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A Arte de Contar

Somos, indiscutivelmente, um país de contistas, ou se preferirem, vivemos numa terra cheia de apetecíveis histórias  algumas delas presentes neste livro e outras tantas em obras diversas que prestigiam a nossa arte de contar e obviamente a nossa literatura. As Conversas de Nhamacata confirmam essa honrosa tradição através da mestria narrativa e estilística de Gonçalves Patrício que se manifesta de forma vistosa ao longo de vinte e dois textos repletos de surpreendentes histórias, cujas personagens quase que constituem a caricatura do nosso quotidiano e da nossa própria vida. Sem pretender ser proprietário de bom gosto, ouso acrescentar, e considero necessário que isso se diga, que mais do que um simples livro de contos,  a presente colectânea de Gonçalves Patrício ressuscita um género literário que atravessava momentos menos auspiciosos, à favor de outras expressões narrativas consideradas mais pujantes. Estamos, se me permitem o exagero comparativo, diante de uma espécie de griot que não se limita a contar histórias do imenso manancial oral, Gonçalves Patrício esgrime, isso sim, o seu imaginário e criatividade que nos faz recordar os grandes executores desta nobre expressão narrativa que é o conto.

Os contos que compõem As Conversas de Nhamacata oferecem-nos a grata possibilidade de poder lê-los sem nenhum esforço e este é um dos maiores méritos do livro, o de possuir uma narrativa onde as palavras não são demasiadas, onde a metáfora não é esforçada, onde os lugares e sentimentos cabem apenas em parcas palavras. São contos breves. Leves como as asas dum pássaro. Surpreendentes, como se exige duma escrita que pretendemos inovadora. Exprimem de maneira concisa muitas realidades, ficcionam outras tantas, e ainda há muitas outras que somos induzidos a imaginar influenciados pelos contos de Gonçalves Patricio. São vários os mundos que povoam as páginas deste livro, cada mundo é apresentado duma maneira diferente, cada mundo representa a forma como o autor faz a leitura da vida e é a multiplicidade das suas vivências, de certa maneira aqui expostas, que enriquece esta colectânea. Por outro lado, reencontramos nesta obra algumas das características fundamentais de um conto, a primeira, e como é obvio, a existência dum enredo, que é composto pelo intróito, depois o momento de maior tensão da narrativa e o natural desfecho, que neste livro é imprevisível, como acontece, aliás, com a nossa própria vida, e esse desfecho é a estratégia assumida pelo autor em quase todos os textos e que aliado a enredos breves, acrescidos de algum surrealismo, torna a leitura desta obra apetecível.

Esgota-se, com este livro, o argumento sobre a magistralidade do romance em detrimento do conto, desmistifica-se a sua superioridade como género pátrio da narrativa moçambicana e fundamentalmente dissipa-se este pessimismo que insistia em perseguir-me. Gonçalves Patrício recupera a elegância do conto, veste-a de poesia, contorna-a com a maturidade da sua escrita, cheia de gramática, frescura e criatividade, embora exista uma corrente de pensamento que considera que não é a pureza gramatical e vocabular que define a renovação literária.  Os contos falam de política, mesmo sem falar dela. Falam de amor, mesmo quando não existem arrebatadoras declarações de amor. Os contos falam-nos de encontros e desencontros da vida, mesmo não se tratando de um manual de sociologia. Os contos abrem e fecham janelas, mostram-nos o lado irónico e caricato da vida. Os contos que constam em As Conversas de Nhamacata, ensinam-nos a caminhar para a descoberta de nós próprios, e nesse aspecto o Gonçales Patíicio pode ser considerado  um talentoso influenciador da vida, aliás, como dizia o José Régio, “um escritor exerce sempre na sua obra uma acção moral”.

Gosta-se de um livro por variadíssimas razões. Algumas não tem necessariamente a ver com o próprio livro, obedecem a outros critérios de avaliação que aqui não são chamados. Gosto dos livros quando são bem escritos. Gosto da concordância das palavras. Da inovação do verbo. Da existência de alguma dose de loucura, isto é, de sentir em determinados momentos da leitura alguma perplexidade. Gosto de sentir que o autor trouxe-nos algo de novo. É por isso que gosto deste livro de Gonçalves Patrício, principalmente quando escreve coisas como estas:

“Nisto, o vento faz pacto comigo. Sopra uma lufada persistente a meu favor. Levanta o fino tecido que revela as pernas roliças e solta-lhe os cabelos entao presos com um elástico transparente. Jamy não se preocupa em cobrir-se, deixa os cabelos esvoaçarem, instigarem o meu semblante babadinho. Marota, sorri, sabe que sem a resposta que tanto almejo, sou uma jangada a deriva, um condor com a asa quebrada. Muda de posição e mostra-me as costas da mesma cor da areia. Procuro o mar com o olhar para arrumar as ideias e encontrar o melhor ponto de recomeço. Mas, a maresia atrapalha. Ou melhor, as ondas traquinas trazem um par de golfinhos, o espectáculo grátis que enleva a tarde tropical: – Quem me dera sermos como eles! Aponto para os cetáceos. Ela apoia os cotovelos na areia com as palmas a segurar-lhe o queixo e continua plácida no silêncio de Cleópatra.”

Estamos perante um livro que corre o agradável risco de ser considerado como sendo uma das colectâneas  que muito bem representa o conto moçambicano. É uma espécie de homenagem a um lugar quase anónimo, Nhamacata, onde o autor protagonizou tempos de infância e outras experiências de vida que viriam a servir de lugar de memória e enriquecedores dos seus escritos. Os vinte e dois textos que  compõem As Conversas de Nhamacata possuem elementos capazes de seduzir o leitor mais exigente. Este sentimento de sedução apoderou-se de mim quando li o seu livro de estreia, Piripiri na Boca de Djogoro, que a ausência de uma crítica comprometida e a excessiva humildade do autor, fizeram com que a obra passasse despercebido nos escaparates das nossas livrarias. As Conversas de Nhamacata, creio, é um livro que vai percorrer outros caminhos e despertar a curiosidade dos leitores e da crítica. Os tempos mudaram. Com os meios de informação cada vez mais agressivos, os livros atravessaram fronteiras, os estilos literários cruzaram-se, houve influências, a escrita, nomeadamente a de Gonçalves Patrício, tornou-se madura, universalizou-se, sem no entanto perder a sua individualidade e identidade. Suponho, por esta razão, que é chegado o momento de prestar-se a devida atenção a este escritor que um dia a terra de Mopeia, Zambézia,  viu nascer para depois o oferecer aos diversos cantos do mundo, onde apreendeu aspectos da vida que hoje enriquecem os seus escritos.

“Shabane despiu-se sem pudor e fez careta quando se viu franzina e ossuda. Com jeito, para não piorar o ranger dos joelhos, arrodilhou-se na canoa e beijou o crucifixo suspenso ao pescoço. Segurou na rede esburacada e vestiu-a como uma diva das passareles requintadas. Depois, acamou-se suavemente no ventre da almadia de cara guinada as nuvens. Duas gaivotas apressadas vieram-lhes defecar na testa rugosa. Foi então, que decidiu esmurar o fundo frágil da canoa. Quando as águas começaram a borbulhar sobre o seu corpo, respirou aliviada. Começara a longa viagem sem retorno!”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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