele, C. (2021). Vinte (e) Vinte (Um). Maputo: Bantus.
Barthes, R. (1987). O Prazer do Texto. Brasil: Editora Perspectiva.

Levei flores para ir votar. Votar tem de ser com sentimento, as escolhas têm de ser feitas com amor, o futuro precisa disso: amor!, por isso levei flores.
Acordei cedo, naquele dia, à hora dos que não têm licença para despertar depois do sol. No banho, sem a urgência dos dias em que tenho de ir trabalhar, dei por mim um tanto piegas, a assobiar, um assobio romântico, baixinho, quase surdo, sob o ruído molhado das bátegas frias do banho.
Era uma melodia antiga que me saía dos lábios, que só as pessoas da minha idade grisalha reconhecem. Um hino dos tempos em que se falava do povo com muito perfume e sentimento na voz. Daquelas melodias que em vez de dançar, apetece marchar. E marchei com brilho nos olhos, para a paragem dos chapas.

Pelo caminho, num quintal ajardinado, ajardinado como o futuro, com plantas que espreitavam curiosas para a rua, colhi flores, as mais belas flores, assobiando aquela música que fala do povo, indiferente ao cão que de dentro do quintal salivava e ladrava.

Reconheci o posto de votação à distância, pela longa fila à entrada. Endireitei as roupas e as pétalas amarrotadas na enchente do chapa em que ensardinhei, aprumando-me para o evento. Enquanto a fila fluía como uma serpente preguiçosa, eu assobiava aquela melodia e fechava os olhos ao aproximar o nariz àquelas flores, provando-lhes os perfumes.

Pousei as flores sobre o púlpito onde iria apoiar os cotovelos para preencher os boletins de voto. A solenidade do momento pedia-me para parar o assobio. Parei, mas a melodia da música que fala do povo ecoava na minha cabeça. Segurando o queixo, introspectivo, como se o pensamento me saísse pelas barbas, pus-me a pensar que aquele momento, pela importância, merecia mais pompa. O meu voto era com amor, não merecia estar a ser feito assim, friamente. Mais do que fechar os olhos e atirar moedas a um poço de desejos, o meu voto era uma delicada carta para o futuro.

Como no amor em que os corpos merecem os cuidados horizontais de uma cama, aquele momento merecia o conforto de uma escrivaninha, um banco adornado em que eu me sentasse, ao lado de uma janela com uma vista para o país, que me inspirasse para aquela carta: “Querido futuro…”.
Mas porque na falta, o amor inventa cama em qualquer lugar, votei assim mesmo. Com o peso da minha mão e caligrafia grave, fui sentenciando com um enorme X sobre os rostos dos políticos no boletim de voto, como quem desenha corações no canto perfumado de uma carta de amor.

Despedi-me “Atenciosamente…”. Dobrei-a pelos principais pontos cardeais como se dobrava nos tempos em que cartas e flores ainda não se enviava por correio electrónico. Introduzi-a no enorme envelope que a urna é e, como aquele velho carimbo sobre os selos, a tinta indelével manchou-me o dedo.

Mas não foi o indicador que meti no frasco de tinta indelével. Preferi um dedo mais comunicador, trabalhador, experiente esgravatador, garimpador incisivo, conhecedor de profundezas, das mais abissais vísceras, pois democracia é a liberdade de enfiar o dedo que eu quiser naquele frasco, consciente de que o meu voto é um leve manguito… indelével.
Depois de fechar os olhos e cheirá-las, deixei ficar as flores sobre a urna de votos. E caminhei lenta mas firmemente, para o futuro. Não me saía do assobio aquela melodia que fala do povo.

Logo à entrada da Sala Grande do Franco-Moçambicano, uma campa. O relógio marca 20:16 e, com pouca luz, mesmo para corresponder ao cenário montado, o palco toma a imagem de um cemitério.

Como que arrepiados pelo que vêem, os espectadores vão entranhando, com algum cepticismo denunciado nos passos e nas conversas. Uns perguntam aos outros o que ali vai acontecer. Mas a resposta só começa a ganhar sentido nove minutos depois, quando a performance Mhamba, de Leco Nkululeco, revela-se a coisa mais importante naquele centro cultural.

Essencialmente, Mhamba – o céu também se alimenta de estrelas é uma performance multidisciplinar, em que a declamação, a representação, a música e a dança combinam elementos na composição de uma história feita de tantas outras histórias marginais.

Por um lado, a performance de Leco Nkululeco coloca no palco actores cuja responsabilidade é fazer o público imergir num mundo místico e absolutamente imprevisível. Nisso, há um bebé que é entregue aos deuses como mhamba, ou seja, como sacrifício no que corresponde a uma prática cultural tradicional.

A lembrar “Quenguelequêze”, de Rui de Noronha, a cena inicial e tenebrosa da performance mescla numa só imagem o terror, a morte, o suspense e a expectativa. E, a partir daí, Mhamba apresenta-se como uma proposta capaz de prender a audiência enquanto a conduz a certas práticas culturais que também definem parte do Moçambique é na sua diversidade.

No que à representação diz respeito, é preciso destacar Mathusse (Paulo Inácio), Jéssica (Érica Chongole), Marta (Dalila Figueiredo) ou Laura (Clarice Matsinhe). Estas são algumas personagens que conduzem a história de uma viúva que, mesmo depois de enterrar o marido, não tem a paz necessária para continuar a viver com alguma alegria e sossego.

Na verdade, o marido de Laura, Mathusse, das profundezas da morte, consegue voltar ao convívio dos vivos, atormentando quem, farta do luto, quer ver na vida outras cores. Segundo uma curandeira, o que Mathusse realmente reivindica é voltar a casa e à sua esposa. É mais ou menos a essa altura que, a campa improvisada no palco justifica estar ali montada. Numa originalidade contagiante, quando, de facto, fica claro que o mundo dos mortos interfere no destino dos vivos, eis que Mathusse vence a morte, a fronteira da campa e aparece para se envaidecer na companhia da esposa Laura. Quer dizer, mesmo morto, Mathusse recusa-se a deixar Laura disponível, mas, mesmo assim, há sempre um homem que a desperta interesse.

A história de Laura e de Mathusse é contada de forma intercalada. A dança, zoré, por outro lado, materializada por bailarinas como Néusia Magaia, Glória Moiane e Lúcia Machavele, introduz no universo do enredo uma das formas de expressão das várias comunidades moçambicanas, que dançam quando estão felizes ou quando se encontram tristes.

Zoré atravessa a performance, mas o que realmente impressiona na obra de Leco Nkululeco é a vibração sonora de Helena Rosa. Cantando como se fosse a última vez, a cantora convence e adiciona a Mhamba algo que, sem ela, não poderia ser a mesma coisa. Claro, as contribuições de Jorge Domingos (guitarra), Mauro Steinway (piano), Makoneny (percussão) e Mole Mussoco (baixo) tornam ainda o conceito de Leco Nkululeco muito válido e apropriado para quem se interessa em viajar pelo plano desconhecido, dos sonhos, dos mistérios e do estranho.

Não obstante deixar-se acompanhar pela música, ora cedendo espaço para dança ou para representação, na performance Mhamba cabe a Leco Nkululeco conduzir a narrativa com a palavra poética e sugerida. Bem dito, o poeta e performer é o centro do universo, o lugar incomum de uma criatividade diferente e ousada.

Ninguém pôde prever o que é Mhamba e o que o seu autor quis apresentar na Sala Grande do Franco ao longo de 90 minutos. Talvez, por isso também, o público deixou-se levar pela espectativa, reagindo fervorosamente com palmas a cada vez que um número da performance terminava.

Ao mesmo tempo que o texto ganha sentido com as intervenções dos artistas, a componente audiovisual e cenografia destaca-se por garantir que o palco seja, de facto, um mundo por redescobrir. Para o efeito, Alfredo Semo (cenografia), Dadinha da Graça (caracterização), Bhaka Yafole (vídeo), Itar Cachimbo (luz) e os contrarregras (ágeis na inserção e retirada dos objectos do palco) definiram os caminhos para o sucesso de um sacrifício que tem seu mérito.

 

 

Pedro goiabeira é, no mínimo, um ser que se auto abomina, tudo a começar pelo espermatozóide que o concebeu. Não se conforma com o facto de o mesmo ter somente o proporcionado uma rasteira existência. Para além da mente, agora os ombros são outro atrofiamento, pois parece ter um macaco nas axilas que os levanta, numa infinita busca de mais algum centímetro. Dor original viver na respiração de poeiras da sola dos transeuntes! Pode esticar os ombros, mas por questões anatómicas, o nariz, esse, por mais empinado que se apresente, jamais se livrará do nível da poeira em que foi concebido. Um pária é sempre um pária. Pedro Goiabeira sofre essa dor e busca forçar alguma rivalidade com as alturas que se afiguram diante da rasteira existência original. É certo que os ares da cidade libertam, mas, na pressa de urbanizar o espírito agreste, acabou deveras encruado. O que entende como maneirismo de maputenses, buscando assimilar a todo o vapor, apenas o tornou um ser desprezível. Por onde busca consolidação de alguma amizade, talvez pela proximidade do intestino grosso ao cérebro, é de vómito fecalóide e ninguém lhe aguenta a proximidade. Pedro Goiabeira na verdade é vómito em si na gravidade do seu mundo, onde procura viver, auto-ampliando-se as faltas da inexistência. Não se concebe a liberdade de viver sem buscar rivalidade com seres superiores à sua minúscula existência, de textículos falhados. Se não serve como pau mandado para as alturas, sob a espora de outra meia polegada, toda se armando de rancores doentios, vive fugitivo de si próprio, forçando rivalidades para a elevação da rasteira existência. Meia polegada mais outra meia, uma insignificante polegada. Goiabeira, rivalidade requerer semelhança, ou, no mínimo, proximidade física ou intelectual, pois, de contrário, mera zelotipia, a raiz de todo o complexo de inferioridade de que Pedro Goiabeira se reinventa. E porque quem canta seus males espanta:

“Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Por: Aurélio Ginja

Ó música.
Em tuas profundezas
Depositamos nossos corações e almas.
Tu nos ensinaste a ver com os ouvidos
E a ouvir com os corações.
Khalil Gibran
In “A Voz do Mestre”

Há algo de divino na música, que a torna inseparável da voz sagrada da poesia! Por isso, Falso Poeta, vestindo a alma de Rudêncio Morais, cidadão mundano apaixonado pela música e Rudêncio Morais encarnado em Falso Poeta, lavrador da palavra, decidiram juntos e com identidades distintas, mas em comunhão fraternal, embarcar nesta aventura lírica em que a pena literária e a tecla musical de diversos autores se juntam, a beira da paisagem de letras e sons que este livro sugere. Assim, temos uma parte inicial onde o Falso Poeta em jeito de prelúdio, celebra poeticamente a sua existência no Reino Interior de Rudêncio Morais, e uma segunda parte onde Rudêncio Morais, ele próprio traz a lume os pensamentos que lhe afloram à pele da alma, quando se depara com certas melodias que lhe permitem entrar em comunhão espiritual com os seus compositores e/ou intérpretes!

Nas longas conversas estabelecidas com Rudêncio Morais, com a aparelhagem musical ligada como pano de fundo, foram frequentes as ocasiões em que a inacreditável beleza de uma cancão deixou-nos, subitamente, de lábios emudecidos, pontuando a nossa fala de etéreos pontos de exclamação ou místicas reticências.

A música tal como a concebe Rudêncio Morais é filha, mas também mãe do silêncio. Toda a palavra, depois de uma música sublime, é profanação, porque uma vez ouvidas, é no coração do silêncio, que as músicas mais sublimes desatam gentilmente os nós dos nossos mais secretos sentimentos. Neste sentido, uma vez que a música, incluindo a instrumental, muitas vezes anda de mãos dadas com a poesia, entrelaçando som e silêncio, confinantes e confidentes estas duas artes remendam a linguagem dos que se amam fazendo desabrochar segredos sem os revelar totalmente, enredando artistas, leitores e ouvintes, nas confidências secretas dos seus acordes, ou nas entrelinhas encantadas dos seus versos!

Por isso em algum momento: “Dei por mim pensando em nós, e no silêncio das lembranças que me remetiam a nós, decidi regressar, prender o tempo e roubar de nós uma foto, percorri no transpirar da alma as picadas sinuosas do nosso começo, amaciei a profundidade do nosso primeiro beijo, toquei-te quando ainda sonhava sugar-te a essência, balanças-te a minha estrutura e juntos sonhamos o amor, regressei ao luar das descobertas… “ Falso Poeta

Há algo de fortalecedor na música, que inspira as almas a fazer acrobacias sobre o abismo e a enfrentar com destemor os mais ingremes promontórios! Há algo de transcendente na música que liquefaz a alma em oceanos de ternura e as faz desaguar rios de perdão! Assim o revela o impacto de muitas das músicas e dos poemas alvos dos comentários emocionados do cidadão Rudêncio de Morais, tomando de empréstimo, as empreitadas literárias do Falso Poeta!

Assim , as analogias entre estas duas manifestações artísticas, poesia e música, fundem-se numa relação de intima conexão, porque ao fim e ao cabo o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e metros e rimas não passam de correspondências, ecos, da harmonia universal, como diria o genial poeta Octávio Paz.

Por isso, no nosso meio, em Eduardo White, por exemplo, o eu-lírico de Dormir com Deus e um navio na língua, ao reflectir metapoeticamente sobre o seu próprio percurso, embebido de sons e sonoridades que desabrocham da sua criação literária, proclama enfaticamente: «A música aprofunda-nos, eleva-nos para dentro, para os ilimites que somos e não nos apercebemos. Azul e quente, amarela e doce, verde e fresca. A música a arder toda como se vinda de tudo. Da língua na música e da música da língua.» (p. 27)

O Falso Poeta encarnado em Rudêncio Morais e vice-Versa, nos faz sair do nosso mundo confinado (para empregar um termo que a pandemia dos últimos tempos carimbou) para entrar num outro, que afinal, legitimamente, nos pertence, um mundo de beleza, formas e fronteiras fugazes, fugidias e expansivas: o mundo da música desfraldada pela alma de alguns dos nossos músicos mais significativos. Nesse outro mundo, tomando-nos pela mão e tendo como bússolas orientadoras as letras, ritmos e melodias de Twenty Fingers, Constâncio, Carlos Gove, Deltino Guerreiro, Assa Matusse, para dar uns exemplos apenas, nos libertar da pequenez do nosso quotidiano e experimentar, ainda que momentaneamente, uma felicidade sublime. O Falso Poeta fá-lo através de um percurso que transmite a essência do seu ser existencial, porque a música é parte do seu eu poético, ciente que para o conhecer e o amar, torna-se vital conhecer e amar as músicas que ama. Como canta Rui Veloso: não se ama alguém que não ouve a mesma canção. São músicas moçambicanas que nos marcaram e diante das quais ele nos convida a abeirarmo-nos do altar da beleza . Terminada a escuta das mesmas Rudêncio Morais, através dos seus textos evocativos, oferta-as novamente aos autores e aos ouvintes, emoldurando-as com a linguagem poética da sua inspiração. Por isso, diante deste Ecoar Musical da Gente, termino com uma oração, que aprendi de um frei amigo: Deus Todo-Poderoso, que nos destes a vida, os sons da natureza, o dom do ritmo, do compasso e da afinação das notas musicais, continua a conferir aos nossos músicos a graça de conseguir técnica aprimorada nas suas vozes, a fim de que os sons por eles emitidos continuem a manter a virtude de acalmar nossos irmãos perturbados, curar doentes e animar os deprimidos, que sejam brilhantes como as estrelas e suaves como o veludo. Permita, Senhor, que todo ser que ouvir o som dos nossos instrumentos, sinta-se bem e pressinta a vossa presença.

Parabéns, Rudêncio Morais, parabéns Falso Poeta, por esta aliança magistral em que a poesia e a música moçambicana se irmanam nesta obra e nos nossos corações, porque, tal como o diz Rudêncio Morais: “A música, por vezes, se nos é intemporal, e com ela, tecemos os lábios da voz na qual a língua ganha forma e expressão. Somos também isso, o mosaico cultural e multilingue, que se nos é apresentado de forma transcendental a cada número dos nossos músicos, buscando mensurar o tempo.”

Atenciosamente.

A descolagem do voo 29 09 23 CCFM foi marcada para 20 horas em ponto. No entanto, talvez por influência da companhia de bandeira, atrasou cerca 15 minutos. Nada grave. Enquanto os motores do Boeing EC SP respondiam à prova dos pilotos, os passageiros, alegres, lá ocuparam a Sala (Grande) de Embargue com boas conversas e muita expectativa.

Alguns passageiros, ainda comentaram sobre o último concerto do guitarrista, na Galeria do Porto de Maputo. Outros, por terem perdido esse concerto, também foram ao Centro Cultural Franco-Moçambicano, esta sexta-feira, para experimentar uma viagem anunciada ao ritmo do Sense of presence. Portanto, 15 minutos depois das 20 horas, Elcides Carlos e a sua banda apresentaram-se no local onde quiseram ser felizes.

Antes de tocar o que quer que fosse, o guitarrista, qual comandante prestativo, desejou aos seus passageiros e tripulantes uma boa viagem pelo concerto que designou Jazz Aboard.

Aí, sim, já com os motores aquecidos e com todas as verificações realizadas, o Boeing EC SP percorreu a pista numa velocidade constante de 250 km/h e, quando o avião pilotado por Elcides Carlos atingiu os 340 km/h, os passageiros sentiram qualquer coisa de diferente. Primeiro, o corpo inclinou-se vagarosamente para trás. De seguida, pelas pequenas janelas da aeronave, foram apreciando os tamanhos das pequenas coisas ao mínimo pormenor do som da música vibrante e contagiante.

Tudo começou com uma combinação de solos. Elcides Carlos (guitarra e vozes) e Sarmento (saxofones), já além das nuvens, lá questionaram aos passageiros “O que seria?”. Na verdade, esse é o título da quinta música do Sense of presence, que, entretanto, foi a escolhida para prenunciar o que seriam as duas horas de concerto.

– Ao vivo, “O que seria?” parece mais música do que no álbum. – Disse Amosse Mucavele, e Luísa, uma amiga brasileira do poeta, concordou, com gestos e movimentos. No palco ou, se preferir, no cockpit, Elcides Carlos não ouviu qualquer comentário em relação ao seu primeiro número. Pelo contrário, como se ensaiasse, absolutamente descontraído, foi conquistado os sorrisos e os aplausos daqueles que, aparentemente, não o conheciam muito bem em termos musicais.

Bastaram uns cinco minutos para o autor de Sense of presence prender atenção de todos mesmo sem precisar de recorrer à sua voz. Depois de “O que seria?”, os aplausos do público, esses passageiros do Boeing EC SP, superaram qualquer outro som. Com isso, o artista percebeu que o “mais difícil” estava garantido. Desde aquele instante, a viagem prosseguiria a uma velocidade cruzeiro e, certamente, ninguém diria Paragem, cobrador, que, a 11 mil pés, o voo não tem nem cobradores e tão-pouco paragem. E se algumas pessoas ousassem pegar num paraquedas para pular do avião abaixo, com certeza teriam ouvido o comandante do voo dizer “Salve-se quem puder”. Mais do que o comandante, entretanto, os passageiros ouviram Sheila Malijane, a corista que, repetidamente, cantou “Cada um por si e Deus por todos, e salve-se quem puder”, fazendo-nos entender que “Salve-se quem puder” é o título da quarta música do Sense of presence.

Gingona, dona de si e com uma confiança “terrível”, como se a tivessem dito que não existe uma corista que a supere, Sheila Malijane imprimiu o timbre particular da sua voz naquela e em tantas outras músicas, durante o concerto. É uma boa menina e com enorme potencial para evoluir e tornar-se algo que certamente ainda não atingiu de todo!

De facto, Sheila Malijane esteve bem e pode-se dizer o mesmo de Gilson. Ambos formaram uma dupla equilibrada, em muitos casos, fazendo esquecer intérpretes que, por um motivo qualquer, não puderam embarcar nessa viagem pelo ritmo jazz proposto pelo cicerone Elcides Carlos.

Ora, se, por um lado, os coristas souberam acompanhar o guitarrista, por outro, é preciso que se retenha e bem o nome Sarmento. Nos saxofones, fenomenal! Sarmento é um monstro num corpo pequeno, um talento puro e que deve possuir uns 10 pulmões. Só assim se justifica que sopre do jeito como fez durante o voo cruzeiro no Franco. Sopro limpo, envolvente e comovente, como se já tivesse passado por um filtro. Muito provavelmente, depois de Elcides Carlos, o grande destaque da noite foi Sarmento, que foi intercalando saxofones, mas mantendo sempre a flexibilidade de adicionar à música a sonoridade com a qual se faz a “Sedução” então cantada por Sheila Malijane e Gilson.

No concerto Jazz aboard, nem sempre as músicas do álbum Sense of presence foram interpretadas da mesma forma. Por exemplo, os temas “Halatha”, “Ha fana” e “Tivoneli” tiveram arranjos e prolongamentos diferentes e igualmente sugestivos, com a contribuição de Tony Paco (bateria), Nicolau Cauneque (teclado), Lelas (baixo) e Alcídio (percussão). Foram estes membros da banda que, ao fim de cinco temas, acompanharam a primeira convidada da noite. De repetente, houve uma paragem a 11 mil pés e, inexplicavelmente, Lalah Mahigo entrou no Boeing EC SP para alegrar a tripulação e os passageiros.

Radiante, Lalah Mahigo interpretou “Dza Nadzika”. Do ronga, qualquer coisa como “é agradável”. Deu gosto de ver e ouvir. Lalah esteve em forma e cantou como sabe, enchendo o palco com a presença em todo lado. Os pés descalços ajudaram-na nos movimentos, e, talvez por isso também, a cantora cantou como se não desejasse se retirar do palco.

Se Lalah Mahigo foi incrível interpretando a sua própria música, Bhaka Yafole não quis e nem ficou atrás. O “barbudo” foi ao Franco com “Dietas da moda”, sexto tema do Sense of presence. Certamente, com Bakha em palco teve-se um dos melhores momentos do concerto, com boa parte dos passageiros a armar-se em cantores quando de cantar só sabe desafinar.

– Bhaka Yafole é mau! – Interveio novamente Amosse Mucavele, quase no mesmo instante em que uma bela jovem vestida de vermelho virou-se para trás, cantando e anuindo o que o poeta disse em voz alta. Se além de escrever o poeta também fosse bom de dizer coisas bonitas ao ouvido de miúdas bonitas como aquela, talvez, tivesse reparado que ali poderia ter acontecido mais alguma coisa. Medroso ou prudente, continuou a curtir o concerto, com uma lata de cerveja na mão, e assim salvou o seu casamento. Claro que Elcides Carlos também não percebeu nada disso. Nem a iminência da sedução, nem o brinde pelo seu sucesso que Amosse Mucavele fez com o escritor Celso Cossa.

Seguiu-se a música “Mhango”, um tema que retrata um assunto grave. Essa foi uma das músicas em que Elcides Carlos emprestou a sua voz, penetrando ainda mais a alma dos que entendem ronga/changana.

Faltando uns 15 minutos para o voo aterrar, subiu ao palco aquele que contribuiu e muito para Elcides Carlos aperfeiçoar a habilidade de guitarrista: João Cabral. Os dois guitarristas tocaram “La cabralinas” e “Niwa makombo”.

O som dançante desse tema aproximou um casal como não se tinha visto até aí. Ela, busy em dançar, puxou o marido, um moço de uns 60 anitos. Ele, meio envergonhado, resistiu e conseguiu evitar lá apresentar-se à frente de todos, bem pertinho do palco. Ela, mesmo busy em dançar, olhou para os lados e viu o escritor Celso Cossa com uma garrafa verde na mão. Fazendo o uso das suas habilidades, deixou estar a garrafa, que já tinha perdido a importância, e segurou naquela beleza loira, olhos quase azuis, uns 47 anos de idade, e coloco-a a rebolar com todo respeito.

O parceiro daquela dançarina improvisada, pode ser envergonhado, mas de distraído até que não tem muito. Ele viu quando o escritor disse alguma coisa no ouvido da mulher. Ela sorriu com gosto e, de seguida, começou a apontar a direcção do marido. Ele, compreendendo o espírito cativante da arte, finalmente teve a coragem de descer as escadas sorrindo e lá foi, finalmente, ocupar o seu lugar diante da parceira. Enquanto se sentava, Celso Cossa ouvi um bêbado dizer:  – Ukinili ni mulungu, bay?! Não reagiu.

Foi mais ou menos nessa altura que, rematando, Elcides Carlos disse algo assim: – Conseguem ver este casal a divertir-se? E você aí, Utiva yini hi kuhanya wene?

Ao invés de qualquer resposta à pergunta, todos lembraram-se de desapertar os cintos de segurança. Dançaram durante o voo, animados, confirmando que o valor do bilhete estava mesmo a valer a pena. Ouviram então “Tivoneli” e, de seguida, “Hita vonana”, um tema com um carácter religioso apreciável. Mais uma vez nos coros, Sheila Malijane teve a oportunidade de gingar com a sua voz. Muito dedicada ao que fazia, não viu uma meia dúzia de rapazes a disputar sem sucesso a sua atenção.

Já a maior parte dos passageiros, lá iam acenando a mão em jeito de despedida, sentindo o Boeing EC SP a atravessar as nuvens em direcção à pista de aterragem. Poucos minutos depois, por volta das 22h30, o avião tocou o solo, percorreu a pista internacional com a recomendada velocidade decrescente até imobilizar-se. Do cockpit, o guitarrista espreitou a cabine dos passageiros e lá viu um letreiro com letras garrafais: – Wene kê, Elcides Carlos, Utiva yini hi kuhanya?

O artista sorriu. Todos outros passageiros imitaram o gesto e puseram-se fora do Boeing EC SP, porque, mesmo à entrada da Sala Grande, tinham de comprar Sense of presence, uma bela viagem pelo melhor do jazz que se tem feito em Moçambique.

 

*O que tu sabes de viver ou de se divertir?

Quando a amiga Zena Bacar do Eyuphuro, vitimada pelas armadilhas da vida, seguiu para o infinito das estrelas, para cantar nos palcos da consagração, quis dedicar algumas palavras de afecto que exaltasse o seu carisma. A sensualidade e beleza inigualável das jovens mulheres Emakuwa. Retomar ao colorido da capulana, a vaidade dos corpos franzinos, enfim, queria ter feito jus à profunda, melancólica e, quase sempre, soberba voz da Zena que roubou do Tufo. Exuberante e, poucas vezes, lacónica, Zena Bacar era vaidosa e esbanjava sorrisos que espalhavam a magia e o poder do feitiço dos seus gestos sensuais. Ela, na sua majestosa variação de tons musicais, viveu para atrapalhar os espíritos e equivocar corações.

Os jovens da minha geração, agora de cabelo grisalho, ficarão, eternamente, associados à sua Muara ya N´ rake (esposa do Senhor N´Rake). O icónico hino que atravessou tempos e espaços, do norte de Moçambique, dessa voluntariosa etnia Emakuwa, espalhada por África e pelo mundo. Nunca me perdoei por não ter feito esse elogio. Chorei, no silêncio da dor, a sua partida. Zena Bacar nem deve repousar. Continua activa e cantarola para os anjos. Completaria, neste Agosto, 74 anos. Procuro, ainda, explicações para esta manifesta omissão. Apenas as emoções poderiam ter paralisado os meus dedos e silenciado a minha consciência. Testemunhar o nosso tempo e revisitar a trajectória de uma voz que viveu para lá do seu tempo, e que permanece, incomparável, como uma das mais conhecidas intérpretes femininas do cancioneiro moçambicano.

Neste exercício de remissão e indulto reencontro esta janela entreaberta, para cruzar Zena Bacar e os iconoclastas Ghorwane. Eles, os bons rapazes de Samora Machel – agora, igualmente, celebrando os 90 anos do seu nascimento – coincidem com a celebração dos seus 40 anos. As bodas de esmeralda duma monumental carreira, do inimaginável impacto social, e da irrepreensível matriz que souberam gerar e preservar. Os Ghorwane são uma decorrência de um tempo revolucionário conturbado, de um período de afirmação e aporias, mas, e sobretudo, dessa inolvidável geração do 8 de Março que assegurou um país sonhado socialista e moldado capitalista.

Ghorwane e Zena Bacar ou Eyuphuro do Gimo Abdulremane foram os pioneiros moçambicanos do bem conhecido World Music. Para além deles, só o Conjunto RM ou Marrabenta Star e a CNCD alcançaram patamares tão visíveis no exterior.

Teríamos de revisitar o músico britânico Peter Gabriel, afortunado compositor, progressista e activista de diferentes causas sociais, para entender este percurso. Peter Gabriel foi, originalmente, vocalista dos Genesis. Em 1975 inicia uma carreia a solo, abandonando os Genesis. Vira activista em diferentes áreas sociais, incluindo políticas. Combate o apartheid sem tréguas. Abre um espaço privilegiado para promover ritmos e sons de outros países em desenvolvimento. Cria vários álbuns que são designados pela crítica como Eponymous. O último ficou conhecido como Jogos sem fronteiras. Pegou na luta de Steve Biko, líder do ANC, e deu voz à luta contra o regime racista. Impacta o mundo com uma postura que mostra maturidade e consciência política.

Esse apoio declarado a Steve Biko conta com a colaboração de Youssour N´Dour. Ambos lançam a última tentação de Cristo. Os artistas convidados são africanos. Peter Gabriel sempre advogou pelo princípio de aglutinar artistas da Ásia e América Latina. Vence o Grammy e outras distinções em 1992 e 1993 e se afirma, em definitivo, como o maior promotor musical e cuja tecnologia já superava a música da época. Terá sido nos CDs XPLORA e OVO que colocou os nossos compatriotas Zena Bacar e Ghorwane. Esta saga pela exposição dos artistas africanos ainda o levou a vencer um prémio especial da Amnistia Internacional e outras distinções honrosas.

Convenhamos que a World Music foi, então, responsável pela gravação de uma incontável e selecta nata de artistas africanos, incluindo o congolês Tabu Ley Rochereau, da famosa Kwassa Kwassa e esposo da Mbilia Bel, que tanto agitou as nossas ancas, e ainda o tanzaniano Remmy Ongala, Salif Keita do Mali, Toure Kunda, Papa Wemba. Um naipe inesgotável.

A World Music foi uma forma erudita e genuína de promover as interpretações dos africanos. Convenhamos, uma forma de escapulir das ortodoxas regras do mercado musical mundial. Todavia, não isento da armadilha de penetração num mercado que obrigava a esconder a linha da originalidade e identidade. Apesar de tudo, Peter Gabriel tem o mérito e o crédito de ter aberto essa frente de divulgação.

Os Ghorwane sucederam a Zena Bacar e Gimo Abdulremane. Majurugenta foi o cartão de visita. Voltaremos lá. Estas bodas de esmeralda do Ghorwane acontecem quando eles voltam a incendiar palcos e plateias, aquecem esses verões europeus, já de si com as temperaturas inconfortavelmente quentes. Não admira, pois, que neste libelo contra o meu próprio esquecimento, auxilie a reavivar algumas facetas. Ninguém tem o direto de se alhear destes bons rapazes, parte do património musical mundial.

Quando, em 1978, a decisão do governo de colocar jovens, de todo o país, para se formarem e preencherem as vagas deixadas pela debandada colonial, não poderíamos imaginar que a história musical, deste país, estaria sendo escrita com letras douradas. O projecto de unidade nacional dinamizou a música. De norte a sul de Moçambique, houve uma verdadeira explosão musical. Grupos e cantores como o eterno Alexandre Langa, Fanny Pfumu, e Orquestra Dambu, eram expressão exponencial. Pedro Ben e Wazimbo vinham do Chibuto para ferver as plateias musicais. Pelo centro e norte, a esquerda e direita, a música parecia andar na contramão da revolução. Era progressista e evolucionária.

Misturavam-se ritmos e cores. Era preciso cantar, como dizia o poeta Kalungano, o herói nacional Marcelino dos Santos. A minha geração ainda teve o ensejo de desfrutar de exímias bandas musicais. Com saudades me recordo da banda Primeiro de Maio (1º de Maio de Armindo Salato e Pedro Machado), de Quelimane, que tanto furor fez com verdes campos. A letra continua tão actual e vital para os dias que correm. Zambézia, aliás, foi terra de Lalarita e tantos outros. Nampula tinha Chico da Conceição e João Júlio Patinho no topo das preferências. Cantaram contra o que era imposto pelo sistema com linguagem camuflada. Aliás, Lázaro Vinho, de Tete, seguiu as suas pegadas.

Foram destaques, ainda, as vozes inimitáveis de David Mazembe, Madala e Romualdo, na região centro. O Eyuphuro de Gimo Abdulremane e Jaimito Matapa, na cidade de Nampula. O sul tinha outros pergaminhos. Desde o Alambique, de Hortêncio, Arão Litsure e João Cabaço, passando pelo Hokolokwe, os Galtons, José Mucavel, Guegue, Mingas, Willy e Aníbal, Fernando Luís, Bill Cuca, Chico António e Elsa Mangue – esses vencedores do prémio Rádio França Internacional – José Guimarães, Elsa Mangue, Filipe Nhassavele, Elvira Viegas e tantos outros, que gravaram na Rádio Moçambique (RM). A RM, diga-se de passagem, foi a catedral da produção e divulgação deste vasto património musical.

A RM foi o respaldo de tudo que aconteceu. Todavia, a música não desperdiçou outras oportunidades. Os estúdios da EME, de Eduardo Mondlane Júnior, irmão de Chud Mondlane – também ela, com voz dourada – emprestaram à música deste país uma tonalidade cativante. Deveria ser obrigatório a cidadãos como Eduardo Mondlane Júnior regressarem a música. Ajudar a recriar o talento juvenil. Stewart Sukuma fala, com saudade, do concurso da EME para a descoberta de talentos. A sua fornalha iniciou nesta época que, também, foi a base do Ghorwane. Mas existe, igualmente, mérito que deve ser estendido ao empresário e revolucionário Aurelio Lê Bon.

Privei com o Pedro Langa. Uma relação que me empurrou para a simpatia pelos Ghorwane. Pedro chegava do Chibuto, esse espaço musical incontornável. Filho de enfermeiros e de uma família musicada pelos irmãos mais velhos. Hortêncio Langa e Milagre Langa. Conceituados. No alto dos seus sapatos de tacão alto, calças boca de sino, cabelo a Jimmy Hendrix, chegava, por equívoco, para fazer professorado. Eu chegava pela mesma imposição. Também, de uma família de enfermeiros, mas sem músicos para embalar as noites de luar. Pedro tentou incutir a ideia de sermos todos músicos. Queria que todos os seus amigos tocassem violão.

A vida nos empurrou, depois, para desconfortantes situações. Rebuscávamos o sentido de missão. As tarefas revolucionárias eram irrecusáveis. Pedro não se ajustou e não escondeu ser avesso. Uma boa parte do nosso grupo aceitou, com reservas, e mesmo sem vocação ou motivação, seguiu a única carreira disponível.

Pedro não se alheou dos seus sonhos. Indomesticável, não cogitou, nunca, abandonar o seu violão. Qualquer sintoma de música incendiava o seu espírito musical. Cantava melodias conceituadas. Criava músicas em tudo que tocava. Cantamos algumas músicas que nunca foram gravadas. Essa força dos sonhos que nenhum tempo conseguiu afastar. Queria viver de uma forma diferente. O sonho da vocação que se opunha ao da revolução. O que o tipificou e fez dele melhor do que todos nós, foi mesmo a coragem. Enfrentou tudo e todos. Um sistema. Muitos dos colegas desertaram das fileiras e abandonaram o país. Os prosélitos não perdoaram. Outros sofreram as sevícias.

As revoluções se fazem de diferentes formas, episódios e epopeias. O nosso grupo aprendeu a fazer amizade com os compositores revolucionários. Calisto Mijico e Lindolondolo escreveram os hinos da revolução moçambicana. Aprenderam a compor na Coreia do Norte. Era a bandeira musical de tantos temas cantados na época. Aprendemos deles os ritmos ensaiados nos campos de Tunduru, Bagamoyo e Nachingwea. As canções que Eduardo Mondlane escutou, deixou-se encantar e cantou, tantas vezes, no clamor da sua revolução.

Toda a disciplina criou alguma saturação. Cansava a exigente disciplina e rigorosidade dos tempos iniciais. Isto fez com que se criassem focos de revolta. Próximo do corredor dos nossos quartos foram escritas, nas paredes, frases inimagináveis. Os serviços castrenses não toleraram. Condicionaram a expulsão de todos. Sem apelo e nem agravo. Perdíamos colegas e amigos cuja empatia não esmoreceu. O Pedro foi incorporado e foi cumprir o Serviço Militar Obrigatório. Para muitos de nós, pela primeiríssima vez, depois da independência, dialogávamos com um caminho da contra-revolução. Outros valores e exigências. Aprendemos que o pensar diferente era proibido. Não seguir a linha da ordem era proibido. Perigoso. Não se atentava contra a revolução. Não tardou e o centro do país voltou a escutar o ruído das balas e a ausência de paz. Não deu, sequer, para nos reconciliarmos como irmãos. Nem como irmãs. As notícias eram de ataques e destruição. A intransigência não encontrou antídoto que tivesse evitado a catástrofe.

Antes da sua expulsão, Pedro Langa, José Chambe e outros, ainda subiram por alguns palcos. Levava sons originais experimentados entre os colegas de curso. Sentíamo-nos representados. Eram, igualmente, os nossos sons. Apoiamos e preenchemos muitos dos lugares da plateia. Queríamos, também, saber como se comportaria o grande público. Muito aplausos, mas, também, desconfianças e alguma desaprovação.

Nelson Saúte escreve, no seu Planisfério Moçambicano, que a primeira apresentação pública de Pedro Langa, em 1979, no Teatro Scala e na companhia dos Hokolokwe, foi sofrida. Das duas canções originais que apresentou, nem por isso foi bem-sucedido. A plateia não queria, apenas, ritmos originais. Preferiam as músicas do estrangeiro. Sons mais quentes e que faziam as noites de festa. A despeito da adversidade, como refere Saúte, os verdadeiros criadores não são entendidos pelos seus contemporâneos. Todavia, eles estão muito a frente do seu próprio tempo. Parece que vivem em galáxias diferentes e funcionam como satélites fora do comum.

Anos mais tarde, soube que o Pedro Langa se juntara ao conjunto Mbila. Um grupo que tocava no edifício do Clube da Juventude, e que alegrava as mentes que procuravam entender a revolução sem desperdiçar a sua juventude. Nós deambulávamos um pouco por todo o país. As escolas caiam nas nossas mãos. Pedro Langa não chegou a entrar para nenhuma escola; porém, com agrado, sabia do paradeiro de todos. Vibrava com o empenho de todos. Nós retribuímos com cartas que ele nunca respondeu em detalhe.

Igualmente, soubemos que ele se aliara ao compositor e cantor Simão Mazuze. Simão, um músico de outras referências e valências, havia feito o serviço militar em Portugal, na força aérea, e já por lá, além-fronteiras, provara aos cidadãos portugueses a magia do seu talento. Simão Mazuze era irredutível, com toques de rebeldia no que fazia, cantava e dizia. Era igual a si próprio. Até de nome mudou e virou Salimo Mohammed.

O regime nunca o compreendeu. Foi enviado para Bilibiza, Cabo de Delgado. Longe de o silenciarem, ele regressou mais forte e mais convicto. Já não era apenas Mamana Maria a sua canção mais conhecida e forte, mas a sua famosa Bilibiza. Pedro e Simão Mazuze formam o Xigutsa Vuma. Um grupo e músicas de contestação, rebeldes e avessas ao que de pior o projecto de revolução oferecia ao país.

O Xigutsa Vuma, com Pedro Langa e Salimo Mohammed, ainda foi a tempo de conquistar o prémio de melhor composição nesses dificílimos anos 80. Eram os tempos da tenebrosa Operação Produção, que todos tentamos esquecer e perdoar, como moçambicanos, e os reflexos de uma política que correu com pouca feição e originou outros problemas transversais. Associadas à fome que começava a grassar um pouco pelo país, às arbitrariedades das guias de marcha e à guerra de desestabilização, existiam razões de sobra para escrever e cantar temas que marcariam os seguidores. Já conhecidos como controversos na abordagem das suas letras, o grupo tinha de tudo para singrar. Porém, terminou cedo e dois galos no mesmo poleiro não poderiam conviver por muito tempo.

Por volta de 1984, e fazendo eco nas memórias de Stewart Sukuma e do Roberto Chitsondzo, esse professor-músico, ou melhor, músico-professor de Educação Física, os concursos musicais de novos talentos lançados pela EME de Eduardo Mondlane Júnior, auxiliaram que os novos talentos surgissem pela praça.

Roberto Chitsondzo aproveitou a estadia em Inhambane para escrever alguns versos. Pouco depois, voltou a Maputo depois de ter sido transferido, por razões de saúde da sua filha primogénita, Neusa Chitsondzo, e ficou a leccionar na Escola Secundária Josina Machel. Nesse desiderato, Chitsondzo foi introduzir os Ghorwane para as gravações na RM, pois anteriormente haviam sido chumbados pela censura. Perdíamos um professor com habilidade desportiva, para um exímio tocador. Usava a destreza dos seus dedos para recriar sonhos e verdades escondidas. Da sua voz seriam extraídos ritmos assombrados. Palmilhou a cidade e se experimentou com vários músicos. Os Ghorwane, que estavam em banho maria, ganharam força. 1983 marcava, então, as pernas e o arcabouço para seguir pelo mundo dos sons que encantam e exaltam os céus. A música moçambicana agradeceu. O mundo também.

Um selectivo conjunto de músicos esteve associado aos Gorwhane, com realce para o saxofonista e vocalista Zeca Alage. Se o Pedro Langa era a alma, Zeca Alage era o espírito e a força que comandava o barco. Juntavam-se, também o baixista Lot, o baterista Hilário, e ainda o guitarrista Tchika. Para os sopros, Júlio Baza assumia as responsabilidades e garantia que os ritmos tinham um factor diferenciador. Ao grupo inicial juntaram-se David Macuácua, o Carlos Gove e o percussionista Dingo.

As letras e os conteúdos iniciais que estiveram a cargo de Pedro Langa e Zeca Alage eram de arromba. Para aqueles tempos eram mesmo de muita virulência. Cantavam o que o povo e os seus seguidores mais queriam escutar, a crítica social, o desacerto político, a guerra que dilacerava o país e o mercado negro que crescia a olhos vistos. Pedro Langa e, de alguma forma, Zeca Alage, conheciam muitos dos dissabores dessa oposição às políticas económicas e sociais do regime. Cantavam o que a alma os recomendava e faziam o delírio das plateias. O público apoiou e virou um aliado natural.

Roberto Chitsondzo toma a decisão, junta ao grupo e, a 23 de Junho de 1984, fazem o primeiro espectáculo, denominado Raízes e promovido pela EME, no cinema África, hoje tão descuidado e tão votado ao esquecimento. Hoje, os Ghorwane persistem e o cinema definha. Uma pena ter uma catedral musical tão voltada ao abandono.

Retorno ao Nelson Saúte, que tão bem os soube tipificar e glorificar num texto de homenagem escrito há cinco anos. Os Ghorwane, segundo ele, souberam transformar o sofrimento e a dor em alegria. E vai mais longe, não se limitavam a lamentar, como acontece tantos nos tempos actuais, e como muito se ouve do cancioneiro moçambicano, mas pautavam pela inovação e pela busca de ritmos tradicionais para os incorporar nas suas músicas e dar essa roupagem que fazia da sua música prístina, delicada e de uma agradável suavidade para os ouvidos dos seguidores. Mas, o mais importante, a meio de tanta agitação e ausência de consensos, era aproveitar o quadro da realidade social e fazer disso a moldura da tela para eternizar a natureza e beleza infindáveis das suas canções.

Era a profissão e a profecia de fé e de amor a um país e um povo, que eles tinham a missão de apoiar, entreter, educar e informar. Países com tantos problemas sociais precisam de um escape. Eram essas temáticas que invadiam a cabeça de qualquer compositor. Temática insubstituível. E se, desde o período da independência, a promessa da revolução eram a liberdade, a paz e o progresso, isso era, precisamente, aquilo que todos queriam cantar e escutar.

A crítica nunca é bem recebida por quem tem responsabilidades de governação. Na época, ainda, com os campos de reeducação vigentes, os serviçais do regime se assustaram com o desalento da classe. A crítica vinha de todos os lados. A guerra chegava às barbas da cidade e dos cidadãos. Não tardou que, para todos os espectáculos públicos, fossem enviados grupos de sequazes e seguranças à paisana, com o intuito, único, de captar os conteúdos, a apreciação do público e as mensagens. Uma espécie de avaliação do sucesso e uma medição do que tentava ser atirado para baixo do tapete e permanecia tão evidente como destapado. Foram tempos desafiadores. Cantar parecia ser a única forma de espantar os males. Moçambique, tão jovem, submetia-se aos pés da sua própria juventude e se assustava com uma faixa etária que sonhava, aspirava e queria outros rumos. Na realidade, queriam paz, desenvolvimento e liberdade. As promessas de um processo que não dependeria apenas de si e da sua conjuntura para prover estes meios todos às pessoas. Até o Presidente Samora Machel se assustou com a profundidade das músicas e versos dos Ghorwane. Presumimos, todos, que foram as informações deturpadas que foi recebendo e consumindo. O tempo ajudou. Escutou com a atenção do seu coração e sensibilidade. Depois, gerou a empatia, como a graciosidade que brincava com a sua própria alma. Virou adepto incondicional. Não tardou para que fossem convidados para os banquetes de Estado. Recebia as suas visitas no Polana e fazia do empenhado e rejuvenescido Ghorwane um aliado musical e um símbolo da própria moçambicanidade.

O presidente Samora Machel tatuou o grupo com a mecânica que a própria música criou. Queria continuar como um líder que se assumia como mestre. Nessa condição, entendeu que as obras sagradas dos seus jovens músicos representavam os valores de um povo que ele deveria liderar e saber escutar. Queria que os Ghorwane fossem a banda de referência e a realização da perfeição musical. Aliás, soube, nos últimos tempos, que o Presidente Machel ofereceu, igualmente, equipamento musical à Banda dos Massucos, lá do longínquo Niassa. Os Massucos nunca desapontaram. Transportam toda a mestria e a simbiose dos sons Yao, o ritmo cadenciado dos Nyanja, ambos adornados pela glória do Chioda e Nganda, as mais célebres danças do norte. O Mestre Santos, líder dos Massucos, ainda mantem esse violão presenteado e não se desfaz dele, em nenhum momento. Virou talismã.

A nossa alma é composta por harmonia, e a harmonia só pode ser gerada nos momentos em que as proporções do bem e do mal são desequilibradas pela própria vida e os seus sons. Os Ghorwane livraram-se da cerrada perseguição, sem que para o efeito tivessem de mudar a sua forma de cantar e vibrar. A música não deve ter outro nome que não seja a irmã da pintura. Assim, pelos ritmos e conteúdos dessa injustificada perseguição, passaram a ser apelidados por Bons Rapazes. Um nome improvável, mas apropriado e que quase assenta no original. Lagoa que nunca seca. A criatividade deu corpo à liberdade e algo bem mais supremo. Liberdade de criar. Com esta liberdade se criam as oportunidades para que as próprias liberdades individuais se corporizem e a sociedade se livre de amarras. Os direitos humanos entravam pela porta mais democrática da vida. O sentido que a humanidade sempre prezou. A dignidade que satisfaz o sentido mais digno.

Dois anos depois da criação da banda, Pedro Langa abandona os Ghorwane. Recordei aqui do temperamento do Pedro, mente brilhante, todavia, muito preso às suas convicções. Uma teimosia que era quase casmurrice. Não admira, por conseguinte que se tenham desentendido por alguma abordagem, ou pelo rumo, menos consentido, que a banda deveria seguir. Roberto Chitsondzo e Zeca Alage firmam-se como líderes substitutos. Ao grupo se junta David Macuácua. As canções continuaram impressivamente pungentes. Jamais deixaram de interpretar essa dor dos moçambicanos. Massotcha de Zeca Alage, o tema que dizia que a guerra não era solução e tinha custos demasiado elevados. Os investimentos, se ainda existissem, deveriam ser encaminhados para a aquisição de comida para a população. As armas, que eram caras, bem mais caras do que sacos de arroz, não serviam. Os Ghorwane mantinham a força do paradigma do quotidiano. Os recados eram para todos os envolvidos no conflito que fez milhares de mortes e milhões de deslocados.

O primeiro disco dos Ghorwane foi quase que uma encomenda da Real World. 1991. Majurugenta foi o nome do álbum de estreia. Com tantas outras canções, de inegável beleza e sempre com um substracto de mutimba, gravam este álbum na perspectiva de incluírem as músicas no World Music. Peter Gabriel está por detrás e tem a garantia que seria um sucesso. Pela segunda vez, Moçambique chegava ao topo da música internacional. Agora, eram dois os nomes mais sonantes. Eyuphuro e Ghorwane. O disco foi lançado em 1993.

Nem Pedro Langa e muito menos Zeca Alage estiveram presentes, em 1993, e levou algum tempo até que o disco tivesse sido finalizado, para testemunhar o sabor do seu sucesso, daquele que foi um muito celebrado e apetecido lançamento. É neste período que entra para o grupo João Schwalbach, para o lançamento do primeiro disco em Londres. Zeca Alage foi barbaramente assassinado. Foi, inexplicavelmente, retirada a vida de quem só tinha vida para dar e revelar. Com a sua partida desaparecia, na mesma proporção, toda a cor, beleza e magia dos sopros do seu indomável saxofone. Esse genial sopro metálico e que tanto ritmou dezenas de canções, surpreendeu os ouvidos mais exigentes e penetrou fundo no coração dos seguidores. Um sentimento de comoção tomou conta do país. A Televisão de Moçambique (TVM), estação de televisão pública, iniciou o serviço noticioso com o anúncio da sua partida. O triângulo que fez as fundações destes clássicos sofria um revés. Um furacão que parecia destinado a assombrar o que está escrito nas estrelas como parte dos sons deste Moçambique.

Ao longo dos anos, os Ghorwane continuaram a actuar para o público local e internacional com regularidade. Como qualquer banda no mundo, passam por períodos mais ou menos complexos e difíceis. A corajosa crítica social se manteve presente. As vicissitudes sugeriram mudanças. Entradas e saídas. Ainda assim, se reinventam. Pedro Langa partiu em 2001, igualmente, de forma misteriosa, ainda no calor de uma juventude que teria tudo para oferecer à música ligeira moçambicana. Mesmo não estando com o grupo, esta partida impacta. As honras lhe foram feitas em diferentes momentos. Depois, saiu do grupo David Macuácua, numa viagem para as Europas.

Roberto tem uma memória de elefante. Marcou a saída de Costa Neto do grupo. Uma digressão por Portugal e, simplesmente, não regressou ao país. Nada que estivesse nos planos, mas a conjuntura forçou e extremou estas posições. Carlitos Gove, Paíto e Jojo Moisés, também, em momentos separados. Marcou a saída de Jorge César. Mas as saídas, por vezes, se acompanham de reentradas. Chegou, também, sangue novo importante. Como o próprio Roberto coloca, o que ele mais gosta é chegar sem planos e fazer parte de um plano que estava traçado. Esses são os dois lados da mesma viagem. Tiveram músicos que chegaram para ficar e outros que partiram para nunca mais voltar.

As recordações não são cronológicas, muito menos por ordem de categorias e importância. Fez parte da banda a Tsala Tina Cândido. Eventualmente, a primeira mulher que emprestou a voz e trouxe uma forma diferente de estar. Nos anos 90, juntaram-se aos Ghorwane a Cindinha e a Betinha. Faziam coros e coreografias. Betinha seguiu para o infinito. Todavia, foi importante na performance. O bailado dela encantou Londres. Soberbas e memoráveis actuações.

Esse movimento de equilíbrios e reequilíbrios continua perenal e perpétuo. Por vezes, mais oportuno, e por outros momentos, com menos sabor e profundidade apresentados no conteúdo; todavia, marcadamente, na coloração dos efeitos especiais que as composições foram ganhando. Ao grupo se juntou Karen Boswell, uma artista que havia estudado música na infância e juventude.

Agradável surpresa também foi a Sheila, que integrou a banda e tocou flauta. Essa tonalidade que desperta todas as almas. Emigrou mais tarde para a Europa e por lá continuou os seus estudos. João “Joni” Schwalbach chega em 1993. Eram os primeiros 10 anos da banda. Trazia um som refinado pela tecnologia. Continua como coração da banda, com uma forma mais pausada de ser, a serenidade que sabe respeitar o caminho, mas que não se coíbe de impor um pouco da sua marca e do seu estilo. Assim o grupo se reergue. Faz da dor das partidas a forçaa da sua resiliência e do querer perpetuar um som que agrada diferentes gerações e prazeres.

40 anos de esmeralda e muito ouro à mistura. Ghorwane e os seus versáteis músicos e compositores podem não ser os mesmos, ou não manter a originalidade dos ritmos, mas continuam a não aceitar a resignação e a criticar de forma obstinada o exercício da cidadania. São 40 anos de uma música que revela a forma de viver e de estar dos moçambicanos. Uma prova contra a intolerância e a estupefacção. A manifestação mais viva de um povo que se libertou e que escolheu os seus caminhos. 40 anos e três álbuns que ficarão nos nossos corações – Majurugenta, Kudumba e Vana Va Ndota. São álbuns inesquecíveis e sublimes. Decénios de recriar o DNA, manter a fidelidade à poesia, ao ritmo e ao balanço. Essa caminhada que aborda as assimetrias sociais, das contradições do quotidiano, e a manutenção da fidelidade aos sons do nosso tempo. Dignidade e honra, num som espantosamente agradável e delirante. (X)

 

Por Lourenço Rosário
O papel de quem apresenta uma obra não é o de entrar no seu conteúdo e tentar desvendar a sua substância, antecipando-se aos leitores.  O papel de quem apresenta uma obra é sobretudo o de despertar o espírito de quem vai lê-la, de modo a estar alerta para eventuais curvas e contracurvas que nela pode encontrar. Quer isto dizer que apresentar uma obra é abrir os caminhos para que o leitor possa mais facilmente percorrê-la,  descobrindo os seus encantos e não antecipando-se a esta descoberta.
Contudo, o jovem escritor Jessemusse Cacinda criou-me uma hesitação de leitura que gostaria de abordar através do excerto V, do conjunto do seu trabalho, cujo título é “O avião que roubou sonhos” e que passo a citar.
“(….) Na esplanada do hotel, encontrou-se com Moreira Chonguiça.
_ O taxista, que me trouxe do aeroporto ao hotel, disse-me que tu fazes “kwashala”, um ritmo  que está quase morto. _ interrompeu Moreira.
_ Sim. E escuto muitos sons dos meus ídolos como Rei Costa, Norte Jazz, Manono Jazz, Murara Jazz, Rena, Charifo Victor Salimo …
_ Muitos deles têm o apelido de Jazz, porquê?
_ Os kwashaleiros de Cabo Delgado eram fãs de jazz e os de Nampula eram fãs de rumba.
-A música congolesa?
-Sim, mestre.
A conversa tomou vôo até Moreira prometer conseguir um contrato de gravação, em Maputo, do disco de Fred Khoropa. Assim, mobilizaria instrumentistas e produtores, fundindo diferentes ritmos: rumba, jazz, blues, raggae, tufo e kwashala. Fazendo ressurgir o kwashala, quinze anos depois  de Charifo Victor Salimo e trinta anos depois do Rei Costa mas, desta vez, em diálogo com o mundo. “( 54-55)
A minha perplexidade leva-me a pôr a seguinte questão:  A que propósito é que uma obra que praticamente apenas fala deste ritmo que dá o título ao texto a meio da obra, se casa com a temática principal que começa e fecha o livro: a morte?  Logo no primeiro texto, o título é a “Morte do meu pai”, e no último texto, “As gavetas de necrotério”. Aparentemente parece ser um casamento mórbido, ou talvez não, porque da conversa com Moreira Chonguiça deduzimos que as Kwashala estavam também a morrer nos subúrbios de Muahivire e Namicopo.
A segunda surpresa nesta obra será, do ponto de vista literário, a questão do género, se nesta circunstância adotarmos o consenso de que se trata de narrativas. De facto elas são narrativas curtas, ordenadas de tal forma que me escapam a adequada classificação com que a teoria literária clássica amarra este tipo de género
Os textos desta obra não são nem conto, nem novela, nem fábula, mas intuitivamente me parecem ser ao mesmo tempo tudo isto. Ao ler a obra, dei-me conta de que estava perante pequenos episódios teatrais da vida do dia a dia de cada um de nós: o conflito pai e filho, a luta pela vida de quem pelos seus próprios pés deve subir a escada da vida, a sobrevivência, o adultério, os conflitos conjugais. Com a morte, pairando em todos esses episódios. Toda essa movimentação passa por nós com um núcleo de personagens muito reduzido, configurando aquilo que mais facilmente se parece com crónicas. E esses episódios poderiam aparecer nos jornais, nas conversas do dia a dia ou em peças teatrais.
Desta forma, o autor surpreende-nos, porque colocando estas pequenas narrativas de uma forma contígua, mas ao mesmo tempo mantendo as mesmas personagens pelas diversas histórias, ele apresenta-nos, ao fim e ao cabo, um desenho de uma novela da vida. Por outras palavras, o autor, num jogo de simplicidade, cria uma obra de grande profundidade e reflexão sobre as incidências da vida.
Do ponto de vista estilístico, a simplicidade da abordagem das questões numa linguagem que poderia ser à volta da mesa do café, leva-nos a dois extremos da escrita. Por um lado, as cartas de leitores compiladas por José Capela na obra Moçambique Pelo Seu Povo, e alguns dos contos de Luís Bernardo Honwana, em Nós Matamos o Cão Tinhoso. Mas não é só isso. Há também um espreitar do estilo de crónicas de Juma Aiuba.  Além disso, do ponto de vista teatral, de dramatização, o texto leva-nos a cenários contíguos tão popularizados do teatro Gungu, de Gilberto Mendes, que tanto deliciou o público urbano de Maputo.
A temática da obra leva-nos a certos dramas da vida, mas que o autor descreve-os de uma forma dramaticamente naturalizada, pois a chave desta naturalização encontrámo-la nos dois últimos parágrafos da obra.
Amália, mulher desapontada no casamento e desapontada perante a burocracia das autoridades e da igreja, e desapontada pela impossibilidade de ser feliz com seu amado, dá um conselho sobre o segredo para ser feliz.
“__Passa por aceitar os percalços da vida como normais, a vida é uma viagem longa, durante o percurso podemos ter quem se senta ao nosso lado, podemos ter longas paragens ou várias, mas a única forma de chegar ao destino é continuar a viagem. “
Esta afirmação, do tipo pensamento do dia, transporta consigo uma filosofia de grande estoicismo de como jovens urbanos tentam lutar pela vida, e o último capítulo mostra a crueldade naturalizada no comportamento de uma mulher que não foi feliz, mas procura ser feliz dentro de um ambiente tétrico, um necrotério.
Parabéns, Jessemusse Cacinda, pela surpresa com que nos brinda nesta obra.
Maputo, 04 de Setembro de 2023

Uma vez li Saramago e, fiquei apaixonado pela subtilidade, realeza e profundidade da sua escrita.

Num dos seus escritos, escreveu: “Não se pode enxergar a ilha se não saímos da ilha. Não nos vemos se não saímos de nós”.

De forma analógica olhei para o nosso país, o belo e vasto Moçambique e baptizei-lhe de Ilha. Decerto, não me refiro a primeira capital do país (a majestosa e imponente Ilha de Moçambique), mas ao lugar que está entre os quatro pontos cardinais sobejamente conhecidos – O Rovuma, a Maputo, o Zumbo e o Índico.

Tenho estado a observar com certa minucia algumas tendências e alguns dos pronunciamentos e análises de alguns dos nossos antigos estadistas, governantes, gestores e servidores públicos sobre o estágio actual da nossa governação – sobre a ideia de governação no nosso país. Devo confessar que algumas das análises são de uma visão globalizante e de um alcance espantoso – primeiro pela coerência apresentada, e segundo pelo escalonamento lógico e alinhamento de ideias. Faz-se jus a máxima de Saramago, segundo a qual “não nos vemos se não saímos de nós”.

Muitos dos que hoje fazem estas belíssimas e apaixonantes análises sobre o nosso status como país, e como deveríamos caminhar enquanto nação que ambiciona abraçar o trilho desenvolvimentista, sair da linha pobreza e que quer afirmar-se como actor relevante na região e no mundo, foram titulares de pastas e cargos de tamanha relevância em algum período do seu percurso profissional.

Durante sua passagem pelos meandros formais do poder, ao abono da verdade devo aqui reconhecer, que muita coisa boa foi feita e muita coisa ficou por se fazer. Quer fosse pelo contexto inóspito e adverso, quer fosse pela falta de preparo adequado e experiência, que mais tarde abriram portas para interferência e ingerência externa. A institucionalização da prática da corrupção activa – um mal que grassa e empobrece o nosso país a cada ciclo governativo também pode ser apontado como uma fragilidade na governação dentro da ilha.

Da conquista da independência, passando pelo período da restruturação económica e, chegando aos dias de hoje, o país passou por vários ciclos de governação; Momentos estes caracterizados por vários processos complexos e desafiantes que obrigaram a uma engenharia governativa que envolveu riscos, muita critica e poucos aplausos. Foram na verdade processos típicos de um país em construção e em busca de uma orientação governativa que pudesse responder aos anseios do povo.

O país experimentou também as investidas das potencias coloniais mascaradas de ajuda externa e de pacotes de incentivo para a recuperação e as imposições vários actores da arena internacional.

Por aqui, encontramos talvez um possível tubo de escape para justificar algumas das decisões tomadas e erros que se cometeram nas últimas décadas de governação. Muitas dessas decisões parecem ter grande influência no actual estágio e andamento da máquina estatal hoje e condicionam as reformas que tanto almejamos.

O processo de substituição da máquina colonial pela máquina nacional, foi desafiante e acarretou seus custos. Entre erros e acertos, muita coisa ficou como lição aprendida, ou pelo menos deveria ter ficado para que não se repetissem certas coisas.

Estas mudanças transformacionais e estruturais não foram apanágio apenas de Moçambique. Outros países que alcançaram as suas independências na primavera dos anos 1960 um pouco por todo continente, e conquistaram o pretenso direito à autodeterminação estiveram expostos a eventos idênticos.

Entre o que foi feito, o que deveria ser feito e o que ficou por fazer, ficamos quase sempre pelas entrelinhas daquilo que poderia ter sido melhor. Ficamos também pelo argumento de falta mais tempo para concluir o que se iniciou. Isto porque as vezes perdemos de vista o tempo do mandato que nos foi dado e, com isto protelamos, esquecendo que há um horizonte temporal para nossas realizações.

O que se fala hoje é paradoxalmente oposto ao que se fez ontem – Até aqui, não parece haver alarme pois, os erros fazem parte de todo e qualquer percurso e, em matéria de governação é preciso sempre decidir – umas vezes acertamos e outras vezes erramos – importante mesmo é aprender com o passado e exercitar a saída da ilha para apreciá-la melhor.

A ideia de governação pressupõe antes de tudo a assunção de um compromisso tácito e responsabilidade. Enquanto que a prática governativa pressupõe antes de tudo liberdade, conhecimento, informação, recursos e capacidade decisão.

E entre a ideia e a prática encontro um ponto de interferência que muitas vezes desemboca em um erro que nos penaliza grandemente: a ausência de um plano globalizante que transcende a dimensão pessoal de governação. Parece não haver uma continuidade dos planos traçados e, a cada ciclo governativo temos uma nova ideia do país que queremos (des) construir.

Resgatando a velha máxima do Presidente Samora Machel, “O dever de cada um de nós é dar tudo ao povo, sermos os últimos quando se trata de benefícios, primeiros quando se trata de sacrifícios, Isso é que é servir o povo”. É preciso perceber que não somos eternos e os cargos também não o são – as pessoas vão e as instituições ficam. É preciso amar o país antes de tudo e, criar as bases para que as gerações vindouras possam ter melhores condições de nutrição, saúde, educação e mais esperança de vida.

Hoje, alguns dos antigos dirigentes, depois de abandonarem o tacho real (a Ilha da Governação) permitiram-se observá-la de fora e entender a sua dimensão, seus problemas e até prescrever soluções; Soluções estas que aquando da estadia na ilha não estavam visíveis. Em governação, às vezes, ou talvez sempre é importante ser povo e sentir o que o povo sente.

Quando dentro da ilha poucos viram sem sombras o que se passava nela. Uma vez fora da ilha quase todos recuperaram a visão, a lucidez, e veem os problemas e os defeitos de quem governa a ilha – as coisas tornam-se mais obvias e visíveis.
Será a ilha um monstro difícil de entender? Ou nós, enquanto dirigentes da ilha não dedicamos atenção para entendê-la e garantir que a nossa saída dela não deve alterar o seu funcionamento?

A reflexão que convido para se fazer é sobre a temporalidade e actualidade do nosso ser ilhéu. É também sobre a ausência de um plano continuo para que se possa governar e gerir a coisa pública de forma mais assertiva e menos danosa. É sobre saber pensar um Moçambique próspero, progressista e desenvolvido para os próximos 50 anos como fizeram países como a China, Ruanda, Malásia, Singapura, Emirados Árabes Unidos, Noruega e outros mais.

Não nos vemos se não saímos de nós!!!

O remetente chegou ao principal terminal de “Chapas” nas proximidades do mercado de Morrumbala. Eram por volta das 15h00, o alvoroço típico do lugar era intenso como todos os dias de semana, excepto ao domingo.

Procurou o cobrador do primeiro machimbombo que partiria de madrugada para a cidade de Quelimane, mostrou a mala que precisava enviar e este depois de um golpe de vista deduziu o preço que o expedidor devia pagar, este resmungou e entraram em negociações até finalmente acertarem.
A mala tinha 54 cm de cumprimento e 37 cm de largura, pesava 25 kg, era de madeira devidamente esculpida por um exímio artesão e estava devidamente polida, tinha um pequeno fecho no meio, da altura central, era de cor preta e estava amarrada no seu cumprimento e largura com uma corda de sisal.

Quando o cobrador segurou a mala para arrumar sentiu uma vibração emanada por esta, então firmou maior destreza no seu manuseamento, guardou-a para posteriormente arrumar, solicitou e registou os contactos do remetente e do recebedor e por sua vez o expedidor registou o número da matrícula e o contacto do cobrador.

O lusco-fusco vespertino emprestava uma temperatura agradável, os raios do sol cessante incidiam ali e acolá no pequeno vilarejo.
Os passageiros ou os seus enviados iam chegando e adquirindo bilhete, a bagagem avolumava-se. Uma hora depois, os lugares no pequeno autocarro já haviam esgotado, então o cobrador alertava aos passageiros que o autocarro partiria às 04h30 do dia seguinte. Os passageiros que vinham de lugares distantes iriam pernoitar no autocarro.

O cobrador dedicou-se a arrumar a bagagem no atrelado, os volumes maiores e pesados em baixo, os médios no nível intermédio e os mais pequenos em cima.

Coube a mala preta de madeira ficar por cima de uma pequena trouxa, posteriormente procedeu a cobertura do atrelado com uma lona.
A partida iniciou quando eram 04h45, os lugares estavam quase todos ocupados excepto dois reservados aos passageiros que embarcariam numa das paragens. O pequeno machimbombo evoluía na sua jornada e o som do motor propagava-se ao longo da via despertando ou alertando este e aquele animal. A luz dos pirilampos extinguia-se com o rompimento dos raios solares.

O autocarro sulcava nas ondas da estrada de terra batida, ora mergulhando nos buracos ora se elevando nas lombas, de repente o carro atinge uma lomba e o atrelado fica empinado com as duas rodas no ar.

A corda que prendia a lona soltou-se e alguma bagagem voou pelo ar e aterrou no solo. Gritos de pedido de paragem dos passageiros soaram quase que uníssono.

O veículo imobilizou-se abruptamente, o cobrador desembarcou para recolher a bagagem que havia caído; percebeu que a mala preta não estava no atrelado, procurou em lugares distintos, mas não a encontrou, reparou para uma pequena ravina e viu um pequeno feixe de luz, desceu e encontrou a mala.

Ficou completamente estupefacto com a posição que a mala se encontrava, olhou demoradamente para esta que estava assente numa dos vértices inferiores numa pedra e na parte superior apoiada num pequeno arbusto. Segurou a mala e levou-a para o atrelado, prende-a devidamente e retomam a viagem.

Uma hora depois o chapa alcançou o cruzamento de “zero”, entraram os dois passageiros e ocuparam os lugares vagos, a jornada continuou.
O machimbombo ziguezagueava para fintar os buracos que surgiam agora na estrada meio asfaltada, mas sempre esburacada.

Uma hora depois chegavam a sede do posto administrativo de Nicoadala, desembarcaram uns e embarcaram outros, a viagem continuou.
O pequeno veículo circulava agora velozmente na estrada de asfalto isenta de buracos em direcção a cidade de Quelimane.

Da planície densamente esverdeada via-se o arrozal que se extinguia para lá do horizonte. O som produzido pelos passageiros que conversavam entre si ou então falavam nos seus telemóveis combinado com o ressonar de uns e o ronco do motor do carro criava uma melodia que parecia balançar o coqueiral que se estendia a berma da estrada.

Tempos depois o “chapa” alcançava a principal terminal rodoviária da cidade de Quelimane, passageiros desembarcavam e recolhiam as suas bagagens e partiam para os seus destinos finais.

Quando o azafama finalmente cessou, um homem franzino e calvo aproximou-se do cobrador. – Bom dia, vim buscar a minha encomenda.

– Qual é a sua encomenda? – perguntou o cobrador.

– Uma mala preta. – respondeu prontamente o homem.

O cobrador, lembrou-se da mala pela sua peculiaridade e dispôs-se a buscá-la.

Depois de uma busca de mais de trinta minutos, o cobrador apareceu sem a mala.

– Não estou a encontrar! – disse apreensivo. – voltarei a procurar com mais calma, peço para voltar no final do dia. – propôs o cobrador.

O recebedor perambulou pelas artérias da cidade que há muito não visitava num compasso que fazia para resgatar a sua encomenda.

Quando o cobrador reviu o buscador, um baque sacudiu-lhe o peito deixando-o desconfortado.

– Não encontrei a sua mala, desculpa-me! – balbuciou entristecido.

– Não te preocupes. – afirmou serenamente o homem.

O produto surripiado descansava em cima de um comodo e o seu autor recuperava-se do cansaço da viagem na cama mirando gulosamente o troféu da sua acção.

Tinha a mente capturada pela vontade avassaladora de descobrir o conteúdo da mala, então soergueu-se da cama, encontrou uma faca e cortou as cordas. Agora precisava livrar-se do cadeado meio enferrujado que constituía o último empecilho antes de alcançar o que almejava, buscou um alicate e iniciou a operação de o quebrar, depois de mais de vinte minutos sem sucesso acabou por desistir, o cadeado continuava intacto.

Entretanto, do outro lado, o proprietário da mala, a cada vez que o larapio tentava cortar o cadeado a chave que guardava por trás da porta de seu quarto tilintavam. E então ele sorria, imaginando a tentativa frustrada do gatuno.

Não se sentido derrotado pelos empecilhos de abrir a mala, o jovem larápio infligiu uma machadada no tampo da mala, sem causar nenhum arranhão. Deu-se por vencido, talvez o cansaço causado pela viagem não lhe permitiam executar a operação com melhor discernimento.
Já passavam das 20h00, optou por recolher a cama e descansar, pela manhã veria como abrir a mala.

Não demorou a adormecer, duas horas depois acordava sobressaltado e aos gritos que ninguém ouvia, escutava uma voz indistinta, correu para o interruptor de luz, sem encontrar fugiu para fora, mas a voz prevalecia.

“Leva-me para o meu dono” – soava a voz gutural.

Distanciou-se quanto pode para escapar da voz sobrenatural, mas esta o seguia, tapou os ouvidos, mas a implacável voz continuava a ressoar.

Passou a noite no quintal da casa acompanhado pela voz da mala, a manhã nasceu depois de uma insuportável espera.

Armou-se de coragem e entrou para o quarto, a imponente mala continuava a sua fala.

Socorreu-se de um vizinho para ajudá-lo a compreender a aberração que o deixava inquieto.

– Estás a ouvir o que a mala está a dizer? – inquiriu atabalhoadamente.

– Não escuto nada. – disse, sem perceber a aflição do seu vizinho.” Talvez o rapaz estava a ser vítima de algum estupefaciente que ingerira”.

“Tinha que se livrar da mala” – cogitou.

Catapultado por uma energia desconhecida, aprontou-se, segurou a mala e foi caminhando estrada adentro até dar no terminal de chapas de Nicoadala. Eram já 6h00 da manhã.

Procurou embarcar num chapa que ia a Quelimane, quando segurou a mala para entrar esta não se desprendia do chão, forçou sem lograr o seu intento, procurou disfarçar a sua acção para não o acharem louco. Então decidiu abandonar a mala na paragem e continuar com a sua vida.

Quando se predispunha a caminhar, os seus passos estavam grudados no solo, encetou um outro disfarce para não chamar atenção dos transeuntes, passageiros e mujeiros que circulavam perto de si.

Nunca na sua vida, de afamado larapio, havia-lhe acontecido algo semelhante, o seu feiticeiro havia-o garantido sucesso absoluto nas suas empreitadas. Algo de muito estranho estava a acontecer.

Voltou a segurar a mala; levantou uma perna, a esquerda e esta obedeceu, levantou outra e iniciou a marcha, levava a mala consigo, foi caminhando sem saber para onde ia, completamente hipnotizado pela voz que comandava a mala.

Depois de calcorrear mais de cinco horas deu consigo completamente estafado; parou, socorreu-se da água de um riacho do afluente do rio domela, descansou por breves minutos e reiniciou a marcha.

Quando o sol já começava a pôr-se, alcançou o bairro de Manhaua na periferia da cidade de Quelimane.
Sons metalizados que advinham do portão de latão mesclado com uma voz de timbre débil de pedido de licença faziam-se ouvir, um homem franzino e calvo assomou ao portão, esboçou um sorriso, recebeu a mala e agradeceu o entregador.

Aquele vôo das Linhas Aéreas de Moçambique com destino à cidade de Pemba registava um atraso de quatro horas _ o que era comum.
Os candidatos a passageiros barafustavam, gesticulavam e pediam a decapitação dos pilotos, do chefe-de-escala ou de fosse quem fosse que criava tamanho embaraço. Aos balcões e na sala de embarque o pessoal de terra pedia tranquilidade e compreensão pelo inconveniente e aludia a avarias nos motores, que era contraproducente viajar nas condições mecânicas em que a nave se encontrava.
Estabilizados os ânimos e com a garantia de segurança dos engenheiros foi autorizado o embarque dos passageiros. Alguns daqueles haviam abandonado o projecto de viagem, argumentando diversos pretextos.
_ Não arrisco voar naquela sucata_ uns diziam.
_ Pode dar-se o caso de termos de regressar à proveniência com outra ameaça de avaria. Boa viagem, meus senhores… _ sinal de profunda desconfiança doutros.
Uma assistente de bordo recebia os passageiros conformados à porta de entrada da nave com sorrisos abertos que aliviavam o desconforto da longa espera e das incertezas da jornada iminente. Do alto da escadaria de acesso assiste à subida dos mesmos com um olhar atento e profissional. A experiência de carreira de quase dez anos conferia-lhe atributos que transmitiam tranquilidade aos utentes dos serviços da Companhia.
Aquele passageiro passou por ela e correspondeu à saudação de boas-vindas com uma vénia pronunciada e um sorriso que a cativou. Não era todos os dias que recebia cavalheiros corteses e compreensivos uns, outros revestidos de lustros de “very important persons” cheios de petulância e exigentes de serviços quase em regime de exclusividade. Aquele saudara-a com as mesuras de um passageiro simples, descontraído e até arredio ao contacto com os olhos dela.
Ele ocupou o seu lugar no assento número 13-A, junto à janela. Arrumou o sac-à-dou no compartimento sobre o assento e ajustou o cinto de segurança, conforme recomendação já tradicional em todos os vôos. A seu lado o lugar encontra-se desocupado, o que lhe confere movimentos livres e conforto no espaço que ocupa.
A assistente de bordo que o saudara à entrada entra em atribulações de memória. Tem uma sensação de, remotamente, ter-se cruzado com aquela personagem. Onde e quando? Em alguma celebração de algum matrimónio ou aniversário, de algum baptizado, só poderia ser. Os modos são-lhe familiares. Busca alguma pista na memória; todavia, as recordações evadem-se na penumbra do passado.
No momento de demonstração dos procedimentos de segurança aquela hospedeira fá-lo no corredor, exactamente na fila dos assentos número 13. Desvia olhares esguelhados à figura daquele homem, fá-lo repetidamente, como se algum magnetismo emanasse daquela figura e a distraísse. Findo o ritual, solicita que corrija o aperto do cinto de segurança, dobra-se sobre ele e, ela própria, ajuda-o a fazê-lo. Dele aspira a fragrância de um perfume familiar, uma água de colónia francesa de marca Poison que acentuou as suas angústias. Seria uma nova paixão ou algum arrebatamento do espírito que vinha reacender os sobressaltos da viuvez? Porque ela o era, completava sete anos, depois do acidente de viação em que o esposo pereceu, naquela viagem fatal de regresso de uma missão de serviço na Estrada Nacional Número 1. Ele era um cavalheiro jovial, ambicioso em fazer uma carreira de jornalismo com brilho e marca, atento às trepidações de uma sociedade em transformação, acérrimo crítico dos desvios dos políticos e às estratificações da sociedade onde a marginalização dos pobres era óbvia e obscena. Aquele homem tinha algo de comum com o defunto esposo. Tamanha semelhança física e nos procedimentos seria demasiada coincidência. Mas ele morreu, e os defuntos não ressuscitam.
Ela regressou ao sector privado das hospedeiras, esbaforida, cheia de palpitações. Bagos de suor suspendiam-se na testa, outras escorriam pelo pescoço abaixo e balbuciou:
_ É ele…é ele…_ as palavras encalham na garganta. Toma assento e, com uma salva de gorgolejos, prossegue_ É ele…é ele!…só pode ser ele!…
_ Suzi, de que estás falar? De quem estás a falar?_ espanto das colegas assistentes de bordo pela súbita transformação que testemunham. Tratar-se-ia de alguma alucinação que se operava na mente da colega Suzi? Esta agita-se com desconforto, um tremor sacode-lhe o corpo e continua a prelecção. Os olhos rolam nas órbitas, como se enxergassem algo sobrenatural.
_ Tragam água com açúcar, urgente! _ comandou a chefe da equipa. Aquela era uma solução de efeitos assegurados para o alívio de emoções fortes. A Suzi tomou o xarope com sofreguidão. Os lábios tremiam no auge dos murmúrios.
_ De quem está a falar, Suzi? _ barragem de perguntas que vinham das bocas das colegas.
_ É o passageiro do assento número 13-A _ a Suzi conseguiu articular.
_ O que tem ele de especial?_ pergunta que se calava na boca da assistente-chefe Mila, veterana na Companhia e conhecedora de personalidades atormentas. Também já o fora e era-o a seu modo.
_ É ele sim, o meu marido! _ disse a Suzi, a soletrar as palavras.
_ Suzi, o teu marido faleceu há muitos anos. Os mortos não ressuscitam _ consternação da senhora Mila. Envolve a Suzi com um abraço e sopra-lhe ao ouvido palavras de conforto e conformação a um passado que já ia longínquo. Crê que a colega Suzi sofre de algum episódio de uma súbita histeria ou de alguma alucinação visual._ Deixa-me confirmar o seu nome.
A senhora Mila deslocou-se ao assento número 13-A. Com um sorriso protocolar e rosto iluminado solicitou ao passageiro o cartão de embarque. Sem hesitações aquele retirou o mesmo da carteira e entregou-o à hospedeira-chefe. Esta leu-o mentalmente e devolveu-o ao passageiro.
_ Suzi, aquele passageiro chama-se S. Ruben e embarcou no Maputo. O seu destino é o Aeroporto da Beira. Podes crer que não é o teu marido. Há muita gente parecida uma à outra e isso, muitas vezes, causa transtornos e muita confusão. Podes estar tranquila. Descansa porque a tua indisposição não tem razão de ser.
A viagem continuou sem sobressaltos. Todavia, a Suzi conjecturava possibilidades de o defunto esposo ter tido um irmão gémeo ou algum parente consanguíneo com o mesmo, que o defundo não tivesse conhecido ou revelado a sua existência.
A aterragem no Aeroporto da Beira foi algo acidentada. Os motores rugiam com muito estrondo, des-sincronisados e fumarentos. Alguns passageiros arrependiam-se pela aventura de viajar naquela aeronave. Outros transpiravam profusamente, fluxos de adrenalina fluiam nos corpos pela incerteza de segurança no acto de aterragem que, finalmente se consumou sem incidentes de maior.
Tal como os demais, aquele passageiro do assento número 13-A, aprontou-se para o desembarque. Passou pela hospedeira Suzi e sorriu para ela. Agradeceu a hospitalidade e ofereceu-lhe um sorriso aberto que, em definitivo a derrubou.
_ Oh, esse diastema, meu Deus! É ele!…É ele!…Só pode ser ele!_ novo abalo no fingido sossego da mente da Suzi. Aquele diastema na linha dos dentes superiores era uma marca hereditária na família do defunto esposo. E ele transmitira o sinal à filha Nelly.
Durante o troço do vôo entre as cidades da Beira e de Pemba a Suzi conferiu a lista de nomes dos passageiros embarcados no Aeroporto de Maputo. Seguiu com os dedos trêmulos, linha a linha, os nomes registados. A ansiedade comandava o acto. Chegou ao fim da mesma e não identificou o nome de um passageiro com o nome de S. Ruben.

*
* *
Na manhã seguinte àqueles assombros durante o vôo a Suzi dirigiu-se ao cemitério de Lhanguene para apurar dos eventos relacionados com a identidade daquele passageiro e da eventualidade de o esposo encontrar-se vivo.
Identificou a campa onde o esposo fora sepultado. Não se equivocou, embora nas últimas temporadas não fosse tão assídua nas visitas à mesma, por circunstância várias. Era a campa número 3771 T.
A princípio ficou atarantada com a localização do sepulcro. Rondou o lugar com espanto. A placa de identificação encontrava-se meio derrubada, espetada sobre um montículo de terra fresca. Deduz que alguém violara o lugar, a pedra do epitáfio jaz derrubada na cabeceira. Dir-se-ia que houvera uma violação, o estado do lugar assim o sugeria.
A Suzi sobressalta-se. Apressadamente dirige-se aos escritórios do cemitério para indagar e colher esclarecimentos sobre o que presenciara.
_ A campa do meu marido foi violada!_ disse ao oficial em serviço, o senhor Marcos Matimele, com as palavras atabalhoadas e emoção na voz.
_ Qual é o número da campa?
_ 3771 T _ ela soletrou.
O senhor Matimele ergueu-se do assento e dirigiu-se aos arquivos para verificar a situação oficial daquele lugar de enterro. Volveu-se para a queixosa e disse:
_ A campa não foi violada. Exumámos o corpo do seu ocupante, de nome Silvano Dias Tembe para acomodarmos a urna da esposa. Como é protocolar, e esse foi o pedido dos familiares, o corpo da esposa deve ser enterrado na mesma sepultura que o seu marido _ disse o oficial a mudar a posição do palito com que escarafunchava os dentes.
Ela experimenta uma sensação de lividez na pele do rosto, o coração batuca estrondos no peito, uma vertigem rodopia e inverte o sentido de rotação do seu equilíbrio.
_ Quer dizer que a esposa do defunto morreu? Como ela se chamava?_ gaguejo no quesito.
_ O nome da defunta é Suzana de Castro Tembe. Não sei se a senhora soube, mas ela foi uma das vítimas daquele acidente de aviação que aconteceu a semana passada no Aeroporto de Pemba. Infelizmente, no mesmo não houve sobreviventes e a senhora Suzana de Castro Tembe foi uma das vítimas. Agora temos lá um pedreiro a reconstruir a campa com as urnas do casal. A senhora como se chama?
_ O meu nome é Suzana de Castro Tembe_ gorgolejo na surdina do pronunciamento do nome.
O oficial Matimele reergue-se da cadeira giratória e dirige-se para a saída do escritório. Aí reencontra-se com o vício de fumar. Em quinze minutos consumira dois cigarros para readquirir alento e admitir aquela realidade óbvia e inacreditável que se lhe revelava à vista: a de uma alma que ainda peregrina no universo dos vivos, inconformada com a condição de defunta. Regressa ao escritório. Lá não encontrou a senhora Suzana de Castro Tembe. E conjecturou:
_ Quem sabe?!… Porventura, ela regressou ao recolhimento da sua nova morada: a campa número 3771 T!

*

In “O Livro dos Mortos”, inédito.

 

‘Vasudhaiva Kutumbakam’ – estas duas palavras captam uma filosofia profunda. Significa “o mundo é uma família”. Trata-se de uma perspetiva abrangente que nos encoraja a progredir como uma família universal, transcendendo fronteiras, línguas e ideologias. Durante a presidência indiana do G20, esta perspetiva traduziu-se num apelo ao progresso centrado no ser humano. Como Uma Terra, estamos a unir-nos para cuidar do nosso planeta. Como Uma Família, apoiamo-nos mutuamente na busca do crescimento. E avançamos juntos em direção a um futuro partilhado – Um Futuro – que é uma verdade inegável nestes tempos interligados.

A ordem mundial pós-pandémica é muito diferente do mundo anterior. Há três mudanças importantes, entre outras.

Em primeiro lugar, existe uma consciência crescente de que é necessário passar de uma visão do mundo centrada no PIB para uma visão centrada no ser humano.

Em segundo lugar, o mundo está a reconhecer a importância da resiliência e da fiabilidade nas cadeias de abastecimento globais.

Em terceiro lugar, existe um apelo coletivo no sentido de reforçar o multilateralismo através da reforma das instituições mundiais.

A nossa Presidência do G20 desempenhou o papel de catalisador nestas mudanças.

Em Dezembro de 2022, quando assumimos a Presidência da Indonésia, eu havia escrito que o G20 deveria catalisar uma mudança de mentalidade. Tal era especialmente necessário no contexto da integração das aspirações marginalizadas dos países em desenvolvimento, do Sul Global e de África.

A Cimeira Voz do Sul Global, que contou com a participação de 125 países, foi uma das iniciativas mais importantes da nossa Presidência. Tratou-se de um exercício importante para recolher contributos e ideias do Sul Global. Além disso, a nossa Presidência não só registou a maior participação de sempre de países africanos, como também promoveu a inclusão da União Africana como membro permanente do G20.

Um mundo interligado significa que os nossos desafios em todos os domínios estão interligados. Estamos a meio do ano da Agenda 2030 e muitos notam com grande preocupação que os progressos em matéria de SDGs estão fora do caminho. O Plano de Ação do G20 2023 para Acelerar o Progresso dos SDGs irá liderar a futura direção do G20 para a implementação dos SDGs.

Na Índia, viver em harmonia com a natureza tem sido uma norma desde os tempos antigos e temos contribuído com a nossa parte para a ação climática mesmo nos tempos modernos.

Muitos países do Sul Global encontram-se em várias fases de desenvolvimento e a acção climática deve ser complementar. As ambições em matéria de acção climática devem ser acompanhadas de acções de financiamento do clima e de transferência de tecnologia.

Acreditamos que é necessário passar de uma atitude puramente restritiva do que não deve ser feito para uma atitude mais construtiva, centrada no que pode ser feito para combater as alterações climáticas.

Os princípios fundamentais de Chennai para uma economia azul sustentável e resiliente centram-se na manutenção da saúde dos nossos oceanos.

Da nossa presidência emergirá um ecossistema global para o hidrogénio limpo e verde, juntamente com um Centro de Inovação para o Hidrogénio Verde.

Em 2015, lançámos a Aliança Solar Internacional. Agora, através da Aliança Global para os Biocombustíveis, apoiaremos o mundo a permitir transições energéticas em sintonia com os benefícios de uma economia circular.

Democratizar a acção climática é a melhor forma de dar ímpeto ao movimento. Tal como os indivíduos tomam decisões diárias com base na sua saúde a longo prazo, podem tomar decisões sobre o seu estilo de vida com base no impacto na saúde do planeta a longo prazo. Tal como o ioga se tornou um movimento global de massas para o bem-estar, também nós demos um empurrãozinho ao mundo com os Estilos de Vida para um Ambiente Sustentável (LiFE).

Devido ao impacto das alterações climáticas, será crucial garantir a segurança alimentar e nutricional. A mexoeira, ou Shree Anna, pode contribuir para este objectivo, ao mesmo tempo que promove uma agricultura inteligente em termos climáticos. No Ano Internacional do Mexoeira, levámos o mexoeira aos paladares mundiais. Os Princípios de Alto Nível de Décano sobre Segurança Alimentar e Nutrição também são úteis nesta direção.

A tecnologia é transformadora, mas também precisa de se tornar inclusiva. No passado, os benefícios dos avanços tecnológicos não beneficiaram igualmente todos os sectores da sociedade. A Índia, nos últimos anos, demonstrou como a tecnologia pode ser utilizada para reduzir as desigualdades, em vez de as aumentar.

Por exemplo, os milhares de milhões de pessoas em todo o mundo que permanecem sem conta bancária ou que não possuem identidades digitais podem ser incluídas financeiramente através de infra-estruturas públicas digitais (DPI). As soluções que criámos utilizando a nossa DPI são agora reconhecidas a nível mundial. Agora, através do G20, vamos ajudar os países em desenvolvimento a adaptar, construir e escalar a DPI para desbloquear o poder do crescimento inclusivo.

O facto de a Índia ser a grande economia com o crescimento mais rápido não é por acaso. As nossas soluções simples, escaláveis e sustentáveis permitiram que os vulneráveis e os marginalizados liderassem a nossa história de desenvolvimento. Do espaço ao desporto, da economia ao empreendedorismo, as mulheres indianas assumiram a liderança em vários sectores. Mudaram a narrativa do desenvolvimento das mulheres para o desenvolvimento liderado por mulheres. A nossa Presidência do G20 está a trabalhar no sentido de colmatar o fosso digital entre os sexos, reduzir as lacunas na participação da força de trabalho e permitir que as mulheres desempenhem um papel mais importante na liderança e na tomada de decisões.

Para a Índia, a Presidência do G20 não é apenas um esforço diplomático de alto nível. Como Mãe da Democracia e modelo de diversidade, abrimos as portas desta experiência ao mundo.

Actualmente, realizar coisas em grande escala é uma qualidade que está associada à Índia. A Presidência do G20 não é exceção. Tornou-se um movimento orientado para as pessoas. Mais de 200 reuniões terão sido organizadas em 60 cidades indianas em toda a extensão da nossa nação, recebendo quase 100.000 delegados de 125 países até ao final do nosso mandato. Nunca nenhuma Presidência abrangeu uma extensão geográfica tão vasta e diversificada.

Uma coisa é ouvir falar da demografia, da democracia, da diversidade e do desenvolvimento da Índia por outra pessoa. É totalmente diferente vivenciá-los em primeira mão. Tenho a certeza de que os nossos delegados do G20 o confirmariam.

A nossa Presidência do G20 esforça-se por colmatar divisões, desmantelar barreiras e lançar sementes de colaboração que alimentem um mundo onde a unidade prevaleça sobre a discórdia, onde o destino partilhado eclipsa o isolamento. Enquanto Presidente do G20, comprometemo-nos a alargar a mesa global, garantindo que todas as vozes são ouvidas e que todos os países contribuem. Tenho a certeza de que cumprimos o nosso compromisso com acções e resultados.

 

Narendra Modi, Primeiro-Ministro da Índia

Por qualquer motivo, que não me ocorre agora, envolvi-me numa disputa com a minha irmã Raquel. Foi um finca-pé daqueles. Amuados, cada um partiu para fazer-se mudo num canto da casa. Três dias passaram e não trocávamos palavra. Minha mãe, dona Clementina, sempre de olhar vigilante ao comportamento dos filhos, não tardou intervir de um modo que me transmitiu uma lição que carrego até hoje.

Quando  publiquei o romance Saga d’Ouro, um crustáceo literário daqueles que crescem puxando os outros para o fundo, entrincheirou-se e incorporou coro à sua voz para retirar o meu livro da lista das obras candidatas ao Prémio de literatura BCI/AEMO. Nessa altura, o caranguejo camuflou a bílis que o caracteriza, na alegação de ser eu colaborador da AEMO (mas dois anos antes, um Secretário-geral da AEMO havia ganho o mesmo galardão e ninguém levantou tais alegações de probidade). Como os meus livros não se valem pelos prémios literários, solicitei ao júri a retirada da minha obra do rol das candidatas. Todavia, isso não é o que importa agora, tirando o facto de tal episódio ter ocasionado um debate entre José dos Remédios e mim.  Por quase duas semanas andamos às turras no jornal O País, cada um a esgrimir argumentos e causticidades. Algo curioso nisso é que dos Remédios trabalhava ou trabalha no jornal que acolhia o debate. Aliás, foi a partir desse caloroso debate que a minha admiração por ele ganhou motivos para apreciá-lo muito mais do que antes. Ainda no decurso do debate trocávamos chamadas telefónicas. Assim que terminava um texto, em resposta a qualquer que ele tivesse publicado, eu lho ligava:
– Companheiro, enviei-lhe um texto por Email!
– Já vi. Vou publicar. – respondia dos Remédios antes de advertir-me – Mas, vou responder!

De facto, em um dos dias seguintes dos Remédios ripostava com toda a carga verbal que pode. Assim seguimos com o debate até ao ponto em que o mesmo morreu de morte natural, sem mágoas nem rancores. Lembro-me de uma vez encontrarmo-nos num evento literário e aí entabularmos uma conversa. Um indivíduo cujo nome não merece registo, vendo os risos que trocávamos, curioso, acercou-se para certificar-se do que via: “Pensei que vocês dois já não se falassem!” Olhei para ele e não encontrei palavra para respondê-lo, senão hoje: Sim ainda falo com o dos Remédios!

Não será também por acaso que hoje trago essas duas memórias. As últimas eleições da AEMO abriram chagas para algumas almas despreparadas para o jogo democrático. Nelas, como houvesse duas listas concorrentes, naturalmente, cada membro tomou partido. No final da eleição ganhou a lista que melhor estratégia traçou. Nisso, tais almas escolheram como reacção a minha pessoa para culpar pelo desaire eleitoral obtido e deixaram de falar comigo, sob inconfessáveis pretextos. Até aí, nada me aflige, água encima de pato.

Espero que o leitor desta ainda não se tenha esquecido da estória que contei sobre a intervenção da minha mãe na disputa que tive na infância com a minha irmã Raquel. Depois de três dias sem nos falarmos, a dona clementina interveio:
– Manuel, por que não falas com a tua irmã?
Não respondi e dona Clementina torceu o pescoço, de modo a virar-se, assim, para a minha irmã, e colocar a mesma questão:
– Manuel me provocou! – respondeu ela.
– E nós outros, o que temos a ver com isso? – retorquiu a minha mãe – Vocês dois estão a criar um mau ambiente aqui em casa.

Estou certo de que cada um vem da sua casa, sua cidade ou província, cada um com a sua própria matriz. Nesse dia a minha saudosa mãe seguiu explicando que vivia-se um grande constrangimento  no seio dos restantes membros da família. Pois, sentados a mesa, por exemplo, não sabiam para que lado pender entre os dois bringuentos e eram forçados a evitar conversar à vontade ou rir-se caso fossem interpelados por mim ou pela minha irmã. Pois, não queriam ser confundidos com quem tomava partido na contenda alheia. Minha mãe asseverou ainda que não tínhamos esse direito constranger. Hoje cresci e não me outorgo em memória desse ensinamento materno. Tentei há dias praticar a licção com dois indivíduos que escolheram viver sem me dirigir palavra. Parece que confundiram as estações. Pessoalmente, esse blackout em si não incomoda. Sou muito superior a isso. Mas, também penso no colectivo e entendo que não devo fazer parte desse circo constrangedor aos demais. É feio. Desrespeitoso para quem está a mesa e é obrigado a viver esse clima de tensão. Nos territórios sociais que frequentamos no dia-a-dia, cada um partilha com os demais a educação que tem. Não é por fraqueza que escolho manter diálogo. Falo abertamente porque não sou fofoqueiro e nunca procuro assassinar o carácter dos outros. Se interpelei alguem para sairmos desse blackout foi pelos demais que devo respeito. Não é fraqueza. É por educação que não deve ser confundida com arrependimento que leve a um pedido de desculpas. Não pedi desculas a ninguém, e quem assim espalha tende apenas a entumescer o seu proóprio ego.

Em 2013, Paulo Alexandre editou, pela Porto Editora, Photar Moçambique. Esse é o título de um belíssimo livro de fotografias, no qual o autor expõe parte do que a sua câmara fotográfica captou ao longo de todas as províncias moçambicanas.

Como se tivesse apreciado o incrível trabalho de Paulo Alexandre, quase a rasar a perfeição, o grupo TP50 também se propôs explorar a paisagem humana, geográfica, artística e cultural do país. No caso, através do concerto Olhar Moçambique, realizado esta sexta-feira, no Centro Cultural Franco-Moçambicano, na Cidade de Maputo.

Numa noite fresca, com os termómetros a registarem 27º C, 54 artistas juntaram-se para contar as diferentes histórias que caracterizam o território nacional. Com efeito, ao contrário de Photar Moçambique, de Paulo Alexandre, cujas paisagens moçambicanas são percorridas do Sul ao Norte, em Olhar Moçambique, de TP50, o movimento é inverso. Todavia, com a mesma particularidade de revelar a riqueza que poucas vezes se expressa em palavras. Só pela originalidade do projecto, de facto, as duas horas de concerto valeram a pena, pois, através da arte, o público foi apreciando o que o país possui no seu melhor e na sua diversidade. Esse foi, seguramente, um dos principais propósitos de Olhar Moçambique, aparentemente um work in progress didáctico, entre a fruição e o patriotismo, no sentido mais positivo do termo.

A história do espectáculo começa com uma turista italiana (Joana Mbalango) a photar Moçambique. Para a personagem, há à sua frente uma espécie de admirável mundo novo. Por isso mesmo, a cada passo que dá, acredita ter de registar na sua câmara fotográfica o que considera necessário. Até que vai parar a um palco onde um concerto está a instantes de iniciar. A estrangeira logo percebe que tem de parar de fotografar porque um homem (Samuel Nhamatate) a informa sobre o lugar onde se encontra. No princípio, a propósito, ela nem sequer sabe em que país está, concretamente, pois, na sua visão Ocidental, em África tudo é a mesma coisa. Entre erros e acertos, entretanto, a personagem, nesse engraçado registo teatral, precipita-se a perguntar, quando fica a saber que se encontra na Pérola do Índico: Moçambique não é aquele país de África, sempre em guerra, de miséria e onde as pessoas são tristes?

Ferido pela postura preconceituosa da turista, o homem moçambicano convida a italiana a percorrer o país do Rovuma ao Maputo, não só para provar que a media Ocidental é deveras redutora, quando se refere a Moçambique, mas também para revelar que Moçambique é, com certeza, maningue nice!

Sem nada a perder, a estrangeira aceita a proposta e, assim, começa uma intensa viagem de chapa (bem ao estilo do que se passa no romance Museu da Revolução, de João Paulo Borges Coelho), ora apreciando, ora surpreendendo-se com o que Moçambique é muito além dos estereótipos.

Na globalidade do espectáculo, a parte teatral é de longe a melhor de Olhar Moçambique. Se preferirmos, Joana Mbalango e Samuel Nhamatate suportam e conduzem a narrativa do espectáculo com uma autenticidade inigualável. Nos seus diálogos, as personagens dos actores retratam assuntos sérios do país real. Por exemplo, os temas turismo, caça furtiva ou a gestão e promoção do património histórico e cultural são discutidos com critério.

Na verdade, as duas personagens da história são complementares, pois uma representa a visão nacional e outra estrageira sobre o mesmo território nacional. Portanto, nessa viagem que percorre o Norte, o Centro e o Sul, Joana Mbalango e Samuel Nhamatate foram capazes de manter o espectáculo de TP50 mais sugestivo  do que poderia ter sido sem eles. Joana e Samuel foram os motores do espectáculo e, já agora, Anabela Adrianopoulos foi a materialização da sedução no que deve continuar a significar ler um texto com dicção e encanto.

Em Olhar Moçambique, Joana e Samuel não fingiram, encarnaram as personagens da peça como se não soubessem fazer mais nada com tanta assertividade. Do público, consequentemente, o retorno foi sempre positivo, com sorrisos e reacções oportunas. Quer dizer, os dois actores esmeraram-se tanto que, em várias ocasiões, teria sido melhor não haver música. Melhor dizendo, se, por um lado, a parte teatral convenceu, por outro, com a música nem sempre foi assim. Em três ou quatro ocasiões, as escolhas vocais não foram acertadas. Por mais belas que sejam as vozes de Nádia Cosme, Mário Mate ou Letícia Deozina, não pareceu estarem à altura do que cantaram, o que, obviamente, não quer dizer que cantam mal.

Paralelamente a esse registo menos positivo sobre o concerto, a escolha de músicas de algumas províncias também não convenceu muito, e isso notou-se, por exemplo, nos casos de Niassa, Nampula, Zambézia e Manica. No sentido inverso, quando se tocou “Urombo”, de David Mazembe, e “Xiripo”, de Madala, definitivamente, venceu-se a monotonia musical que até aí se destacava na Sala Grande. Consequentemente, pela primeira vez, ao fim de quase uma hora de espectáculo, viu-se o público a improvisar passos de dança como se dissessem: Sim, isto é nosso. Aliás, nesse momento, até a turista estrangeira saiu do chapa para dançar.

Resumindo, a selecção musical e a escolha dos intérpretes poderia ter sido mais adequada, de modo que não se sentisse um desequilíbrio entre as notáveis actuações de Déscio Vembane, Xixel Langa (que até nem esteve no seu melhor) e o monstruoso Cheny Wa Gune em relação aos que estiveram menos bem. A cantar e a tocar timbila, Cheny foi naturalmente o mais destacado da noite na categoria de canto.

Ainda sobre os aspectos menos positivos da noite, quando a história começa em Cabo Delgado, atravessa de seguida Niassa e chega a Nampula, ao invés de continuar pela Zambézia, a narração, digamos assim, salta para Tete. Sendo uma viagem de chapa, isso faz confusão porque entre Nampula e Tete não há ligação por terra. Ou seja, parece razoável que a turista italiana e o homem moçambicano deveriam ter saído de Nampula para Zambézia, e, seguidamente, para Tete, Manica, Sofala, Inhambane, Gaza e Maputo. Ou na ficção vale tudo?

Em todo o caso, Olhar Moçambique é uma proposta sugestiva e que nos lembra que há um país incrível por descobrir e por promover. Ao nível técnico, há ainda a realçar os bons efeitos de luz, a afinação do som, a encenação, a coreografia da Associação Cultural Hodi, principalmente em relação ao Xigubo, a agilidade dos contrarregras na colocação ou retirada de objectos no palco ou então o xithokozelo de Tchaka Waka Bantu.

Concluindo, Olhar Moçambique não é (ainda) dos melhores espectáculos de TP50 (já vimos melhor). Ainda assim, é o que pela sua dimensão simbólica, tal como o grupo pretende, deve urgentemente ser apresentado em outras províncias moçambicanas.

 

 

 

Não quero mais esta dor

Novamente na mão

A medir

O aroma do silêncio.

In Vestígios do silêncio, Amosse Mucavele

 

Caros amigos, inicio esta intervenção, como tem sido habitual neste tipo de ocasiões, em primeiro lugar, agradecendo ao Camões, pela recepção e generosidade, e à Alcance, por mais uma vez investir na divulgação da literatura moçambicana. É sempre bom, para os autores, escreverem sabendo que terão como publicar os seus textos.

Em segundo lugar, quero, sobretudo, felicitar ao Amosse pela coragem de lançar o seu terceiro livro, escrito entre Moçambique e Portugal. Sem dúvidas, este Vestígios do silêncio é a prova de que as residências literárias funcionam e, inclusivamente, são determinantes para a criatividade dos autores.

À parte os agradecimentos, se me permitem, partilho convosco o que, nos bastidores, contribuiu para que cá viesse cumprir esta tarefa de apresentar o livro do Amosse.

Na verdade, recebi o convite para apresentar Vestígios do silêncio há 10 dias desta sessão. Na ocasião, encontrava-me a escrever “O silêncio como estética na obra de Languana”, um ensaio a uma belíssima exposição individual que esteve patente no Núcleo d’Arte.

Mal recebi o convite, o que me ocorreu foi o seguinte: O Amosse deve ter convidado alguém que, por um motivo qualquer, desistiu de apresentar o livro. Então, com certeza, deve estar a fazer-me de bombeiro. Logo eu, que de apagar incêndios não entendo absolutamente nada.

Tendo pensado dessa maneira, o meu primeiro instinto foi o seguinte: Não, não vou apresentar esse livro. 10 dias de antecedência é pouca coisa e eu tenho tantos outros assuntos por resolver.

Sinceramente, essa pareceu-me uma saída fácil e acertada, até porque tinha argumentos a meu favor para recusar a apresentação. Mas achei muito curioso receber o convite para apresentar Vestígios do silêncio numa altura em que analisava a exposição Conversando com o silêncio, de Aldino Languana. Além disso, pode não parecer, mas tive um peso de consciência. O Amosse é meu amigo há tantos anos e pressenti que tinha de me sentir privilegiado por me ter escolhido para apresentar o seu novo título, ainda que na condição desse bombeiro que não sabe nadar ou que tem medo de fogo.

Não prolonguei mais a hesitação. Em menos de dois minutos respondi ao nosso poeta por SMS, dizendo-lhe que aceitava apresentar o livro desde que me entregasse um exemplar no dia seguinte. Foi uma forma dura de pressionar o homem, porque o conheço muito bem. Quantas vezes já combinei coisas com o Amosse e fiquei a ver navios? Várias. Então tinha de o encostar à parede e, conforme a minha previsão, comprometeu-se e garantiu que no dia seguinte eu teria o livro. Coitado de mim! Há nove, oito e sete dias do evento, nenhum sinal do Sr. Amosse Mucavele. Nada de nada. Faltando seis dias, garanti aos meus botões: Não apresento mais nenhum Vestígios do silêncio. Entretanto, parece que os meus botões não conseguem guardar segredos, e puseram-se logo a informar ao Camões sobre a minha decisão. Consequentemente, no dia seguinte, faltando cinco dias para esta cerimónia, vejo o cartaz no Facebook, no qual, inevitavelmente, constava o meu nome.

Tenho de vos dizer que aí fiquei encurralado. A partir do momento em que o nosso nome aparece num cartaz, parece que assinamos algum compromisso com o público em geral. No entanto, o nosso poeta continuava sereno e desaparecido. Reapareceu há quatro dias. Ligou-me com aquele sorry lá de quem diz Fique calmo. Não há aqui problema nenhum. Disse-me assim: Remédios, não te batas. O Nick vai-te passar o livro.

E graças ao meu amigo Nick do Rosário, presente nesta cerimónia, recebi o livro e cá estou eu para partilhar convosco algumas leituras. Amosse, espero que te tenha deixado muito mal na fita.

***

Eu intitulei esta minha intervenção da seguinte maneira: A poesia do espaço, do silêncio e da memória, porque, conforme observa Nuno Júdice, na nota de apresentação, constato que “Este é um livro em que o silêncio se converte em imagens nascidas da memória histórica dos lugares e da sua impressão no olhar do poeta” (p. 5).  

De facto, desde o seu primeiro livro, Geografia do olhar, incluído o segundo, A pedagogia da ausência, o tema da cidade, em Amosse Mucavele, é algo constante e premeditado. Por isso mesmo, num artigo que intitulei “Amosse Mucavele: o poeta urbano”, desenvolvo essa ideia de afirmação poética por via da relação com um lugar de pertença, o lugar das luzes, do betão armado e do efémero.

Maputo é assumidamente o berço do Amosse, todavia, na sua conexão com a cidade de Lisboa. É como se tivéssemos, já a partir de Geografia do olhar, uma espécie de premunição. Quer dizer, há uns anos Amosse estreia-se em livro com a versificação do espaço urbano pertencente às capitais moçambicana e portuguesa e, hoje, volta a lançar um título fruto de uma residência literária em Portugal. Coincidência ou não, Vestígios do silêncio fortalece essa predisposição para aproximar o que os mares ou as fronteiras separam. Aqui, nestes jogos semióticos sobre a imagem e a sugestão, o nosso poeta, que não cumpriu o compromisso de me entregar um exemplar do seu livro a tempo, pelo menos revela-se comprometido com o lado invisível e simbólico das coisas.

Em outras palavras, estou a querer dizer que a reivindicação poética pelo território urbano, em Amosse Mucavele, quer no seu primeiro livro, quer neste, não é algo fechado. Pelo contrário, a atmosfera da cidade resume essa tendência para os sujeitos textuais servirem de elementos de união entre países, paisagens distantes, épocas distintas e memórias históricas que se vão diluindo pela profunda e casmurra amnésia colectiva.

Aliás, quem também observa a orientação estética conexa ao território, nestes Vestígios do silêncio, é Carmen Lucia Tindó Secco. No seu prefácio, a ensaísta brasileira diz o seguinte: “É constante, na poesia de Amosse, uma inquietação em relação ao espaço, aos prédios de Maputo, muitos dos quais envoltos em sombras e esquecimentos, mesmo os arquitectados com arte” (p. 7).

Entre os vários poemas resultantes do olhar comprometido do nosso poeta urbano, destaca-se, neste seu terceiro livro, “Karel Pott”, na página 22. Leio a partir da segunda estrofe à última:

Permanece

O sopro do miserável ícone

Mudo por estes dias

A anunciar o fuzilamento da história

 

Estes

São os habitantes sem secto

Aqueles que com a inércia abrem

As portas da dor irreparável

 

Há no prédio Karel Pott

Murmúrios soterrados

Escritos em letras vazias

Envelhecidas entornam “O Brado Africano”

 

Uma longa ruína

Pedaço de um coração enferrujado

A inundar a avenida

De longe habitamo-la na morte

Como uma espada soterrada

Quando rasga o ódio

 

E no silêncio, indiferente abalroam as lágrimas

Quando a vontade de cantar o presságio

Se inclina na floração do tempo (p. 22)

 

Julgo que, sem muito esforço, facilmente captamos nuances projectas pelo texto de Amosse Mucavele. Afinal, partindo de uma construção, a poesia projecta-nos para o passado, do qual sempre necessitamos de aprender a definir significados como património, História, cultura e, claro está, memória.

“Karel Pott” é uma desculpa para lembrarmos Karel Pott e relermos as páginas d’O Brado Africano. Mas como lembrar e reler o que esta sociedade ignora ou finge não fazer sentido? Se preferirmos colocar a questão nos seguintes termos, de que somos feitos, quando atropelamos elementos históricos e identitários?

Neste Vestígios do silêncio, além de títulos de poemas, “Karel Pott”, “Pancho Guedes”, “Cinema Império” e “Cinema Olímpia” são referências à uma cidade que, conforme se pretende, se deve permitir o direito de se desenvolver com as suas gentes e acções. Há-de ser por isso que em Amosse Mucavele temos o centro e a periferia. E a periferia é tão importante que atrai uma estrela da Hollywood, segundo revela a segunda estrofe da página 25:

Já velho, Clint Eastwood faz compras no Xipamanine

Como um maestro abandonado pela orquestra

Desatento passa no guião por ele escrito

 

Há sempre um mistério por destras de cada comprador

 

Aqui, podemos pensar que o subúrbio maputense é o espaço de confluências interculturais e sociais, onde nacionais e estrangeiros rodam filmes reais da Humanidade. Pena que nesse meu Xipamanine, onde cresci, facilmente se transformam centros de arte e cultura em lojas. Primeiro, foi o Ntsindya. Há uns anos, alguém se lembrou que fazia sentido o sacrilégio de matar a História dos moçambicanos por causa de um “Rei do Chinelo”. Agora, o Cinema Olímpia, sagrado para muitos de nós, é um supermercado. E nem me vou referir ao Matchedje. Nesta onda consumista, qualquer dia abriremos matadouros nos museus, nos teatros e nas galerias de arte.

Talvez por ser uma excepção, numa sociedade que vive o agora com a mesma dedicação com que nunca pensa nas questões essências do passado, generalizo, Amosse Mucavele faz da sua poesia um vector da resistência, porque o que vivemos noutra vida continuará a importar.

Na sua fixação pela cidade, entendo que Amosse Mucavele faz na poesia o que a obra de Aldino Muianga encerra na ficção. Ou seja, quando nos referimos aos autores que melhor configuram o espaço físico e social de Maputo, Aldino Muianga é um nome obrigatório. No caso da poesia, penso que Amosse está a colocar-se na vanguarda nesse sentido. E eu diria mais. Do mesmo jeito que, por exemplo, a Ilha de Moçambique é um lugar místico e/ou fascinante para Sónia Sultuane, em O lugar das ilhas, ou para Luís Carlos Patraquim, em O cão na margem, em Amosse Mucavele a fascinação resume-se à Cidade de Maputo, pois, tal como em Muhipiti, das ruinas da capital moçambicana se vê o mundo.

Concluindo, no artigo “A comparação poética: ensaio de sistemática”, Jean Cohen afirma que “A unidade mística da natureza, da mulher e do tempo é captada pela intuição do poeta”.

Bem, nos três livros de Amosse Mucavele, a natureza, no sentido paisagístico do termo, com flores e odores, não é um registo característico. Quanto à mulher, embora a capa do seu segundo livro tenha uma sugestão erótica, a conduzir-nos para os contornos femininos, definitivamente, também não é o elemento condutor do poema. Amosse não é o poeta dos sujeitos líricos que sofrem ou enaltecem o amor às musas. No lugar da mulher e da natureza nos sentidos aqui referenciados, o poeta escolhe a unidade mística do tempo e das suas representações na totalidade dos objectos visualizados.

Enfim, mesmo para terminar, e considerando toda a nossa indiferença em relação ao património, à História e à memória, a vocês e ao Amosse, deixo-vos a seguinte pergunta: “Quanto custa o silêncio?”.

 

 

*Texto escrito na sequência da apresentação do livro Vestígios do silêncio, de Amosse Mucavele, lançado a 4 de Julho de 2023, no Camões – Centro Cultural Português em Maputo.

Vou tentar escrever muito pouco. Primeiro, quero dizer que acho que, num Estado normal, ninguém deve falar do Presidente da República como Doppaz tem o hábito de o fazer. Destaque-se: num Estado normal! Ainda não disse o que penso do nosso; na verdade, não direi, vou levantar pontos para pensarmos.

Por que razão ninguém deve fazer isso? É que o Presidente da República representa um dos cinco órgãos de soberania deste país. E quem é o Presidente da República neste país? É o chefe de tudo e de todos. É quem representa o país em tudo, é quem zela, principalmente, pelo cumprimento do princípio da legalidade e protege os mais fracos (ou, pelo menos, devia).

Se o Presidente fizer o que retroexpusemos, o Presidente da República recebe, em troca, o respeito, a dignidade e o prestígio do “Pai da Nação”. Pense numa família em que o pai faz tudo pelo bem de todos nela. O que acontece quando um dos irmãos o ofende? Todos os outros o repreendem, não é verdade?

Nós, os moçambicanos, quando alguém ofende o órgão de soberania, no caso o Presidente da República, fazemos duas coisas: ou aplaudimos a pessoa ou não nos importamos. Para mim, isso é culpa do próprio Estado, que é dirigido pelo Governo, o mesmo que, actualmente, é chefiado por aquele que Doppaz ofendeu: o Presidente da República. Portanto, o ofendido criou bases para que isso acontecesse. A actuação do Governo cria, nas pessoas, duas, não mais, sensações: apatia ou revolta em relação ao Estado.

Os apáticos não vêem nenhum problema em ter “um Doppaz” a falar como quer de um órgão de soberania. Isto é causado pelo facto de estes não se identificarem em nada com o Estado. É como um filho que só vive na mesma casa que o pai, mas não se interessa em nada pelo que acontece nela, já que entende que nenhuma decisão tomada pelo “papá” é pensando nele.

Os revoltados estão zangados. Estes sentem que o Estado está a fazer justamente o contrário do que devia fazer. Isso causa revolta. Estes não podem falar como Doppaz fez, porque conhecem o poder coercivo do Estado e sabem que, nisso, ele pode ser intransigente. Então, quando um “corajoso”, com um toque, até, de ingenuidade, aparece a falar naqueles moldes, é como se estivesse a carregar nas costas o pensamento de todos.

Há um terceiro grupo, mas este não é resultado da actuação do Estado, é mais pelo estômago. Nesse, encontramos pessoas que se sentem ofendidas no lugar do verdadeiro ofendido como forma de mostrar lealdade ao mesmo.

Há algum tempo que se diz que Doppaz é um doente, isso por conta da forma como ele fala dos assuntos, sem nenhum travão moral. Deploro isso! Mas, se ele continuou, é porque nós, ou não víamos problema, ou nos revíamos. Isso só porque chegámos aonde chegámos.

Não imagino que alguém de nós estaria com coragem de dizer “Free Doppaz” se ele tivesse ofendido alguém das nossas famílias. Bem, se tivesse sido isso, a PGR não o teria detido. Enfim, só estava a pensar alto. 

Incaracterístico ostentar o nome Anjo. Serve, temporariamente, para tratar os bebés, depois desaparece. Quem, em adulto, continua sendo anjo tem outros pergaminhos. As famílias auguram por mensageiros para a ligação com os seres celestiais. Essa é a função dos anjos. O notável Professor António Batel Anjo era dos poucos Anjos registados em cartório. Fez questão de não usar nunca o sobrenome. Gostava mesmo era de Batel. Fazia jus a sua postura e carácter. Afinal, ele sempre foi obstinado e predestinado a uma versão oposta a santidade. Jamais aceitou a submissão e viveu com vontades próprias, com uma voz que corporizava o oposto a normalidade. Era essa pessoa de multifacetados talentos, aptidões e a própria equação de um matemático, ensaísta, poeta e, curiosamente, personagem singularmente altruísta e pedagogo.

Um inconformado pesquisador, que não completou nenhum ciclo de vida. Nas suas tangentes, seu fôlego para empreender e encetar novas ideias e projectos era demasiado grande. Vivia um pouco para a frente do seu tempo. Uma corrida sprint, com rasgos de fundo e meio-fundo. Viveu como partiu, apressado. Ansioso por descobrir um novo arco-íris para colorir e resolver as múltiplas questões associadas à fraca qualidade do ensino em Moçambique e na terra que o viu nascer, essa antiga e tão nossa metrópole domesticada. Peregrinou em busca de alternativas à disfunção dos infixáveis dados estatísticos, à falta de critério e rigor nos números, na simbologia entre as datas e os eventos científicos, e nos temores que a matemática gerou nas crianças e adolescentes.

Batel nasceu gigante na sua fisionomia. Se tornou descomunal na forma de pensar. Um anjo metodicamente desproporcional e distanciado de todos os Deuses. Excepção era feita à Pitágoras, seu Deus e alguém que simplificou os códigos e padrões matemáticos. Os gregos acreditavam que a matemática era divina e vinha para salvar a humanidade e que as equações serviriam para cuidar da alma dos fiéis. Batel era, igualmente, apóstolo do teorema que defendia que as forças da natureza, a terra, o sol, a lua, os mares, os rios e o vento só existiam porque tinham a matemática na sua essência.

Na correria, e no método, quis fazer da sua peregrinação essa vida de adições, subtracções, multiplicações e divisões. Usou a versatilidade das letras para fazer uma coreografia de letras e sonhos. Na sua irreverência, questionou métodos, conceitos e verdades apresentados em relatórios de instituições de todas as geografias. Era avesso aos dados adquiridos de que a verdade absoluta provinha do hemisfério Norte. Rabiscou e reviu todos os relatórios e, de forma fugaz, questionou suas validades. Testou as incongruências, recorreu à dúvida metódica cartesiana para se assumir como filósofo da vida.

Batel quis deambular pela triangulação sobre as principais datas que o transportavam para outras galáxias. Uma espécie de triângulo que não era acutângulo nem isósceles, muitos menos escaleno ou obtuso. Agora, sou eu quem revisita essas datas que o marcaram e que fizeram todo o sentido na criação da trilogia mais importante de sua carreia. Naturalmente, salvaguardo as datas de aniversários e outras mais pessoais. Estas, convenhamos seriam as institucionais e comemorativas.

Começo pelo 10 de Novembro, dia mundial da ciência para a paz e para o desenvolvimento. Data, tantas vezes, ignorada ou despercebida pelo cidadão mais comum e, igualmente, invulgar para tantos que aspiram aos diplomas universitários. O 10 de Novembro o motivava a trabalhar com grupos pequenos de estudantes, para que eles aprofundassem o seu conhecimento sobre os segredos da ciência e, principalmente, sobre as novidades da tecnologia.

Nos vários momentos de celebração e exaltação da ciência, tivemos o privilégio de beneficiar das feiras de robótica nas escolas. Centenas de alunos aprenderam a montar e usar robots e, de sobra, ficaram com os equipamentos para as suas escolas. Não teria dúvidas em afirmar que estes foram os mais profícuos, proficientes e extraordinários eventos que, alguma vez, foram organizados nas escolas. Os jovens competiram, aprenderam, ensaiaram e descobriram o segredo do branco, como diria a mãe de Eduardo Mondlane.

O 8 de Novembro é o dia de celebração de STEM (Science, Technology, Engineering and Math ou Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática, em português). Apesar de ter começado como uma data restrita aos Estados Unidos, rapidamente, esta efeméride ganhou contornos globais. Batel inovou e chamou a si a responsabilidade de corporizar esta celebração para o nosso calendário nacional. Assim, entendendo o terror que a matemática significava para os alunos e estudantes das nossas escolas, e da terra que o viu nascer, decidiu que o STEM deveria ser divulgado, entendido e interpretado. Desta forma lançou, antes de partir, a revista STEM+L, um ponto de confluência de dois grandes temas da Ciência – o STEM e a Língua Portuguesa, nas suas vertentes literárias e artísticas.

Tinha a consciência do que diziam alguns relatórios e estudos globais. No início dos anos 2000, foi revelado que os alunos americanos não tiveram resultados positivos nas avaliações internacionais nas disciplinas STEM, na mesma proporção que os de outros países. Conclusões óbvias. Consequências imprevisíveis se o país tivesse de competir na economia global com uma força de trabalho mal preparada.

Os países com menores níveis de investimento nestas matérias, incluindo os EUA, ocupavam lugares pouco honrosos em avaliações de competência e conhecimento científico. O assunto era de natureza tão séria que persuadiu o Congresso norte-americano a deliberar por uma nova postura em relação a literacia tecnológica e, principalmente, ao ramo das ciências exactas. Esta é postura de países que entendem que a economia baseada no conhecimento, e impulsionada pela constante inovação, não se alheia e nem negligencia os avanços da IX revolução científica industrial.

Então, a insistência no STEM para Moçambique era a única forma de sinalizar que, também, este país que almejávamos próspero e desenvolvido, tenha de perseguir uma base da inovação que favoreça uma força de trabalho dinâmica, motivada, funcionalmente educada e munida de competências. A redução da carga de disciplinas gerais, para que a matemática pudesse ser obrigatória em todos os níveis e subsectores do ensino tem de ser mais que uma pretensão. Acreditava, de forma irredutível, que com os computadores e a robótica, num estágio ainda tímido, se poderia motivar e entusiasmar os jovens para um modelo de matemática mais lúdico, prático e apelativo. Aprender brincando e jogando fazia total sentindo.

Por alguma razão o nosso Professor era apologista do 19 de Outubro. Dizia, vezes sem conta, em alto e bom som, que era mais fácil recordar a data em que Samora Machel seguiu para a eternidade do que, propriamente, quando viu à luz do sol pela primeira vez. Ele entendeu, como poucos, o momento revolucionário em que Machel viveu e a sua forma peculiar de liderar os processos educativos. Decisões arrojadas. Educação como prioridade fundamental.

Batel escreveu, nesses textos soltos que um dia reuniremos em livro, que das palavras aos actos vão, por vezes, distâncias incalculáveis, mas, a liderança perdurará e se manterá, tão necessária e vital, para que os objectivos da sociedade sejam alcançados. Criticar, pensar de forma diferente, ter ideias novas é tudo o que uma liderança deve produzir. Esse o legado e o pensamento de uma sociedade que se quer dinâmica e forte, nas suas convicções sociais. Não vale a pena falar de desenvolvimento se não estivermos socialmente estruturados. Como, também, não faz sentido abordar sobre a educação, se não existe uma sociedade democrática para lhe dar respaldo.

Batel era inconformado consigo mesmo. Depois de uma temporada na Universidade de Aveiro, emigrou para Moçambique. Esta foi a sua segunda pátria. Aqui viveu como qualquer cidadão nacional, longe de privilégios, próximos das vicissitudes e aporias, porém sempre comprometido com as diferentes causas educativas e sociais. Serviu como consultor no Ministério da Educação. Mas, foi, sobretudo, o mesmo docente e arrojado motivador científico.

Moçambique, assumia, detém um complexo sistema educativo, prenhe de descontinuidades e insolúveis problemas. Este universo de mais de oito milhões de alunos, treze mil escolas, mais de quarenta mil professores, continua um espaço onde a vontade de aprender continua tão férrea e fugaz, que mesmo sem infra-estrutura ou mínimo de conforto, mantém as crianças atentas e consequentes. Falta tudo menos vontade. Mas, são as premissas e as ausências de vontades políticas que condicionam os processos educativos. A mudança ainda será possível.

Ele quis aproveitar, com o seu entusiasmo, essa oportunidade única para ajudar a pensar e estruturar as metodologias de ensino, rever os manuais, procurar parcerias e criar projectos. O Projecto Pensas, com apoio do Instituto Camões, era um do projecto com o seu timbre, e foi implementado com muito sucesso, para milhares de alunos e outras centenas de professores e docentes. Trabalhou, analogamente, na revisão e concepção de compêndios de ciências exactas. Partiu ciente de que os alunos que não aprendiam; os professores não ensinavam e os gestores faziam de conta. Motivar estes grupos continua sendo urgente e imprescindível.

Algumas vezes mais desconsolado e outras menos, abordava a formação docente como algo que não poderia ser equivalente a formatação. Qualquer espaço de formação não poderia ser uma fábrica de moldes, onde as peças teriam de ser todas iguais, e as que apresentassem alguma diferença, ou defeito, não deveriam ser postas de lado, destruídas ou transferidas para o armazém das inutilidades.

Ele era um adepto convicto de Manuel Castells; revisitava as teorias educativas de Pierre Bourdieu e de Paulo Freire; delirava com os textos de José Saramago. Terminava seus emails com a seguinte frase: O heróico de um ser humano é não pertencer a um rebanho. Lia Fernando Pessoa, Eduardo White, Sophia de Mello Breyner Andresen, Noémia de Sousa e José Craveirinha, Eduardo White e Rui de Noronha. Para Batel Anjo, inequivocamente, o terreno da formação não deveria ser um processo mecânico, antes, um processo orgânico que permitisse o desabrochar da identidade e das capacidades de cada um. Isto só poderia acontecer se os professores se transformassem nos impulsionadores do talento dos seus alunos, e as escolas num espaço onde os jovens encontrassem inquietações reais, e as perseguissem. As inquietações teriam de se converter em paixões.

Batel fazia tudo com pressa e paixão. Nas cumplicidades que alimentaram nossos serões quase tertúlicos, muito cibernéticos, me enviava um poema para encerrar a troca de ideias. O último poema foi sugestivo. Teve um sentido de despedida quando sentiu que carecia de mais cuidados. Anos antes, ele havia beneficiado de um tratamento mais cuidado na África do Sul. Sabia, então, que a sua saúde exigia cuidados redobrados. Porém, nada me fez acreditar que não voltaríamos a fazer agendas, a projectar bienais e nem sequer organizar as feiras de robótica. Não realizaríamos mais minutos de ciência viva e nem traríamos, juntos, os alunos de tantas escolas secundárias que não devem sequer saber que ele não regressará as feiras de Astrobot.

Igualmente, me recusei aceitar que nunca mais teria um outro email com iluminadas propostas e desafios. Gravei, em memória, o último poema da nossa última conversa.

Na Primavera já não me encontras

Cansado do sol que não me aquece

Não, não sei se resisto muito mais

A falta de um abraço que me enlouquece.

Este poema de despedida antecipava uma partida anunciada. Sobreviver as pandemias e fazer as despedidas por outras patologias para as quais a vida ainda busca soluções.

Nem um beijo, nem sequer me despeço

Quero que o longe seja o infinito

Não espero em mais nenhuma estação

Hoje decidi, não vivo mais para ti no final de cada tertúlia.

Quis revisitar estas memórias na época em quem que procurava as palavras certas para dizer um adeus. As palavras que nos acompanham para a eternidade não possuem o mesmo significado. O silêncio substituiu todos os algarismos e equações. As fracções e a álgebra que servem de elevador para dias mais iluminados.

Agora renascemos a Bienal. Trouxemos o Batel Anjo de volta as nossas salas. Ele continua aqui presente, fazendo a sua apresentação, transpirando e exigindo as melhores condições para os seus estudantes, sempre.

A Osuwela e a Universidade Pedagógica do Maputo foram o seu último local de trabalho. Se orgulhava de poder ajudar e fazer da sua faculdade um local distinto e de excelência, aberto e interactivo. A prova deste amor incondicional gerou esta bienal. Oxalá que toda a poesia sirva para alimentar e fertilizar os jovens e capacita-los para um novo mundo de descoberta e de paixão.

 

 

Li, com redobrada atenção, o texto “ISAAC ZITA”, de autoria de Nelson Saúte, ora em considerável circulação nas redes sociais. Como sempre, o autor distingue-se no texto pela escrita escorreita que cultiva como pouquíssimos entre o leque de escritores moçambicanos. Aliado a esta distinta capacidade, Nelson Saúte entende ainda, nos escritos que tenho lido da sua lavra, saber ressuscitar palavras nada comuns na fala que nos caracteriza no dia-a-dia, a par de uma formulação frásica mesmo invulgar que o distinguem da escrita dos demais, que quase ninguém, para não dizer o pior, saberia estar-lhe próximo nesse aspecto. Palavra rara em Nelson Saúte não fere a leitura, surge com uma afinada naturalidade que a coloca distante do rebuscado no sentido meandroso do termo. Nisso Saúte é um verdadeiro mestre:

 “Não fosse o infortúnio da sua prematura entrevista com a morte, a 17 de Julho de 1983, Isaac Zita ter-se-ia afirmado, indubitavelmente, como o primeiro talento de gabarito na ficção moçambicana no pós-independência, tão surpreendentes como invulgares eram as suas qualidades como prosador. A sua erupção literária, no entanto, foi brevíssima, contudo dela ficou o espólio do seu raro dom narrativo. Quis o destino tecer-lhe outros acasos. Um deles este absurdo silêncio em que o seu nome se encontra obnubilado.

 É, de facto, prazeroso ler uma formulação frásica quanto “A sua erupção literária, no entanto, foi brevíssima...”, e essa capacidade de escrita não calha a qualquer um. Por exemplo, com a utilização da palavra “erupção” Saúte revela a sua capacidade de dizer em uma o que muitos diriam em mil palavras. Em “A sua erupção literaria” o autor condensa algo que um outro escritor podia ter  formulado da seguinte forma:  “o seu surgimento espontâneo comportava energia e brilho  literário”. Sobre a utilização de palavras raras, mas que surgem com afinada naturalidade no texto sautiano, atenção a “Um deles este absurdo silêncio em que o seu nome se encontra obnubilado.Obnubilado, que não é de uso no dia-a-dia, se encaixa na frase com a necessária naturalidade estética, mas que  provavelmente outro autor podia ter optado por “apagado”,  “esquecido”, “ignorado”, etc.

Todavia, como não há bela sem senão, ao nível ideológico, encontro muito espaço para divergir deste autor que, sinceramente, aprendi a admirá-lo pelos aspectos acima expostos.  Na verdade, o que não aprecio em Nelson Saúte estende-se, da pior forma,  a outros e tantos acadêmicos e/ou  fazedores de opinião no nosso panorama literário. Embora haja uma grande responsabilidade às costas dos que despontaram nos anos oitenta, por constituirem afirmadas referências. Ao emitir uma  opinião,  uma personalidade desse universo, porque já credenciada,  não deve ajustar-se ou rossar  as margens da desonestidade intelectual, falta de rigor ou interferência  com malabarismos de carácter pessoal no seu juizo sobre as nossas artes e/ou literatura, sob risco de tais  vícios arrastarem milhares de moçambicanos para  o mato.

De acordo com Nelson Saute, “Isaac Zita, nos seus imaturos 19 anos, era senhor de uma escrita segura, reveladora de grande maturidade e possuidor de uma invulgar capacidade de narrar acontecimentos, colhia do real aspectos aparentemente mais irrisórios para os transformar, pelas vias da ficção e da criatividade, em produto estético capaz de exercer forte atracção sobre o leitor”.

Em minha opinião, o texto ISAAC ZITA, de Nelson Saúte, não diria estar ferido de desonestidade intelectual, mas de alguma falta de rigor.  Primeiro, porque atesta que “isaac Zita era senhor(…) de um escrita segura, reveladora de grande maturidade e possuidor de uma invulgar capacidade de narrar acontecimentos”, entretanto Saúte não sustenta a sua constatação, não traz nenhuma evidência capaz  de também conduzir a quem o ler a essa mesma conclusão.  Por exemplo, que elementos textuais fazem de “Os Molwenes”, uma  “escrita segura”, ou de “grande maturidade”?

Segundo, e sinceramente, eu não encontro, por exemplo, uma grande maturidade em “Os Molwenes”, deparo-me,  sim, com uma grande promessa literária, infelizmente que conheceu o ocaso  aos 19 anos de idade. Mais adiante, e a cair na mesma malha de elencar qualidades, ou distinguir sem evidenciar, Saúte adianta:  “Para além de dominar a descrição, é habilidoso nos diálogos. Os diálogos são, na ficção narrativa, de difícil conseguimento. É uma das técnicas mais árduas. Poucos escritores sabem fazer diálogos.” Tambem sou tentado a contrariar essa afirmação de Nelson Saúte e passo a evidenciar o que não torna Zita “habilidoso nos dialogos’: sirvo-me mesmo da citação trazida por Saúte no seu texto: – Olha, n´duwê, eu paguei dez escudos, como você…/– Pôrra! Que merda é essa?… Mas não quero que conte!…

Remetidos a essas duas falas, de um escritor habilidoso não se espera que coloque os diálogos de modo dúbio (não disse ambíguo) como surge no excerto trazido por  Saúte de  “Os Molwenes” .  Passo a discussão: Em “Mas não quero que conte!…”   a adversativa “Mas” recai sobre o quê no diálogo?  Sobre “eu paguei dez escudos, como você…” ou sobre “Que merda é essa?…” ?

Quanto a mim, no mínimo, um escritor habilidoso contornaria o dúbio no diálogo  através de uma simples reestruturação frásica: – Olha, n´duwê, eu paguei dez escudos, como você…/– Mas não quero que conte!…Pôrra! Que merda é essa?…

Todo o ser humano tem uma boa história por contar, mas há-de diferenciar-se o habilidoso escritor acima de tudo, também pela atenção que dedica aos pequenos aspectos do texto, demonstrados pela sua capacidade de limar as arestas: o polimento que se obtém com o trabalho de reescrita. Portanto, indo contra a maré, Isaac Zita, infelizmente, aos 19 anos, não teve tempo para revelar essa grande maturidade, mas deixou marcas de ter sido um  grande talento!

Poderá alguém dizer que estou a lutar com um morto, e sempre ouvi que não se critica um finado, pois esse já  não poderá defender-se. Todavia, também, como africano, sei-o da memória colectiva que quando um vivente se apossa do espírito do morto para atormentar os seus contemporâneos, outra saída não haverá senão por intermédio do  nyamussoro dialogar com o próprio morto.

Da desonestidade intelectual, ou interferência com malabarismos de carácter pessoal nos artigos de opinião, Nelson Saúte entende que “falhara a ideia de o editar (Isaac Zita) como primeiro nome da colecção “Início”, que era dedicada a jovens talentos e que revelou, entre outros, o arrebatado e arrebatador poeta Eduardo White, com o livro “Amar sobre o Índico”. Ora, por que razão, na Colecção Início, Nelson Saúte vai rebuscar Eduardo White (por quem nutro uma admiração e tive a grata oportunidade de com ele privar, mas agora Saúte rebuscou-o mesmo. Com que objectivo?), com o livro “Amar sobre o Indico” (poesia), quando na sua abordagem tem como objecto um autor de narrativa?  Não seria coerente exemplificar com Aldino Muianga (Xitala Mati) ou Ungulani Ba Ka Khosa, aliás o único autor com obra, “Ualalapi” (Colecção Início)  cotado entre os cem melhores livros de África no Século XX.  Ora, esse fenómeno que não agrega mérito à classe intelectual moçambicana, com o fingimento de lapsos de memória quando e deixar-se, propositadamente, conduzir no mar dos (des)afectos pessoais em detrimento do rigor que é de se exigir a um escritor do quilate de Nelson Saúte.

Aviso à navegação, se a História absolverá Fidel Castro, seguramente condenará muitos intelectuais moçambicanos. Pois, muitos textos de opinião, entre ensaios e artigos jornalísticos que tenho a oportrunidade de ler, andam feridos pelo vício da memória selectiva e assim estão condenados a uma futura obscuridade: eu não vou por aí!

 

Os silêncios são a seiva do pensamento.

In Os pintores de sonhos, de Carlos dos Santos.

 

24 peças completam a sexta individual de Aldino Languana. Patente no Núcleo de Arte, Cidade de Maputo, até 2 de Julho, domingo, a exposição revela um autor versátil, cujos traços das suas aguarelas denunciam uma espécie de obsessão sensata pela paisagem humana.

Nas múltiplas formas de conceber os seus universos ideais, no entanto aparentemente tangíveis, Languana faz do seu pulso uma ferramenta viável para a fixação, no papel, dos batimentos do coração. Nesse movimento suave e cardiovascular, fundamentalmente, o artista parece ver com os dedos tudo o que é impossível sentir com os olhos. Quiçá, por essa razão, a mostra não apresenta um título prático, digamos assim, visual ou até que nos remeta para as artes plásticas. Pelo contrário, dando ao conjunto da sua obra o título Conversando com o silêncio, o artista transparece a sensação de que, muito além de um trabalho aturado de pesquisa, quis fazer das suas peças algo assertivo na reivindicação dos seus e dos vários sujeitos que fazem o Homem.

Ora, na preparação da sua nova individual de artes plásticas, a Languana interessou, sobretudo, ouvir do que dizer. Essa opção, num mundo espiado pelo caos e pela incerteza, reflecte um artista que não grita, não chora e não se rebela. Longe disso. Ao invés do ferro e fogo ou do escopro e martelo no sentido virulento das duas expressões, o artista escolhe orquídeas e tulipas para, desse modo, exalar cheiros e vicissitudes… Nisso paira o jogo da metáfora, no qual as flores se enxergam nos sentimentos e na combinação das cores quentes.

Na mostra Conversando com o silêncio, em que algumas molduras podem contrariar a preferência do visitante, na verdade, cada tela é uma flor (não em termos paisagístico), isto é, tem o seu encanto na medida em que a pintura transmite uma energia positiva na harmonização de elementos vitais e de beleza. Também por essa razão, o Núcleo de Arte é um bom lugar para se frequentar nestes dias, pois, nas aguarelas em papel de Languana, nas pequenas, médias e grandes dimensões, estão diálogos que o autor, tendo estabelecido consigo em viagens inefáveis, agora, estende a toda gente. Em grande parte, vem dessa sua predisposição para partir a possibilidade de chegar ao âmago da criatividade; e, acto contínuo, surge da sua entrega ao silêncio a atenção para escutar a natureza e a vida.

Ao reverso da constatação do narrador de Marizza, ficção de Mélio Tinga, o silêncio não é a coisa mais atormentadora para um homem que é perseguido por mil coisas. Para Languana, de facto, mesmo a concordar com o narrador de Os pintores de sonhos, de Carlos dos Santos, os silêncios são a seiva do pensamento. Logo, no seu registo anímico e manual, o artista plástico combina o que pensa e o que sente, diria Nick do Rosário, nos seus solilóquios.

Por um lado, quer pela intenção na utilização da cor, quer pelo resultado alcançado com as suas aguarelas, Languana afirma-se como um artista necessário, ousado e maduro. Tecnicamente falando, temos aqui um autor que sabe como explorar o papel e derreter a aguarela. O branco, à semelhança do silêncio, essa espécie de vazio, é luz complementar dos desenhos geométricos, antropomórficos ou presumivelmente animistas.

Com uma série de procedimentos minimalistas, as aves e os peixes merecem algum destaque. Provavelmente, como representações da liberdade e profundidade criativa, respectivamente.

Por outro, Conversando com o silêncio é uma construção desvirtuada sobre o corpo humano em jeito de segmento de persuasão interpretativa. Nesse aspecto, sem pretensões eróticas, a exposição dignifica os objectos representados, todavia, sem apegos a retratos. O compromisso de Languana é discernir no silêncio os filamentos imprevisivelmente narrativos. Afinal, na conversa/monólogo se identificam a causa e efeito, o espaço e o tempo, as personagens sonhadas e o narrador que somos nós, os visitantes da mostra.

Perseguindo as suas formas, Languana sugere textos e pausas, parafraseando Mikhail Bakhtine, consciente de que assim como o Homem nunca coincide completamente com a sua situação concreta, também o mundo nunca coincide completamente com a pintura. Ainda assim, a sua individual é um mundo sereno, no qual se adivinham tonalidades do silêncio enquanto elementos estéticos, portanto, e instrospectivos.

 

Título da exposição: Conversando com o silêncio

Autor: Languana

Local: Núcleo de Arte

Classificação: 17

Somos, indiscutivelmente, um país de contistas, ou se preferirem, vivemos numa terra cheia de apetecíveis histórias  algumas delas presentes neste livro e outras tantas em obras diversas que prestigiam a nossa arte de contar e obviamente a nossa literatura. As Conversas de Nhamacata confirmam essa honrosa tradição através da mestria narrativa e estilística de Gonçalves Patrício que se manifesta de forma vistosa ao longo de vinte e dois textos repletos de surpreendentes histórias, cujas personagens quase que constituem a caricatura do nosso quotidiano e da nossa própria vida. Sem pretender ser proprietário de bom gosto, ouso acrescentar, e considero necessário que isso se diga, que mais do que um simples livro de contos,  a presente colectânea de Gonçalves Patrício ressuscita um género literário que atravessava momentos menos auspiciosos, à favor de outras expressões narrativas consideradas mais pujantes. Estamos, se me permitem o exagero comparativo, diante de uma espécie de griot que não se limita a contar histórias do imenso manancial oral, Gonçalves Patrício esgrime, isso sim, o seu imaginário e criatividade que nos faz recordar os grandes executores desta nobre expressão narrativa que é o conto.

Os contos que compõem As Conversas de Nhamacata oferecem-nos a grata possibilidade de poder lê-los sem nenhum esforço e este é um dos maiores méritos do livro, o de possuir uma narrativa onde as palavras não são demasiadas, onde a metáfora não é esforçada, onde os lugares e sentimentos cabem apenas em parcas palavras. São contos breves. Leves como as asas dum pássaro. Surpreendentes, como se exige duma escrita que pretendemos inovadora. Exprimem de maneira concisa muitas realidades, ficcionam outras tantas, e ainda há muitas outras que somos induzidos a imaginar influenciados pelos contos de Gonçalves Patricio. São vários os mundos que povoam as páginas deste livro, cada mundo é apresentado duma maneira diferente, cada mundo representa a forma como o autor faz a leitura da vida e é a multiplicidade das suas vivências, de certa maneira aqui expostas, que enriquece esta colectânea. Por outro lado, reencontramos nesta obra algumas das características fundamentais de um conto, a primeira, e como é obvio, a existência dum enredo, que é composto pelo intróito, depois o momento de maior tensão da narrativa e o natural desfecho, que neste livro é imprevisível, como acontece, aliás, com a nossa própria vida, e esse desfecho é a estratégia assumida pelo autor em quase todos os textos e que aliado a enredos breves, acrescidos de algum surrealismo, torna a leitura desta obra apetecível.

Esgota-se, com este livro, o argumento sobre a magistralidade do romance em detrimento do conto, desmistifica-se a sua superioridade como género pátrio da narrativa moçambicana e fundamentalmente dissipa-se este pessimismo que insistia em perseguir-me. Gonçalves Patrício recupera a elegância do conto, veste-a de poesia, contorna-a com a maturidade da sua escrita, cheia de gramática, frescura e criatividade, embora exista uma corrente de pensamento que considera que não é a pureza gramatical e vocabular que define a renovação literária.  Os contos falam de política, mesmo sem falar dela. Falam de amor, mesmo quando não existem arrebatadoras declarações de amor. Os contos falam-nos de encontros e desencontros da vida, mesmo não se tratando de um manual de sociologia. Os contos abrem e fecham janelas, mostram-nos o lado irónico e caricato da vida. Os contos que constam em As Conversas de Nhamacata, ensinam-nos a caminhar para a descoberta de nós próprios, e nesse aspecto o Gonçales Patíicio pode ser considerado  um talentoso influenciador da vida, aliás, como dizia o José Régio, “um escritor exerce sempre na sua obra uma acção moral”.

Gosta-se de um livro por variadíssimas razões. Algumas não tem necessariamente a ver com o próprio livro, obedecem a outros critérios de avaliação que aqui não são chamados. Gosto dos livros quando são bem escritos. Gosto da concordância das palavras. Da inovação do verbo. Da existência de alguma dose de loucura, isto é, de sentir em determinados momentos da leitura alguma perplexidade. Gosto de sentir que o autor trouxe-nos algo de novo. É por isso que gosto deste livro de Gonçalves Patrício, principalmente quando escreve coisas como estas:

“Nisto, o vento faz pacto comigo. Sopra uma lufada persistente a meu favor. Levanta o fino tecido que revela as pernas roliças e solta-lhe os cabelos entao presos com um elástico transparente. Jamy não se preocupa em cobrir-se, deixa os cabelos esvoaçarem, instigarem o meu semblante babadinho. Marota, sorri, sabe que sem a resposta que tanto almejo, sou uma jangada a deriva, um condor com a asa quebrada. Muda de posição e mostra-me as costas da mesma cor da areia. Procuro o mar com o olhar para arrumar as ideias e encontrar o melhor ponto de recomeço. Mas, a maresia atrapalha. Ou melhor, as ondas traquinas trazem um par de golfinhos, o espectáculo grátis que enleva a tarde tropical: – Quem me dera sermos como eles! Aponto para os cetáceos. Ela apoia os cotovelos na areia com as palmas a segurar-lhe o queixo e continua plácida no silêncio de Cleópatra.”

Estamos perante um livro que corre o agradável risco de ser considerado como sendo uma das colectâneas  que muito bem representa o conto moçambicano. É uma espécie de homenagem a um lugar quase anónimo, Nhamacata, onde o autor protagonizou tempos de infância e outras experiências de vida que viriam a servir de lugar de memória e enriquecedores dos seus escritos. Os vinte e dois textos que  compõem As Conversas de Nhamacata possuem elementos capazes de seduzir o leitor mais exigente. Este sentimento de sedução apoderou-se de mim quando li o seu livro de estreia, Piripiri na Boca de Djogoro, que a ausência de uma crítica comprometida e a excessiva humildade do autor, fizeram com que a obra passasse despercebido nos escaparates das nossas livrarias. As Conversas de Nhamacata, creio, é um livro que vai percorrer outros caminhos e despertar a curiosidade dos leitores e da crítica. Os tempos mudaram. Com os meios de informação cada vez mais agressivos, os livros atravessaram fronteiras, os estilos literários cruzaram-se, houve influências, a escrita, nomeadamente a de Gonçalves Patrício, tornou-se madura, universalizou-se, sem no entanto perder a sua individualidade e identidade. Suponho, por esta razão, que é chegado o momento de prestar-se a devida atenção a este escritor que um dia a terra de Mopeia, Zambézia,  viu nascer para depois o oferecer aos diversos cantos do mundo, onde apreendeu aspectos da vida que hoje enriquecem os seus escritos.

“Shabane despiu-se sem pudor e fez careta quando se viu franzina e ossuda. Com jeito, para não piorar o ranger dos joelhos, arrodilhou-se na canoa e beijou o crucifixo suspenso ao pescoço. Segurou na rede esburacada e vestiu-a como uma diva das passareles requintadas. Depois, acamou-se suavemente no ventre da almadia de cara guinada as nuvens. Duas gaivotas apressadas vieram-lhes defecar na testa rugosa. Foi então, que decidiu esmurar o fundo frágil da canoa. Quando as águas começaram a borbulhar sobre o seu corpo, respirou aliviada. Começara a longa viagem sem retorno!”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A arte, a literatura, em especial, enquanto culto da palavra e das linguagens, é um dos palcos, por excelência, privilegiado pela humanidade na busca interminável de respostas ou do aprofundamento das questões sempre movediças e desconcertantes inerentes à identidade e à existência.

In Além do túnel, de Francisco Noa.

 

No dia 16 deste mês de Junho, os membros do júri da primeira edição do Prémio Nacional de Literatura Infanto-juvenil (Alberto da Barca, Angelina Neves e Marcelo Panguana) revelaram aos leitores por que deliberaram a favor do livro Os pintores de sonhos, de Carlos dos Santos. Entre os vários argumentos, constam os seguintes:

Mensagem bonita, importante e muito actual, dada de uma forma muito didáctica e animada e o conto funciona como base de aprendizagem na preservação do ambiente. A história é cativante, desperta a curiosidade, lidou bem com o mistério, a imprevisibilidade, e o ritmo cria suspense em cada página. O livro está escrito de forma clara, e é interessante a ideia do sublinhar de algumas palavras e haver um dicionário no fim do livro. As ilustrações, singelas, apoiam bem o texto.

Até ao pronunciamento acima, eu não havia lido Os pintores de sonhos, de Carlos dos Santos, embora tenha o livro desde 9 de Outubro de 2021, portanto, há aproximadamente dois anos. Então, logo a seguir ao anúncio do primeiro vencedor do prémio instituído pela Kulemba (associação que há anos tem feito, de facto, do activismo um factor de consciencialização das crianças, dos adolescentes e dos jovens), fui retirar da minha prateleira de livros esses pintores de sonhos e pus-me a lê-los, expectante porque entre os cinco finalistas do concurso encontrava-se Lamura, de Suzy Bila, outro belíssimo livro: https://opais.co.mz/lamura-o-possivel-universo-da-liberdade/.

A leitura do infanto-juvenil de Carlos dos Santos deve ter durado, com algumas interrupções, 90 minutos. A ideia inicial nem era de ler para escrever este texto, até porque o fim-de-semana longo fez-me prometer dar mais abraços à minha mulher e jogar sei lá quantas partidas de xadrez com o nosso campeão de 5 anos de idade lá de casa. Entretanto, no intervalo entre a promessa e a ansiedade, lá inventei um argumento qualquer e, como levo muito jeito nestas coisas de matrecar a minha família, coitada, comecei a ler Os pintores de sonhos, com a excepção de algumas páginas, livro bem ilustrado por Rajau de Carvalho.

Logo no princípio da leitura, primeiras três de um total de 72 páginas, percebi o vigor de uma história muito bem contada. Do ponto de vista do discurso, irrepreensível. Realmente, Carlos dos Santos é dos autores moçambicanos que melhor trabalha a densidade semântica e da mensagem que pretende transmitir nas suas histórias. Por exemplo, quando se lê os seus infanto-juvenis, O caçador de ossos (2013), Os pastores de letras (2016), Na esteira das estrelas (2018), ou a sua ficção científica, A quinta dimensão (2006), O pastor de ondas (2011), O eco das sombras (2016) e Histórias do outro mundo (2021), facilmente se capta na conjugação verbal, e no que daí advém, um autor competente na escrita de uma história consequente. Muitas vezes, incluindo na sua narrativa conhecimentos científicos que são novidades para muitos de nós.

Ler Carlos dos Santos é uma verdadeira aprendizagem, pouco importa se se trata de infanto-juvenil ou ficção científica. O escritor, em cada publicação, consegue erguer algo novo num substracto literário particular e que ao seu nível ainda não há igual em Moçambique. Dito de outro modo, até para dissipar eventuais enganos, quando se trata de literatura inerente à ficção especulativa, Carlos dos Santos é a maior referência que temos, e, nos infantis, também se encontra na linha da frente. Além disso, num país em que se vão revelando egos estranhos no universo literário, muitas vezes a tentarmos manchar as boas iniciativas dos outros, ao invés de nos aliarmos, Carlos dos Santos é uma voz que precisamos ouvir com muita atenção, pois, na sua discrição, concilia a inteligência e a assertividade do seu pensamento. Aliado a isso, claro está, acresce-se a arte literária que carrega nas veias, afinal, filho de escritor, no caso, escritor é.

No outro dia, um amigo disse-me o seguinte: “Há prémios que dão credibilidade aos livros, mas também há livros que dão autenticidade aos prémios”. A ser verdade, neste contexto, encontramo-nos diante de uma situação em que o Prémio Nacional de Literatura Infanto-juvenil e Os pintores de sonhos se beneficiam reciprocamente. Para uma primeira edição do concurso, que uns e outros olharam de soslaio, com alguma desconfiança ou desprezo até, talvez por ser da Beira e não da capital, que essas mesquinhices ainda existem entre nós, o Prémio Nacional de Literatura Infanto-juvenil cumpriu essa sugestiva tarefa de reconhecer as produções para os mais novos. Assim, se for consensual que é de pequeno que se torce o pepino, poderemos ter, nos próximos anos, mais investimentos em literatura para crianças, quer dos autores e editores, quer dos leitores e pais/encarregados de educação. Afinal, conforme propõe Francisco Noa, a arte literária, “enquanto culto da palavra e das linguagens, é um dos palcos, por excelência, privilegiado pela humanidade na busca interminável de respostas ou do aprofundamento das questões sempre movediças e desconcertantes inerentes à identidade e à existência”.

Só por corresponder a esse pensamento de Noa, Os pintores de sonhos merece ser lido, distribuído nas escolas, comentado e, obviamente, ser premiado. É um livro excepcional, no qual a narratividade conquista o leitor desde o princípio, com dinâmica, suspense, mistério e intensidade.

A história do conto de Carlos dos Santos é sobre dois irmãos, o Zua e a Mwedzi. Através deles, a história põe-nos a pensar sobre as consequências nefastas do abate indiscriminado de árvores, em Moçambique, em África e no mundo. O tema principal do livro é grave, mas o que se destaca mais é o cuidado da narração. Cada palavra conta e foi escolhida por alguma razão. Nada é dito ou introduzido por acaso. Logo, a trama facilmente conduz a imaginação a uma aldeia onde os dois protagonistas e o cão Musodzi descobrem uma misteriosa caixa enterrada.

Na verdade, há aqui duas histórias que desaguam na mesma foz: a história da caixa misteriosa e a história das calamidades naturais causadas pelo Homem. Na segunda variável, o conto personifica a dor por que passam os moçambicanos mais vulneráveis às tempestades ou aos ciclones tropicais. É um conto sobre o horror e a esperança, a cumplicidade e amizade de dois irmãos, sobre a ideia de que, para ser culpado, não é necessário que sejamos descobertos. Nas nossas acções, antes dos outros, a nossa consciência é que nos deve vigiar e guiar. Vejamos o seguinte desabafo de Zua para com os seus botões num momento em que a personagem acredita ter causado uma tempestade ao desenterrar uma caixa misteriosa:

“Felizmente, ninguém me viu a desenterrar a caixa, por isso, ninguém me irá culpar” – pensou o Zua, a tentar confortar-se a si mesmo. Mas sem sucesso. Culpa é culpa, quer alguém saiba, quer não. E quanto mais escondida for, maior ela se torna (p. 19).

Se os nossos políticos e gestores da coisa pública lessem livros ou passagens como essas, talvez, 48 anos depois, não culparíamos o colonialismo, a guerra dos 16 anos, as calamidades naturais e sanitárias por sermos tão empobrecidos. Pois, o sentimento prévio de culpa sempre concorreria para uma sábia e responsável tomada de decisão. Ou seja, é preciso eliminarmos esse pensamento de que os culpados são sempre os outros ou os fenómenos à nossa volta, e nós somos vítimas; é necessário desconstruirmos o pensamento de que só somos culpados quando apanhados em flagrante delito. O sentimento de culpa tem de estar permanentemente em nós de modo a não sermos sujeitos culpados das nossas e das desgraças dos outros. Mas não tratemos do impossível. Não hoje, um dia depois à fraquíssima comemoração dos nossos 48 anos de independência. Só uma deposição de flores na Praça dos Heróis é coisa pouca. Até por que já dizia White: “Quando a morte me chegar, não me dêem flores e nem discursos para moldar”. Mas nós teimamos em só oferecer flores aos mortos, quando os podemos eternizar numa verdadeira celebração: com artes, desporto, olimpíadas académicas e visitas guiadas a museus como da Revolução, que agora só existe no último romance de João Paulo Borges Coelho. Como moçambicano, sinto-me triste pela maneira como celebramos a nossa independência. Tenho um familiar morto enquanto lutava por Moçambique, em 1966, e acho que as suas acções e a de tantos outros bravos libertadores da pátria podiam ser honradas, tornando o 25 de Junho um dia especial para todos.

À parte o desabafo, em Os pintores de sonhos, Carlos dos Santos demonstra ser um bom observador dos comportamentos, dos diálogos, das relações, dos afectos e dos receios das crianças. Deve ser por isso que o seu narrador omnisciente tem o domínio sobre os eventos por si revelados, inclusivamente, os que se passam quando Zua e Mwedzi estão a sonhar. Até nisso o livro é oportuno para aprendermos a observar como as nossas crianças dormem, porque na maneira como elas sonham também se revelam, por exemplo, pavores da sua vida acordada.

Um dos momentos bonitos do infanto-juvenil encontra-se na página 30, quando o narrador introduz uma nova personagem: Ranguisse. Trata-se de um menino que se locomove através de um carinho de rodas. Este tipo de representatividade não é comum nos nossos contos para crianças e até nos nossos romances. Também por isso, Carlos dos Santos perdeu uma oportunidade de dar mais vida àquela personagem. Por exemplo, Ranguisse poderia ter tido espaço privilegiado para aparecer numa certa aula na escola, na qual o jogo da argumentação no debate entre os alunos é algo absolutamente contagiante. Sem isso, a sua passagem é efémera quando se revela muito necessária para pensarmos na condição das “crianças portadoras de deficiência”.

Outra passagem interessante é protagonizada pela professora primária, num contexto de aula em que os seus alunos, mesmo diante de boas ideias partilhadas por Zua e Mwedzi, tentam desvaloriza-las:

Quando vocês depararem com uma ideia que achem boa, talvez mesmo melhor do que a que vocês próprios tenham tido, não tenham vergonha de a aceitarem e a apoiarem. Porque nós não estamos a discutir uns contra os outros, estamos todos, juntos, a discutir contra os problemas. À procura daquela que for melhor ideia. E as ideias não têm dono. Quando acharem que uma ideia é boa, não lutem contra ela. Adoptem-na e melhorem-na. Vão ver que, depois, a ideia final, tem um bocadinho de cada um de vós (p. 43).

Se os deputados lessem livros e esse tipo de excerto, certamente, não só valorizariam a ideia da outra bancada nas unânimes discussões sobre os seus salários.

Enfim, apropriando-me de Roland Barthes, o que eu mais aprecio em Os pintores de sonhos, de Carlos dos Santos, não é directamente o seu conteúdo nem mesmo a sua estrutura, mas sim a coerência e a densidade de um enredo que nos confronta com as nossas imperfeições, ora atacando problemas, ora apresentando soluções para um mundo livre, já agora, de uma iminente implosão catastrófica.

 

Título: Os pintores de sonhos

Autor: Carlos dos Santos

Editora: Alcance

Classificação: 17

 

 

Para enxugar as nódoas dos meus olhos, colectânea de poemas de Énia Lipanga tem 48 poemas divididos em três cadernos, nomeadamente: “Não amanhece enquanto canto”, “Para enxugar as nódoas dos meus olhos” e “Elo”.

A imprensa e as redes sociais deram mais ênfase ao segundo caderno. Deve ser por se tratar do que dá título ao livro, ou o que mais vende, não sei, mas dos três cadernos, o mais desafiador, para mim, por ser composto por imensas imagens estéticas e mensagens polissémicas foi o primeiro.

Não digo que esse seja o melhor, porque existem poemas que não seguem a modelos estético-simbólicos pré-estabelecidos sobre o que é que um poema deve ser, mas que são belos poemas para se ler e despertam emoções ou sensações. São líricos. Através da poesia lírica podemos não só cantar amores, mas também fazer crítica social. Um grande exemplo de um poeta lírico que fazia crítica social, em Moçambique, é Eduardo White. O que devo dizer é que, no seu todo, a obra de Énia Lipanga cumpre com a sua função estética e com a sua função social, enquanto objecto literário.

Esta mulher é conhecida pela sua dedicação à causa da arte, destacando-se como contestatária, através do rap, num grupo que se designa “Revolução Feminina” e pelo seu activismo na área da inclusão social. Resulta das várias actividades em que se integrou, na área do activismo para a inclusão, a publicação da sua obra Sonolência e alguns rabiscos (2019), que é o primeiro em Moçambique à tinta e em braille. E não é à toa que a Hamasa Magazine, um periódico tanzaniano a considerou das dez mulheres mais inspiradoras de Moçambique. Énia preocupa-se com a subalternidade da Mulher. Luta pela sua liberdade e faz tudo, através da arte, para espantar as muitas tristezas que assolam a Mulher.

 

Para enxugar as nódoas dos meus olhos

Os poemas de Énia Lipanga, podem ser analisados a partir das teorias de Viktor Chklovsky, escritor e crítico literário – que escreveu sobre a estética do Estranhamento; Hannan Arendt, filósofa que aborda a “Condição humana” e D’Onofrio (1995), teórico que fala sobre a poesia lírica.

A estética do Estranhamento é proeminente no primeiro caderno de Para enxugar as nódoas dos meus olhos, por, através dela, Énia Lipanga, ter obscurecido a compreensão de determinados objectos e fenómenos, tendo-os ainda desfamiliarizado relativamente ao que sabemos ser comum acerca deles. Sobre essa técnica inerente à poesia, Chklovsky afirma que:

A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularização [ostraneine] dos objectos e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se ”tornou” não interessa mais a arte Chklvsky (1971: 82):

O poema que segue, da obra em apresentação, é dos que melhor espelha o processo de singularização. Aparentemente, todos conhecemos a chuva, suas características e seus efeitos, mas na obra de Énia, ela ganha outros contornos. É um poema muito bem elaborado, do ponto de vista da sua construção estética:

“Chuva”

As janelas estão acesas / Inspiras a barba molhada / Bebes as rosas que flutuam no ar / Em cada gota íntima / A presença é amada no tacto / Mas há um guarda-chuva na tua vida. Lipanga (2021:18).

Este poema pode sugerir, através do seu título a ideia de um fenómeno meteorológico. Entretanto, as imagens que apresenta, podem sugerir, entre outras coisas, um acto de amor, embora haja ausência de um corpo físico concreto. Há, ainda, a separação de corpos por um objecto, que tanto pode ser um guarda-chuva, tal como o texto refere ou pode ser um preservativo masculino ou feminino. São as imagens que se podem desenhar, enquanto se lê o poema. Ele está construído de tal forma que não se reconhece imediatamente o evento realizado. É a tal ideia de prolongamento da percepção do objecto, a que Chklovsky faz referência.

Ainda no grupo de poemas desse caderno quero destacar uma maneira canónica de fazer poesia, que pode ser colocada na óptica do exemplo anterior. Refiro-me à utilização de figuras de estilo ou de linguagem, nomeadamente, a metáfora em: “Sou o meu quarto” […] Lipanga (op.cit.:17) e “As janelas estão acesas”; a personificação em: “Os olhos de zinco”. (ibidem) e o paradoxo em “Há um brilho negro aceso” (ibidem:19); entre outras figuras.

A obra de Énia Lipanga aborda a condição humana. Explicada por Hannan Arendt (2007) como o conjunto de três aspecto: labor, trabalho e acção, sendo que o labor é o que a espécie humana realiza para sobreviver. O trabalho, o processo de transformação realizado pelo homem, por imposição do contexto social – não é intrínseco ao homem e acção, o que o homem realiza, para se integrar socialmente com os outros.

Relativamente à condição humana, o que constato, ao ler a obra de Énia Lipanga, é que a escrita da autora em si seria esse trabalho de transformação de uma matéria para sobreviver ou seja, transformação de emoções em poesia escrita, o que se reflecte no sujeito poético criado, que se impõe um modo de sobrevivência, para a sua integração numa suposta sociedade. Ou seja: há para sobreviver a determinada intempérie, a autora escreve. A escrita é um processo de transformação de emoções em papel, em algo material. E isso é aferível, a partir das manifestações do sujeito poético que fala nos poemas, por exemplo, no poema intitulado “[Eu não me teria cansado]”:

Eu não me teria cansado / Se não fosse ter o mundo sobre a espinha dorsal / Vomitei tempestades em manhãs de inverno // Pareço o mar, acumulo ondas nas pálpebras / Carrego o céu e banho-me no seu cinzento / Inundo sonhos – estourei // Os deuses também se cansam. Lipanga (op. cit.:31).

Há, também, na poesia de Énia Lipanga muita subjectividade, típica da poesia lírica, que segundo D’Onofrio (1995:1) expressa sentimentos, emoções, recordações ou previsões de futuro.

Esse sujeito poético na poesia de Lipanga, cansa-se, mas não estoura, não sucumbe. Pois, deixa réstias de esperança e isotopias de luz a iluminar novos caminhos, tal como se pode ler no poema intitulado “Recomeço”: “Dois passos desequilibrados / Não há bengala para apoio / As palmas têm o ar / O destino solto nos dedos / Um puxão // Repetes enquanto reaprendes.” Lipanga (op. cit.:56).

Deixa esperança no futuro, o que me remeteu à leitura do Apocalipse, 21:4, a saber: “Ele enxugará dos seus olhos toda lágrima. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou que se vislumbra a partir de pacto”. Isso pode ler-se no poema que leva o título de “Promessas” e diz: “Montanhas de incertezas / Degraus e sonhos / Volumosos anseios / Bebo dos teus beijos / Certezas de futuro / Fé permanente / Um amor presente / Amanhã.” Lipanga (op. cit.:58). Ou o outro poema, intitulado “Máscara”: “Vestida de repetida alegria / (O sorriso é uma pétala agrilhoada) / Estufas o peito e ergues a cabeça / Para encarara tua morte diária // O caminho é de feridas e sangue / E agora, mulher, és dor ou és / Amor? / Morres com um arco-íris no teu rosto”. Lipanga (op.cit.:55).

Não tenho como confirmar o que li pelos média, o facto de Para enxugar as nódoas dos meus olhos ser uma obra autobiográfica. Pelo que posso conferir, através da leitura desse livro, julgo tratar-se de uma obra que aborda a estética de sí, na qual o sujeito poético pode ser a própria autora ou um outro sujeito diferente dela. Chamam-se a esse tipo de escrita, em Filosofia baseada em Foucault, de cuidado de si, que integra aquilo que o autor do texto leu, viveu ouviu ou sentiu e regista; o que em última instância integra o seu eu e o eu dos outros, reflectindo-os num registo.

Em Lipanga (2021) lemos sentimentos ou estados d´alma comuns aos seres humanos. O salto que a autora faz é de os registar poeticamente. E a poesia, para além de cumprir a função estética que enunciei no início do presente texto, tem a função de registar o que é de âmbito social, no caso do que passo a apresentar, estados d´alma atormentados ou inquietados pelo amor, que parecem impossíveis de superar. Mas é preciso recordar que a autora deixa, no que enunciei antes, sempre uma possibilidade de se superar ou de se fazer um recomeço.

“Sou o meu quarto / […] E as janelas que não dormem / […] Vaza a incerteza do amanhecer / […] Os olhos do zinco.” Lipanga (2021:17); “[…] A presença é amada no tacto / mas há um guarda-chuva na tua vida.” (ibidem: 18); “[…] Nunca chove / Há um brilho negro acesso nos meus olhos.” (ibidem:19); “[…]Não existes / Resides em ninguém / E nos meus olhos e em meus dedos.”  (ibidem:34); “[…] Sorrio / Não de susto, / já não me surpreende / Encontrar-te em todos os caminhos.” (ibidem:35); […] “Dividimos a mesma sela de pecados e remorsos / Eu suplico: não tortures o amor,” (ibidem:37); “[…] Sou gata perdida farejando / Restos do seu dono.” (ibidem:65).

Para além da fruição estética do texto em si, o que aprendi da obra de Énia Lipanga é que a escrita pode ser libertadora. Lipanga mostrou que a poesia é um devir.

Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

Não são os prémios que dão valor aos livros.

São os livros que dão valor aos prémios.

Venho pensando neste exercício de apresentação de livros e do alcance que devemos dar a ele. Olho para mim nesta actividade e não sinto mais nada senão a responsabilidade. Quando recebo um convite desta natureza pairam em mim algumas perguntas: Quem eu sou? De quem é o livro? Quem serão as pessoas que me irão escutar? E por que razão o livro deve ser apresentado? Sinceramente (e por agora), só tenho respostas para a primeira e a última (quem eu sou e o por que razão o livro deve ser apresentado?)

Quanto a esta primeira pergunta, apenas sei que não sou um influencer com poder de vos fazer comprar o livro à força, como quem diz “se ele falou tão bem do livro, deve ser bom”. Não, não sou…felizmente! Imaginem se eu fosse uma dessas entidades com o nome já firmado no âmbito académico, cultural ou político. Estaria aqui numa espécie de saia justa. Teria de escolher entre falar bem do livro, com o risco de comprometer a minha imagem se o livro for mau; ou ter de ser sincero relativamente aos aspectos negativos do livro para salvaguardar a minha honra, e ser tomado como incoerente tanto pela editora, quanto pela autora, pela natureza desta actividade. Mais adiante retomamos o sentido desta incoerência a que me refiro.

Cabe, também, acrescer o facto de estar, pela primeira vez, a interagir com a autora do livro, o que me salva da acusação de amiguismo sobre qualquer aspecto a que eu vá fazer menção sobre o livro.

Ora, todos estes elementos colocam-me diante de uma neutralidade que me permite falar deste livro sem amarras e com a responsabilidade focada pura e simplesmente ao acto de apresentação do livro que, em si, invoca a aludida coerência entre o que o livro é e os motivos pelos quais deva ser objecto de consumo. Respondendo à segunda pergunta (por que o livro deve ser apresentado?), vejo este exercício na dimensão publicitária e, sobretudo, crítica. É um exercício que vai permitir que os senhores aqui sentados comprem o livro, certos do que poderão encontrar nele; para os que não poderão comprar hoje, servirá de amostra do quão grande será a sua perda; para os que já leram (editor, revisor, autor, etc.) será uma oportunidade para revisitarem as leituras que fizeram dele e criarmos, assim, algum espaço de discussão e aprendizagem.

Enquanto percorria as páginas deste diamantes pretos no meio de cristais, eu dizia cá para mim: este livro é único. Digo, contudo, que foi inevitável não pensar em Neighbours, de Lília Momplé, um belíssimo romance em que esta emblemática figura da literatura moçambicana cria um enredo que se desenrola em três blocos narrativos cuja interseção é a ocorrência de um crime que envolve três famílias vizinhas.

À semelhança desta narrativa, diamantes pretos no meio de cristais apresenta-nos três universos de narração distintos e independentes cujo fio condutor não se estabelece no enredo propriamente dito, mas na reflexão a que nos remete que se prende com a atemporalidade da luta pela igualdade de direitos diante das diferenças raciais e de doenças pandémicas. Portanto, o racismo (de brancos para negros, sobretudo) e a discriminação de pessoas com HIV/SIDA quando não se tinha muita informação sobre esta doença, são o mote que sustenta o enredo deste romance.

Nos últimos 20 anos da literatura moçambicana, há um sentimento muito acentuado de abandonar os clichês do que se possa considerar, efectivamente, literatura moçambicana, seja do ponto de vista de temáticas, de espaços e tempos da narração, da estrutura narrativa e, finalmente, da construção linguística do livro. A forma como estes elementos são abordados em diamantes pretos no meio de cristais é o que constitui a unicidade deste livro no nosso meio e dá à Maya Ângela alguma autoridade para se assumir como “escritora” pura e simplesmente, sem nenhum qualificador que, na essência, é um clichê redutor.

O trama do livro desenrola-se, principalmente, em três espaços diferentes: Kansas (Estados Unidos da América), Cidade do Cabo (África do Sul) e Cidade de Maputo (Moçambique). Do ponto de vista temporal, as acções que ocorrem em Kansas iniciam em Agosto de 1856 e se enceram em Dezembro do mesmo ano. As da Cidade do Cabo ocorrem no intervalo entre Fevereiro a Setembro de 1961 e as da Cidade de Maputo, respectivamente, começam em Junho de 2001 e terminam em Outubro do mesmo ano. Relativamente à aludida estruturação destes enredos, diga-se que obedecem blocos estruturais que se permutam e se mantêm independentes do início ao fim, salvo o facto de a reflexão a que nos remetem ser a mesma conforme disse acima.

Diante deste aspecto peculiar na construção do romance, valerá, sobremaneira, a atenção do leitor para manter o fio condutor destes universos temporais e espaciais bastante diversos e que nos remetem a um aspecto não muito comum na construção narrativa a que já estamos acostumados. Refiro-me à coabitação de cerca de cinco línguas, entre as quais podemos destacar: Português, Inglês, Xirhonga, IsiXhosa, Afrikaans, entre outras. O que chama atenção neste exercício é a busca de verosimilhança do enredo através da atribuição de falas das personagens nas línguas em que as mesmas são fluentes em função das suas características sócio-identitárias, pelo menos é o que se pode inferir deste esforço de dar vida às letras através da mistura de códigos, linguagens e linguajares.

Este exercício curioso e particular relativamente às categorias do acto de narrar faz com que rebusquemos bases teóricas que possam sustentar as escolhas estéticas que foram feitas em “diamantes pretos no meio de cristais”.

Resumidamente, considere-se que muitos autores apontam o século XIX como o período em que o romance atinge o apogeu do ponto de vista de produção e consumo. Portanto, a popularidade de que o romance se beneficia nos dias de hoje é uma novidade dos últimos duzentos anos. Isso não significa que ele tenha surgido exactamente neste período. A questão da origem/surgimento é uma outra conversa, porque desde os tempos antigos o ser humano teve sempre este hábito de reflectir sobre grandes temas, personalidades, ideias e valores.

Um dos géneros a que se recorria nesse tentame, pelo menos no que à narrativa diz respeito, era a epopeia: forma textual que teve especial incidência na Antiguidade e no Renascimento. Com a ascensão de sociedades burguesas, o romance passou, também, a conhecer os seus dias de glória, abandonando, em certa medida, a afirmação de projectos nacionalistas excepcionais, a competição dos deuses com os homens e a representação do destino colectivo de comunidades de alcance nacional. Todos estes aspectos deixam de ter primazia com a entrada em cena de personagens antes tidas como pacatas, triviais, mas não menos importantes para o entendimento de sociedades actuais ou antigas, suas dinâmicas políticas, sociais e até quotidianas.

É por esta razão que neste romance nos são apresentadas três personagens pacatas do ponto de vista de origem social, mas que desencadeiam reflexões existencialistas de grande vulto. Talvez venha daí o título que o livro recebe: diamantes pretos no meio de cristais. A Juno Beomunt, a Anna e a Elvira Guambe são, indubitavelmente, os diamantes pretos deste livro.

Juno Beomunt: uma escrava, negra, que fora adoptada como filha por um casal no Norte dos Estados Unidos da América, cresceu como tal e com direito à edução a que não tinham acesso as outras pessoas iguais a si. Cresce nutrida de ideias de abolição da escravatura por, ela própria, ser a amostra de que a descriminação das pessoas com base na cor da pele é uma construção social que nada tem a ver com um “projecto divino” como inescrupulosamente se tentava defender. Somos todos iguais, temos os mesmos direitos – é assim que vê o mundo: o seu e o dos outros.

Anna: uma empregada doméstiga, negra, que trabalha para a família Dawnson em Cape Town, um casal de brancos, com dois filhos (uma menina e um menino recém-nascido). Sente na pele as mazelas do apartheid e as regras discriminatórias que vigoravam em torno deste sistema. Convive com a família Dawnson no contexto familiar, debate-se com os seus dramas conjugais e vivencia a pequenez de um racismo estrutural que, felizmente, não comanda o sentimento das crianças do casal pelas quais tem imenso carinho, ao ponto de amamentar o bebé recém-nascido da sua patroa por esta se negar a atender aos choros da criança em virtude de estar a cuidar das unhas.

Elvira Guambe: uma jovem que muito cedo concebeu, foi ao lar, perdeu o filho, ficou viúva, descobre que era seropositiva numa altura em que tal condição constituía um tabu social e, por via disso, é expulsa de casa pelo pai. É acolhida em casa de um amigo, passa a trabalhar nas lojas da cidade de Maputo, desfaz-se da casa do amigo por achar que precisasse de cuidar do seu destino de forma autónoma. Segue o tratamento anti-retroviral em segredo e não partilha a sua condição de saúde nem com a própria sombra. Por influência de amigas, torna-se prostituta, passa a não seguir as recomendações médicas. O seu estado de saúde piora e, enfim, desfalece.

O drama destas três mulheres, quais diamantes pretos no meio de cristais, deixa o leitor em transe relativamente a diversas questões que constituem o nosso universo histórico e existencial não só como africanos, mas como humanos na dimensão mais ampla possível para compreender a vida presente como consequência de um passado que, embora nos pareça alheio, faz parte de uma teia diacrónica com a qual devemos saber conviver para melhor contribuirmos rumo a um mundo cada vez mais humano. Tomando como minhas as palavras de José Saramago durante uma entrevista no programa Roda Viva (em 2003), diria: o recorte histórico a que Maya Ângela recorre neste romance prova que “contrariamente ao que se pensa, não é o passado que nos ajuda a entender o presente, mas o presente que nos ajuda a entender o passado”. Este é o maior valor deste livro. Vem daí, portanto, o sentido das palavras que servem de epígrafe deste texto: não são os prémios que dão valor aos livros. São os livros que dão valor aos prémios.

 

 

[1] Texto de apresentação do livro diamantes pretos no meio de cristais da autoria de Maya Ângela Macuácua, chancela pela Fundação Fernando Leite Couto, no Salão Nobre do Conselho Municipal da Cidade de Xai-Xai, a 20 de Junho de 2023.

Caderno de Música Moçambicana: êxodo musical, sim! é um livro organizado por Cremildo Bahule e contém um artigo seu. Tem, ainda, textos de Jessemusse Cacinda; Inocêncio Albino; Elcídio Bila; Belmiro Adamugy; Lenna Bahule; Sérgio Jeremias Langa; Sara Jona Laisse; Timóteo Cuche; Siovana Novela; Rufus Maculuve; Katharina Döring, José dos Remédios e um prefácio de Maria Paula Meneses. É uma obra que aborda a música de Zena Bacar; Melvin Humbane; Neco Novellas; Lenna Bahule; Isabel Novella; Cândido Xerinda (com Cecília H.-Xerinda); Amável Pinto; Nilsa Mosele; Albino Mbié; Selma Uamusse; Childo Tomás e Jaco Maria. A essa publicação, anexa-se um disco com músicas de alguns desses artistas. A edição é recente e o lançamento foi realizado em Maputo.

Por ser um país que vive em consonância com outras dinâmicas políticas e socio-culturais, Moçambique propicia dois tipos de diásporas: as externas, de moçambicanos no estrangeiro e as internas, de moçambicanos fora dos seus lugares de origem, resultantes, sobretudo da realidade multicultural e multilíngue do país. Neste texto falarei, muito brevemente, sobre ambas.

O Caderno de Música Moçambicana: êxodo musical, sim! é o resultado de uma apologia a diferentes trânsitos culturais, especialmente musicais. E parecendo mau, não é, porque, “sair de casa” e mostar a nossa cultura fora do país ou fora do lugar de origem é uma forma de partilharmos a nossa identidade cultural; reforçando, junto dos outros, as nossas relacões culturais (inter)nacionais. É a nossa diplomacia cultural.

Falo em reforçar e não em criar, guiada pelo à vontade aprendido no livro  O Retorno do bom selvagem,  da autoria do Professor Severino Ngoenha. Constatei, nessa obra, que não temos como fugir à globalização e que esta já se iniciou “desde que o mundo é mundo”. O jeito é colaborarmos com o que temos, produzindo o melhor que pudermos para poder partilhar. E digo partilhar, porque nas Ciências Sociais, o que se pretende, nos dias que correm, é a possibilidade de aprendermos uns com os outros o princípio da interculturalidade, ou seja, o princípio de convivência entre diferentes culturas. Não me refiro apenas à coabitação. Falo em convivência, partilha, aceitação pacífica do outro, mais a possibilidade de intercâmbio. Há, até, pesquisas que falam em “comunizar”. Mas este último é assunto para outros textos.

Se a partilha, a convivência ou a diplomacia intercultural sugeriram a Cremildo Bahule, organizador do referido livro, a importância de nos recordarmos e de registarmos o trabalho de músicos moçambicanos a residirem no estrangeiro; também deveria ser possível que esses ou outros moçambicanos, na diáspora, colaborassem na recepção de seus compatriotas, para com eles ou através deles, se divulgar a cultura moçambicana “fora de portas nacionais”. Isto não é cobrança. Chama-se a isso reciprocidade.Trata-se, na verdade, de podermos disseminar a nossa identidade cultural onde quer que tenhamos uma representação diplomática.

Reforço essa importância utilizando, para tal, um exemplo de muitos que há. Quando, recentemente, vimos circular um vídeo no qual a cantora moçambicana Assa Matusse era entrevistada na reputada TV5, sentimos muito orgulho (vi isso formulado em mensagens de Facebook – por um número imenso de gente), não só pelo trabalho que ela tem feito a nível cultural no país e fora dele, mas também, pelo facto de, como moçambicanos, estarmos a ser sujeitos de reconhecimento internacional. O que não vem ou não veio ao de cima é quantas Assas Matusses poderiam ser entrevistadas numa TV5 ou outras televisões, pelo fruto do seu trabalho; não estou a desmerecer o trabalho da artista, muito pelo contrário! Nem estou a falar em patrocínios.

Vou dar um outro exemplo que acontece muito no meio universitário, na corrida pela internacionalização, muitos académicos, mesmo quando se deslocam de férias a um país, podendo ou quando solicitados, dão alguns dias de aulas em universidades. É um registo do conhecimento daquele moçambicano que fica no país visitado. Ficam, a ganhar, neste processo, a universidade acolhedora; a universidade na qual o académico é filiado; o próprio académico e Moçambique. E aí, nem, se quer, há intervenção oficial de Estados. Mas o intercâmbio de conhecimento acontece.

O que é que isto tem a ver com o Caderno de Música Moçambicana: êxodo musical, sim? Explico-me. As nossas embaixadas pouco ou nada fazerem pela disseminação da cultura, nos locais em que estejam representadas, sobretudo de indivíduos em trânsito. Por outro lado, não vemos artefactos dos fazedores de arte expostos nessas embaixadas e, nem, se quer, é organizada, pelo menos, uma tertúlia ou um workshop, para dar a conhecer a arte desse fazedor, quando em visita a tal lugar. Esse é um exemplo de valorização cultural que pode ser feito com poucos recursos, incluindo os do próprio artista, em alguns casos.

Um outro exemplo de disseminação cultural ou identitária que pode ser realizado com pouco gasto, seria a emissão de passaportes culturais para os fazedores de arte. A existirem, por serem diplomáticos, facilitariam o trânsito entre artistas, a transposição de barreiras geográficas e aí, mesmo que às suas custas, o artista poderia disseminar arte e, em fim último, o seu país. Não me parece útil aguardar-se por grandes eventos ou grandes financiamentos para se realizar diplomacia cultural. Custa, apenas, pensar ou agir. É claro que não excluo a importância da existência de um fundo cultural para apoiar talentos que, efectivamente, não dispõem de meios. Mas essa é uma conversa que carece de imensos convênios.

O que é que isso tem a ver com o livro-objecto do presente texto? Pela voz de académicos, artistas da pena e fazedores de arte, autores da obra em apresentação, há diferentes modos de valorização da cultura e da identidade moçambicana de residentes fora de Moçambique e que hoje são enaltecidos. Ficam, obviamente, pessoas por serem referidas, mas o trabalho não pára por aqui, certamente.

Para além da necessidade de reconhecimento dos que se encontram “fora de casa”, temos ainda o trabalho de pensar as diásporas internas do país. O país não é pequeno e os trânsitos não estão facilitados. Temos ainda fronteiras culturais dentro do nosso país por serem quebradas. Não que seja impedido o intercâmbio cultural, mas este tem sido, mais vezes, realizado por centros culturais privados ou ligados à embaixadas de representação de outros países, dentro do nosso.            Significa que eles se dedicam a fomentar o princípio da interculturalidade ou seja, colocam, ao nosso dispor, os saberes culturais de seus países e, a seu serviço, os saberes culturais do nosso país; entretanto, as nossas “Casas de cultura nacionais”, pouco fazem para promover as diferentes culturas moçambicanas. Ficamos sempre a aguardar pelo “Festival Nacional da Cultura”, que se realiza de 2 em 2 anos. Isto em nada contribui para o reforço do cruzamento cultural dos residentes em diferentes geografias nacionais em Moçambique.

O que quero dizer é que “cadernos de música moçambicana da diáspora” estão no seu início e ainda têm muito caminho por percorrer, isto, se diferentes entidades, nomeadamente, o Ministétio dos Negócios Estrangeiros e Cooperação; o Ministério da Cultura; as embaixadas de Moçambique em outros países; bem como as representações de países estrangeiros dentro do nosso país afirmarem “Êxodo musical, sim”, a bem da convivência cultural entre diferentes culturas.

 

Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

 

É tempo de carpir as mágoas. É preciso abandonar, e não que isso signifique deixar de criticar o que está errado, o carrossel de declarações acusatórias e manipuladas com objectivos obscuros. Narrativas assentes em deturpação e desestabilização. É “mister“ definir uma agenda clara e comum para se alcançar o sucesso que tanto almejamos.

A definição do caminho para a glória, em qualquer modalidade, depende, em grande medida, do “know how“ dos dirigentes desportivos, os seus propósitos, autenticidade e sentido de pátria.

Os restantes actores, esses, contribuem e trabalham de forma holística com o seu arsenal de conhecimento para complementar o processo de desenvolvimento do desporto. E no espaço selecção nacional, um dos símbolos do país, não pode ser diferente. Todos são importantes para construir uma selecção respeitável e digna. Dentro, pois, de um ambiente saudável.

E isso passa, também, por deixar o seleccionador nacional, Chiquinho Conde, trabalhar dentro das escolhas que o técnico fez, faz e continuará a fazer. Conde é autónomo nas suas escolhas e, se for até para proteger ou mesmo disciplinar o grupo de trabalho, é livre de deixar de fora quem quer que seja. São opções. O técnico aposta nos jogadores que acredita lhe darem segurança e dentro das características dos adversários.

E não são epítetos que fortificam os grupos de trabalho mas sim o carácter, disciplina, respeito e saber estar por parte dos potenciais convocáveis perante quem dirige os processos.

Só faz falta no grupo de trabalho, tal como sublinhou Chiquinho Conde, quem está no mesmo. A chamada de um em detrimento de outro não pode ser motivo para assassinar carácter de pessoas com percurso de respeitadas no futebol nas “putativas” e incendiárias redes sociais.

Não é e nunca será produtivo lançar a máxima confusão possível para combater a verdade e espalhar culpas sobre todos. Passar o incómodo para os outros parece ser confortável.

Não é segredo para ninguém que a relação do treinador dos Mambas com os seus superiores hierárquicos é tudo menos um mar de rosas. Ou seja, o clima não é o que seria de desejar, algo que é comprovado com o desalinhamento que foi colocado a nu pela Comissão Independente de Inquérito mandatada pela Secretaria de Estado do Desporto para apurar as causas que estiveram por detrás do imbróglio que ocorreu na Argélia.

Os mesmos que aplaudiram ou mesmo contribuíram para que Chiquinho Conde assumisse o comando da selecção nacional, hoje, fazem tudo menos alguma coisa para descredibilizá-lo.

O foco devia ser a criação de melhores condições para os Mambas se qualificarem ao CAN-2023. O alinhamento devia ser tao simples quanto blindar o grupo de trabalho, mantê-lo longe das polémicas e atacar com seriedade e concentração máxima os jogos com Ruanda e Benin.

É desejo de todos amantes de futebol, pelo menos os que se alimentam de bom senso, que se quebre a malapata de 13 anos sem disputar o Campeonato Africano das Nações.

Quiçá, em defesa do bom nome e profissionalismo, Chiquinho Conde respondeu a internautas sobre as suas escolhas para o duelo com Ruanda. Há quem torceu o nariz e defendeu que o seleccionador nacional não precisava baixar de nível. Há quem defenda que até foi muito bom para dissipar dúvidas.

Neste cruzamento de expectativas, chama-nos atenção o facto de, na altura da divulgação da convocatória dos Mambas, o chefe de equipa encontrar-se no país. E, desse facto, surge uma questão que não quer calar: porque não se fez uma convocatória presencial em jeito de conferência de imprensa?

A opção por divulgação da convocatória nas plataformas digitais da Federação Moçambicana de Futebol abriu, claramente, espaço para desconfianças. A mensagem final é o maior desafio em comunicação.

Ainda no campo do futebol, e num cenário de bradar aos céus, a péssima arbitragem que assola o Moçambola-2023 está a transformar, e sem exageros, os relvados em autênticos campos de batalha. Muito mau para quem se debate com o desafio de atrair mais patrocinadores para a prova-mor do futebol moçambicano. Quem quer associar à sua imagem a um produto problemático?

Os árbitros substituem os principais artistas, os jogadores, e com as suas actuações pobres acabam em alguns jogos por prejudicar quem trabalha no duro semanalmente.

Um contraste com o nível elevado apresentado, a título de exemplo, por Arsénio Maringule, árbitro assistente que esteve recentemente na final da Taça CAF e tem sido regularmente nomeado para às competições do órgão reitor do futebol africano.

Urge criar árbitros de elite. Urge a moralização da classe dos homens do apito. Enquanto isso não acontece, diga-se, o Rei vai nu…

A actriz tem o C + O como duas letras inicias do seu apelido. Mas o CO, CO, CO mais interessante, no Franco, foi dela a imitar uma galinha. Absolutamente contagiante! No espectáculo designado Os Saltimbancos, este sábado, Rita Couto não só interpretou a personagem de um animal que ousou ser muito além de uma poedeira. Rita, RiTa ou RITA, pouco importa a grafia, soube ser a voz desses bichos que se superam no universo das fábulas.

Ao pormenor, completamente atenta às particularidades das pequenas coisas, dos pequenos gestos, dos sonhos subtis, às vezes ininteligíveis, a actriz ajudou a construir uma história montada pelos 54 membros dos TP50 que se apresentaram em duas sessões na Sala Grande do Franco-Moçambicano. Rita Couto superou o sentido dos verbos interpretar, encarnar, representar e etc. Na pele e nas penas dessa galinha rebelde, ousada, que foge de casa para (re)imaginar a liberdade de ser, de existir e de conviver, a artista fez do seu corpo uma autêntica totalidade convincente da sugestão. Temos actriz em Moçambique: dedicada ao que sente e ao que faz.

Ora subvertendo a posição anatómica humana, ora propondo a forma como as galinhas falariam, com aqueles CO, CO, CO de cacarejar, Rita Couto deu graça ao musical/teatro bem ao estilo do que TP50 tem habituado ao seu público. Os gestos com a cabeça, com os membros superiores e inferiores, o olhar espantando, neutro ou preocupado, inefáveis…

Há vezes em que a palavra parece pouca para tanta performance ou então há vezes em que os artistas vão muito além do que se pode escrever sobre eles. Esse é o caso de Rita Couto, actriz à vontade para se apresentar numa tragédia exigente como Incêndios ou num infanto-juvenil como Os Saltimbancos.

À parte Rita Couto, um dos “maestros” da peça/musical dos TP50 foi Fernando Macamo, um actor que não pára de evoluir. Trabalha com e para crianças há algum tempo, domina a linguagem infantil e torna simples o que para um ser humano comum poder ser caricato. A ciência da representação mora naquele actor bem à imagem do que se depreende em Samuel Nhamatate, actor com toques de bailarino sempre à vontade em matérias de dança.

Fernando Macamo foi o burro da história. Entretanto, bem ao contrário do que se diz, esse burro de Os Saltimbancos, o líder da equipa, afinal, de burro apenas tem o nome. O resto resume-se às seguintes palavras: inteligência, confiança e determinação.

Quanto a Samuel Nhamatate, foi cão. Para os que apreciam os caninos, mais próximo a um vira-lata e quase sem nada de um pastor alemão, por exemplo.

Além de galinha, burro e cão, o espectáculo teve uma gata preguiçosa na pele de Thandi Prista, uma artista em potência com cordas vocais bem sugestivas para o ritmo afro-jazz. “Está a vir!” e, talvez, dentro de anos, teremos o orgulho de dizer que a vimos ainda tímida na Maputo International School, mas já afinada no canto.

Na parte musical, o espectáculo contou Texito Langa (bateria), António Prista (guitarra), coro de adultos e de crianças da Escola Portuguesa de Moçambique. O arranjo musical foi feito por Décio Vembane. Já a coreografia, esteve na responsabilidade de Judite Novela, tudo na encenação de Maria Clotilde Guirrugo.

Quanto ao enredo d’Os Saltimbancos, apresentado na sequência das celebrações do Dia Internacional da Criança, em geral, sugere um debate sobre a relação homem-animal, tendo na matriz da história a luta pela liberdade corporizada pelo burro, pelo cão, pela galinha e pela gata. É uma história sobre sonhos, sobre a igualdade, sobre o direito dos animais e dos homens; é uma história de sonhos, com acertos e enganos à volta disso. No enredo, claro está, aparece bem representado esse movimento campo-cidade, às vezes, com motivações precipitadas. Desse ponto de vista, Os Saltimbancos dialogam com a literatura moçambicana, eventualmente, retirando dos contos a maneira como em regiões agrestes é pensada a vida urbana e vice-versa.

Num contexto em que nos preocupamos cada vez menos com os conteúdos para as crianças, contribuindo até para uma presumível devassidão, Os Saltimbancos, de TP50, é, seguramente, uma proposta graciosa indispensável aos mais novos e, igualmente, aos adultos. Parecem ser os adultos os que “nestes tempos estranhos” precisam mais de juízo. Só com discernimento o termo Educar poderá continuar a fazer sentido!

Pelas nossas crianças (e pela meninice despertada em nós, os adultos), Saravah, TP50!

David Bene, Mélio Tinga, Venâncio Calisto. Arremessos. Porto, Exclamação, 2023.

 

Uma das perguntas que se pode colocar ao leitor é talvez o que significa este arremesso de escritas, esta quase provocação que os três livros aqui re-unidos numa caixa desejam despertar. Três livros que se unem um mesmo corpo de papel, um projecto de três escritores e amigos, um poeta, um prosador e um dramaturgo. O que une Câncer de David Bene (poesia) a Como sombras e Cavalos a Levitar de Mélio Tinga (narrativa) e O alguidar que chora ou a história das pedras que falam de Venâncio Calisto (Teatro); em que medida dialogam estas escritas, o que nos querem “arremessar” os autores como proposta ou como reflexão?

Cada livro tem o seu registo próprio, naturalmente, mas os três partilham alguns aspectos que eu gostaria de assinalar. São escritos na primeira pessoa, tratam de alguns temas comuns a morte, a violência do facto de estar vivo, a subalternidade de ser mulher, a prostituição como forma de sobrevivência, e une-os aquilo que pode ser designado como “poeticidade”, uma relevante mistura de uma linguagem cifrada entre vários registos discursivos, que oscilam entre prosa, poesia e dimensão dramatizada.

Considerando o livro de David Bene e o de Venâncio Calisto para começar, encontro uma particular dimensão dramática e coral que os interliga, embora trabalhada de forma distinta, com um registo de recuperação de textualidade oral, também diversa.

No livro de Mélio Tinga confronto-me com uma escrita mais narrativa, com pendor autoficcional, em que o registo discursivo é ligado a uma dimensão do real, fazendo o percurso de um narrador/personagem em modo de aprendizagem, a partir do enredo de uma separação, e que reflecte sobre impossibilidade de encarar o amor sem o seu reverso de morte, ou a  inocência sem a noção de decadência,  numa espécie de conhecimento do que podemos designar como “ensaio sobre o inferno”, que vai ser o título da primeira parte do livro de David Bene. O livro de  Mélio Tinga inicia-se retomando o epílogo final, ou vice-versa, numa reflexão  sobre a morte:

Saí dali como se me escapasse do cérebro uma substância tóxica. Gases num combate contra os pulmões. Minha cabeça era um barco, cheio de carvão. Um barco a vogar no meio das ondas. Longe, os chumbos de calor destruíam os edifícios da cidade, face a face, curva a curva. Nas fachadas a expressão triste de quem reza. Meu corpo, frágil, rã escorregadia em mãos cáusticas. Dentro, os ossos se esbatiam numa bruma difusa, contraditória; o som minúsculo da flauta atormentava-me o pensamento com mestria de rato que escala a clavícula.

No ombro, o corpo quente da prostituta, débil, ensanguentada, os movimentos dos seus braços flácidos contrastavam com os repuxados nervos  dos meus pés. Era o fim. A flauta silenciada sobrou de tudo quanto houve, de tudo quanto ficou destruído, de tudo quanto um dia virá, das horas de sal, do temor, da dor incómoda, da voz aos solavancos a cavalgar, a infiltrar-se pulmões adentro, a subir garganta afora.

Levo a prostituta para todo o lado, para que o mundo veja que o amor pode agarrar-se ao cu de um porco ou ao ramo de uma florzinha branca, delicada, num jardim onde cabe apenas o silêncio. Levo-a no ombro, hino que sobra quando se vence uma batalha rija. (p.17).

 

O livro de David Bene, Câncer, cujo título já indica uma temática de destruição, tem como citação de abertura, a letra do cantor Sean Rowe  “Este mundo inteiro é uma terra estrangeira. Engolimos a lua, mas não conhecemos a nossa própria mão”, e inicia-se com o “Ensaio sobre o Inferno”, a primeira de seis partes, interligadas, perfazendo um único poema. O registo discursivo do narrador do poema é uma recuperação do livro de Eclesiastes (em latim) ou Cohellet (em hebraico), filho de David, rei de Jerusalém. O fundo sapiencial e de reflexão filosófica sobre a inutilidade da vida, a inevitabilidade da morte, e as considerações do livro sagrado, são a base da voz do narrador. A citação inicial de Eclesiastes (1:2)  é o mote do desenvolvimento do poema: “ Que grande ilusão! Que grande inutilidade! Nada faz sentido!”

E quando falo de voz, falo de uma vocalidade poética sacral, uma vez que se trata da recuperação da figura do pregador, Cohellet. O narrador faz uso do monólogo, e por vezes do diálogo indirecto ou do comentário, entrecortando a dimensão sagrada da fala de um cariz profano, diria, profanatório, ou seja faz do discurso poético-narrativo-sapiencial, um lugar de discursos híbridos, que interseccionam os registos erudito e popular. Também no plano linguístico e cultural observamos esta tessitura de registos, uma vez que vai fazer uso da língua shona, a par da língua portuguesa, para compor o poema, com invocações sobre a morte, canções de embalar, cantos de acompanhamento do espírito, impregnados de diversas religiosidades.

David Bene, geólogo de profissão, oriundo de Manica, província que faz fronteira com o Zimbabwe e Tete, zona de muito minério, vai socorrer-se de um imaginário ligado à paisagem local, onde as grandes montanhas, ganham uma dimensão quase humana e conjugam em si tradições antigas. A pedras que falam resultam, penso, desse quadro imponente de Manica que atravessa o olhar, como por exemplo a antropomorfizada montanha “Cabeça do Velho” e o Monte Binga, considerado sagrado. Lendo o poema de David Bene relembramos alguns outros textos que perpassam fragmentariamente como O Escriba Acocorado de Rui Knopfli ou ainda O Deus Restante de Luís Carlos Patraquim.

                                  Ensaio sobre o inferno

Que grande ilusão! Que grande inutilidade! Nada faz sentido!

Eclesiastes 1:2

Com quantas caras se faz um inferno?

Pergunto, minha razão. O inferno é manso. É ríspido. Gente viva. Gente morta. Carne fresca. Carne podre. Charuto cubano. Everest cigarette. Mulher coberta. Mulher nua. Maheu. Nipa. Ford Ranger. Carroça de boi. Papel limpo. Nádega. Quase nada.

Com quantas coroas se faz um inferno?

Pergunto e não procuro respostas. Responde-se para convencer. Para ganhar respeito. Para elevar a raça. A cor. A luta. Para dar sentido ao fracasso. Ao sucesso.(…)

Eu, Cohéllet.

A pedra de quatro olhos. Desconheço a diferença entre o grão de areia e o de arroz. Ambos são bem sorteados. Uns eternos, outros efêmeros. Estou equivocado, confesso. A eternidade do tempo parte e desagua na pupila de quem a procura. A pedra é tão duradoura quanto uma amiba. Uma flor. Um coito. Um rombo no aparelho sem estado.(…)

Conheci o teu deus. Apontei os teus pais com o dedo indicador. Falo-te, num bom português, através deste papel branco. Venci o tempo. O medo. Domestiquei o vento do oriente. Varre a calçada do trono que te mostrarei nos próximos tempos.

Com quantas agulhas se tricota um inferno?

Há um cadáver linguarudo na palma da criança. Tresanda a horrores, mas segue feliz. Vivo na planície de Marte e durmo no cume do Monte da Lua, disse-me o osso.

Chegados aqui, fulano, resta-me apenas dizer-te o seguinte: pega na pá e abra a tua cova. Escolha a tua rosa favorita.

Sonhar é morrer. Aprecia-se o olho que apodrece nos sovacos da tulipa.

O sonho nasce do cadáver (….) (p.15-16)

 

E a partir daqui fazemos a ligação ao texto dramático de Venâncio Calisto O alguidar que chora ou a história das pedras que falam, em cinco actos, que se combinam em registos discursivos diferentes, de modo quase experimental, dando voz às pedras que falam e fazendo uso de géneros orais, como a genealogia, a contação oral de Karinganas.

O poeta, actor e dramaturgo, ao procurar descrever a condição secular de silêncio das mulheres moçambicanas vai usar as fórmulas narrativas do “Era uma vez”, para dramatizar uma situação secular. No início do livro cita o poeta brasileiro  Manoel de Barros: Logo pensei de escovar palavras./ Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos”.

Quem fala nos diferentes cinco actos do texto de Venâncio Calisto são diferentes vozes e personagens, narradores, comentadores, criando ora momentos de narração, ora de monólogo, ora cenas de diálogo. As diferentes combinatórias e oscilações deste procedimento criam no leitor a expectativa e diferentes pontos de vista. Por outro lado a escrita do autor hesita entre uma fala quotidiana e uma forte dimensão poética, que ganha ora dramatismo, ora questionamento.

Podemos afirmar que o autor moderniza, fazendo recurso a formas tradicionais de contar, a condição social e humana da mulher nos diversos usos compósitos do texto dramático, com registos dialogais, de narração, de interlocução, para criar no leitor e espectador a surpresa ora das frases enigmáticas, ora dos poemas, ora das falas simples, dando vida às pedras e aos sentidos abstractos, animizando o discurso sensorialmente.

E diz o Karingana:

A pedra só é útil se estiver em silêncio.

A harmonia da humanidade depende do silêncio.

Das pedras.

Com o silêncio das pedras construiu-se o grande império do mundo: as cidades, os castelos, as calçadas, os tronos… com o silêncio das pedras ergueram-se templos.

E com o veneno das suas palavras fez-se doutrina. A inscrição da única verdade possível no corpo da humanidade. A negação da existência das outras verdades, a castração da liberdade do ser, de se ser verdades múltiplas.

Hoje, uma pedra, esta que se apresenta agora diante de vós, teve de estrangular com as próprias mãos o lugar no qual gerações inteiras foram obrigadas a calar. A calar a história das pedras que falam, a calar a sua própria existência. Repito, tive de estrangular, destruir, incinerar o lugar da subalternidade. A esteira de palha em que a minha mãe ouviu da sua mãe a mais antiga mentira da humanidade. O milenar silenciamento da história das pedras que falam.

– Estou a incinerar o cadáver da mentira que séculos a fio perpetuou o silenciamento das pedras. Estou a extrair das cinzas do seu cadáver os fonemas com os quais as pedras finalmente poderão contar a sua história. Com as cinzas do teu cadáver moldarei o alguidar de onde emergirá a voz das pedras, como o relâmpago que emerge do céu.(p.14)

 

Não vou concluir, vou antes convidar-vos a ler os três livros de Arremessos e a entrelaçar as diversas tessituras de escritas, que evocam os registos orais, sagrados e populares, literários e citacionais, e que “clamam”, arremessam em nós, leitores, ouvintes, questionamento e meditação poéticos sobre a violência, a morte, a fome, a opressão.

Cada um à sua maneira e com estratégias formais entrelaçadas, numa trilogia que cria ecos e ressonâncias entre si. Textos que trazem subjacente uma moralidade ou máxima possível para quem escreve: “Sonhar é morrer. O sonho nasce do cadáver”.

Ou da pedra que fala e sonha.

 

Podemos escutar-lhe as músicas, entretermo-nos com as suas reflexões, repetirmos-lhes os versos, mas se não ousarmos protestar por um Moçambique mais justo, definitivamente, não o teremos compreendido. A marcha consagrada no artigo 51 da nossa Constituição da República é o mais importante direito democrático que o rapper moçambicano Azagaia nos apontou para o cumprimento daquilo que é o combinado “Povo No Poder”. E não foi uma escolha aleatória ou que resultasse do calor da emoção do jovem rapper moçambicano, foi uma decisão cuidadosamente ponderada e que levou em consideração o “sujo” histórico das práticas democráticas em Moçambique.

Em sua produção musical, Azagaia foi categórico e reiterativo na exposição da grande fraude dos mecanismos democráticos que são usados em Moçambique para legitimar o poder e manipular a participação política. Tal descrédito fundamenta-se no nosso sistema eleitoral defeituoso, na precariedade das políticas públicas, na fraca oposição política, na inércia do activismo social, na parcialidade da imprensa, na alienação das ONGs e noutras práticas democráticas corrompidas que caracterizam o Estado moçambicano. Os seguintes versos do Azagaia atestam a hipocrisia democrática supracitada:

“Se eu dissesse que Moçambique não é tão pobre como parece

São falsas estatísticas de alguém que enriquece

Com dinheiro de FMI, OMS, UNICEF

Depois faz o povo crer que a economia é que não cresce

E se eu dissesse que a oposição neste país não tem esperança

Porque o povo foi ensinado a ter medo da mudança

Mas se eu dissesse que a oposição e o governo não se diferem

Comem no mesmo prato, e tudo está como eles querem”

 

(…)

“E se eu dissesse que há canais de televisão comprometidos

Com o governo só abordam os assuntos prometidos

Esses telejornais já foram todos vendidos

Vocês só ouvem o que eles querem, eles querem vossos sorrisos

E se eu dissesse que o ensino em Moçambique é um negócio

ONGs olham o governo como sócio”

In (As Mentiras da Verdade)

 

Mediante estas denúncias de encenação da participação política e liberdade de expressão que transcorrerem inúmeras músicas do Mano Azagaia, como se pode desfazer este teatro democrático que se vive no país? Servindo-se da música, o rapper moçambicano foi eloquentemente capaz de mostrar caminhos de resistência e emancipação contra forças políticas internas e externas que atentam, vezes sem conta, os pilares da democracia e prosperidade da nossa nação através da dependência económica, corrupção, racismo e perseguição política.

Temas como Emboscada, Cães de Raça, Maçonaria, M.I.R, Países do Medo e Vendem o País são a melhor expressão do mais cru neo-colonialismo, abuso do poder e intolerância política em Moçambique. Entretanto, uma das primeiras soluções propaladas por Mano Azagaia para resistir-se a tentáculos duma política maquiavélica é uma mente crítica e imbuída de integridade moral. E é obviamente justo que se diga que todas as músicas do rapper Azagaia, desde as do álbum Babalaze, passando pelo Cubaliwa à EP é Só Dever visam este intento: provocar reflexão em todo e qualquer ouvinte sobre as condições sociopolíticas do seu país.

Porque o Azagaia nunca se quis confundir com aquele crítico que só censura, sem sugerir o dever ser, a canção intitulada “As verdades” afigura-se um acervo de propostas convincentes tanto para o desenvolvimento intelectual como para o desenvolvimento económico do nosso país. Os seguintes excertos elucidam esse propósito:

 

“Eu recuso-me a ser boneco animado

Programado para consumir tudo que é importado

Enlatado, costurado ou digitalizado

Embalado, endereçado para o nosso mercado

Não! Não enquanto tiver braços para trabalhar

Pernas para caminhar e cérebro para pensar

Sim! Nós só vamos criar a nossa economia

Quando começarmos a acreditar na nossa autonomia

Eu explico: o capital circula dentro dum círculo

E só comprando o que é nosso nós fechamos o ciclo

O capital volta para nós, porque investimos em nós,

Por nós e para nós, torna o país rico e são”

 

Está claro, nesta letra, que precisamos acreditar nas nossas capacidades físico-mentais, assim como temos de valorizar o que é nosso e começarmos a pensar o país de nós para nós. Precisamos aprender a caminhar como líderes dos nossos destinos e mantermos uma consciência viva de que a revolução deve ser “lúcida, atenta e exigente, permanente até vivermos numa África Independente” (Azagaia in Revolução Já). E para que a revolução ou uma grande mudança social ocorra no nosso país, não nos bastará a integridade moral e pensamento crítico dos cidadãos. É preciso união e acção colectivas. Toda e qualquer mudança social premeditada requer sempre um pensar e uma acção comum. É com este senso que o Mano Azagaia produziu a canção “A Marcha”, um convite conveniente para as pessoas sair às ruas e, num só colectivo, gritar em uníssono:

 

“Ladrões… fora. Corruptos… fora. Assassinos… fora”

 

E afigura-se-me não existir outra maneira mais impactante de clamar pela justiça e lutar pelos seus direitos num Estado que se intitula democrático, senão o direito à manifestação consagrado no artigo 51 da Constituição da República. Unir-se e sair à rua tem uma força relativamente maior que os debates televisivos, ensaios políticos e indagações nas redes sociais. As ruas são o verdadeiro palco da democracia onde as minorias ou maioria encontram um meio de ressonar o seu protesto, captando a atenção imediata daquele que governa. Dir-se-ia que a manifestação representa, da melhor forma, a democracia directa entre o povo e o governo. Aqueles que decidem sair à rua procuram, de forma directa, serem ouvidos, propor decisões e obterem respostas das suas indignações ao vivo. Ao contrário de canais dos Media, redes sociais, tratados e ensaios que constituem meios distantes de comunicar uma ideia, a manifestação é o meio mais directo e flexível de interagir com o governo, sendo que o segundo são as ditas eleições. Mas, porque em Moçambique, as eleições não se afiguram livres e transparentes, o grande meio que nos resta para exercer a nossa liberdade de expressão é o direito à manifestação. Talvez, seja por isso, que este direito tem sido um dos mais reprimidos por governos ditatoriais. A ditadura como uma máquina política que funciona na base de autoritarismo tem como inimigo número um a liberdade de expressão dum povo, por isso, serve-se de todos os tentáculos de opressão para sufoca-la.

Porém, para um povo que anseia pelo poder, a marcha é um caminho difícil, violento, mas imprescindível e impactante num Estado ditatorial. O mais sincero grito do povo só pode ganhar a sua liberdade nas ruas, pois é onde o governante e governado não se podem evitar ou ignorar. Ambos usam os mesmos caminhos para mover-se. Dai que um governo que queira escapar à afronta do povo, às suas responsabilidades, à prestação de contas, acaba recorrendo à violência policial para expulsar das ruas um povo unido, ao invés de buscar pelo diálogo e negociações. É deste modo que uma marcha, ainda que pacífica, deteriora-se em violência em Moçambique, pois o visado é o primeiro a servir-se inapropriadamente dos instrumentos de violência. Mas uma coisa é certa, a violência seja no Estado ou numa esfera menor de organização somente semeia mais violência como bem observou o revolucionário venezuelano Hugo Chávez.

“Los que le cierran el camino a la revolución pacífica le abren al mismo tiempo el camino a la revolución violenta”

Tradução livre: Aqueles que fecham o caminho à revolução pacífica abrem, ao mesmo tempo, o caminho para revolução violenta.

E qual seria outro resultado da violência, senão mais opressão e violência?! E de que modo o povo deve responder à repressão policial e à indiferença do governo, senão recorrendo à mesma violência traduzida, amiúde, em uso de instrumentos contundentes e vandalismo?! O rapper Azagaia foi bravo suficiente em declarar essa conclusão trágica de que a violência ou vandalismo pode ser o único meio – incivilizado – de chamar a atenção ou a responsabilidade dum governo violento ou indiferente ao sofrimento do povo. As canções “Povo no Poder” e “Liricismo do vândalo” são a melhor tradução do seu ponto de vista no que concerne a estratégia de criar pressão sobre um governo que ignora o sofrimento do seu povo. Ele repou:

(…)

Barricamos as estradas, paralisamos esses chapas

Aqui ninguém passa, as lojas estão fechadas

Se a polícia é violenta, respondemos com a violência

Muda a causa para mudar a consequência

(…) baixa a tarifa do transporte, sobe o salário mínimo

Isso é o que deves fazer no mínimo

A não ser que queiras fogo nas bombas de gasolina

Assaltos à padaria, ministérios imagina

Destruir bancos comerciais, a vossa mina

Governação irracional parece que contamina

In (Povo no Poder)

 

Entretanto, os espíritos vacilantes, inconsequentes e excessivamente mansos costumam olhar para esse tipo de revolta popular com desdém e oposição, chegando a considerar tais actos produto de irracionalidade, libertinagem e marginalidade de massas incultas. A estes mini-burgueses, o Mano Azagaia responde:

 

(…) Não me venha com esse discurso marginalista

Marginais existem porque alguém marginaliza

Para Sommerschield, 16 apartamentos de luxo

Para Xipamanischield, 16 amontoamentos de lixo

E ainda perguntas por que é que eu falo sujo

Para que eu te respeite, dá-me o respeito que exijo

In (liricismo do vândalo)

 

É verdade que, em manifestações, possa haver indivíduos infiltrados sem interesse algum com a causa, e só com objectivo de vandalizar propriedades privadas, ao invés de focar-se na máquina estatal. Isso é censurável. Entretanto, esta não deve ser uma razão suficiente para limitar-se o direito de protestar tampouco idiotizar-se à insubmissão e rebelião dos jovens que lutam por uma causa justa. Tais discursos de censura normalmente têm sido propalados por gente que se arroga demasiado letrada e, ao mesmo tempo, se mostra imune ao sufoco das medidas de austeridade e do custo elevado de vida. É típico dessa gente com ar burguês que, em dias tranquilos, apoia a revolução, mas quando é hora de agir, tem medo de envolver-se como bem observou o Azagaia na música “Filhos da…”. E é na mesma canção em que o rapper Azagaia se refere a eles, dizendo que “cobardes quando morrem nem serve para estrume”. E, de facto, não servem, pois nenhum ser humano é capaz de inspirar-se com a morte de alguém que se mostrou cobarde. Nenhum.

A propósito, a morte não é um fenómeno do qual se possa ter certeza de estar a fugir-se ao ponto de abdicar duma luta justa, pois mesmo temendo encontra-la nas manifestações, ela pode encontrar-te em casa, numa rua da zona, no serviço, no transporte, numa festa, etc. Então, a certeza é que todos nós vamos morrer. Quando? Ninguém sabe. Por quê? Importa muito. Uma morte por adultério é deveras ignóbil. Uma morte por justiça social é definitivamente louvável. A escolha é tua se decides viver uma vida insignificante e cobarde ou fazer da tua existência uma energia positiva para o seu país e para o mundo à semelhança do Mano Azagaia. A escolha é sempre tua.

Porém, se algures na tua consciência, reside a ideia de que a boa governação consiste no respeito pelos direitos humanos, ampliação e baratização dos serviços públicos, contudo, no seu país, o governo do dia tem rumado no sentido contrário, no sentido de corrupção, injustiça social e miséria, então, devias aceitar os convites do Mano Azagaia: VEM PARA MARCHA! Ou adira à greve:

 

“Estão convocados para a grave todos os funcionários de Estado

Paralisem o comércio, mandem fechar os mercados

Fechem todas as fronteiras, desactivem as alfândegas

Ferro-portuários desliguem essas máquinas, abandonem os escritórios

Interrompem os campeonatos

Moçambicanos estão a morrer longe dos relvados

Os camponeses já estão em greve, fugiram das aldeias

Alunos estão em greve, fugiram das carteiras

Quanta gente vai fugir até paralisarem o país?

Toda gente sabe que a Guerra vai paralisar o país

Paremos o país agora, antes que morra mais civis

Sem o aparelho do estado o que o governo diz?”

 

(in Declaração de Paz)

 

É com estima que estendemos nossas saudações aos leitores. É nosso compromisso e da Kilimar acompanhar o pulsar da literatura de forma sistemática, como mandam as escolas das revistas Itinerário, Tempo, entre outras, que consagraram o bem pensar sobre a literatura moçambicana. A revista é o espaço para desfilar as nossas leituras por excelência, e é com Terapia Familiar, obra de estreia de Pagarache, que tencionamos manter um diálogo, por forma a compreendermos como o amor se explica em eventos trágicos.

Espaços em revistas são restritos, leitores cada vez menos visados. Objectivamente, observa-se, no conjunto de desaseis contos, que, conforme a proposta literária de Pagarache, cada voz de um personagem dá-nos a conhecer, a partir da sua focalização, a sua versão da diegese: Tole casa-se com Imaculada enquanto jovem, recém-chegado da Alemanha, tinha dinheiro. Teve três filhos frutos do casamento (Ernesto, Moniquinha e Thambo). Com o passar do tempo e as dificuldades da vida, torna-se alcoólatra e amargo, o que gera, nos membros da família, tensão. Consequentemente, Ernesto refugia-se na casa de um amigo, Manussés, onde se apaixona pela irmã deste, a Maira; Moniquinha desenvolve sentimentos de ira e raiva pelo pai, guiada pelos tais sentimentos, tenta tirar a vida do pai por duas vezes; Imaculada, a esposa, procura emprego, cede as investidas de conquista do jovem Carlos, este, insatisfeito pela rejeição da Imaculada, informa Tole no Bar, que dormiu com a esposa, facto que gerou o conflito.

A terapia instaura um movimento de sentimentos de saída do caos à paz, à purificação após a intriga. Não tratamos, nos textos de Pagarache, taxativamente, do que Aristóteles (2003/ s/d:109) designou de imitação de acções humanas superiores à média humana, que suscitam o terror e a piedade, nos moldes clássicos (tendo em conta os meios, os objectos e os fins: Medeia de Eurípedes e Édipo Rei de Sófocles são demonstrativos) Até, pois, que na obra temos seres médios, então. Mas a tragedia de que se trata é aquela em que os personagens, ao longo do seu percurso, terminam em um acontecimento sinistro, que gera sentimento de repulsa.

Relativamente ao amor, Figueiredo (1935:40), citado pelo Dicionário de Literatura (1997), explica que, desde os cancioneiros Medievais, as cantigas de amigo, diversos caminhos foram seguidos pelos poetas, relativamente a matizes.

Ao ler a obra Terapia Familiar, a memória e a nostalgia são os recursos que o autor usa para nos fazer mergulhar na diegese e quase somos persuadidos pelo personagem Tole à razão.

As razões que o personagem Tole levanta ao dar-nos a conhecer a sua versão, concorrem para suscitar eventos trágicos, outros personagens agem na relação de causa e efeito, das acções principais de Tole; o amor, na presente leitura, é essencial, pois, além de outros matizes na obra representadas, é o argumento para o efeito trágico, a face oculta do amor/ não saber amar. Compreender as versões de cada personagem instaura no leitor um movimento de sentimentos de saída do caos à paz, à terapia familiar.

Dos problemas existenciais

Tole consome bebida e drogas para fugir das lembranças dos momentos mais altos da sua vida, que lhe doem, pois a sua nova realidade é cruel, de um capitalismo macabro, que deixa Tole apenas com vontade «- […] estou a negociar um grande dinheiro, vou mudar tudo!» (P.40), porque o desejo não se materializa, entre o desejo e a irrealização, a frustração e amargura, o amor pela família gera covardia, evasão que demarca um egocentrismo «Beber é esse egocentrismo de querer ser feliz sozinho» (P.121); ralha e agride fisicamente a família, por orgulho, não quer ver a mulher a trabalhar, não assume a culpa pelo comportamento inconveniente, atribui à irmã da esposa, que passou a viver com a família, o motivo de todos estarem contra ele.

O comportamento de Tole desencadeia três momentos de reacções principais, o primeiro, não menos importante, Ernesto foge de casa, Moniquinha desenvolve a ira e a vingança, Imaculada, raivosa, também foge, e hospeda-se em casa de Carlos, dando jus aos boatos e acusações do marido «anda a foder com vizinho você […] Ela que…que ti ensina putaria» (P.50); O segundo momento, Tole é tragicamente envenenado pela própria filha «quanto mais o pai se alimentava, eu preferia sentir a ira recompensada, a vingança realizada. Coma tudo, maldito!»; e o terceiro momento, a família de Tole, em reacção à sua agressão, novamente, pela mão da própria filha, é-lhe enterrado uma tesoura no pescoço.

Suluçando, Tole justifica o seu comportamento, «-Tudo…tudo o que fiz foi…foi amar-vos de forma errada» (P.126). É aqui onde a afirmação do personagem pai[1] encontra encaixe, «-o amor tem o seu lado bom, mas é raro num mundo maldoso. Muitas vezes, o amor age com violência, agressão, e corrói o nosso interior», porque segundo este «-o amor dói. E a dor pode destruir. Provavelmente o mundo esteja sendo destruído pelo amor que tanto proclamamos» (P. 88-89). Como se lê, o amor de Tole pela família concorre para desenhar os dois momentos de reacções trágicas, de violência, a face oculta cuja compreensão permite purificar as emoções, é uma terapia ao leitor.

Outros matizes do amor: a necessidade muito bem notada por Cândido[2] (P.82-83), o da fantasia, que se explana na presença imprescindível do sexo oposto para copular, se não é no físico, a mente faz a questão de trazer o outro. Nota-se um sensualismo secreto de Ernesto pela vizinha, o absurdo de apreciar matinalmente a vizinha, e trazê-la na fantasia, em pensamentos, e com ela copular, a punheta «vejo a rapariga vizinha varrendo o quintal. Ela traz um vestido de riscas […] de costas para mim, a rapariga inclina-se novamente colocando suas costas em posição horizontal. Intensifico os meus movimentos e disparo pequenas balas brancas em múltiplas direcções» (P.18). Velho tema. Mas com a designação e maneira trazida em Pagarache, actualíssima. A vizinha é um hábito que até saudade cria, como é normal aquando de uma relação normal entre as pessoas, no universo empírico «sem qualquer frincha para contemplar a minha vizinha, o bambolear de suas ancas, o reclinar de suas costas quando passava a sua vassoura matinal» (P.111).

O secretismo galanteador, este traço denota-se quando Ernesto escreve um poema confessando seus sentimentos secretos pela irmã do amigo Manussés, Maira, e esconde a carta, vindo a declarar seu amor declamando o poema «À Maira… Se eu fosse um pintor» (P.119), depois de confessar quando confrontado por ela. «Eu me abalo quando andas…[…]-Eu tremo quando falas,[…] -Eu arruíno quando sorris. […] – Quando declamas o mundo pára de girar». (P. 118). Por outro lado, é no caso da Imaculada e Carlos, que se denota a impossibilidade ou inreciprocidade do amor « […] tenho sentimentos. Eu amo-te. – Acontece que eu não!» (P.95), de um amor que gera insatisfação, Carlos informa Tole o caso que supostamente tivera com Imaculada, a esposa, ferindo-lhe a masculinidade e dando relevância a designação inconcebível, que faz questão de expressar não ser, tolo, mas sim, Tole.

Não é sobre o amor apenas que se lê na obra, é notável o saber linguístico nas respostas dos diálogos entre personagens, «Foi o único som que se viu escapar do seu aparelho fonador» (P.30); «-como resposta, cruzei o corpo e a ponta da língua aos alvéolos para, de seguida, soltar um som desdenhoso» (P.49). (sublinhados nossos). A consciência sobre a designação de que as palavras são representações de conjunto de sons, onde estes são produzidos, que órgão envolver na produção de um som, não é o conhecimento acessível a quem desconhece a Fonética.

A intercalação das histórias não permite uma narração linear crescente ou decrescente, o que desenha uma capacidade de encaixe do autor, de cada história, cada versão exposta pela personagem, na diegese principal de Tole e Imaculada, em que as personagens se constroem a partir das acções que praticam, pelo pensamento que expressam, pelas conversas, pelos fluxos de consciência, entre outros elementos, a preferência pelos substantivos comuns, nos títulos dos textos.

Portanto, percorrer as cento e vinte e seis páginas de Pagarache é passar por um processo terapêutico em silêncio, afinal, cada um de nós faz para de uma família; é reavaliar a forma como temos amado, dado-lhe com a incapacidade de recuperar o tempo perdido; é reafirmar a noção da lei n.° 22/2019, de 11 de Dezembro[3], é buscar erradicar o trágico nas famílias. Esta não é uma escrita imatura e pretensiosa. Aliás, sobre esta particularidade, no fim da novela, o próprio autor, indeciso, questiona se continua? E, caro leitor, tenha a chance de fazer parte da decisão, lendo a Terapaia Familiar, para responder à questão.

 

[1] Irmão de Manussés

[2] in a literatura e a formação do Homem.

[3] Lei da família.

Diz um célebre provérbio que “Bendito será aquele que consegue dar aos seus filhos asas e raízes”. Asas, porque elas permitem expandir o horizonte imaginário das crianças e inspirá-las a perseguir os seus mais diversos sonhos; raízes, porque elas oferecem sempre uma referência identitária sobre o lugar onde as crianças nasceram e para onde terão sempre de voltar para recarregar as baterias das suas vidas.

Este provérbio veio-me imediatamente à mente, assim que abri as primeiras páginas deste livro de contos infanto-juvenis. Embora a obra se debruce sobre as peripécias idiossincráticas do passarinheiro Benjamim, é também uma espécie de reflexão sobre a própria vida dos pássaros, essa fantástica espécie de aves que, além dos morcegos, são o único grupo de vertebrados capazes de voar livremente!

A obra tem dois personagens principais: para além do Benjamim, há o Pinguim, o pássaro que é o seu melhor amigo. Juntos, partilham a rotina das auroras preguiçosas onde o Pinguim serve de despertador para que o Benjamim chegue a horas à escola. Este facto faz-me lembrar de uma outra curiosidade: a maior parte das aves é activa durante o dia, geralmente nas primeiras horas da manhã. Não me admira o primeiro diálogo no texto, onde o pássaro Pinguim se insurge logo de manhã ao Benjamim:

– Oh menino, não vais à escola?

– Ah, Pinguim! Deixa-me dormir só mais um pouco.

– Não te vou deixar faltar à escola. É preciso estudar. Preguiçoso!

Para o Benjamim os pássaros são criaturas fascinantes que cultivam nele admiração e curiosidade. Bom, para ele não necessariamente por causa dos seus cantos à janela do seu quarto, logo de manhã! E mesmo quando parece ser convicção generalizada que o canto dos pássaros é uma das mais belas formas de expressão musical na natureza.

Ao folhear, inicialmente, as páginas do livro do João Baptista Caetano Gomes, apreciando calmamente as magníficas ilustrações de Walter Zand, veio-me à memória a minha própria infância. Também já fui fascinado por pássaros e, na lista de algumas curiosidades sobre eles, gostaria de fazer menção a um pássaro em especial: o cuco. As fêmeas desta espécie depositam os ovos de seus filhotes em ninhos alheios! Nunca criam o seu próprio ninho e, muito mais fascinante ainda, elas conseguem adaptar a aparência do seu ovo à das espécies que elas parasitam. Não sei se o passarinheiro Benjamim conseguiu também descobrir isso, nas suas peripécias com os pássaros que ia caçando.

Segundo o texto, os pássaros impressionam ao Benjamim, sobretudo, pela sua incrível habilidade de voar. Então, ele decide passar a vida a caçá-los e a estudá-los minuciosamente. Para isso, decide sair de casa e passa a viver na rua. Não fica explícito, na história, se o Benjamim consegue chegar à constatação cientificamente provada de haver cerca de 10.000 espécies diferentes de pássaros em todo o mundo! Nem que os pássaros desempenham uma variedade imensa de papéis ecológicos importantes, como a polinização das plantas ou a gestão das pragas de insectos. Fica-se sem se saber se o Benjamim, nessa sua jornada exploratória dos pássaros pelas ruas, chega a perceber que a sua beleza e graça são fonte de inspiração para as artes, letras e ciências da humanidade, sendo usadas recorrentemente como símbolos de liberdade, de aventura e de navegação marítima ou espacial.

Do que se pode reter, no desenrolar da história do passarinheiro Benjamim, destaco um episódio de solidariedade onde os pássaros, vendo o seu amiguinho faminto, sedento e enfraquecido pelos martírios da vida na rua, decidem ajudá-lo e voam pela floresta adentro à procura de alimento para o reanimarem. Pode-se fazer aqui uma analogia com o efeito disruptivo que a destruição do habitat natural destes pássaros – tanto pela acção humana ou pelas mudanças climáticas – tem sobre o declínio ou a extinção de muitas das suas espécies em todo o mundo. Quantos de nós têm sido também solidários para com os pássaros, vendo-lhes famintos, sedentos e enfraquecidos dentro dos nossos próprios habitats? Afinal, quando se fala de ecossistemas, proteger e garantir a sobrevivência dos pássaros, através da conservação de áreas naturais que constituem o seu habitat especial, significa proteger e garantir a nossa própria sobrevivência como humanos.

Não vou esgotar, neste espaço, a história d“O Caçador de Pássaros” – e as outras demais histórias paralelas que se podem tecer à volta. Queria concluir com o episódio do retorno do Benjamim à casa dos pais. Se um dia as asas da sua imaginação fizeram-no sair de casa, tal como as asas dos pássaros que admirava faziam dos respectivos ninhos para os céus, num outro dia os mesmos pássaros fizeram-no lembrar das suas raízes. Tal como os pássaros são capazes tanto de voar longas distâncias em busca de um clima mais confortável, como de voltar depois para o seu habitat natural, Benjamim regressou ao aconchego do seu lar. Desta vez, mais rejuvenescido e experiente.

Como se pode depreender, as nossas vidas também se podem rever nesta metáfora dos pássaros, feitas sempre de asas e de raízes. Este é um livro infanto-juvenil que, como disse no início, faz jus ao provérbio que diz “Bendito será aquele que consegue dar aos seus filhos asas e raízes”. Ofereçam sempre aos vossos filhos e netos, as nossas flores que nunca murcham, asas e raízes. Asas para ganharem o mundo, como os pássaros, e raízes para voltarem sempre ao seu mundo, como “O Caçador de Pássaros”.

 

O dia 5 de Maio foi oficializado em 2009, com o propósito de promover o sentido de comunidade e de pluralismo dos falantes do português na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Desde então, esta data celebra este idioma como parte da identidade de todos estes países e povos. Num dia comemorativo tão especial como o de hoje, gostaria de fazer uma menção especial a dois feitos extremamente marcantes.

O primeiro, de efeito extraordinário, é o da premiação da escritora moçambicana Paulina Chiziane, a vencedora do Prémio Camões 2021, escolha unânime anunciada no dia 20 de Outubro de 2021 e que só hoje, dia 5 de Maio de 2023, finalmente, chegou às mãos da legítima dona. Este prémio reconhece a vasta produção e recepção crítica da Paulina Chiziane, como também o reconhecimento académico e institucional da sua obra, sobretudo a importância que dedica nos seus livros aos problemas da mulher moçambicana e africana.

Esta escritora, a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, tem desenvolvido uma relação muito próxima com a UP-Maputo, a quem já atribuímos, num passado muito recente, um título Honoris Causa e que tem tido presença regular nos eventos científicos e culturais organizados pela nossa universidade. A Paulina Chiziane escreve em português, língua que aprendeu a falar na escola de uma missão católica como muitos outros moçambicanos da sua geração o faziam pela primeira vez. Ela é, indubitavelmente, a prova viva de que, mesmo sendo de origem humilde e sem nenhum arcaboiço linguístico de berço, é possível fazer grandes coisas e chegar a tão destacado reconhecimento no espaço lusófono global.  Hoje celebramos, mais uma vez, este feito que projecta e faz brilhar todo o nosso país e o nosso povo na arena internacional.

O segundo feito, não menos importante e também de efeito extraordinário, é o da Ludmila Bata, estudante do 2° ano do curso de Jornalismo, ministrado pela Faculdade de Ciências da Linguagem, Comunicação e Artes (FCLCA) da UP-Maputo, que foi declarada vencedora do Prémio Eloquência Camões do ano 2023. Esta vitória tem um sabor especial para a UP-Maputo, especialmente se se tomar em consideração que a Ludmila Bata, nossa estudante, destacou-se num universo extremamente competitivo de 49 estudantes pertencentes a 6 universidades nacionais. É importante frisar que o Prémio Eloquência Camões, organizado, em parceria, pelo Camões – Centro Cultural Português em Maputo e pelo Camões – Centro de Língua Portuguesa em Maputo, pretende ser uma alavanca institucional para a descoberta de novos talentos na redacção e na oralidade em língua portuguesa.

A Ludmila Bata demonstrou, com a sua vitória, que é possível fazer história, ainda em tenra idade e sendo também mulher, como a Paulina Chiziane. Num dia especial como o de hoje celebramos, também, este feito que projecta e faz brilhar os nossos estudantes e a nossa comunidade universitária na arena nacional.

Destacar estes feitos, num dia que exaltamos a língua portuguesa, como nosso património cultural e histórico, faz a nossa celebração mais especial e simbólica. Aliás, tornou-se uma tradição – uma boa tradição, diga-se! – que nos juntemos na UP-Maputo, no dia 5 de Maio de cada ano, para comemorar o dia Mundial da Língua Portuguesa e, igualmente, para celebrara amizade entre os povos que partilham esta língua.

A língua portuguesa é uma das mais ricas e influentes línguas do mundo e, como Reitor desta universidade, tenho orgulho em fazer parte de uma comunidade académica que valoriza e celebra a sua riqueza e diversidade. Nestas salas e corredores revisitamos a língua portuguesa como factor de unidade nacional.

A língua portuguesa é uma língua viva, dinâmica e em premente transformação, falada por mais de 265 milhões de pessoas em todo o mundo. É a língua oficial de 9 (nove) países e de organizações como a CPLP, a SADC, a União Europeia, o Mercosul e a Organização dos Estados Ibero-americanos.

Mas, a língua portuguesa é muito mais do que uma língua falada ou escrita. É um património cultural e histórico que representa a rica herança e a diversidade das sociedades e culturas que a falam, cantam, dançam, escrevem e declamam poesia. Na essência, em português se comunicam. É, por isso, necessário que olhemos para a língua portuguesa sem preconceitos. Que assumamos esta língua como nossa! Nenhum angolano, cabo-verdiano, português ou brasileiro fala a língua portuguesa como nós. O nosso português moçambicano é único. Nós, moçambicanos, soubemos tornar o português numa língua melodiosa, poética e sensual. Neste momento, a língua portuguesa não pode ser mais vista como a língua do outro. O outro não consegue falar um português tão belo como o nosso!

Neste simpósio, debatemos a especificidade do Português de Moçambique na diversidade da língua portuguesa. Temos, hoje, a oportunidade de conhecer melhor a língua em que nos comunicamos diariamente e de compreender o contributo de Moçambique para a afirmação da língua portuguesa no Mundo, mas, não menos importante, temos também uma oportunidade para perceber de que modo o Português de Moçambique pode contribuir para o nosso desenvolvimento individual e colectivo.

 

[1] Discurso em torno da celebração do 5 de Maio, dia da língua portuguesa, por ocasião da realização do Simpósio “O Português de Moçambique no Pluricentrismo da Língua Portuguesa”, na Universidade Pedagógica de Maputo (UP-Maputo)

Breves notas iniciais

Apresentada ao público, recentemente, O Desamparo das flores é o livro com que Miguel Luís venceu o concurso literário Maria Odete de Jesus, promovido pela Universidade Politécnica. É uma obra literariamente bem conseguida.

Miguel Luís José é o nome completo do autor. Nasceu em Maputo e é mestrado em Estratégia de Investimento e Internacionalização; é formado em Direito e tem pós-graduações na área legal e financeira. Foi vice-presidente do Conselho Fiscal, na Associação dos Estudantes Moçambicanos em Portugal. É um indivíduo muito atento à sociedade na qual vive e, para além de activista ou de participar em movimentos associativos, faz da literatura uma das áreas, através da qual, desempenha o seu exercício de cidadania. Este tem sido o seu modo de procura de felicidade.

 

O Desamparo das flores: papel e caneta na mão para sair da cegueira

O Homem vive a maior parte do seu tempo à procura da felicidade. A utopia é parte do caminho que a ela nos leva. Essas são ilações tiradas de duas obras de Zygmunt Bauman, A Arte da vida e Tempos líquidos. Considerando esses pressupostos, a literatura de ficção, especialmente a infanto-juvenil, é, para mim, esse lugar para construir mundos imaginários e reais. Foi, também, através desse processo que “nasceu Moçambique”. José Craveirinha, nosso poeta mor, cujo centenário continuamos a celebrar este ano, é um dos heróis dessa causa.

Essas sugestões gravitaram a minha mente, quando terminei a leitura do livro acima referido e questionei-me, se haverá, mais do que uma obra literária infanto-juvenil, um lugar para fazer com que as crianças sonhem um mundo melhor? Um lugar no qual possam dar asas à sua imaginação e alargarem as suas competências (sejam de que índole forem) e habilidades para a vida? Uma das respostas a essas perguntas pode ser encontrada no livro O Desamparo das flores, entre as páginas 65 e 67 e cito: “uma caneta e um papel na mão de um menino que sabe ler e escrever sempre serão instrumentos para mostrar coragem.” É de coragem e de saber ler e construir mundos que todos precisamos, para habitar este planeta cheio de incertezas constantes e disso, o nosso país tem imensos exemplos.

O livro é a primeira obra literária de Miguel Luís. Contém ilustrações de Walter Zand e é um livro dirigido ao público infanto-juvenil e aos jovens e adolescentes existentes em cada adulto. Coloca-nos perante uma premente reflexão sobre a coragem, a (des)obediência, a atenção pelo meio no qual vivemos e a utopia ou engenho.

Trata-se de duas histórias entrelaçadas, contadas a partir da perspectiva de dois narradores que sabem sobre a vida de todas as personagens, ou seja, narradores omniscientes. São histórias centradas com um pano de fundo negro, o tráfico de crianças. Entre outras 14 crianças raptadas, se encontra o Carlitos, o protagonista.

Esse problema social transcende a qualquer controlo jurídico, em contexto real. Vários são os poderes, em diferentes países a lutarem contra esse mal, mas o desiderato continua. Ainda, muito recentemente, em Moçambique, o informe da Procuradora-Geral do país, Beatriz Buchile, era perentório em afirmar que o país ainda está por combater os raptos. Esse fenómeno é afim ao de tráfico de menores.

O título do livro, em apresentação, já anuncia esse pano de fundo nebuloso. Em princípio, flores deveriam trazer alegria, mas no caso são desamparadas, são murchas. E essas flores simbolizam as crianças narradas na história. A obra é literariamente bem conseguida, por levantar um assunto difícil e preocupante. Mas fá-lo de modo poético e com uma linguagem simples e seleccionada, o suficiente para ser compreendida por todos. Isso é o que prende o leitor ao livro. O que há de mais complexo na obra são as imagens poéticas e elas é que amparam o leitor para que não sucumba perante a dor narrada sobre o tráfico de crianças. A história tem um balanço equilibrado entre a ficção e a realidade.

Deixo alguns exemplos dessas imagens que podem ser encontradas em diferentes páginas: a violência só alimenta os problemas, engorda-os sempre; quis chorar, mas as lágrimas não lhe saíram, ou talvez lhe tenham jorrado do lado de dentro dos olhos; não passou muito tempo até que o carro parasse de cuspir as ruidosas buzinadelas e o vidro da porta do motorista se abrisse, como o sol rompendo por entre as nuvens; das suas duas narinas chovia um leite espesso e branco; gotas gordas e pesadas caíam-me pelos olhos e o meu corpo tremia como um carro velho com motor ligado.

Estas imagens, para além de atenuarem a provável tensão que o leitor poderia ter a partir do tema abordado, suavizam a parte utilitária subjacente nas obras de literatura infantil ou juvenil, a de educar e de inculcar valores e uma moral. Sim, porque o substrato desse tipo de obras é mais o da utilidade da sua mensagem, do que de prazer.

Tendo feito menção à parte do gozo que dá ler a obra, é importante, também, aludir a parte utilitária, que é um convite a um pensar e agir comuns na nossa sociedade. Um pensar de adultos que possam munir as suas crianças de habilidades para enfrentar este mundo que, como todos sabemos, tem muito de cruel. E nesta obra, como já o tinha referido, o convite é feito com recurso à uma luta através do intelecto: o educar.

Carlitos, o aludido protagonista, desobedecera aos seus pais, desviara-se do caminho da escola e pagou um preço caro por tal. Mas foram a sua coragem e o seu engenho que o salvaram. Sabia ler e escrever e essas habilidades deram-lhe a sagacidade necessária para fazer chegar à polícia para ter socorro; após outras engenhosas tentativas para escapar do cativeiro.

Uma caneta e um papel, ou seja, o saber ler e o saber escrever, mais a agudeza do seu engenho o salvaram, a si e mais outras crianças. É por causa disso que afirmo que a obra convida a um pensar e agir comuns: educar, obedecer e estar-se atento ao mundo que nos rodeia. Há uma sugestão da importância que existe em educar as crianças, deixando nelas o legado necessário para que possam sobreviver perante as diferentes adversidades da vida; porque sempre as haverá e, não importa o substrato social da criança. Elas, também, sabendo ouvir e ver ou sabendo ler, que é também outro convite feito pela obra, poderão aprender a construir novos mundos ou a fazer face aos que estiverem expostos.

Esta obra recorda-me a sugestão de José Saramago, em Ensaio sobre a cegueira, que diz: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. Isto desafia-nos a prestar atenção ao lugar no qual vivemos e, claro, a agir sobre ele. Que não vivamos às cegas. A literatura cumpre esse desiderato. E no livro em apresentação, há reflexão acerca de um olhar atento sobre um fenómeno social e o modo como este acontece, ao pormenor.

Mais ainda, sugere-nos a obra que temos que nos reinventar, escrever mais, publicar mais e não nos resignarmos ao que já está feito, porque a humanidade ainda não está civilizada. Já no-lo disseram os poetas José Craveirinha, no poema “Civilização”, no qual afirma: antigamente, os homens erguiam estádios e templos e morriam na arena como cães, agora constroem cadilacs…. E José de Almada Negreiros, em A invenção do dia Claro: quando eu nasci, já tinham sido inventadas todas as palavras que iriam salvar a humanidade; falta salvar a humanidade.

Um papel e uma caneta deverão dar-nos mais coragem para continuar a luta em busca da felicidade.

 

Notas finais sobre concursos literários

Por razões desconhecidas, em Moçambique, deixaram de existir três grandes concursos literários, nomeadamente: O FUNDAC-Rui de Noronha, O BCI e o TDM. Entretanto, o Concurso Literário Maria Odete de Jesus tem sobrevivido e coexistido com alguns concursos na praça Moçambicana, nomeadamente: o Dez de Novembro, ligado ao dia da cidade de Maputo; o prémio Nacional José Craveirinha (organizado pela HCB – Hidroeléctrica de Cahora Bassa/AEMO – Associação de Escritores Moçambicanos); O Fernando Leite Couto, da Fundação com o mesmo nome; nos últimos tempos surgiu um, o Carlos Morgado, homónimo da Fundação que o organiza; A editora Gala-Gala tem organizado o Prémio de Poesia Gala-Gala e a Alcance, o concurso literário Calane da Silva. Existem na Beira, ligados à Editorial Fundza, a chamada literária da Fundza bem como, os seguintes concursos literários da Associação Kulemba: Prémio de Literatura infanto-juvenil; Concurso literário do conto do FLIK (Festival do livro Infantil da Kulemba); Concurso de declamação de poesia do FLIK; Concurso de crónicas do FLIB (Festival do Livro da Beira) e o Concurso de redacção de contos tradicionais. Do Conselho Municipal de Quelimane, há que se destacar o Concurso 21 de Agosto, ligado ao dia daquela cidade. Parecendo muito, não são, para um país que pretende baixar a percentagem de analfabetismo de saber ler e escrever; o analfabetismo funcional, o analfabetismo de conteúdo e porque não o analfabetismo político.

Promover concursos literários é permitir o descobrimento de novos talentos; estimular os que já escrevem; incentivar o gosto pela leitura, pela escrita e pela literatura. Tudo isto tem um contributo imenso no desenvolvimento do país e dos próprios escritores, em várias áreas da vida. A par disso, os livros são um lugar de memória, de reflexão e sugestões sobre e para a vida, e são objecto de deleite. Alguns países desenvolvidos juntam, ao orçamento para a área da saúde, o que deve ir para a área de cultura, para o lazer e para a arte; porque estimular o gozo intelectual ou emocional é um meio caminho para a cura de determinadas doenças. Por isso e por muitas outras razões, há que os enaltecer e há que congratular quem ainda os organiza.

 

Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

 

 

 

A poesia é a modalidade suprema da linguagem de sugestão.

Solomon Marcus

Boa noite a todos.

Há algumas semanas, o meu amigo Dany Wambire escreveu-me a convidar para apreciar os poemas do padre Manuel Ferreira. Li-os rapidamente e, como se pretendesse resumir o que achei dos textos, registei umas notas que, agora, estão na contracapa deste livro. Assim, o editor da Fundza saberia o que julguei da escrita do autor. A minha acção foi inocente e incondicional. Longe de imaginar que as palavras custar-me-iam uma pesada responsabilidade. Até que, há uma semana, recebi uma chamada do Dany, dizendo-me o seguinte:

– Mano Zé, lembras-te daquelas notas sobre o livro do padre?

Eu respondi que sim e ele continuou.

– O padre gostou muito do que escreveste.

Até aí, tudo bem. Um elogio desinteressado, às vezes, faz bem. Mas aquele elogio, transmitido a partir da Beira, de desinteressado não tinha absolutamente nada. E o que veio a seguir foi esclarecedor.

– Então, por isso mesmo, o padre quer que tu apresentes o livro.

Quando me apercebi da minha queda numa armadilha, propôs, imediatamente, ao escritor e editor da Fundza, que esquecesse aquelas notas e fizesse esquecer ao padre também, que assim eu escava de apresentar o livro. Sem sucesso. A obra literária do padre Manuel Ferreira já estava impressa. Sem alternativas, estou aqui, para tentar apresentar o livro de um autor que nasceu há 84 anos, em Portugal, e que chegou a Moçambique em Outubro de 1964. Eu não sei onde cada um de vocês se encontrava em Outubro de 1964, mas eu e o padre Manuel Ferreira até já éramos amigos, conhecemo-nos numa livraria aqui ao lado da Avenida Eduardo Mondlane.

Enfim, antes que me perca numa dispensável abordagem biográfica sobre o nosso autor, tratemos então do que nos une aqui no Camões: a Serenidade, do padre Manuel Ferreira.

Em geral, eu penso nesta Serenidade como uma obra de trânsito, de movimentos, que exploram a origem dos objectos, a fonte do ser e a direcção da vida. Nesta proposta poética, o padre Manuel Ferreira escreve versos que exploram a relação entre o que se teve e o que se perdeu, numa espécie de negociação temporal a unir o presente ao passado. Trata-se aqui de uma poesia consentida pelos diferentes sujeitos poéticos que levam aos poemas um exercício sobre sonhos e a infância. Vejamos, por exemplo, o texto “ribeira verde”, da página 10:

 

Ribeira verde! Esperança

a manar dentro da gente!

Nos meus sonhos de criança

descubro a tua nascente.

 

Ribeira verde, do sonho

com que este Povo cresceu!

Das tuas águas, suponho,

imensa gente bebeu

 

Além desse, podemos ver o poema “catedral de agulhas”, página 12:

 

Com três agulhas do Pinhal do Rei

com três agulhas verdes do Pinhal

descubro que, na infância, edifiquei

o sonho indestrutível e real.

 

Ou seja, em a Serenidade, sendo o sonho uma noção futura, por acontecer, é uma possibilidade a levar-nos ao passado, à infância, à fonte concreta ou (re)imaginada. É olhando para trás que os sujeitos poéticos conseguem mover-se rumo a um destino desejado, auspicioso ou, pelo menos, redentor. Portanto, na poesia do padre Manuel Ferreira não só se sedimentam aspirações na tenra idade. Na meninice, fixam-se emoções que, lembradas, criam situações propensas a uma poesia sobre lugares, gestos, sensações, despedidas e saudade. Temos aqui um poeta que, escolhendo partir, simultaneamente, sente-se preso ao que deixou para trás. Logo, inevitavelmente, configura-se na expressão da palavra um lirismo a desenvolver-se no intervalo entre o tempo e os espaços.

Ora, ainda que possamos captar no livro elementos biográficos do padre Manuel Ferreira, nesta sua proposta poética notabiliza-se um poeta menos voltado a um encantamento individual. Para Ferreira, um poeta existe para os outros, conforme podemos comprovar no poema “novo regresso”, na página 16:

 

De novo, regresso à Mina.

E esta água doce corrente

suavemente me ensina

a ser dom pra toda a gente

 

Outro exemplo é o poema “descompromisso”, na página 29:

 

Não canto angústias minhas,

que as não tenho nem invento

E não assumo o tormento

de quem as tem

só por cantá-las.

 

No primeiro excerto, o sujeito de enunciação parece referir-se a uma experiência particular, que inclui o regresso a algum lugar bom, onde aprende a ser plural, a dar-se aos seus e a quem possa pertencer. Já no segundo excerto, o sujeito de enunciação reconhece implicitamente que nele cabem as dores dos outros. Deste modo, sem dogmas, a escrita do padre Manuel Ferreira valida, digamos assim, a percepção do intelectual romeno Solomon Marcus, quando, no artigo “Poética Matemática probabilística” afirma que a “A poesia é a modalidade suprema da linguagem da sugestão”. Nesse aspecto, Serenidade é um livro de versos simples, todavia, vale a pena ler pelas inúmeras sugestões evidenciadas.

Por fim, Serenidade, do padre Manuel Ferreira, é confrontação, questionamento e intervenção. Podemos ler esses registos no poema “se”, página 50. Esse é um texto constituído por cinco estrofes, mas podemos ler a primeira, a quarta e última.

 

Se pudéssemos contar

o que nos diz a razão…

Se nos deixassem pensar…

Mas não nos deixam. Pois não…

 

Se pudéssemos cumprir

toda a nossa obrigação…

Se nos deixassem ser justos…

Mas não nos deixam. Pois não…

 

Se pudéssemos fugir

da nossa incrível prisão

Se nos deixassem ser livres

Mas não deixam. Porque não?

 

Este poema do padre Manuel Ferreira foi escrito em Lisboa, em 1967, anos depois de nos termos conhecido. No entanto, apesar de ter sido escrito num outro contexto político e geográfico, continua actual e a dialogar connosco. Por que será que as questões sobre a justiça e a liberdade referenciadas no poema nos dizem respeito, a nós que nos encontramos a 11 mil quilómetros da capital portuguesa e há 56 anos da data em que foi escrito? Bem, a resposta a essa pergunta será dada por cada um de vocês.

Obrigado pela atenção.

 

*Texto escrito de cor na sequência da apresentação do livro Serenidade, de Pe. Manuel Ferreira, a 11 de Abril, no Camões – Centro Cultural Português em Maputo.

 

 

 

 

É difícil reflectir sobre qualquer coisa que não nos remeta aos acontecimentos que determinam os tópicos conversacionais nos últimos dias: a partida de Azagaia, as marchas em sua homenagem dentro e fora do país, as manifestações autorizadas por uns e interditas por “ordens superiores”, a violência bárbara a que se recorreu para tal interdição e os “cancelamentos” que são promovidos contra entidades públicas que têm vozes cujo clamor pode muito bem dar eco aos anseios do povo.

A minha preocupação surge em meio a este último tópico: cancelamentos. Em abono da verdade, os argumentos iniciais para esta atitude constituíam uma aporia por misturarem alhos e bugalhos: empatia, escolhas individuais, disponibilidade, agendas, etc. Só depois da triste acção da polícia é que o cancelamento passou a ter um sustento mais assertivo: o humanismo, independentemente da agenda, da disponibilidade e das escolhas individuais. Só a empatia é que prevalece. Touché!

O que é inevitável nesta campanha é perceber como nos é clara a função da arte ou de quem a faz. Diante disto, mudei o horizonte de cancelamentos para uma outra nata artística com a qual interajo no dia-a-dia e, sobretudo, pelas redes sociais: os poetas/escritores. O número é considerável e é composto por gente que se evidencia sobremaneira e demostra ter uma genica inquestionável no seu exercício.

Há anos que se vem inscrevendo um debate que embora pareça esgotado, evidencia-se quando menos se espera. A tónica disso gira em torno de um esteticismo purista subserviente do que outrora recebera o nome de arte pela arte. Outro ismo que entra em voga no mesmo debate é uma, também, subserviência a uma arte de engajamento. O que se nota é o que Luis Dolhnikoff descreve numa entrevista concedida a André di Bernardi e publicada na SIBILA: revista de poesia e crítica literária, nos seguintes termos:

no final do século XX, depois do fim das certezas clássicas, das grandes utopias políticas e das vanguardas artísticas, os poetas ficaram sozinhos, atomizados, por sua conta, cara a cara com o confuso mundo contemporâneo, esvaziado de todas as referências, tanto temáticas quanto formais. As duas principais reacções foram o retorno a um eu lírico apequenado, a uma poesia centrada no próprio poeta e em seu cotidiano, uma reacção fácil, autoexplicativa, e explicativa também do facto de a poesia actual interessar quase que somente aos próprios poetas, e uma nova poesia engajada, aquela que “se desengaja da linguagem poética para servir à mensagem de uma causa”.

Este segundo caso não é totalmente novo no cenário literário moçambicano, e remonta o que se passou a chamar de “Poesia de Combate” que, embora seja reconhecida a sua importância fundacional, foi e é alvo de críticas por se entender que a poesia deve se desengajar do manifesto sócio-político e valer mais pela forma como o sujeito poético diz o que diz e menos pelo que diz. Há, inclusive, quem diga mais: a poesia não deve dizer nada, porque tudo já foi dito, o que torna o texto poético produzido nestes tempos num campo de ilegibilidade e hermetismo agudo. E, por via disso, o próprio poeta que vive num tempo e espaço determinado esteja sempre alheio a tudo senão a si próprio como sujeito pensante, com sentimentos, questionamentos e, mais importante, empatia com os seus.

Recorrendo a um questionamento muito em voga nos últimos dias: o que dirão as próximas gerações sobre os poetas que viveram neste tempo muito agreste do ponto de vista sócio-político? Será possível que tenham conseguido, em tais tempos conturbados, habitar numa torre de marfim e se alhearem de tudo e todos?

As perguntas poderão, também, assombrar os leitores críticos deste tempo (embora estejam às gotas) sobre o método a que terão recorrido para não notarem tal facto e, simplesmente, passarem de esgrelha diante dele e, também, habitarem na mesma torre e fazerem análises que interessam a eles próprios e às suas academias que, em certa medida, constituem outras torres de marfim.

Em parte, o “cancelamento” seria feito em relação aos próprios poetas, porque os críticos não podem fazer interpretações fantasmáticas dos livros que lêem. Há uma disciplina que norteia o exercício e tal deve prevalecer. Apesar disso, sobra espaço para o “cancelamento” do crítico (jornalista, professor de língua/literatura, ensaísta, etc.) porque as suas ilações relativamente a um determinado livro e as suas perspectivas sobre o é e não é arte ou, mais especificamente, texto literário contribuem sobremaneira para a instalação de um modismo que possa enfermar uma geração como parece estar a ocorrer nos últimos tempos. Dito de outro modo, a magna literariedade de que tanto se fala na interpelação dos poetas/escritores que está vinculada em pressupostos formalistas pode estar a gerar uma busca de aplausos pelos críticos deste tempo e um alheamento a tudo e todos no seu confortável conchego na torre de marfim.

Em geral, já é mais do que consensual que um texto literário, em razão da sua veleidade de representação e figuração do mundo, não pode surgir dissociado de um contexto espácio-temporal. É este mesmo contexto que poderá reger a dimensão relacional externa do texto com outros aspectos que permeiam a humanidade, a sociedade, o mundo ou a natureza com vista a manutenção do encadeamento semântico e pragmático desse mesmo texto tanto do ponto de vista da sua produção (pelo escritor/poeta) quanto da sua recepção (pelo leitor).

Assim, a leitura do texto poético (e do literário, em geral) tomada com base neste pressuposto, abrangerá componentes formais dos textos e suas possíveis interpretações semântico-pragmáticas. Só esta conclusão

“destrói irremediavelmente uma das mais pertinazes miragens e uma das mais graves inexactidões de certa concepção formalista do texto literário: a ideia de que o fechamento do texto, que seria marca distintiva da literariedade, implica a independência do texto em relação a qualquer contexto” (Aguiar & Silva, 2007, p. 578)

De uma forma ou de outra, tanto o “retorno” ao Combate quanto o conchego na torre de marfim faria de nós justos merecedores de um “cancelamento” nos próximos tempos. Se é verdade que a poesia é um exercício de deleite com a palavra, é também verdade que o poeta não se pode furtar aos dilemas do seu tempo e espaço.

 

 

 

Não sou muito dado a efemérides, especialmente de âmbito privado, mas por um motivo que espero seja justificável, decidi, desta vez, abrir uma excepção.

No dia 11 de Abril de 1983, faz hoje exactamente 40 anos, iniciava esta saga olímpica, que foi, e continua a ser, a de ajudar a iluminar mentes e abrir caminhos a milhares de pessoas, a maior parte delas jovens, dentro e fora de Moçambique. Ser professor é ser, acima de tudo, um educador. Facto que, em si próprio, encerra um significado e um alcance incomensuráveis.

Não tenho dúvidas de que muitas das perversões e dos equívocos que vamos presenciando um pouco por todo o lado, a diferentes níveis, e sobretudo entre aqueles que deveriam dar o exemplo, derivam do desconhecimento dessa verdade tão simples e tão dificilmente contornável. Não foi uma profissão que escolhi, para aí fui empurrado, sem apelo nem agravo. Afinal, tal como aconteceu a muitos outros que, entretanto, foram, e muito legitimamente, partindo para outras opções profissionais, em certa medida, muito mais aliciantes. Eu decidi ficar. Talvez por tibieza. Talvez por me ter acomodado. Talvez por ter percebido que ser professor não é uma profissão, mas um sacerdócio. Isto é, algo que funciona como um chamamento e que de forma transcendente vem de dentro. E porque convictamente, mas também romanticamente, e porque sempre me assumi como um homem de causas, decidi ficar. Isto, apesar dos inúmeros apelos e acenos para trilhar por outros caminhos, muito mais promissores em termos de dividendos materiais. Sobretudo, quando vou assistindo, com amargura, como alegre e impunemente se esvazia e se destrói um ofício, valioso património das nações que se prezam, e que é o principal  responsável pela edificação da humanidade e das civilizações ao longo dos tempos. Mas cá continuo. Como muitos outros, afinal.

Pois, há o outro lado da moeda, mais auspicioso, mais luminoso e mais gratificante que é o de testemunhar que há um legado imaterial que muitos da minha geração ajudaram a construir e a espalhar como sementes jogadas nas veredas da vida. E que, por pouco que ele seja, resiste bravamente às intempéries e aos tentáculos da ignorância, da inépcia, da imoralidade, do situacionismo, do exibicionismo rasca e da barbárie, que vão por aí imperando, instituindo-se para nosso infortúnio colectivo, como modelo de vida para muitos espíritos incautos e desavisados. Até um dia.

Há uma outra virtude neste ofício, quando te está entranhado no tutano da alma: que é fazer de ti um fabricante de utopias. Mesmo daquelas que irremediavelmente não vão acontecer tão rapidamente, tão plenamente. Mas que acontecem e se materializam nos múltiplos e valorosos exemplos, naquelas e naqueles que germinaram das sementes disseminadas, e que, de forma digna, competente e conscienciosa vão fazendo do mundo, ainda, um lugar melhor para se estar. Daí que esteja aqui, celebrando silenciosa e intimamente este momento, que representa os muitos momentos que ficaram para trás, mas que valem e valerão sempre a pena.

 

Permitam-me, em primeiro, agradecer ao Agnaldo Bata, meu confrade, por ter a ousadia de convidar-me a fazer apresentação deste seu mais recente livro, confesso que fiquei estupefacto, quando o Bata me abordou e incumbiu-me a missão de oferecer-vos algumas linhas de provável interpretação desta história. A verdade é que não me vejo com arcabouço suficiente para tamanha missão, mas, em nome da literatura e da nossa amizade, atirei-me a este reino musical, para tocar-vos à leitura, espero que as vossas almas dancem depois de terminar a leitura.

Bom, o livro, “Mungadze e a lenda do reino musical”, traz-nos uma história completa, narrada segundo mandam as regras da narrativa do género, típica de histórias mágicas bem-contadas, desde as do cinema às da oratória africana. Uma narrativa que nos prende e nos acompanha ao destino da história e do protagonista. Um protagonista igualmente completo, munido de todas as nuances dos heróis que se celebram em narrativas épicas, um herói que se apresenta revestido de todos condimentos dos grandes heróis.

Primeiro, na introdução, apresenta-se-nos com a resistência, no do protagonista, mas das personagens a sua volta, o que desde cedo, o protagonista, demonstra tamanha coragem para encarrar o problema que se colocava à vista, o que o leva a partir à aventura, onde encontra e supera inúmeras dificuldades até à conclusão, a gloria final, acompanha da moral da história. Estes elementos permitem elevar o nível de suspense e envolver e fazer dos leitores parte da história.

Existe neste livro, como disse, todos os artefactos das grandes histórias, porém, para este exercício de excitação à leitura, elegemos dois 1) o enredo: como a história é contada e 2) o argumento: o que a história conta.

No primeiro ponto, encontramos, neste livro, uma narrativa que nos embala e nos envolve, trazendo, como propõem Christopher Vogler e Joseph Campbell, dois dos mais cotados screenwriters hollihoodianos, todas as etapas de jornada do herói, condimentações necessárias para se contar uma história impecável, que são: o mundo comum; o chamado à aventura; recusa do chamado; encontro com o mentor; a travessia do primeiro limiar; provas, aliados e inimigos; aproximação da caverna secreta; a provação; a recompensa; o caminho de volta; a ressurreição; e o retorno com o elixir.

Neste diapasão, encontramos um reino alegre, cuja vivência apresenta-se-nos tranquila e equilibrada, entretanto, na medida que a história se desenrola, acontecem fenómenos que colocam em causa essa tranquilidade, a falta da música que, como consequência, enferma os habitantes do reino, uma situação que exigem uma resolução e, como sabem, quem se entrega a resolver problemas colectivos é chamado de herói. É aqui que se nos apresenta o jovem Mungadze! E toda narrativa vai-se desenrolando em volta desse herói.

No segundo ponto, Agnaldo Bata, traz-nos aquilo que, quase todos concordados que sem ela a vida seria mais aborrecida: a música! Aliás, como diz Nietzsche, o consagrado filosofo alemão, “Sem a música a vida seria um erro”. Ou então, se formos mais extremistas, condizendo Shakespeare, “O homem que não tem a música dentro de si e que não se emociona com um concerto de doces acordes é capaz de traições, de conjuras e de rapinas”.

A música, esta combinação harmoniosa e expressiva de sons, neste livro, é-nos apresentada em forma de chilreios, que são sons emitidos por um ou vários pássaros, no caso específico, os pássaros missionários que vinham de Cabine, o reino musical.  Um reino que tinha a nobre responsabilidade de criar música para a vida de todos os habitantes, mostrando claramente que sem a música a vida não seria possível.

Sobre a moral da história: este livro ensina-nos, primeiro, a sacrifícios individuais para o bem da maior, da coisa pública, uma prática que nos dias que correm tem se mostrada ausente nas nossas vidas. É só ligaram a televisão às 20h para atestarem o que digo (risos).  

Ainda, o livro “Mungadze e a lenda do reino musical” introduz-nos à educação musical, uma vez que a narrativa gravita em prol dessa arte, mostrando claramente que o Agnado Bata teve o cuidado de pesquisar e trazer os elementos que corporizam a música, sobretudo, a sua composição criativa, como as notas musicais, a forma de cantar e outros.

Testemunhamos, neste livro, um diálogo de uma intertextualidade graciosa e saudável entre a literatura e a música, mostrando claramente, que as artes podem caminhar juntos, o que, de certa forma, demonstra esse companheirismo entre as artes.

Porque não quero esgotar aqui os recursos e pontos que este livro nos traz, eu recomendo-vos a comparar e a lerem, primeiro vocês, depois aos vossos filhos, sobretudo àqueles que ainda podem ler. Divirtam-se como eu me diverti ao ler este livro.

Bem-haja Agnaldo Bata, bem-haja a literatura infanto-juvenil moçambicana!

 

*Texto de apresentação ao livro Mungadze e a lenda do reino musical, de Agnaldo Bata, que teve lugar no dia 01 de Março do ano em curso, no Instituto Guimarães Rosa-Centro Cultural Brasil-Moçambique.

 

Retomo uma obra que marca o início da caminhada do autor. Uma espécie de casamento de primeiras núpcias ou parto literário. Por estas alturas, assim esperamos, o autor já se confirmou como conceituado e não como promessa, nem aventureiro ou, ainda, curioso literário. Este era o prognóstico e profecia de Adelino Timóteo, no prefácio da primeira edição.

As crónicas, segundo Areosa Pena, são o género literário onde o autor nos oferece uma pista de como quer ser lido e interpretado. Todavia, nem sempre esta vontade coincide com a disposição do leitor e, muito menos, com a sua preparação para absorver e se deliciar com essa interpretação ou toda a hermenêutica que nos permite e dá o privilégio de julgar e compreender.

Este livro me parece um tratado excepcional de intervenção social. Aliás, Moçambique é terreno fértil para estas narrativas desconcertantes. Uma intervenção social e cultural que não se esgota no Sul, Centro ou Norte do país, regiões plenas de casos e de inconfidências.

Parece um bom pretexto para iniciar a leitura de “Uma vida qualquer”. Reler estas crónicas de Chakil Aboobacar, cuja primeira edição foi lançada em 2009, nos remete ao mundo despedaçado. Ou será que nós mesmos despedaçamos o nosso país e não nos damos conta?

Estes textos reflectem uma forma particular de se olhar para Moçambique, as suas aporias, contradições, confidências, a partir de um lugar privilegiado e longe de qualquer umbigo. O autor transporta e carrega a temática da traição e do amor, dos preconceitos e dos espíritos, do direito consuetudinário, da imagem da beleza corporal feminina, do machismo, da prostituição e do assédio, cada vez mais comuns no meio urbano e rural, do sobrenatural ao esotérico.

Muito provavelmente, o cerne da obra se espelhe no título que dá nome ao livro: o texto “Uma Vida Qualquer”. Nele, o autor faz um retrato aterrador da banalização da condição humana, ao contar a história do puto Jaime, um menino de rua que perde a vida estendido no chão de uma artéria qualquer de uma dessas nossas urbes, sem o devido socorro dos transeuntes e do próprio articulista que por lá indiferentemente vão passando. Isso até ao momento em que o mesmo puto Jaime, já morto, ganha imediata relevância para os mesmos transeuntes e o próprio articulista, quando todos se dão conta do seu falecimento e tentam correr hipocritamente contra o tempo para prestar ajuda! Quiçá procurando um escape que justifique a sua inacção de outrora, ou um alento para o fardo que passam a carregar na consciência. Quantas vezes não somos também assim, nen-humanos em vida e super-humanos na morte?

Todos os outros textos são lugares e sabores, valores éticos e programáticos para descrever esta sociedade cujas matérias de relacionamento social, cultural e de justiça social, continuam tão desiguais como deprimentes. O autor teve o sentido de oportunidade, destreza e determinação para expor o seu sentir, pulsar de uma sociedade enferma.

Os textos Maria, Amina, A Ida ao Maprofeta, Desejos da Alma, Minas de Morte e O Diálogo Fornicológico causam indignação por denotarem uma erosão de valores sociais, mas, igualmente, um sistema que aprofunda a exclusão social, a pobreza, a corrupção e os conflitos de toda a ordem. O autor, presumo, revisita a necessidade de mudanças sustentáveis no quotidiano das pessoas.

O autor recorre, com astúcia, a figuras de estilo para descrever esse quotidiano. Pela brevidade e leveza como faz, dá a impressão que se transfigura e ressignifica essa realidade social, transbordando, de forma objectiva, o seu pensamento assertivo, suculento e criando essa simbiose do oficial com o tradicional, abrindo, então, os caminhos para uma leitura relaxada, e que não fere e nem, sequer, parece ser temerária.

Chakil escapa, também, à armadilha intelectualmente empobrecedora de atirar para baixo do tapete as questões espirituais e de fé, que fazem o dia-a-dia de milhões de moçambicanos, num momento em que não se vislumbram alternativas para a reversão das dificuldades. Os espíritos parecem ser o seu fio condutor. Esse exoterismo, ou seja, o sabor do interior que existe para lá das aparências e que exige um certo esforço para se poder atingir.

Todos os amantes da literatura terão esta oportunidade de conviver com estes títulos fogosos e devorar os textos com um prazer e doçura. O autor, apesar de missões partidárias e empresariais, veste-se de muita intelectualidade e militância. Uma responsabilidade missionária que o tempo se encarregará de confirmar se ele continua sendo feito de palavras ou de acções.

 

É comum que um autor fique perturbado com a leitura que se faz do seu livro. Não seria difícil citar 10 exemplos em que tal aconteceu. Vezes há em que tudo termina entre os botões do autor e sabe-se da sua perturbação pelos corredores, cafés e bares. Noutras vezes (não poucas) os escritores usam redes sociais ou colunas de jornais para manifestar o seu desencanto com a leitura de um certo crítico (ou aspirante ao ofício). Vemos, em alguns livros, uma tendência subtil do escritor deixar pistas que norteiem o exercício de leitura que, a priori, é alheio a si e é matéria de outros poderes. Neste caso, o do leitor. As epígrafes, os preâmbulos, as notas de autor e outras “manobras” paratextuais são recurso preferencial dos autores para enviarem recados ao leitor antes, durante e após a leitura da obra. Haverá, certamente, quem se interesse em aprofundar esta matéria.

Vem isto a propósito de uma nota que Wole Soyinka deixa em “a morte e o cavaleiro real”, uma peça originalmente publicada com o título “Death and the King’s Horseman”, traduzida para português por Sandra Tamele e publicada pela Ethale Publishing, em Moçambique.

Tive a infelicidade de ler a nota do autor antes que lesse a peça. Embora seja fascinado pelos fenómenos que emergem num contexto de contacto entre culturas, tenho reservado alguma sobriedade para ler o que o texto oferece e, aliando ao que já carrego no meu saber enciclopédico, faço uma leitura interactiva alicerçada nos preceitos de Mikhail Bakhtin. Neste caso, foi-me difícil ler o texto sem o assombro de Soyinka ao ouvido dizendo como a sua peça devia ser lida ou, quiçá, encenada.

A dado momento da sua nota, Soyinka diz o seguinte:

O mal dos temas deste género é que assim que são empregues criativamente adquirem logo o fácil rótulo de “choque de culturas”, um rótulo prejudicial que, longe da sua má aplicação, pressupõe uma potencial igualdade em todas situações da cultura estrangeira e da cultura indígena, em solo da última. (Na área da má aplicação, o prémio de literacia e condicionamento mental no ultramar cabe indubitavelmente ao autor da sinopse da edição americana do meu romance Season of Anomy, que afirma descaradamente que esta obra ilustra o “choque entre valores antigos e novas maneiras, entre métodos ocidentais e tradições africanas”!) É graças a este tipo de mentalidade perversa que penso ser necessário acautelar o potencial produtor desta peça contra uma triste tendência reducionista similar e, em vez disso, guiar a sua visão para a tarefa muito mais difícil e arriscada de elucidar a essência lamentosa da peça.

Trata-se de uma peça que aborda eventos ocorridos em Oyo, antiga cidade yoruba, na Nigéria, em 1946. O Cavaleiro Real, Olori Elesin, é o centro da trama. Segundo um secular costume tradicional yoruba, após a morte do rei, o seu cavaleiro devia suicidar-se para acompanhá-lo ao céu.

Elesin, gozando de simpatia pelos habitantes da comunidade yoruba, revigora-se para viver o seu último dia em absoluta felicidade. Alegra-se. Faz grassa com os seus. Faz o que mais lhe dá gozo. E, não menos importante, escolhe uma mulher com quem ter o último coito antes da partida e, segundo os costumes, é a esta que caberá a tarefa de lhe tapar os olhos depois de morto. Sucede, entretanto, que a mulher por si eleita já havia sido prometida para um jovem da aldeia. Embora tivessem surgido protestos para negar esse desejo, tal não podia prosseguir porque “ninguém iria remediar o flagelo da mão fechada no dia em que todas deviam estar abertas à luz”. Pela importância dada ao ritual, a comunidade yoruba esteve toda informada sobre o que iria suceder naquela noite e, entre cânticos e batuques, registava-se o momento. Tanto pelas informações que corriam quanto pelo som de cânticos e batuques, Simon Pilkings, o administrador colonial, toma conhecimento do que iria suceder e ordena a prisão de Elesin por considerar a prática do suicídio nociva, ilegal e, acima de tudo, entendia que o costume em volta dele era atrasado.

Para os yoruba, a interrupção do ritual e o impedimento do suicídio de Elesin significava a condenação de toda uma comunidade e das gerações posteriores a um caos sem precedentes por se ter inviabilizado uma ordem cósmica secular.

Este episódio ocorre na mesma altura em que Olunde, filho primogénito de Elesin regressa de Inglaterra, para onde fora cursar Medicina à mercê de uma bolsa de estudos facultada por Simon Pilkings como forma de incentivar o jovem que tinha bom desempenho na escola e merecia uma sorte melhor que “seguir tradições atrasadas e desumanas.” Ciente do que se estava a tratar, Olunde assume a responsabilidade do pai e suicida-se em seu lugar. Elesin, por seu turno, suicida-se, também, na prisão, mas tal não chega a ser suficiente para inverter a má sorte que se iria instalar a partir do momento em que o ritual foi interrompido e se invertido a ordem natural dos acontecimentos, segundo a visão do mundo yoruba.

Retomando a divisão aristotélica dos modos literários, indubitavelmente, “a morte e o cavalheiro real” é um texto circunscrito no modo dramático. De forma específica, trata-se de uma tragédia pelo tipo de temática que aborda, das acções em conflito e da mudança paradigmática da vida de Elesin da situação inicial à final. Do ponto de vista externo, a peça apresenta cinco actos e vinte e uma cenas. Internamente, diria que a exposição corresponde ao primeiro e segundo actos, o conflito ocorre nos terceiro e quarto actos, e o desenlace desencadeia-se no último acto. A peça gira em torno de Bardo, Elesin, Iyaloya, Simon Pilkings, Jane Pilkings, Amusa, Joseph, Noiva, Guarda, Sua Majestade Real o Príncipe, O Residente, Ajudante de Campo, Olunde, Batucadores, Mulheres, Meninas e Dançarinos do Baile.

Do ponto de vista de relevo, dentre estes personagens, Elesin (protagonista) e Simon Pilkings (antagonista) são principais; Olunde, Iyaloya, Bardo, Jane Pilkings, Amusa, Mulheres e Meninas são secundárias; Joseph, Noiva, Guarda, Sua Majestade Real o Príncipe, O Residente, Ajudande de Campo, Batucadores e Dançarinos do Baile são figurantes. Conforme referi, as acções de “a morte e o cavaleiro real” ocorrem num mesmo universo espacial e temporal: Oyo de 1946. Ora, conforme refere o autor na já aludida nota, “por meras razões de dramaturgia, a acção foi recuada dois ou três anos, para quando havia guerra.”

Em “a morte e o cavaleiro real” podem emergir várias leituras. Mas algumas não vingam, não só por ter sido objecto da refuta que Soyinka adianta na nota desta edição, como porque não encontra fundamento consistente no desenrolar da peça. De facto, ler a peça na perspectiva de contacto entre culturas só teria azo se o diálogo entre Olunde (filho de Elesin) e Jane Pilkings (esposa de Simon Pilkings) no quarto acto se tivesse prolongado e tomado as rédeas de todo enredo a partir do momento em que inicia. Mas, não! A pouca primazia que o autor deu a esta interação sustenta a coerência do que ele diz em relação àquilo que ocorre do ponto de vista material. A ter de fazer uma interpretação global da peça através de ocorrências bastante episódicas, haveria espaço, inclusive, para traçar um itinerário interpretativo que nos faria chegar a conclusão de que independentemente da formação académica a que Olunde fora submetido, o seu substracto cultural falou mais alto a ponto de se suicidar para salvaguardar um costume tradicional e manter a plenitude da sua comunidade por gerações. Portanto, a meu ver, as interpelações dialécticas que surgem nas entrelinhas da conversa entre Olunde e Jane Pilkings vêm a título de reboque de um impacto discursivo ainda maior.

Vejamos, se lermos o fenómeno Elesin numa perspectiva das narrativas orais (embora neste caso de trate de uma peça) podemos encontrar sustento na análise da sua situação inicial até a final. Dir-se-ia tratar-se de um herói (não se confunda com a noção de heroicidade; entenda-se o conceito na perspectiva de análise textual que é equivalente a protagonista) que teve uma situação inicial feliz, foi perpetrando transgressões no decorrer do enredo e culmina com uma situação final trágica: um castigo. Assim, do ponto de vista temático-antropológico, “a morte e cavaleiro real” seria um texto que apresenta “pessoas e/ou animais através do comportamento dos quais se pretende abordar questões ligadas aos costumes da comunidade, hábitos morais ou culturais, premiando os cumpridores e castigando os transgressores.

Objectivamente, diríamos que, em parte, o facto de ter usado o seu último dia para a satisfação de desejos até certo ponto mesquinhos pode o colocar na posição de transgressor dos costumes do povo Yoruba como, por exemplo, a tomada de uma jovem como sua mulher quando esta já havia sido prometida para um outro jovem da comunidade. Este e outros aspectos podem sustentar o seu infortúnio (castigo). Haja vista, contudo, que neste caso o castigo não é só para si, mas para toda comunidade.

Por outro lado, pode-se perceber que o jogo discursivo no plano extratextual independe da forma como a peça termina. Eis, quiçá, a razão de Soyinka não dar o desfecho sobre a previsão do infortúnio do povo Yoruba dentro da peça. O que pode sustentar que independentemente do que fosse acontecer naquele universo, cá (no plano extratextual) inscreve-se o essencial: compreender a cosmovisão do povo Yoruba relativamente à morte _ por um lado como continuidade da vida terrena numa categoria superior e com alcance aos destinos dos vivos; por outro, como um imperativo altruísta do ponto de vista existencial porque o suicídio do cavaleiro real era visto como uma atitude nobre em benefício da comunidade e das gerações posteriores àquela que conviveu tanto com o rei quanto com o cavaleiro real.

Ler a morte (e mais especificamente, o suicídio) neste viés yoruba abre os horizontes para perceber como um fenómeno intrínseco à condição humana pode ter tão variadas concepções em diversos povos. Se para uns a morte não é o fim, é parte do processo evolutivo da alma para chegar à pureza (nirvana); para outros é o fim de uma missão para encontrar o pai celestial e em função das acções terrenas abrir-se-ão novas possibilidades de existência noutro plano; há os que entendem que se trata de uma viagem para outro plano com a possibilidade de nortear o rumo dos que vivem e interceder por eles perante o supremo; etc. Para os Yoruba, este dilema existencial é tido de outra forma e na sua organização sócio-cultural não se espera que tal imperativo altruísta e existencial ocorra por causas naturais, mas voluntariamente através do suicídio que, neste caso, esteve entre “a morte e o cavaleiro real”.

Quando se fala da situação na Ucrânia e das “atrocidades” cometidas neste país, sempre se invoca o tema de Bucha. É um exemplo predilecto dos políticos, jornalistas e analistas para provar a natureza alegadamente ilegal das acções da Rússia.

À luz da “Cimeira de Bucha”, recentemente realizada em Kiev, na qual participaram representantes de vários países que apoiam o regime neonazi na Ucrânia, é de recordar o verdadeiro estado de coisas, apontando, mais uma vez, a fantasia ilimitada da propaganda ocidental.

Já não é estranho que os meios de comunicação ocidentais não revelem que, na verdade, nos dias em que os militares russos estavam nesta pequena cidade nos arredores de Kiev, a população local circulava livremente pelas ruas e utilizava telemóveis – tais factos são fáceis de provar. Dado que a rede de telefonia móvel não estava cortada e as suas capacidades tecnológicas não estavam comprometidas, os habitantes locais tinham toda a oportunidade de enviar mensagens ou telefonar aos seus familiares ou aos media para fazer denúncias, enviar fotografias e vídeos. Porque não foi detectada nenhuma mensagem deste género? – Se calhar, não havia nada a reclamar?

Além disso, as estradas de Bucha para o norte e para a Bielorrússia não foram bloqueadas. Os militares russos trouxeram e distribuíram 452 toneladas de ajuda humanitária entre os habitantes da região de Kiev. Enquanto isso, as próprias tropas ucranianas bombardearam quase sem parar com projécteis de grande calibre e mísseis os subúrbios no sul da cidade e bairros residenciais, onde tinham estacionado as tropas russas.

A 30 de Março de 2022, estas tropas retiraram-se de Bucha, o que um dia depois foi confirmado pelo Presidente da Câmara da cidade, Anatoli Fedoruk, que transmitiu, nas redes sociais, a sua vídeo-mensagem de alegria sem qualquer menção de alegados crimes de guerra e massacres no local. Passados quatro dias, “milagrosamente”, apareceram os corpos em ruas da povoação, sem sinais naturais de terem sido mortos há dias. O que aconteceu durante esse lapso de tempo? Evidentemente, naqueles quatro dias, foi preparada uma cínica e terrível provocação ao estilo das tropas nazi-fascistas da Segunda Guerra Mundial.

De acordo com a prática internacional, acusações de crimes de guerra entendem a realização de uma investigação profunda e apresentação de provas verídicas. Contudo, passado um ano, não foram dadas respostas concretas quanto à identificação dos corpos, tempo e causas da morte, nem encontraram explicação ou vestígios da possível deslocação dos cadáveres. Para nem falar da lista oficial das vítimas, que, apesar de vários pedidos à ONU e autoridades ucranianas, a Rússia não viu.

A ausência de respostas a estas perguntas básicas não deixa dúvidas de que estes acontecimentos não passam de uma campanha de propaganda encenada pelo regime de Kiev. Na altura, os objectivos principais da palhaçada foram, primeiro, fazer fracassar as negociações russo-ucranianas, que se desenvolviam então em Istambul numa maneira positiva, e segundo, lançar outro pacote de sanções anti-russas pré-preparadas pelo Ocidente.

A farsa em Bucha desencadeou uma onda de falsificações similares sobre os alegados massacres de civis pelo exército russo. Foram organizadas viagens de jornalistas estrangeiros a Bucha e estrondosas acções de propaganda. No entanto, o regime de Kiev não conseguiu transformar Bucha na “Srebrenitsa ucraniana” – simplesmente porque as provas são nulas. O que a propaganda tenta apresentar como tais não têm nada a ver com o senso comum. Por exemplo, no final de Abril de 2022, o jornal “The Guardian” publicou um artigo em que foi escrito que, nos corpos dos civis mortos, na cidade de Bucha, tinham sido encontrados ingredientes metálicos usados nos recheios dos projécteis de 122 mm. A publicação afirma, sem rodeios, que os ataques de artilharia deste calibre contra Bucha foram efectuados quando a cidade estava sob controlo das tropas russas. Os jornalistas queriam dizer que as tropas russas teriam bombardeado a si próprias?

Os acontecimentos em Bucha, infelizmente, são apenas um dos exemplos de mitos anti-russos do regime de Kiev. O que estão a tentar fazer os neonazis ucranianos, gozando do apoio ocidental inquestionável, é esconder os seus próprios crimes e ao mesmo tempo penalizar o seu adversário que não pode ser vencido de maneira justa. Neste contexto, é mesmo assustador pensar que mais ousaria empreender a Ucrânia e os seus patrocinadores e o que seria feito do nosso mundo se a mentira flagrante fosse aplaudida?

 

Por Alexander Súrikov

Embaixador da Rússia em Moçambique

Havendo a necessidade de regulamentar as actividades audiovisuais e cinematográficas em Moçambique, em conformidade com o disposto no artigo 37 da Lei n.º 1/2017, de 6 de Janeiro, o Conselho de Ministros, através do Decreto n.º 41/2017, de 4 de Agosto, aprovou o Regulamento da Lei do Audiovisual e do Cinema. Trata-se, pois, de um instrumento que estabelece os mecanismos de aplicação da referida lei.

Com efeito, o espírito de criação deste instrumento legal materializa, de forma fiel, o conceito das indústrias culturais e criativas institucionalizado no País. Ora, se assumirmos que a cultura tem a potencialidade de contribuir para o desenvolvimento económico nacional, logo, é necessário instituir mecanismos que possibilitem aos fazedores das artes e cultura a contribuírem para o crescimento económico do País, fazendo jus ao pressuposto institucionalizado.

Aliás, o n.º 1 do artigo 63 (do supracitado decreto) indica, por exemplo, que 60% do valor das taxas fixadas no Regulamento da Lei do Audiovisual e do Cinema se destinam ao Orçamento do Estado; 25% ao Fundo para o Desenvolvimento Artístico e Cultural (FUNDAC) – organismo de apoio artístico-cultural no País; e 15% para o Instituto Nacional Audiovisual e Cinema (INAC). Estes valores, em primeira análise, revertem-se em benefício do desenvolvimento do sector e contribuem para o crescimento da economia nacional.

Mas onde reside o problema? 

  1. No artigo 54 da lei supra, lê-se: “A autorização de rodagem e pesquisa de produção nacional incide sobre o orçamento da produção, desde que não seja inferior ao salário mínimo em vigor na Função Pública.”

Ao que se pode depreender, provavelmente, o problema não seja usar como base o salário mínimo para definir a taxa, mas a sua universalização. Assim, este dispositivo legal, além de não ser razoável, peca justamente por não criar categorias de pagamentos, pois, no nosso entender, não parece o mais acertado colocar no mesmo nível de pagamento um artista conceituado e um iniciante. Este, geralmente, usa recursos próprios para produzir a sua obra, e enfrenta diversas dificuldades, principalmente para a promover. A sua esperança, para uma projecção nacional, é ver a sua obra promovida na televisão. Por isso, parece-nos contraproducente que, num contexto de apoio cultural público e privado deficitário, ainda se tenha que cobrar a este novo talento uma taxa desta natureza. Aqui, o legislador é chamado a categorizar e/ou criar níveis de pagamentos, usando qualificadores que melhor se ajustem à nossa realidade sócio-económica.

Não obstante, é preciso reconhecer que há artistas estabelecidos. Para estes, parece-nos prudente que se cobre uma taxa de acordo com os níveis de crescimento económico do País, sendo o salário mínimo um dos indicadores. Em outros contextos, em que os artistas possuem uma “Carteira”, as taxas são cobradas baseando-se na classe da “Carteira do Artista”, ou seja, o artista de Classe A não paga a mesma taxa que o artista de Classe B, e assim sucessivamente. Portanto, este método evitaria o que estamos a assistir no País: a universalização das taxas e as suas inevitáveis consequências.

  1. O actual contexto: Para o Governo de Moçambique (GM), a economia Moçambicana tem sido afectada por sucessivos choques internos e externos, com destaque para os efeitos das mudanças climáticas, as acções terroristas em Cabo Delgado, a Pandemia do Covid-19 e, mais recentemente, o conflito na Ucrânia”.

Segundo o posicionamento do Governo, o País está numa situação crítica, pelo que, para reverter este cenário, anunciou o lançamento do Pacote de Medidas de Aceleração Económica (PAE), através do qual indicou 20 medidas para a retoma do crescimento económico. Porém, nenhuma destas faz menção directa ao sector cultural. Desta feita, é dissonante que, num contexto em que vendemos uma narrativa segundo a qual a cultura contribui para a economia nacional, esta não seja um dos beneficiários directo do PAE e de outras medidas de alívio económico.

Em contextos de Covid-19, para conter a propagação desta pandemia e salvaguardar a saúde pública no País, os artistas viram-se obrigados a ficar muito tempo em casa. Como resultado, alguns perderam contratos, os promotores de eventos ficaram estagnados, e as produtoras sem alternativas. E hoje, apesar de estar previsto na lei, não nos parece acertado, olhando para o actual contexto, cobrar taxas de rodagem nestes níveis. Ao proceder-se deste modo, ao invés de se fortalecer uma economia cultural, estaremos a matar a pouca esperança que a classe tem na estabilização das suas carreiras artísticas.

Por conseguinte, no nosso entender, a solução para este problema não passa necessariamente pela revisão da lei, pois os seus procedimentos levam tempo. Infelizmente, perdemos a oportunidade, no âmbito do PAE e de outras medidas anunciadas pelo Governo, de propor o não pagamento desta e de outras taxas num determinado período, enquanto o sector procura criar mecanismos para se estabelecer.

Portanto, o Ministério da Cultura e Turismo (MICULTUR) deve pensar num dispositivo legal de alívio ao sector cultural e criativo, apresentando argumentos plausíveis junto ao Governo central sobre a necessidade de se criar facilidades aos trabalhadores das artes e cultura, considerando o actual contexto económico do País. Alternativamente, com o apoio do sector privado, de financiadores nacionais e internacionais, o Governo pode pensar num programa de apoio cultural, subsidiando os artistas no pagamento de algumas taxas, usando como justificativa a mitigação dos efeitos da Covid-19 (como acontece nos transportes públicos e em outros sectores). Enquanto isso, continuamos a sonhar com um “Programa SUSTENTA” na cultura; um “Programa EMPREGA” na cultura; entre outras iniciativas de financiamento que o Governo institui para os outros sectores. Why not?

O artista é o instigador da revolta dos objectos.

V. Chklovski

 

M. Eikhenbaum entende que “o romance é um problema de regras diversas que se resolve com a ajuda de um sistema de equações a várias incógnitas, sendo as construções intermediárias mais importantes do que a resposta final”. Até à vírgula, nessa citação, a ideia do estudioso russo parece tratar-se de um ensaio matemático. Mas o que está implícito é a percepção de que o romance é um género literário resultante da combinação de elementos plurais, cuja vocação consiste em gerar enredos consequentes. Por isso mesmo, muito além do desfecho, importa o processo que nos pode levar a algum lugar onde possamos morar por tempo indeterminado.

Tendo vivido entre 1886 e 1959, claro está, B. M. Eikhenbaum não leu Geba, onde o Tâmega desaguou no Índico, livro de Miguel César lançado mês passado, em Maputo. No entanto, ainda assim, o pensamento daquele Historiador de Literatura quase é premonitório em relação aos mecanismos de concepção estética e temática do mais recente romance chancelado pela Fundação Fernando Leite Couto. Isto é, na hierarquia do romance, B. M. Eikhenbaum coloca o processo narrativo no topo da pirâmide, relativamente ao que podemos considerar o fim da história. Nesse aspecto, a teoria, digamos assim, coincide com a prática, pois, ao escrever sobre uma história de amor, entre Augusto e Alice, Miguel César investe na fortificação dos elementos construtores do romance. Aliás, o seu esmero na conjugação da narração com o movimento das personagens nos espaços percorridos revela uma certa rigorosidade sobre o tal processo da construção intermediária do que sobre o derradeiro momento da história: menos impactante ou um pouco precipitado.

Em todo o caso, Geba é, paradoxalmente, um ponto de luz crítico, lugar recôndito, mas suficientemente à altura de atrair um casal de portugueses que, nos anos 50 do século XX, resolve aventurar-se numa viagem de dois meses no navio Pátria, sempre à procura de esperança. Temos aqui uma história sobre as crises humanas e humanitárias do nosso tempo, as quais começam com a incapacidade política na resolução dos problemas sociais e terminam com incerteza na emigração.

Quando partem da sua terra, Augusto e Alice apenas deixam para trás um espaço afectivo. São jovens, mas sabem como a vida é feita de algumas realizações. Assim, em Geba encontram o lugar onde podem começar a elevar um lar focados nas coisas importantes.

Ao fixar a narrativa em Geba, Memba, Nacala ou Nampula dos anos 50, uma das consequências é a activação do período colonial em Moçambique, o que instaura no romance alguma intertextualidade com Zambeziana: cenas da vida colonial (1927), de Emílio de San Bruno. Nos dois casos, revêm-se peripécias raciais e perniciosas na relação entre povos diferentes, igualmente ficcionadas em Sehura (1944), de Rodrigues Júnior, cuja história também se passa em Nampula (Ilha de Moçambique, Iapala).

Por um lado, há na escrita de Miguel César um exercício de memória. Por outro, Geba, onde o Tâmega desaguou no Índico é um ensaio sobre a lucidez, contra o que torna os homens inferiores, contra a autoridade imposta e ilegítima, contra a exploração do Homem, contra a ganância e a barbaridade a repetirem-se num mundo cada vez mais narcisista.

No campo visual de Augusto e Alice, a trama é uma experiência dura e cíclica, sobretudo quando se está do lado ingrato da História. Essas duas personagens até são correctas nas suas adversidades. Todavia, são colocadas pelo autor num meio atroz, onde nem sequer existem escolas para matricularem os seus dois filhos com idade escolar. Pior, têm de aprender a conviver com um homem imbecil, o administrador Pedro de Alenquer. É um símbolo da intransigência; de tudo o que o mundo não precisa, mas teima em preservar com extremas direitas espalhadas por aí; é um símbolo da injustiça, o chicote que subverte a ordem natural das coisas; é o rosto que faz de Geba um espaço onde a vida evapora num ápice conforme a vontade da força, do poder e da arrogância. Como diria V. V. Chklovski, Augusto e Alice servem para o escritor instigar a revolta dos objectos, dando-os humanidade e racionalidade.

Não obstante os universos paralelos entre a ficção de Miguel César e a realidade, o seu romance transparece a situação de um contexto no qual a razão é ofuscada por aqueles que se julgam dignos de explorar, magoar ou condenar os outros à miséria. Em Geba quase não há meio-termo: ou ferre-se o próximo ou deixa-se levar pela dor causada pela compaixão. Tudo é uma escolha e quanto mais sensata é a escolha menor é a possibilidade de sobrevivência. Logo, o espaço crítico do enredo corrompe as personagens de modo a tornarem-se capatazes ou subservientes. Nisso há um pouco de “Os índios da meia-praia”, quando Zeca Afonso conclui cantando naquele tom único: “Dizem que o mundo só anda tendo à frente um capaz”.

À semelhança do momento histórico em que vivemos, em Geba a injustiça é para a maioria e a esperança para muito poucos. Portanto, a justiça é apenas um lapso fugaz, que nunca abala o vilão da história por este encontrar-se, como se tem dito, “alinhado” ao um regime político. Veja-se a seguinte passagem:

– Recebi uma carta de um amigo que vive em Nampula. Jornalista de profissão. Regozijo-me com o que nela vem escrito. O representante do governador depois de ter ouvido vários homens de negócios influentes, desta região, incluindo o Doutor Sequeira decidiu e passo a ler porque esta é a melhor parte «exonerar do cargo Pedro de Alenquer e substitui-lo de imediato por um administrador interino até nova nomeação» (p. 204).

A novidade é contada por Gustavo, um amigo de Augusto e Alice. Todos gostam da surpresa, entretanto, depois se desiludem ao perceber que, ao invés de um castigo pelos crimes cometidos contra a população local, Pedro de Alenquer é transferido para São Tomé e Príncipe, para assumir as mesmas funções desempenhadas em Moçambique. Atitudes como essas e personagens como o administrador de Geba degeneram o espaço da narrativa, no qual a esperança é principalmente reservada aos protagonistas.

Nesta aventura pela escrita de Miguel César não se observa, portanto, uma história extraordinária ou uma técnica de escrita fenomenal. O que se revela, e isso é importante, é esse cuidado no retrato das questões sobre as quais o Homem sempre descobre motivos para dividir o que deveria estar socialmente unido. Apesar de se fixar nos meados do século XX, principalmente em Geba, onde o Tâmega desaguou no Índico, no romance cristalizam-se problemas colectivos de um mundo moderno, mas com desvarios injustificáveis ainda intransponíveis. Há-de ser essa uma das razões de Milan Kundera julgar o infinito da alma, se é que isso existe, um apêndice quase inútil do Homem, pois, até hoje, continuamos a investir em motivos para oprimir, separar e matar.

Enfim, ao lermos Miguel César, de facto, lembramo-nos de que “somos todos viajantes do tempo e encontramo-nos sempre entre o passado e o futuro” (p. 20), conforme assegura o narrador da história.

Título: Geba, onde o Tâmega desaguou no Índico

Autor: Miguel César

Editora: Fundação Fernando Leite Couto

Classificação: 13

Foi-me incumbida a missão de fazer um depoimento em homenagem a Luís Bernardo Honwana (LBH), figura renomada e importante da história social e cultural de Moçambique.

Renomada pela mensagem que a sua obra deixa para gerações de tempos diferentes e pelo seu papel de escritor no que concerne à veiculação das suas ideias, consentâneas com as de uma maioria na sociedade, difundindo a causa da dignidade humana. Além disso, as publicações do seu primeiro livro destacam-no como dos precursores da moçambicanidade literária. A sua obra é um marco histórico, social e literário.

O presente jornal, no seu suplemento especial de 14 de Novembro de 2022, em comemoração dos 80 anos do autor, brindou-nos com uma rica matéria sobre este autor. Há também informação disseminada a partir dos arquivos da PIDE (que prendeu LBH em 1964) disponíveis na Torre do Tombo, em Portugal, aos quais não tive acesso. Decidi, por isso, não me centrar, estritamente, na sua biografia, nem nos feitos do autor, mas reler a sua obra Nós Matámos o Cão-Tinhoso, à luz do que ela pode iluminar na sociedade actual. Nessa perspectiva ainda há muito o que abordar.

Como todos sabemos, os símbolos sempre oferecem muitas leituras e estas vão-se tornado dinâmicas ao longo do tempo. Será interpretando esse livro, escrito pelo autor aos 22 anos, que demonstrarei o seu legado. Na verdade, irei homenageá-lo, a partir do que aprendi a fazer profissionalmente, que é também a forma como tive contacto com ele, a Escola, o saber, a ciência. Vim, na verdade, dizer obrigada pelos seus ensinamentos e pelo seu legado.

Sendo relativamente antigo (publicado em 1964), o livro Nós Matámos o Cão-Tinhoso (NMCT) continuava actual, pela sua mensagem e pelo que ainda pode oferecer para uma sociedade mais humanizada e mais humanizante; daí desejar interpretá-la em função dos “Sete saberes para o futuro”, preconizados por Edgar Morin (2002), porque, de facto, a obra ainda nos permite fazer leituras que podem ser um legado para as gerações actuais e vindouras.

Luís Bernardo Honwana é, através do seu livro Nós Matámos o Cão-Tinhoso, cânone literário no ensino secundário moçambicano, desde os anos 80. Abro um parêntesis, para recordar que o currículo escolar nacional, centrado em valores moçambicanos pós-independência, foi introduzido em 1983. Quer isso dizer que desde essa altura o trabalho de LBH é reconhecido no nosso país; embora, em tempos idos, Rodrigues Júnior – escritor e crítico, na época em que a obra foi publicada – tenha tentado minimizar o livro, afirmando que o seu autor, ainda que culto e inteligente, não tinha escrito uma grande obra.

LBH foi também publicado no Brasil pela editora Ática e muito recentemente pela Kapulana, cuja edição acrescentou o conto “Rosita, até morrer”. Por esta última editora, o livro foi publicado em celebração da “consciência negra”, pois a obra presta esse feito. LBH é cânone literário no Brasil.

O meu primeiro contacto com a obra do escritor foi a partir da escola. Nessa altura, este e outros autores eram ensinados a partir de excertos. Além disso, o texto literário era abordado a partir de uma perspectiva estruturalista, que preconiza a análise da gramática e das categorias da narrativa: tempo, acção, personagens, entre outros. Não havia, como há nos dias que correm e disso sou apologista, a análise literária que vai buscar subsídios à interdisciplinaridade, como por exemplo à leitura literária com vieses antropológicos, históricos ou filosóficos. Isso fez com que muitas das nossas interpretações sobre o sentido da obra fossem limitadas.

Por termos pouco conhecimento e porque os anos de submissão das nossas culturas à cultura portuguesa ainda se faziam sentir fortemente, lembro-me de colegas meus afirmarem que no conto “As mãos dos pretos”, por exemplo, que era dos mais ensinados na escola, o autor corroborava a ideia de superioridade racial e por isso é que destacava a supremacia dos brancos sobre os pretos. Poucos líamos a obra como uma crítica social a esse status quo. É uma obra que aborda uma opressão e um sistema, que consideramos em vias de ser suprimido. Lendo-a ao pormenor, podem ser encontrados símbolos que constituem focos de esperança para um renascimento ou para um diálogo intercultural.

É pela raridade ou ausência dessa possibilidade de analisar os diferentes sentidos que ela tem, algo que a escola ainda se nega a fazer (há estudos que o comprovam), que me parece pertinente destacar a mensagem que ainda se pode colher de NMCT. E socorro-me, tal como afirmei, dos saberes para a educação do futuro para a ler e destacar o que se pode assumir ser o legado de LBH, nomeadamente: as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; os princípios de um conhecimento pertinente; afrontar as incertezas; ensinar a condição humana; ensinar a compreensão; ensinar a identidade terrena e, por fim, mas não menos necessário, a ética do género humano.

 

As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão

 Nos contos “As mãos dos pretos” e “Dina” estão representados diferentes tipos de ilusão e de erros que facilmente podem ser cometidos numa sociedade: o da superioridade cultural e racial, e da superioridade a partir de um estatuto. Tudo isso não passa de ilusões e LBH sugere a compreensão disso.

Em “As mãos dos pretos” todos os personagens intervenientes da história têm ideias que podemos designar de subversivas sobre a humanidade: as mãos dos pretos são mais claras que o resto do corpo ou porque são escravos e andavam com as mãos no chão como bichos do mato para não sujarem a comida dos seus patrões; ou porque Deus decidiu fazer pretos pintando-os com o fumo de uma chaminé; ou porque foram feitos de madrugada e só molharam as plantas das mãos e dos pés num lago de água fria, deixando o resto do corpo; ou porque viviam encurvados a apanhar algodão na Virgínia (EUA), etc. (cfr. pp 119-122, NMCT).

O grupo de personagens que faz essas afirmações inclui: o senhor Professor; o senhor Padre; a Dona Dolores; o senhor Antunes; o senhor Frias; a mãe da criança narradora. Exceptuando esta última mulher, todos os personagens convergem na ideia “determinista” de que os pretos são a raça criada por Deus para servir ou sofrer. É uma das mulheres do grupo, a mãe do narrador do texto, que enaltece a diferença entre os seres humanos. Ela demonstra que os homens têm a cor da pele diferente uma da outra, porque sim; porque tinha de ser assim. Ou seja, para mostrar a igualdade entre os homens.

À luz do que hoje é importante ensinar à sociedade pode-se dizer que não há relevância em se estabelecer supremacia de umas raças sobre outras. E há uma lição que fica: LBH coloca a sabedoria na boca de uma mulher, o que tem muito para nos ensinar e dizer. Tem havido movimento e lutas para se devolver à mulher o seu lugar de paridade humana ao lado do homem.

No conto “Dina”, continua o foco na mulher; desta feita, alertando para a ilusão e o erro do uso da força para a subjugar. Um capataz, representante do colono, no lugar de exercer a sua actividade de controlo de trabalhadores numa machamba, usa da sua força e do seu poder, violando uma mulher, aos olhos do seu pai. Este é um alerta à sociedade sobre um problema que ainda existe e que se deve ensinar a combater: a ilusão de haver vantagens em nascer homem e desvantagens em nascer mulher. Esta questão transcende o contexto opressivo da sociedade colonial a que o conto reporta e alcança latitudes e espaços hodiernos. Tanto ontem como hoje, imperativamente emerge a questão: haverá alguma culpa que as mulheres carregam? Está lançada neste conto a ideia da importância de se estudar o outro, conceito hoje caro e premente nas ciências sociais.

Para encerrar este tema, o legado que nos fica de LBH é o de que os homens são todos iguais, não interessa a sua cor de pele, nem o seu estatuto ou poder físico. As diferenças entre as pessoas, como ensina Confúcio, têm a ver com os hábitos que têm – e eu acrescentaria com as possibilidades adquiridas nos contextos em que vivem. Obrigada, LBH.

 

Os princípios de um conhecimento pertinente

Hoje, as ciências sociais ensinam a “pensar globalmente e agir localmente”. Isto diz-nos muito se lermos o conto “Nhinguitimo”. Dois sinais permitem verificar a importância de ensinar ou abordar o conhecimento pertinente sobre os acontecimentos locais: rolas e ventos.

As rolas são representadas como aves práticas e vigilantes, entre as várias outras mencionadas no texto: andorinhas, abutres, sécuas usam o seu engenho para se alimentarem de bagos de milho. E fazem-no seguindo o trajecto dos lavradores das machambas. Sabem como e onde ir buscar comida. São estratégias aprendidas a partir de uma observação atenta para a sobrevivência. É um conhecimento de não humanos, mas pertinente de se aprender enquanto humanos que somos.

Por outro lado, as rolas anunciam a chegada dos ventos fortes e dos perigos do nhinguitimo. Além disso, há no texto a revelação de uma distribuição de terras entre colonos e nativos, sem o conhecimento dos efeitos dos ventos sobre as plantações. O Sr. Rodrigues, patrão, tinha uma plantação menos produtiva que a do seu empregado, o Vírgula Oito, um analfabeto. Esse patrão, ao descobrir a prosperidade do seu empregado, usa o seu poder, não o conhecimento, para adquirir a colheita da plantação do seu empregado.

O que é que isso nos diz hoje? Que é preciso, primeiro, saber ler os sinais. As rolas anunciam a época das colheitas e a chegada dos ventos do nhinguitimo, ventos fortes. São um sinal de que, a par do conhecimento dos serviços meteorológicos, podem ajudar em estratégias sobre novas formas de agir; ou seja, o conhecimento local não tem de ser desvalorizado em detrimento do conhecimento de quem tem melhor conhecimento ou força. Quem tinha a melhor terra era o empregado analfabeto, Vírgula Oito, que sabia observar fenómenos naturais, a partir da sabedoria e da repetição de eventos naturais. Observar a repetição de eventos é algo mencionado no texto, que as rolas faziam. Além de tudo, é criticado o uso da força para intrujar o outro e disso colher dividendos.

O legado que LBH nos deixa é saber ler os sinais da natureza (as rolas e o seu trajecto, por exemplo), i.e., resultado da observação repetida do mesmo evento; mais o conhecimento, por parte do Vírgula Oito, sobre o melhor lugar para plantar, percebendo localmente os fenómenos naturais. Pelo conhecimento sobre as terras, tinha a melhor parte para se fazer uma plantação. Era indígena. Ou seja, o conhecimento local deve ser valorizado. É um conhecimento pertinente, a par do conhecimento universal ou científico. Nenhum deve sobrepor-se ao outro. Ontem como hoje transcendendo lugares e tempos, esta lição perdura e permanece como um desafio para todos nós! Obrigada, LHB.

 

 Afrontar as incertezas

Nesse conto “Nhinguitimo”, os ventos são uma metáfora sobre a incerteza. É preciso fixar a época certa para se lançar a semente à terra, a partir da observação atmosférica. Quem não conhece a época das tempestades, incorre no desperdício das suas plantações. É importante viver em estado de alerta. Ainda assim, para o que pudemos constatar nos últimos anos, o facto de se conhecer um fenómeno como a “peste negra”, não implicou saber lidar com o coronavírus, quando este se apoderou da humanidade. Ou seja, os ventos podem sempre trazer surpresas. A vida é uma constante incerteza. Com isto fica a ideia de que, se não vivermos atentos ou se não melhorarmos o conhecimento que temos sobre as coisas, os que aparentemente têm poder apoderam-se dos nossos bens, das nossas terras, no caso do conto em alusão. Obrigada, LBH.

 

Ensinar a condição humana

Edgar Morin destaca a importância que existe de se estabelecer o significado do que é “ser humano”, de se ensinar a complexidade das identidades dos seres humanos. Para ele, “a condição humana deveria ser um objecto essencial de todo o ensino (NMCT, pág. 17).

Se nos ativermos ao anteriormente dito neste texto, tudo leva a crer que a grande sugestão do autor de NMCT é relativa ao cuidado que deveríamos ter com o outro, com os seres humanos e não o temos. Não temos consciência da unidade da essência humana e da diversidade dos seus saberes e das suas formas de estar na vida; daí as classificações que fazemos ou que estabelecemos. Nos dias que correm, na nossa sociedade, por exemplo, está quase que instaurada a ideia de que “se alguém não está connosco, está contra nós”. Não sabemos lidar com as diferenças. Obrigada, LBH, por deixar sinais, na sua obra, sobre a necessidade de nos revermos como humanidade!

 

Ensinar a compreensão

Se prestarmos atenção ao conto Nós Matámos o Cão-Tinhoso, entre os mais estudados na obra de LBH, constatamos que aos homens ainda é necessário ensinar a compreensão de uns sobre os outros, ensinar a importância da compaixão e da empatia pelo outro.

Nesse conto, há um menino pobre a quem não é permitido jogar, porque já se sabia de antemão que não teria condições para jogar a dinheiro. É preto e pobre, é estigmatizado. Por isso, foi colocado de parte e só entraria se os que estivessem a jogar estivessem a perder. Há também um momento de um outro jogo que é referido e que, vendo que o administrador perdia, o menino se ri; nisto, o perdedor cospe entre o cão-tinhoso e o menino. O conto traz a representação de que tanto o cão quanto o menino significam a mesma coisa e esse é um problema ainda existente na humanidade. Ainda não aprendemos a lidar com as diferenças de estatutos sociais. Estigmatizamos, oprimimos, desrespeitamos. Vivemos equivocados, presos em estereótipos. Esta questão não é apenas na dimensão de sistemas sociais, já de antemão estigmatizadores e opressores, entra também na dimensão das relações interpessoais. (NMCT, pp. 21-22).

Ora, este tem sido um grande cavalo de batalha no ensino do que é ser-se humanos, no ensino do que deve ser a igualdade entre os homens, independentemente do seu estatuto social ou económico; ou ainda no ensino dos processos comunicativos entre as pessoas. Lendo sobre isso, na obra de LBH, fica clara a referência para a importância de se ensinar a compreensão do respeito e do cuidado entre os seres humanos. E sobre estereótipos, há que se procurar certezas e não os tomar sempre como certos. Obrigada, LBH por este legado ainda por vir.

 

Ensinar a identidade terrena

Ao se referir à identidade terrena, Morin lembra-nos do que, na minha óptica, pode ser analisado a partir dos poemas “É preciso agir”, de Bertold Brecht (1898-1956) e “No caminho, com Maiakóvsky”, de Eduardo Alves da Costa (1960), que referem que os problemas de uns são os problemas de todos; ou seja, um problema de um país pode atingir repercussões graves e passar a ser um problema mundial, i.e., os efeitos do colonialismo não se fazem sentir apenas nas colónias. A “Revolução dos cravos” resulta de os efeitos do colonialismo não se terem feito sentir só nas colónias. Era, também, um problema para as pessoas no país colonizador.

Obrigada, LBH, por nos recordar que enquanto houver seres humanos sofrendo no mundo, não existe humanidade e que ela se constrói de pedaços de lugares e de gente inteira. Não podemos ficar sem acção perante os problemas do outro.

 

A ética do género humano

 As democracias ensinam-nos ou deveriam ensinar-nos o exercício da cidadania. De tal sorte que defender um indivíduo deveria ser defender a espécie humana. É importante formar consciências que defendendo cada pátria, defendam a cidadania terrena e, por fim, o género humano. É preciso interpelar os Estados para que cuidem dos seus cidadãos, educando e responsabilizando-se pelo bem comum e sobre si próprios.

É importante ainda que cada um de nós, cidadãos, artistas e escritores trabalhemos em nome do que podemos aprender nas relações humanas. E esta é a grande sugestão de toda a obra Nós Matámos o Cão-Tinhoso.

Obrigada, LBH por nos ensinar, tal como John Donne, que “a morte de cada homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade”.

Enquanto autor e enquanto cidadão, LBH tem-se preocupado com a valorização das culturas moçambicanas. Não sendo um exclusivo seu a necessidade desse resgate de valores tradicionais africanos, ouvi-lo de um assimilado abre caminhos para a compreensão de que a busca desenfreada de outras civilizações deverá ser conjugada com a procura de nós próprios.

Obrigada, LHB por nos mostrar que uma atitude equilibrada entre o que é nosso e o que é dos outros, pode ensinar-nos o princípio da interculturalidade, da reciprocidade ou da equivalência entre valores culturais diferentes, princípio no qual a convivência cultural é pacífica e sem supremacia de uns sobre os outros. É disso que a humanidade carece.

Neste ponto, tomo emprestado os dizeres de Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor da sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.” Obrigada, LBH por nos sugerir que uma sociedade na qual as pessoas amem o seu próximo pode ser uma sociedade melhor. É essa a educação na qual teremos de trabalhar hoje, para deixar um futuro alicerçado em valores humanos.

 

Referências

Edgar Morin. Os Sete Saberes para a Educação do Futuro. Lisboa: Instituto Piaget. 2002.

Luís Bernardo Honwana. Nós Matámos o Cão-Tinhoso. Lisboa: Edições Cotovia. 2008.

Sara Jona Laisse, ensaísta. Docente na Universidade Católica de Moçambique.

Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

 

 

Estou a ler um excelente livro de José Paulo da Fonseca Pinto Lobo. Mistura vários géneros, desde crónicas, reflexões, notas biográficas até mesmo análise política. É uma interessante viagem aos primeiros anos da independência, um convite aos bastidores de gente que serviu este país longe dos holofotes com a sua entrega à causa da construção duma nação.

Um dia esta história terá de ser contada com todo o pormenor para que o exemplo desses heróis não celebrados sirva de referência para os mais novos. São os símbolos duma geração que se entregou ao serviço público tendo como orientação a integridade, o brio profissional e, naturalmente, uma entrega genuína a um projecto político (por mais que a gente não concorde com ele). É a geração de técnicos antes da famosa geração 8 de Março, gente que construiu o Estado com a sua abnegação.

Recomendo o livro sobretudo aos mais novos para terem uma ideia do que já foi possível em Moçambique. A distância que separa a Frelimo de então – com todas as reservas em relação ao projecto político – e a de hoje são gritantes. Queria rir quando li esse post dum jovem que declara ter medo da Frelimo por causa daquilo que a vê fazer. Mas não consegui. Como estou a ler este livro aqui apenas senti um aperto no coração. O membro da Frelimo que não sente o mesmo ao ler isso não deve ter jamais compreendido o sentido da sua militância.

Na página 60, José Paulo da Fonseca Pinto Lobo cita um psicólogo austro-húngaro, Viktor Frankl, fundador da logoterapia, que insistia muito na necessidade de encarar a vida como uma afirmação: “A vida significa, em última instância, assumir a responsabilidade de encontrar a resposta adequada aos seus problemas e ultrapassar os desafios que constantemente apresenta a cada indivíduo. Esses desafios e, portanto, o sentido da vida, variam de pessoa para pessoa e de momento para momento”. José Paulo Pinto Lobo inspira-se nessas linhas para escrever: “Penso então que é o dever dos educadores dar as ferramentas necessárias para que as crianças possam fazer escolhas, assumir responsabilidades e encontrar as suas respostas e o direito destas de errarem para que possam construir o seu próprio caminho”. E remata: “Temos de dar asas para voar e raízes para onde voltar”.

Se alguém ainda precisava duma boa definição do que significa governar hoje em dia, sobretudo em Moçambique, aí está ela. Numa altura em que quem governa – ou dele está próximo – pensa que governar é simplesmente exercer o poder sobre as pessoas, o que sobressai nesta definição é a ideia da atrofia e asfixia de quem é governado. Ao contrário do que algumas pessoas pensam, sobretudo as que morrem de amores por regimes autoritários, a democracia não é um simples conjunto de procedimentos (eleições, constituição “democrática”, “separação” de poderes, etc.). Democracia é um processo, isto é um trabalho constante na criação de condições para que se voe e se saiba onde voltar.

A nossa dificuldade em apreciar isto vem da nossa incapacidade de nos livrarmos do espírito autoritário que se apossou de nós durante a história. A essência do autoritarismo está na ideia segundo a qual um país se definiria com base numa única vontade. A luta pela independência nutriu essa convicção, principalmente com a necessidade de dar coerência à ideia duma luta “nacional”. Foi lá onde se enraizou a convicção de que tudo o que não corresponde a esta vontade única constitui uma ameaça a ser eliminada. Foi esta convicção que, mais do que o Apartheid, Bandidos Armados e o Imperialismo ocidental, inviabilizou o projecto “revolucionário”, pois fomentou a intolerância ao mesmo que nutriu a ideia duma verdade acima de tudo.

O autoritarismo é por definição hostil ao pluralismo. Quando um partido absolutamente dominante vislumbra o perigo dum “golpe de estado” apenas porque há manifestações de insatisfação com a sua governação o que isso documenta é justamente a hostilidade ao pluralismo que se traduz no medo de se perder o poder a favor de gente que não representa a vontade única porque essa é prerrogativa de apenas um partido. A ideia de que Moçambique, interpretando livremente a citação de Viktor Frankl, possa ser a manifestação da variação individual do sentido da vida, apresenta-se como um perigo à prerrogativa de poder, razão pela qual a repressão constitui a única forma de fazer política.

Não cabe, na mente autoritária, a ideia de que o descontentamento popular possa ser genuíno e que, por isso, não basta procurar inimigos invisíveis, infiltrados ou golpistas. A resposta tem que ser política e deve consistir em saber porque há descontentamento e que condições devem ser criadas para que ele não se transforme em radicalização. Cabo Delgado acena silenciosamente. Não cabe, na mente autoritária, a ideia de que onde aparentemente as ideias se esgotaram seja legítimo que se ensaiem outras. Portanto, aproveitamento político é algo positivo, pois indica a possibilidade de se ensaiarem outras ideias já que o pluralismo é a essência duma ordem política democrática.

Tudo isto é difícil de entender porque as referências da nossa elite política são autoritárias. O que os EUA de Trump, a Turquia de Erdogan, o Brasil de Bolsonaro, a Rússia de Putin, a Índia de Mody, a Hungria de Órban, etc., etc. têm em comum é justamente a ideia da vontade única e hostilidade ao pluralismo. É assim, também, como a nossa elite política pensa, razão pela qual ela se sente mais à vontade na companhia deste tipo de regimes. O autoritarismo é o caminho certo para o totalitarismo (a China de Xi Jinping), algo que acontece já no interior do partido no poder onde todos estão sujeitos ao controlo total dessa vontade única representada pelo chefe infalível. 100% de votos para o líder e mesmo assim há infiltrados que querem destruir o partido…

Vai ser difícil termos asas para voar e raízes para onde voltar quando temos uma elite que não vê o mérito de criar condições para que os moçambicanos façam escolhas, assumam responsabilidades, encontrem as suas respostas e, acima de tudo, usufruam do direito de errarem para que possam construir o seu próprio caminho. Estava a parafrasear José Paulo Pinto Lobo.

Uma elite política com espírito autoritário esgrime a democracia contra o seu próprio povo fazendo exactamente a mesma coisa ao seu povo que o inimigo externo, o “Ocidente”, faz contra o resto do mundo. Um dos nossos maiores problemas em Moçambique é a nossa elite política.

 

O Poeta Luís Carlos Patraquim nasceu, em Maputo, a 26 de Março de 1953. Cresceu na periferia da cidade. O pai – a família era oriunda de Lagos, no Algarve, em Portugal – foi funcionário dos Caminhos de Ferro e trabalharia, como mecânico de aviões, na DETA, que era a Divisão de Exploração dos Transportes Aéreos dos CFM: “E o teu silêncio, o teu silêncio, onde / Florescem, sangrentas, as acácias da Rua de Lidemburgo / E Lagos estremece em azul e punge” – escreverá numa pungente evocação ao pai: “Pela tarde onde caminho, / E a pedra se inscreve no sol que neva”. A mãe era uma leitora omnívora. Dos franceses Balzac ou Victor Hugo, passando pelo russo Fiódor Dostoiévski, aos portugueses Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco ou Antero de Quental serão os autores mais frequentados.  Aos seis anos já lia. A escrita, a inquietude e a rebeldia tomam-no muito novo. Escreve sonetos à Antero e à Camões. Com 16 anos colaborava numa página juvenil no “Notícias”. No liceu integrou um grupo que tentou fazer um jornal – “Progresso”. Do malogro desse projecto até à “Voz de Moçambique” é um salto. Ali estavam alguns dos intelectuais considerados progressistas naquele tempo. Contacta com Eugénio Lisboa, Rui Knopfli, Homero Branco. O contacto com José Craveirinha é decisivo. Começa a conhecer outros nomes importantes. Um deles, Fonseca Amaral, que, na época, estava em Portugal.

O afã do jornalismo, que lhe surge precocemente, será também a expressão da sua “liberdade livre” (como queria Rimbaud), que não se isenta da sua intuição poética. Reconhecerá, anos mais tarde, influências indesmentíveis de José Craveirinha e Rui Knopfli nas suas primícias literárias: a realidade e a arte da palavra. Aliás, a sua poesia, não muito tempo depois, será uma simbiose poética, uma espécie de osmose. Fonseca Amaral é outra referência importante. A língua portuguesa, sabe-se, tem uma importante tradição poética. Patraquim beberá sobretudo de Herberto Helder e António Ramos Rosa (ambos portugueses). Carlos Drummond de Andrade será também essencial. Uma referência irrefutável.

O exercício de rebeldia levou-o a um exílio voluntário na Suécia em 1973. A ideia era integrar a frente libertária. Contacta o movimento, escreve uma carta solicitando adesão à FRELIMO. Entretanto chega o 25 de Abril e em finais de Janeiro de 1975 retorna a Moçambique. Integra “A Tribuna”, então dirigida por Rui Knopfli. São companheiros de redacção: Mia Couto, Julius Kazembe e Ricardo Santos. Com Mia e Kazembe experimentam a crónica literária, a crónica sobre o quotidiano. Integra, depois, o núcleo fundador da AIM (Agência de Informação de Moçambique). Mais tarde, desembarca no Instituto Nacional do Cinema e participa da aventura lírica do “Kuxa Kanema”. Torna-se roteirista. Vivia-se o alvoroço da construção do “homem novo”. O cinema que se intenta no arroubo dos heróis ilustra a época. As contradições são visíveis. Mesmo as que se omitem. O Poeta experencia um tempo aziago.

Quando, em 1980, publica Monção”, na mítica colecção Autores Moçambicanos, do INLD (Instituto Nacional do Livro e Disco), Luís Carlos Patraquim afirma-se, indubitavelmente, como uma poderosa novíssima voz da poesia moçambicana. A literatura era então dominada por uma perspectiva acirradamente ideológica. Havia, na nossa poesia, um dominante tom exaltadamente engajado ou comprometido – a chamada poesia de combate. O livro e a poesia de Luís Carlos Patraquim são um escancarado momento de disrupção. Fonseca Amaral e Machado da Graça estão no INLD. Para quem sabe das circunstâncias que então vivíamos poderá até estranhar a inclusão desta obra e a sua publicação. Ela serviria, afinal, para demonstrar que o regime era democrático, que aceitava publicar livros que não coincidiam com a retórica dominante. Nada que impedisse que os prosélitos da revolução o atacassem ferozmente. Viam naquela proposta uma poesia que não ia ao encontro do povo. Acusaram-no de hermético, questionaram para quem escrevia, como escrevia e por que escrevia.

 Em Março de 2020, Luís Carlos Patraquim publicou uma antologia intitulada “Morada Nómada”, que reúne a maior parte da sua obra poética deste o seu livro primeiro. O volume, organizado por Zetho Gonçalves, inclui livros editados entre 1980 e 2020 e um volume inédito “Kilimanjaro”. Da sua vasta lavra poética avultam: Monção” (1980), “A Inadiável Viagem(1985), “Vinte e tal Novas Formulações e uma Elegia Carnívora” (1992), “Mariscando Luas (com Ana Mafalda Leite e Roberto Chichorro, 1992) “Lidemburgo Blues” (1997), “O Osso Côncavo e outros poemas (2005), “Pneuma (2008), “Matéria Concentrada (Antologia poética, 2011), “O Escuro Anterior (2013), “O Cão na Margem (2017), “Música Extensa (2017), “O Deus Restante (2017). Para além disso, é autor da novela “A Canção de Zefania Sforza (2010). Publicou, outrossim, as seguintes colectâneas de crónicas: “Enganações de Boca (2011), “Ímpia Scripta” (2011), “Manual para Incendiários” (2012) e “O Senhor Freud nunca veio a África” (2017). Escreveu “Mestiçagens do Olhar” (2007) sobre a pintura de Chichorro. No domínio do infanto-juvenil: “O Gala-Gala Cantor” (2014) e “O Coelho que Falava Latim” (2014).  Estas são as efemérides literárias de Luís Carlos Patraquim, que é também dramaturgo, guionista de cinema e jornalista.

A sua poesia é eclética e escora-se no conhecimento e na exegese da tradição poética que lhe é anterior, num diálogo com os poetas que lhe antecedem e com aqueles que ele elegeu como seus precursores. É, sem dúvida, uma poesia que se articula numa arrojada investida palimpséstica. Palimpsesto significa texto que existe sob outro texto. A escrita funda-se e refunda-se neste consecutivo exercício. A escrita de Luís Carlos Patraquim é inequivocamente palimpséstica. Há sempre um texto subjacente. O texto que ele sugere dialoga sempre com um que lhe é anterior.

Patraquim é um poeta de conhecimento, um poeta glosador de poetas, um poeta leitor de poemas. Um poeta de uma proeminente erudição. O seu léxico poético é depurado. Para muitos um poeta hermético, críptico, ininteligível, impenetrável. Quando se consegue adentrar no seu universo, porém, somos capazes de experimentar o assombro da técnica, da imagética nela emprestada, da beleza inesperada das suas metáforas. A poesia é sobretudo isso: a imagem, a alegoria, o tropo.

Luís Carlos Patraquim é um poeta que reflecte sobre o ofício e tem poemas que são a incessante busca e compreensão do idioma, da linguagem, da expressão, do código ou do sistema poético. Para além disso, a interlocução com os outros poetas, o que acontece nas epígrafes, nas citações, nas alusões ou nas dedicatórias, é também uma espécie de estabelecimento de dicção própria, de uma gramática própria, de uma voz própria.

Não caberia aqui falar de toda a sua vastíssima obra. Entre os seus livros, concita-me “A Inadiável Viagem,” que ele publica em 1985 – justamente quando o conheci e tive a láurea da sua amizade –  e que retoma os traços distintivos de uma linguagem poética instituída no livro precedente (“Monção”), e anuncia, por assim dizer, aquela que virá nas “Vinte e tal Novas Formulações de uma Elegia Carnívora”, a obra com que culmina a trilogia iniciática. Creio, aliás, situar-se, aqui, precisamente, a importância capital desta obra estelar, e residir aí, justamente, a minha predilecção por ela.

 Herberto Hélder, José Craveirinha, Carlos Drummond de Andrade, Paul Éluard, Fernando Pessoa (Ricardo Reis), Jorge de Sena, Jorge Guillén, Henri Michaux, Pablo Neruda acompanham-no nesse exercício palimpséstico. Para além dos textos citados destes autores, encontramos aqui um diálogo abundante e inteligível com poetas como Heliodoro Baptista, Rui Nogar, Sebastião Alba, Noémia de Sousa. Diria que em “A Inadiável Viagem” se amplia, sem logro, este exercício iniciado em “Monção e que prosseguirá nas subsequentes formulações poéticas.

Escreve Luís Carlos Patraquim no poema “Elegia de Sábado”: “em coro te exigimos o sábado/ nós que ferimos o pensamento da carne/ e a quem deslumbra o hierático inútil pranto/ dos mortos habitantes de nós/ repetida barra fixa até à lâmpada do desejo/ e somos o cansaço desta espera nos jornais de domingo/ ilegíveis ainda de alguma letra/ de nós o fôlego  obstinado da rua/ para que a descoberta da língua amanhã senhor/ nasça da fornicação do sábado”.

Aqui se pode intuir a desafeição em relação a uma realidade social dissemelhante do “tempo do canto / conquistado a sangue” exaltado, indiscutivelmente, na obra inaugural. Pouco depois de publicar este livro (“A Inadiável Viagem) escreveu dois poemas violentíssimos sobre o tempo que nele, de alguma forma, anunciara: um deles, sem título, sobre os mutilados de guerra e outro – a duríssima “Elegia Carnívora”. Os textos em causa iriam integrar o livro subsecutivo.

Patraquim: “e somos o cansaço desta espera nos jornais de domingo”. Aqui está a chave e a expressão inequívoca do desalento, do cansaço, da astenia. Este verso denuncia um poeta distante daquele que, num poema em homenagem a Craveirinha, a dado passo, escrevera: “chama-se Junho desde um dia de há muito com meia dúzia / de satanhocos moçambicanos todos poetas gizando/ a natureza e o chão no parnaso das balas”. Alusão não só à “primavera de balas” (Craveirinha), mas uma manifesta sagração do tempo que então vivíamos.

Se em “Monção encontramos o lirismo amoroso, encontramos textos que aludem a um diálogo intertextual com outros poetas, numa linguagem que se distancia da voz colectiva e colectivizadora, sem, no entanto, se exonerar de apostrofar a realidade social – Patraquim é um poeta que assume uma intervenção social –, em “A Inadiável Viagem, temos isso e muito mais: temos o amor, o corpo celebrado da mulher (“a dicção do teu corpo”); temos a evocação da infância (que encontramos em Fonseca Amaral ou Noémia de Sousa – eis um dos eixos temáticos da poesia moçambicana: “Rua de Lidemburgo”: “da infância refaço esta clave nua/ a fisga de a sorver tão perto/ as goiabas rubras trazidas ao riso/ deste fermento que ora traduzo/ porque espero e no chão incorruptível/ a ternura dos dedos entreteçam o sono/ à sombra de um sinal que apeteça/ e outra vez na falésia da noite/ a metamorfose da água permaneça”); temos, sobretudo, uma realidade disfórica, o manifesto ocaso da revolução, o desalento ineludível. E nisso o título e o livro assumem uma biografia poética e uma trajectória pessoal irrefutável. Luís Carlos Patraquim partiria para Portugal no ano a seguir à publicação deste livro, onde vive ainda hoje.

Luís Carlos Patraquim: “À uma hora da madrugada somos deus/ aos látegos sobre os perfis das casas/ das frontes latejando voos de extenuados/ pássaros e batemos no poema. Abram/ Já não morremos nas mãos brincando/ do menino com dois anos de idade. / Assassinou-se, para não ser homem nem deus,/ nem perguntas de voos augurando/ metafísicas inúteis na ascensão de domingo/ à uma hora da madrugada.

Este poema é de uma grande violência lexical e imagética, um dos mais ásperos de toda a literatura moçambicana. Um poema que exprime, com contundência, os anos 80 e a derrocada do sonho moçambicano, assassinado como o menino de dois anos, num dos textos mais pungentes, lancinantes e comoventes da poesia moçambicana no século XX:

“Batemos. Abram os estádios magníficos/ de todos os orifícios. Cuspam-nos/ o fogo que mata.  Abram! / À uma hora da madrugada, meu deus. / Tão poucos a Sul, limpos e longe/ do país dos hiperbóreos. Tão já sem nada/ e um largo coração de ideias/ apodrecendo nas virilhas cortadas. / Ao perdido arfar de nós que nos perdemos, / matrissuicidas de deus na lixeira/ com mabandidos vídeos estilizando-nos/ em eléctricas úlceras de arco-íris, / nós voltamos. Dêem-nos os pulmões candongados/ em Tsalala, os polanulantes espantos/ depois das praças em comícios/ de núpcias sobre a gengiva dos dias”.

 É como se escrevesse nesta “Elegia Carnívora”, poema de uma mordacidade inaudita, o epitáfio de uma época, na qual a morte de Samora Machel, em 1986, tem um significado mais do que simbólico: o abismo por onde resvalaram todos os sonhos. A desesperança evidente, o desconsolo que vaticina a viagem. Uma espécie de presságio, pressentimento, profecia.

Corrobora nisso, nesse mau agoiro, o poema sobre os mutilados de guerra: “Sentam-se sob as acácias no asfalto roto/ os mutilados com cigarros de embalar. / Nenhum som os recorta/ e todos os sentidos foram amputados. / Nem para a tarde crescem frustrados. / Esperam. Que inconclusa forma/ os limita em fórmula de serração? / Que ameaça os delira? / Nenhuma flor/ explode, poeta, no coração? / Os mutilados sonharão? Suas pernas? / O desejo, fruto podre adubando. Outra mão? / Que triste palavra os baba / no cigarro morto! Vendem. / Nenhum incesto os estanca. / À revelia do sol, os mutilados/ montam banca.”

O Poeta escrevera: “agora vou com amendoins na língua ínsula” e ficaria com os pregões a reverberar na memória: “agora Amêjoé vestiu a rua dobrou a esquina”. Ficariam belos e comoventes poemas que se entretecem na sua biografia. Num poema dedicado a Gulamo Khan proclama: “Escrevo, não obstante, um país solar, / rouca a língua que soluça em sintagmas antigos”. “A memória é isto. / Mas já não elido”. Ou: “Depois das elegias o alcandorado grito / sobre o deserto chão do poema”. Provavelmente, a viagem será a grande metáfora da sua biografia. A sua viagem a Ítaca. Os seus mitos matriciais.

Há nesta poesia, eu me atreveria a dizer: neste poema em continuum (que é a sua obra toda) mitos recorrentes, ainda que se encontrem cartografados numa “sintaxe de sombras”. Um desses mitos, a Ilha de Moçambique. Muhípiti: “É onde todos somos inúteis”. Ilha de Próspero, Ilha de Caliban. Ilha de Alberto de Lacerda (“Ó Oriente surgido do mar / Ó minha Ilha de Moçambique / Perfume solto no oceano / Como se fosse em pleno ar”);  Ilha de Rui Knopfli (“Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente / que doloridas lembranças do tempo / em que, do alto do minarete, / Alah – o grande sacana! – sorria / aos tímidos versos bem comportados / que eu te fazia”); Ilha de Eduardo White (“Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que a Norte e na Ilha traz um amante inconfortado”);  Ilha dos Poetas, Ilha de todos: “Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos / e marulham as vozes”. “Ilha, corpo, mulher. Ilha encantamento. Primeiro tema para cantar” – Luís Carlos Patraquim.

Poesia de outras viagens, poesia de todas as viagens. Em Lisboa encontramo-lo “mariscando luas” na casa do pintor onde “os amigos entram pela janela / de luz na tarde atlântica”, ou no café Martinho de Arcada, evocando um poeta amigo. Poesia aliás habitada de afectos e de poetas, de poetas mortos como Rui de Noronha, Reinaldo Ferreira, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar, Gabriel Makavi, Fonseca Amaral, Gulamo Khan, Leite de Vasconcelos, Grabato, Dias, Sebastião Alba, David Mestre, Guilherme Ismael. Afinal, conclama o Poeta: “Não tenho mais legitimidade do que a de todos os mortos”.

Ou como escreverá, muitos anos depois, em “O Deus Restante” (2017): “Aqui onde o Zambeze se afoga na estreita garganta / depois da sumptuosa queda de Deus”.  Este livro como “Musica Extensa”, do mesmo ano, são poemas únicos. Poemas em que acena constantemente ao Índico.  O Atlântico não lhe ilude o referencial: “O Índico é um mar interior”. Com as suas fúrias, alegorias e tragédias. Poeta atento ao seu país. Poeta, na sua “Morada Nómada”, que lhe colige a obra, continua afinal a mesma voz, a mesmíssima voz inicial: “rigorosamente viajo no tempo / e não sei / não sei se é canto ou ave / o que canto”, como principiara: “com palavras faço a voz”:

“é preciso inventar-te porque existes

enquanto os deuses adormecem nas páginas dos livros

e o real é a infinita medida do canto”

Hoje, ainda e sempre, é preciso sobretudo essa “insurrecta linguagem do mundo”, “é preciso a insurrecta solidão de alguns dias” e “é preciso tudo como haver morte e flores” porque, agora como sempre, “nascemos hoje demasiado e vivos”.

A poesia de Patraquim sempre soou estranha. Um timbre fora do contexto da poesia que era comum produzir-se e publicar. Vivíamos, é preciso sublinhar, os primórdios da independência e estávamos, muitos de nós, imbuídos daquele fervor messiânico e revolucionário. Poesia que será também um acto de rebeldia contra um universo concentracionário que se vivia.

A importância de Patraquim também advém daí, dessa rebeldia, que iria informar a minha geração. Por causa do seu estro, do seu talento, da sua exuberância poética, do esplendor da sua metáfora, da ideia de que a poesia é a metáfora, da sua oficina burilada, da sua extraordinária capacidade imagética, da explosão das suas vibrantes imagens, o reino das imagens, da sua voz de eleito. Da sua iconoclastia, eu diria, finalmente.

Nesse tempo, que aqui aludo melancolicamente, o Poeta exercia uma espécie de sacerdócio para a geração que iria despontar nos anos 80 e que desalinha, por completo, dos ditames da época. A “Gazeta de Artes e Letras”, que ele empreenderia, entre 1984 e 1986, a convite de Albino Magaia, na revista “Tempo”, foi o esteio necessário para a nossa contradita. Patraquim era uma espécie de Papa, nas nossas letras, à época. Para além do facto de não ser alheio à “Charrua” ou às tertúlias da Associação dos Escritores. Naqueles tempos fervorosos, hóspedes da Cindoca às sextas-feiras.

Era, paradoxalmente, um tempo exultante, reconheço-o a esta distância. Éramos felizes e, provavelmente, não sabíamos. Estávamos imersos no desencanto que começara, então, a cansar-nos, por culpa de um quotidiano ingeneroso. Era o tempo do monolitismo político, no qual empreendemos a discordância. Eu reputo esse dissídio, essa dissensão, esse confronto. (“Por isso senhor dá-nos a humilde loucura do sábado”).  Era a nossa matéria-prima e a marca distintiva da nossa geração. Mas nunca nos exonerámos do “amor da terra”, como queria o Poeta.

Releio a obra toda de Luís Carlos Patraquim e revejo nela a sua biografia. Volto aos seus poemas, torno às suas viagens, revisito os seus mitos, reencontro as suas elegias, as suas citações, os seus acenos, a sua sintaxe, a sua gramática, a sua constância, a sua erudição. A sua permanente viagem. A sua incessante busca da Ítaca. Retorno ao seu estro, ao seu exímio estro, aos seus deuses e epifanias. Como sempre é um empreendimento jubiloso.

Termino este cumprimento, no dia dos seus 70 anos, dizendo-lhe aquilo que T.S. Eliot, um dos seus poetas electivos, que ele apostrofa num dos seus mais belos e acerbos poemas (“Elegia Carnívora”), disse, num aceno florentino – Dante Alighieri concedera a Guido Cavalcanti –, de e a Ezra Pound: “Il miglior fabbro”, na dedicatória de “A Terra Devastada”. Não tenho dúvidas de que o Poeta Luís Carlos Patraquim é, hoje, entre nós, o melhor artífice.

 

Kampfumo, 26 de Março de 2023

Por: Venâncio Calisto

O ano de 2010, que foi o ano que marca a minha iniciação no mundo das artes e do teatro em particular, é para mim a época de maior efervescência cultural na cidade de Maputo. Se os anos noventa do século passado representam o auge da actividade teatral na capital do país, em termos de criações, públicos e internacionalização das companhias, 2010 pode ser considerado o ano do renascimento de uma nova geração de artistas e iniciativas teatrais.

Em 2010, eu andava na décima classe, na escola secundária Noroeste 2, havia perdido um ano por faltas excessivas na disciplina de Educação Física, é que desde pequeno eu não djimo o corpo, eu djimo a mente. Brincadeiras à parte. A segunda década do nosso milénio começou em grande. O recém-criado curso superior de teatro na ECA já começava a dar os primeiros frutos. Novos textos, novos autores e, sobretudo, novas técnicas de fazer teatro começaram a despontar por todo lado. As velhas companhias já se abriam para dialogar com os novos actores.

O festival amador de teatro de inverno estava na transição para o que é hoje, internacional e o mais regular. Foi justamente nesse período que eu, atraído pelas multidões de actores que desciam a cidade como um cortejo de carnaval, havia, no semblante de cada um deles, um convite expresso, uma conquista irrecusável. Quando dei por mim estava no palco do mapiko, a tremer de frio e adrenalina. Quem é o fantasma? Texto do meu mestre Nandjir foi o espectáculo mais marcante. Fazia de protagonista e morria no palco, como sempre sonhei. Dali em diante, já não havia volta a dar. Primeiro foram as oficinas de representação, encenação e produção teatral que o Girassol não se cansava de organizar. Depois, a necessidade de aprofundar a alegria de habitar um palco.

O velho Dabula foi peremptório: Vá já se inscrever ao curso de Teatro na ECA. Depois ajudou-me a pagar as matrículas e propinas. Acompanhou todo o meu percurso estudantil. No seu escritório, no Ntsindya, corrigia-me as provas e dava-me infinitos TPC. Mas tudo começou em 2010, o mítico ano do mundial nas terras africanas. Dançamos tanto Waka Waka.

Porque o teatro em Maputo era uma alegria… O Mutumbela parecia procurar se reinventar. Graça Silva e Jorge Vaz assumiram a responsabilidade. O inimigo do Povo, o Xapa 100 My Love, a Máquina Extraviada, Hamlet… Foram tantos espectáculos, tanto alimento… O Luarte, na vanguarda do teatro contemporâneo moçambicano chocava-nos com tanta beleza e criatividade, as encenações do Mambucho e do Eliot Alex, não esqueço-me do Niketche… Em 2010 nasceu a minha fome por arte, mas por nada nesse mundo tomaria a sopa de Lá na Morgue, Dadivo José que me perdoe.

Alcochete, 21 de Março de 2023

O antigo jogador da selecção nacional de basquetebol, Helmano Nhatitima, analisa o estágio actual e as dinâmicas da modalidade da bola ao cesto no país. Campeão pelo Desportivo Maputo, Costa do Sol e extinta Conseng, Nhatitima desvenda a fórmula para o sucesso do Ferroviário da Beira, conjunto que este ano vai disputar pela segunda vez consecutiva a Liga Africana de Basquetebol. Mais: tem dominado as provas internas, relegando, desta forma, para o segundo plano os tradicionais candidatos ao título sedeados na capital do país. A viverem de glórias do passado. Nhatitima entende que as províncias carecem de atletas seniores, moldura humana para praticar a modalidade. Para Nhantitima, a cidade de Maputo está num sono profundo.  Diz ainda que, depois da  “morte” do Desportivo Maputo e Maxaquene, o Ferroviário, porque estava bem financeiramente ou porque tinha pessoas que se importavam, vinha puxando a modalidade. O que já não acontece hoje por hoje!

 

1.-O Ferroviário da Beira não evoluiu da noite para o dia. Primeiro, foi organizando campeonatos nacionais de formação durante anos e, depois, foi organizando “nacionais” de seniores. O Ferroviário da Beira foi vendo como as equipas de Maputo se organizam, porém, nunca conseguia dar o salto. Por quê? Porque acreditava que iria ganhar só com jogadores e treinadores da Beira e isso nunca aconteceu. Quando o Ferroviário da Beira começa a contratar atletas e treinadores de Maputo e, depois de fora, outro galo começa a cantar. Hoje já quase não encontras atletas beirenses no plantel porque tornou-se uma equipa com pretensões africanas e já não pensa “provincianismo”.

 

2- Zambézia é um caso especial. Dá o “boom” depois de 2003, quando o campeonato nacional escalou Quelimane. Foi a partir daí que os miúdos locais treinaram tanto para atingirem o estatuto de estrelas que haviam estado lá ( ndr: isto ouvi da boca de Pio “Lingras” Matos, Augusto “Gordo” Matos” e  Igor Matavele).

 

3- Nampula já anda há muito tempo neste vai vem de “nacionais” e não evoluiu. Já devia ter dado o salto há muito tempo. Nampula tem tudo para ser a terceira província basquetebolística do país, mas nada. Felizmente, tem o Albino Dimene lá – presidente da Associação Provincial de Basquetebol- grande impulsionador. Mas também já perceberam que tem que colher experiência de outro sítio. Questiono: se Octávio Magoliço e Fernando “Nandinho” Manjate não estivessem na equipa do Ferroviário de Nampula, acham que iriam para algum sítio? Não. A qualidade da equipa subiu em mais de 50%. Em condições normais, Nampula ganha mas transpira para vencer as equipas de Cabo Delgado. Na “poule” de apuramento da zona norte para a Liga Moçambicana de Basquetebol, com reforço de Octávio Magoliço, ganhou por mais de 70 pontos.

 

  1. As províncias carecem de atletas seniores, moldura humana para praticar a modalidade. São os mesmos atletas que jogam e saem daqui para ali. Mas para evoluir, primeiro, é preciso derrubar as barreiras mentais e perceber que nós temos ainda muito a aprender, caminhar e perceber quais são os pontos a evoluir e lutar com eles. É normal chegar a uma equipa, pedir um ataque e dizerem que não tem. Jogam com corte e passe. Sério? Nos seniores isso? Correr nos corredores, ninguém conhece isso de corredores. Temos que correr muito, mas o mais importante é correr bem e organizados. Gosto da dinâmica em Cabo Delgado, onde estão preocupados com essa evolução ao chamar treinadores de fora. Mas o maior desafio ainda está no atleta, na mente. Desconstruir a ideia de que o craque é aquele que está com a bola, imitar o lançamento de Kevin Durant ou Kobe Brynt (astro da NBA falecido a 26 de Janeiro de Janeiro de 2020) sem que pratiques treinos individuais de lançamento.

5- Nenhum jogador que chegou à selecção nacional de basquetebol de 2005 até 2019 por aí atingiu este patamar sem quatro horas de treinos diários. Treino individual, a evolução do atleta não ocorre no treino colectivo, mas sim em treinos individuais (lançamento, salto e evolução física).

6- A cidade de Maputo está num momento mau, sem dúvidas. Depois da “morte” do Desportivo Maputo e Maxaquene, o Ferroviário, porque estava bem financeiramente ou porque tinha pessoas que se importavam, vinha puxando a modalidade. Hoje já não tens este clube “pai” que diz “vamos lá ou mexam-se lá”. O Costa do Sol tem, hoje, a melhor estrutura, mas não assume esse papel e enquanto não fizer isso vai chorar sempre em segundo (enquanto o Ferroviário de Maputo ganhou, tinha todo o poder sobre Associação de Basquetebol da Cidade Maputo). A Associação Provincial de Basquetebol de Sofala é o Ferroviário da Beira. A associação, que não tem meios, também está no seu cantinho: inerte e prostrada. Isto para não falar dos árbitros que, sem dinheiro, não apitam. Isto é culpa do nível de organização e da forma de trabalhar que Maputo atingiu e a fórmula está lá e é só aplicá-la. Acredito que a estrutura de jogos nas províncias é, de longe, mais leve que a de Maputo onde temos todos os escalões a se movimentarem com equipas A, B, etc. Contudo, não creio que os árbitros tenham que apitar de borla, até porque não são pai natal mas são parte do problema e, claramente, serão parte da solução.

Resumindo: Manica, Tete e Cabo Delgado tem vontade mas o caminho ainda é longo, e só vão evoluir com muito trabalho.

A expressão latina “ex nihilo, nihil fit” do filósofo naturalista Parménides que, em português, se traduz em “nada surge do nada” configura-se um imperioso pressuposto do Princípio da Razão Suficiente cunhado por Leibniz, mas reclamado por Spinoza. De forma sucinta, com base no livro de Baruch Spinoza “Principia philosophiae cartesianae” o Princípio da Razão Suficiente formula-se na ideia de que “nada existe do qual não se possa perguntar a causa ou a razão de existência”. Ou seja, para este filósofo holandês do séc. XVII, tudo o que existe no cosmos tem de ter uma causa e motivo para existir, e, ademais, mesmo aquilo que não existe demanda explicação de como e porquê não existir. Assim sendo, todo aquele que aceita este princípio filosófico deve assumir a responsabilidade de considerar o mundo como uma rede complexa de fenómenos concebíveis e explicáveis e, jamais, aceitar a existência de factos ou actos brutos, sem precedentes. A expressão de Leibinz “não há efeito, sem causa” formula melhor a ideia do princípio da razão suficiente e é uma assumpção de que a realidade é uma ocorrência de factos interligados entre si de forma necessária e não aleatória. Portanto, tudo que acontece é passível duma explicação, significando que houve uma razão e causa que levou a tal acontecimento. Deste modo, para Leibinz, os milagres e mistérios não constituem uma violação das leis da razão ou lógica, mas sim são mal entendidas pela fraca faculdade cognitiva do ser humano.

Posto de lado a fundamentação do princípio da razão suficiente, passemos ao exercício de correlação existente entre este princípio filosófico e a produção artística “xikona” do cantor moçambicano Xidiminguana. A canção “xikona” cujo álbum leva o mesmo nome retrata, de forma sucinta, uma separação conjugal cujos motivos são desconhecidos pelos terceiros, mas ainda assim há uma absoluta certeza de ter havido uma razão suficiente que levou um dos parceiros a romper a relação. Para uma fiel compreensão, passo a transcrever e traduzir livremente o refrão que constitui a essência da canção, deixando de lado as “apóstrofes”, partes em que o cantor faz censuras ao comportamento da sua mulher e ao do amante dela.

 

A canção segue da seguinte maneira:

Xikona, xikona mpela lexi anga xi vona lwehi wa papai/2X

Alguma coisa aquele senhor teria visto

Loku wa nuna abaleka wansati nambi o’ xonga

Quando um homem abandona uma mulher, mesmo sendo bonita

Loku wa nuna abaleka wansati nambi a ni makwembe

Quando um homem abandona uma mulher, mesmo tendo bumbum

Kuza wa nuna atsukula wansati nambi a ni makwembe djani

Ao ponto de um homem desistir duma mulher mesmo tendo grande bumbum

Xikona, xikona anga xi vona lwehi wa papai/

Alguma coisa aquele senhor teria visto

Animu hembele, xikona anga xi vona lwehi wa papai

Não estou a mentir, alguma coisa aquele senhor teria visto

Kuza wa nuna adlwigwa a wansati nambi o’dhô

Ao ponto de um homem deixar uma mulher, mesmo sendo sexy.

A wanuna atsukula wansati nambi a li bonita

Um homem desistir duma mulher, mesmo sendo bonita

Xikona, xikona anga xi vona lwehi wa papai/

Alguma coisa aquele senhor teria visto

Ni ye wansati atsukula wa nuna nambi a ganhi ngopfu

E a mulher desistiu dum homem mesmo sendo muito rico

Ni ye wansati atsukula wa nuna nambi ani mimova

E a mulher desistiu dum homem, mesmo tendo automóveis

Ni ye wansati atsukula wa nuna nambi ani swi bhomba

E a mulher desistiu dum homem mesmo dispondo de autocarros

Xikona, xikona anga xi vona lwehi wa senhora/2x

Alguma coisa aquela senhora teria visto

 

A partir deste refrão, descobre-se uma clara intenção de o cantor fazer-nos entender que, nas relações amorosas, não há separações absurdas, há sempre um princípio de razão suficiente. Todo o divórcio ou o fim do relacionamento é movido obviamente por alguma razão ou causa que se mostra suficiente – para não dizer convincente – aos olhos de quem se separa. Usando o critério de beleza supostamente aprovado pela sociedade como um factor atractivo para os homens se unir às mulheres, Xidiminguana introduz-nos um cenário onde, mesmo a mulher sendo linda e sexy, é abandonada pelo homem por uma razão que, apesar de ser desconhecida pelos terceiros, teria sido suficiente para romper a relação. O mesmo cenário verifica-se numa perspectiva de mulher para o homem em que, apesar de o homem ser proprietário de várias riquezas, ele chega a ser abandonado pela sua esposa por alguma razão.

Desta clássica canção de marrabenta, desprende-se-nos uma lição da vida: evitemos julgar ou condenar as separações conjugais. Isto porque, por trás das separações, há sempre uma razão suficiente que levou o casal àquele destino. No lugar de procedermos com o exercício de julgamento, torna-se sensato limitarmo-nos à aceitação de que houve, sim, uma razão suficiente para ambos se desligarem, tal como nos sugere a canção de Xidimimguana. Pautando pelo princípio da razão suficiente, tornamo-nos mais condescendentes a casos de divórcios e mais abertos para busca do devido esclarecimento, caso nos seja necessário. Na base do princípio da razão suficiente, colocamo-nos à disposição de conhecer a real causa dos factos e, por conseguinte, adoptamos uma atitude de escutar para compreender. E para compreender as razões de qualquer discussão conjugal é deveras imperioso saber escutar ambas as partes e discernir sobre as duas versões.

Uma nota não menos importante. A razão que leva um indivíduo a decidir por uma separação não tem de ser convincente para os terceiros, pois a sensibilidade dos homens para com os problemas nunca é a mesma. Há quem seja demasiado sensível à violência emocional em forma de um insulto ao ponto de considerar a sua relação abusiva, mas há quem consiga tolera-la, mas não admitir violência física ou adultério. Isto pode significar que, em discussões conjugais, a coisa mais importante que os terceiros possam lograr é a compreensão dos factos e não a razoabilidade das decisões. Aquele terceiro que pautar pela razoabilidade das decisões incorre no risco de ridicularizar ou superestimar uma parte em detrimento doutra. Ademais, é crucial que em reuniões familiares em busca de reconciliação dos casais, os terceiros tenham o cuidado de não tomar decisões finais pelo casal, mas que deixem ficar as suas sugestões sobre o destino do casal e, por fim, deem palavra aos parceiros para que tomem uma decisão final sobre o seu futuro. Quando não se respeitam as vontades do casal, ocorrem dois trágicos cenários que são uma reconciliação à força ou uma separação apoiada. A primeira alternativa leva a relação a um futuro sombrio marcado de mais abusos, violência e eventuais assassinatos. A segunda alternativa gera remorsos, ressentimentos e vitimizações. Reiterando o princípio da razão suficiente, por trás de qualquer separação ou divórcio há sempre uma razão ou causa determinantes. Assim sendo, a aceitação e a disposição dos terceiros para compreender os factos é a coisa primeira e mais sensata a se ter, ao invés de proceder-se com a culpabilidade, condenação ou vitimização duma das partes na relação.

 

Hélder Tsemba

tsembah@gmail.com

Tanto a miséria como a riqueza corrompem embora por causas diferentes.

A miséria pela necessidade, a riqueza pelo prazer.

In Tchova, tchova, de Eduardo Paixão

 

Os projectos teatrais em que Vítor Gonçalves se envolve são, geralmente, interessantíssimos. Ao nível do conceito, da produção ou do encadeamento de ideias, as iniciativas do artista tanto surpreendem quanto comovem.

Quando está a conceber um grande espectáculo, Vítor Gonçalves não se reduz a nenhuma austeridade. Pelo contrário, sempre encontra no poder da imaginação um elemento para quebrar barreiras, alcançando, por isso, níveis imprevisíveis da criatividade. Os mais atentos devem lembrar-se da ópera Mwango e Mwanga ou da peça Chovem amores na Rua do Matador; os mais atentos vão, certamente, lembrar-se d’A amarrada chuva de KaMutxukêti, peça teatral que estreou no dia 16 de Março, em palco todas as sextas-feiras, sábados e domingos, às 18 horas, no Cine Scala, em Maputo, até 20 de Maio.

Adaptada por Evaristo Abreu, do livro de Teodoro Waty, com efeito, A amarrada chuva de KaMutxukêti junta Vítor Gonçalves e Maria Atália na encenação. Coube aos dois artistas dar sentido ao texto e personificar angústias sociais que muitas vezes dividem os homens e as mulheres deste mundo ingrato.

Em primeiro lugar, A amarrada chuva de KaMutxukêti deslumbra-nos pelo cenário. Ao entrar no Scala, mesmo antes do espectáculo iniciar, ali ficamos perdidos em algum lugar ideal, mas sem pressa de voltar à realidade. No palco paira uma imagem de aldeia agreste, onde os códigos sociais confundem-se com a supremacia de certos poderes transcendentes. Desse ponto de vista, há ali um misticismo tipicamente africano, com ângulos de abordagem que, inclusivamente, conduzem a história por territórios sombrios, estranhos ou fantásticos. Com a excepção do que se vê, nada é bem como parece e isso ajuda na construção de um enredo complexo, mas inteligível o suficiente para manter o público agradado e atento a cada acontecimento.

A peça começa como se fosse um bailado, explorando essa percepção assertiva de que a dança acompanha os africanos em todos os momentos da sua vida: na alegria e na tristeza. A dança está em diferentes momentos da peça, com algum destaque para o xigubo, o tufo e o mapiko; a dança é emoção, vibração, o intervalo entre o verbo e a conjugação; é o fragmento da totalidade que torna possível explorar ainda mais o movimento das personagens principais, secundárias e figurantes. E com a dança, a interdisciplinaridade artística preenche KaMutxukêti de outros condimentos sonoros oportunos à leitura do espectáculo.

Ora, em geral, A amarrada chuva de KaMutxukêti é uma peça sobre a instabilidade social causada pela falta da precipitação. Sendo o reino de Baba Hosi (Dadivo José) dependente da chuva, sem esse evento natural o lugar da união transforma-se numa situação dúbia e perigosa. O reino, por falta da chuva, divide-se. Logo, a busca da água faz de algumas personagens egocêntricas e narcisistas. A busca da água torna-se um factor da desunião, bem a lembrar a novela rural Água, de João Paulo Borges Coelho, na qual a seca também corrompe os que deveriam amar mais, ao invés de destruir.

Para o rei Baba Hosi, o cenário da crise é uma situação difícil. Pois, em toda sua vida, nunca se tinha deparado com um problema tão grave e globalmente tão incompreendido quanto é a seca. Porém, perspicaz como é, Baba Hosi sabe que a chuva é a bênção e a seca a maldição para quem governa. Por isso mesmo, depois de ouvir gente próxima, decide enviar três emissários à procura da chuva. A missão de Ngovene (Horácio Guiamba), Mapswanganhe (Adelino Branquinho) e Simbia (Edu All Talents) é deveras espinhosa. Primeiro, porque não sabem bem ao certo por onde começar. Segundo, porque partem para lugares forasteiros, com poderes inimagináveis a intrometerem-se em ocasiões em que se encontram fisicamente débeis e moralmente desvalorizados. É a essa altura que a missão dos três mensageiros lembra-nos Manicusse, a personagem de “A árvore sagrada”, do livro Balada dos deuses, de Marcelo Panguana. Com uma diferença: enquanto naquele conto o protagonista não consegue chegar ao destino auspicioso, por não acreditar em si e nos seus antepassados, na peça encenada por Vítor Gonçalves e Maria Atália os três emissários vencem as adversidades e, consequentemente, encontram a solução nas terras distantes do norte. Uma vez mais, em contacto com o além.

Não obstante ser um lugar absolutamente fictício, em KaMutxukêti a chuva representa as maiores aspirações da sociedade moçambicana. A chuva é estabilidade, a esperança, o bem-estar e a preservação de um espaço colectivo e abrangente. Quando a chuva cai, a unidade é certa e os murmúrios populares ininteligíveis. Entretanto, quando escasseia, não só aparecem vozes a questionar a legitimidade do rei, igualmente, vêem-se na peça comportamentos degradantes e personagens a perderem o sentido da importância da partilha. Portanto, A amarrada chuva de KaMutxukêti diverte-nos e lembra-nos que o lugar da nação, quando a crise chega, deve ser proporcional à mesma condição na fartura. A nação é o bem para todos, partilhável, e não a metade das riquezas nacionais no bolso de um par de gente. A nação é o amor ao povo, o cuidado com os pobres e a resposta sensata aos protestos dos que sofrem ou tornam audíveis os sofrimentos dos outros, de facto, num contexto em que “tanto a miséria como a riqueza corrompem embora por causas diferentes. A miséria pela necessidade, a riqueza pelo prazer”.

Em algumas circunstâncias, A amarrada chuva de KaMutxukêti explora essa dimensão hilariante característica à comédia, em outras, não ignora a fatalidade da tragédia especial em Sófocles ou em William Shakespeare. Lá está, a morte faz parte do jogo e o reino de Baba Hosi apresenta-se à semelhança de um tabuleiro de xadrez em que um simples peão pode decidir o fim do seu próprio rei. Quer dizer, do ponto de vista da coerência, da lucidez, do raciocínio das personagens e da analogia, KaMutxukêti é um lugar onde se revelam os pilares que suportam qualquer país: o cidadão comum (se quiser, o povo) e a sua relação com os símbolos do poder e vice-versa. Se pensar o país através dessa relação muitas vezes vertical é árduo e complexo, através da adaptação de Evaristo Abreu é divertido e leve, pois as doses de humor estão equilibradas à gravidade do problema que agita o reino.

A amarrada chuva de KaMutxukêti tem hora e meia de duração, mas a dinâmica das cenas faz o tempo voar. Aliado a isso, impressiona o cruzamento de diferentes gerações de actores e a forma como tantas estrelas do teatro moçambicano são geridas no núcleo da história que se está a tecer. Por um lado, Josefina Massango, Adelino Branquinho e Lucrécia Paco. Por outro, Dadivo José, Horácio Guiamba, Violeta Mbilana e Fernando Macamo. Em outros contextos, dois desses actores já fazem um espectáulo teatral credível. Mas, em KaMutxukêti, Vítor Gonçalves e Maria Atália conseguiram respeitar a longevidade artística dos actores há muitos anos consagrados e a pujante ascensão dos actores que actualmente contribuem para vivacidade de um teatro moçambicano que apenas peca pela quantidade de espectáculos.

Outro aspecto a considerar e que merece atenção é a trilha sonora na responsabilidade de Lenna Bahule, o figurino e a cenografia de Sara Machado e a iluminação de Francisco Baloi. Esse trio faz d’A amarrada chuva de KaMutxukêti uma experiência capaz, de facto, de transportar o público para uma excelente viagem de ida e volta só ao preço de 300 meticais.

 

Os motores de KaMutxukêti

A qualidade estética de A amarrada chuva de KaMutxukêti, claro está, deve-se à totalidade dos elementos integrados. Talvez não seja uma peça para ver com a sogra, há ali umas cenas que podem chocar os mais conservadores; talvez aja alguns aspecos a melhorar, há ali umas duas actrizes com o ar demasiado adolescente para certas cenas sensuais. Em todo o caso, sempre se vêem actores que se notabilizaram de forma particular. Por exemplo:

Lucrécia Paco

Já não tem nada a provar a ninguém. Durante anos, foi a diva do Mutumbela Gogo e ajudou a tornar o Teatro Avenida um lugar sagrado. Por motivos pessoais, desapareceu dos palcos por algum tempo e encontrou na encenação a possibilidade de continuar a expressar-se. Mas em A amarrada chuva de KaMutxukêti, esta sexta-feira, Lucrécia Paco foi brutal. Como se estivesse no início da carreira e ainda precisasse de conquistar o seu lugar, a actriz imprimiu na sua personagem uma performance muito além da sua própria média de actuação. Lucrécia Paco voltou e, no regresso, trouxe aquela qualidade de outros tempos.

Na peça, Lucrécia Paco interpreta o papel de Mayothase, uma das três mulheres do rei Baba Hosi. É a rainha mais bela, mais vaidosa e menos preocupada com o sofrimento do povo. Para ela, basta a atenção de Baba Hosi e o bem-estar da família, mesmo que isso faça sofrer os mutxuketenses. Ao contrário da rainha mais velha, Maripodina (Josefina Massango), o papel de Mayothase é mais rigoroso porque exige reacções diferentes em cada circunstância. Num momento, Mayothase é uma ardilosa víbora. Noutro, é uma mulher dócil para o seu rei. Quer isto dizer que o papel exige pelo menos duas personalidades para a mesma personagem. Nos dois casos, Lucrécia Paco aparece no seu melhor, com detalhes nos gestos, no olhar, no riso, nos gritos e nos movimentos. Que saudade, Lucrécia!

 

Violeta Mbilana

Em KaMutxukêti, Violeta Mbilana interpreta o papel de Dalena, a outra mulher de Baba Hosi. Se Maripodina é a mais esclarecida e ponderada e Mayothase a mais expansiva, Dalena é o meio-termo entre as três rainhas. Ama o rei com vigor e deseja-o permanentemente. Ao rei é submissa, mas irrequieta às estravagâncias de Mayothase. Portanto, esse também é um papel com variações. Todavia, Violeta Mbilana, essa actriz que até pouco tempo era desconhecida, mostrou-se à altura de contracenar com Josefina Massango, Adelino Branquinho e Lucrécia Paco.

Em Chovem amores na Rua do Matador, Violeta Mbilana já se tinha apresentado em grande nível. Mas em A amarrada chuva de KaMutxukêti a actriz é imperial, representando uma geração de mulheres moçambicanas que no teatro sabem muito bem o que fazem. Numa palavra, Violeta Mbilana, essa mulher cheia de cor, foi natural. É uma actriz a sério, inquieta, com o teatro nas veias. A maneira como a sua personagem afronta as outras rainhas e submete-se ao rei no mesmo contexto é realmente convincente. Mbilana parece ter sido inventada para A amarrada chuva de KaMutxukêti e a actriz aproveita a oportunidade para se mostrar a um nível elevado. Violeta Mbilana, um nome a reter.

 

Fernando Macamo

Já o tínhamos visto em várias peças teatrais, mas nunca numa super produção. Como se soubesse disso, Fernando Macamo apropriou-se dos seus dois papéis, a de Sigaúque, conselheiro do rei, e a de um curandeiro. Nos dois casos, o actor é categórico e equilibrado. Parte das gargalhadas do público, devem-se às intervenções das duas personagens de Fernando Macamo. A escolha do actor para os dois papéis foi assertiva até do ponto de vista da gestão do número do elenco.

 

Horácio Guiamba

A capacidade interpretativa de Horácio Guiamba é qualquer coisa do outro mundo. É dos poucos actores da nova geração que consegue estar em grande nível em alguns papéis que só Adelino Branquinho interpreta melhor (Branquinho é o topo da pirâmide, mas o seu papel, à semelhança do papel de Josefina Massango, não o permite explodir em KaMutxukêti). Há gestos que nunca estariam num script, mas Horácio Guiamba consegue inventá-los e dá-los sentidos. E não é apenas isso, na pele de Ngovene, um dos emissários do rei que parte à procura da chuva, é a dicção, o semblante, a espontaneidade e a claridade interpretativa que comovem. Como Horácio Guiamba há muito poucos!

 

Dadivo José

O gajo que faz tanta coisa (música, teatro, aulas, Maxaquene e etc.), desta vez, apareceu feito um rei. É como no xadrez, muitas vezes, os reis não têm muita mobilidade. Dão um passo de cada vez. Mas as rainhas de Baba Hosi, sim, essas conseguem movimentar-se para todas as direcções sem que o rei consiga prever as consequências ulteriores. Ainda assim, Dadivo José encarna Baba Hosi com a devida majestade. Dadivo mantém o ar sisudo de um rei, a serenidade e a altivez. Pena que, como diria Maquiavel, os reis mais duradouros são os mais temidos do que amados.

 

Vovó Nely – “U ma”?

“Eu nasci em KaTembe, a 2 de Novembro de 1920, um Domingo, às 11 horas da manhã. A minha mãe chamava-se Jinita Libombo e o

O resgate da indignação

Estamos todos, literalmente todos, nós os não empresários, levianamente impávidos perante o tétrico fenómeno dos raptos. Apenas lamentamos e, inacreditavelmente, também os que têm poder

A cabra-noiva

De algumas semanas prévias até aquela, estranhos eventos têm ocorrido na povoação de Nguileni, aglomerado comunal que se destaca pela produção agrícola e de criação

Moçambiquero-te 

Não é todos os dias que se apresenta um livro com estas características. Este livro inicia criativamente de forma inusitada com uma declaração publica de

+ LIDAS

Siga nos