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Malidza

Carneiro Gonçalves: “Caminhai célere, ó jovem povo do Quiteve, e vinde ouvir a história de Malidza, que morreu de amor. Uma grande ternura agasalhava-lhe o corpo de ébano (que ela protegia para Kilomko, o guerreiro) e punha nos seus olhos cintilações habitadas pelos génios antigos das florestas. O colo guardava a macia tepidez das sombras e era tão silenciosamente como a luz que Malidza percorria as veredas, as savanas. Requestavam-na os mais expeditos; transformou em temeridade a audácia dos mais valentes. Caíram alguns no calor das refregas, peito trespassado pela lança dos guerreiros de Maruça. Havia nas suas gargalhadas duas coisas: a alegria da brisa das alvoradas que despenteia as árvores e, também das árvores, a frescura da seiva.

Um dia apareceu na aldeia o nhamessoro para invocar Zúzu, o espírito das águas. Todas as moças acabadas de donzelar na última lua, espantadas ainda pelo prodígio grandioso de um pouco de sangue entre as coxas, dançavam então o seu espanto. Dois embondeiros soberanos, tão cheios de rumores eucarísticos como dois altares, cruzavam as ramagens por cima do terreiro lançando sobre as moças uma bênção de sombra. Malidza, como as outras, dançava. Dançava e ria. Kilomko, de longe, espreitava-lhe o corpo a requebrar-se nos espasmos da dança. Os seus feitos de guerra enchiam de espanto as aringas. Pela noite adiante, quando as famílias se acocoravam em torno das fogueiras, os mais velhos evocavam Kilomko e os mais novos tremiam de uma admiração sagrada.”

São oito brevíssimos parágrafos de uma belíssima e trágica história de amor. Kilomko encontrou, em certa madrugada, Malidza, regressava ele dos seus combates. Diante do seu olhar, caiu-lhe a lança da sua mão invencível pela primeira vez. Esperava desde então o fim das guerras para desposar Malidza. Mas, um dia, o nhamessoro apareceu na aldeia para invocar o espírito das águas. No momento da dádiva, o mago poderia escolher a jovem que o impressionasse mais. Escolheu Malidza.

Carneiro Gonçalves: “Gritaram as mulheres saudando a escolha. Mas Malidza recuou, recuou sempre, levou consigo o sofrimento de Kilomko e o espanto das outras mulheres que não compreendiam a fuga sacrílega.

Diz-se que a floresta matou Malidza.

Mas notai, ó jovem povo de Quiteve, que Kilomko sabe onde repousa o corpo de Malidza, que foi encontrar no sítio onde a viu pela primeira vez. Dois abutres debicaram-lhe os olhos. Levantaram para o céu quando Kilomko se aproximou. E o antigo guerreiro também sabe que o espaço agora é mais azul porque o encheram de luz mais duas estrelas.

António Carneiro Gonçalves nasceu a 21 de Junho de 1941 e morreu, a 20 Janeiro de 1974, num acidente de viação, aos 32 anos, deixando não apenas este belíssimo texto, que iria integrar o livro Contos e Lendas, editado pela mão do poeta Sebastião Alba (pseudónimo de Dinis Albano Carneiro Gonçalves), seu irmão, mas também contos que dariam para um outro livro e um romance escrito e reescrito. Era jornalista, deveria integrar, naquele ano, a redacção do Expresso, em Lisboa, viajava para a então Lourenço Marques, hoje Maputo, onde iria apanhar o avião para Lisboa, ia também no carro o poeta Julius Kazembe. O prefácio do livro é um pungente elogio de irmão para irmão.

Sebastião Alba: “Na noite de 20 de Janeiro de 1974, meu irmão ia ao volante, ao largo das estrelas. Seu companheiro de viagem ter-lhe-ia dito: “Carneiro Gonçalves, olha que noite!”; e o carro em que seguia despistava-se a vinte quilómetros de Vilanculos; ele morreria hora e meia depois, no posto sanitário dum areal nocturno. Tinha trinta e dois anos e – rigorosamente – o que sonhou. A mim, apenas quinze meses mais velho do que ele, fora destinado o definitivo infortúnio de escrever estas linhas.”

O texto de Alba é escrito vinte dias depois da tragédia e é o prólogo do livro que ele organizou. Traz duas lendas, entre as quais “Malidza”, contos, e o fragmento de uma novela. Um ano antes, na revista Tempo, no suplemento literário dirigido por Rui Knopfli, que o entrevista, o autor de Contos e Lendas deixaria a sua biografia sintética e magistralmente grafada.

Carneiro Gonçalves: “Tenho trinta e um anos, vi a luz do dia em Braga, mas nasci em Tete. Faço questão de conhecer o Zambeze. Com os contos que tenho poderia pelo menos publicar dois livros. Lá virá o dia. Ensaiei um romance que reescrevi já algumas vezes. Ontem mesmo ia na primeira página…”

Eu li esta lenda no secundário e ao longo dos anos sabia-o de cor. Este é um dos textos que mais me empolgou –  a par de “As Mãos dos Pretos”, de Luís Bernardo Honwana – ao longo de largos, larguíssimos anos. Carneiro Gonçalves tinha outros belíssimos textos, como “A Lua do Advogado” ou “A Mulher do Escritor”. Mas foi “Malidza” que sempre concitou o meu entusiasmo. Durante anos acreditei que se tivesse uma filha ela teria o nome de Malidza, era tal a minha paixão por esta belíssima história de amor. Bela e trágica: o sacrifício de Malidza, o sofrimento de Kilomko acompanharam-me desde sempre.

Talvez eu também tenha querido ser escritor por causa deste belíssimo texto. Recordo-me do quanto ficava empolgado nas aulas de português, com o professor Agostinho Mamade, na Josina Machel, quando dávamos este texto. Líamo-lo e descodificávamos as palavras. O vocabulário, as expressões linguísticas, as metáforas. Um parágrafo dava para discussão de uma aula inteira. O dicionário para encontrar o significado. O exercício da sinonímia. A riqueza vocabular, a riqueza semântica, a expressiva capacidade de contar, em pouco mais de três páginas, uma belíssima história seriam para mim uma grande lição de escrita.

A poesia: aprendi ainda com este texto de que a narrativa, a prosa, não eram expressões despidas de poesia. Antes pelo contrário. A bela prosa era também a expressão cabal de boa poesia. O ritmo das frases. As suas metáforas. As suas imagens. O seu encadeamento. As suas invocações. A escolha das palavras. As palavras certas na frase. As palavras escolhidas com cuidado. As palavras ditas com enlevo. As palavras escritas com inequívoca beleza.

Aquelas aulas com a leitura cuidada de “Malidza” foram, por assim dizer, as minhas primeiras lições de escrita literária, uma espécie de iniciação na chamada escrita criativa. Escrever é um ofício que se ensina e se aprende. É tradição anglo-saxónica. Nós adviemos de um universo onde se cultiva um certo misticismo em relação à criação literária. Onde ao talento se consigna uma certa ideia de um poder divino ou encantatório que nos leva a escrever ou a criar. Devo dizer que não comungo dessa visão. A literatura procede de trabalho, de exercício, de leitura antes de tudo, de conhecimento, de conhecimento da tradição literária, de conhecimento de outras escritas, de dedicação, de obstinação. Mas isso é tema de outra conversa.

Em 2005 foi publicado em Portugal o volume A Escrita de Anton, de Carneiro Gonçalves (organização e estudo introdutório de Calane da Silva e notas biobliográficas de António Sopa), que recolhe os textos que haviam sido dados à estampa na recolha Contos e Lendas, acrescenta-se-lhe uma lenda pelo menos, alguns contos, crónicas e uma massa espessa de textos puramente jornalísticos. Li o longo texto do Calane da Silva, polvilhado de muita informação, que ajudam a compor o perfil deste escritor desaparecido precocemente. Chamavam-no os mais próximos de Anton, o nome do seu primeiro contista predileto, Anton Tchekov.

Li os textos, dos muitos publicados em A Tribuna, Diário, Notícias da Beira, nas colunas que Carneiro Gonçalves teve. Pessoalmente, atenho-me aos contos e às lendas. Reconheço que haverá, algures, noutros textos, o quilate da escrita do autor, mas nada melhor do que nos textos que o próprio exerceu, até ao limite, a sua oficina, burilou e expurgou tudo que era expurgável. Nada tenho contra a recolha de textos jornalísticos, interrogo-me apenas quais seriam os limites. Publica-se tudo? Quem afere a sua qualidade? O autor, se estivesse vivo, aprovaria? Bastará, como no caso, a vontade da família?

Esta questão ponho-a em relação ao que está na imprensa, não em relação a obras literárias inéditas – há casos de autores que se manifestam contra a publicação póstuma de certas obras que deixam inéditas e que se revelam, ulteriormente, obras-primas. O caso de Franz Kafka que pediu que o seu amigo Max Brod queimasse os seus manuscritos é revelador. Vieram a confirmar-se como obras-primas. Kafka, se quisesse, as queimaria ele próprio. Não queimou porque tinha, ainda que remotamente, esperança na obra que deixava. Isso é um caso diferente. Outra coisa é a exumação de textos de circunstância, nos sepulcros dos jornais. Aí me interrogo. A despeito, a escrita de Carneiro Gonçalves é uma das mais belas escritas que se podem encontrar no universo da literatura moçambicana, não obstante o facto de ele ter-se apartado muito cedo do reino dos vivos.

Rui Knopfli: “Carneiro Gonçalves comete às letras moçambicanas o ânimo e a frescura do seu discurso lesto e elegante, de um rigor que não pactua com fáceis efeitos de embelezamento, antes se cinge aos calculados riscos de uma disciplina que é, simultaneamente, a da cultura e a de uma ática simplicidade. (…) Razão, talvez, por que a sua prosa desencadeia em nós a fragrância de um vinho novo e generoso, acidulado e nobre.”

Sebastião Alba: “Meu irmão caminhava em sombra; caminharia sem se voltar até ao fim das nossas vidas. E, afinal, era o que a todos nos restava dele. Não estou certo de que tenha feito uma boa escolha, pois de quase nada estou seguro. Como sucede com muitos de nós, ele acreditava que aquilo a que se chama a visão de um artista é a sua primeira imagem poética do mundo, essa que ao longo da vida se busca fixar num fundo de luz permanente. Vinte dias após a morte dele, não posso ainda impedir-me de esbarrar no que se me afigura uma evidência pavorosa: a obra desde já irrealizável e a que, algum dia, lograsse acabar, tiveram para ele um mesmo e último sentido.”

Creio que o Alba explicita, enunciando as dúvidas que teve em resolver o vazio que encontrara, após cotejar o índice encontrado na pasta que Carneiro Gonçalves levava consigo, que o levou – passe-se a redundância! – a substituir um conto que não descortinou por um texto escrito aos vinte anos: “Um circunstancialismo jugulante impediu que outro feixe de contos se atasse, desde logo, no presente volume.” (Sebastião Alba)

Carneiro Gonçalves tinha uma estranha predilecção pela lua. A lua ou o luar são títulos de seus contos ou escritos, atravessam as suas histórias. Naquela noite de 20 de Janeiro de 1974, ele ia ao volante e terá dito o seu companheiro de viagem: “Olha que noite! Que luar tão lindo!”. Carneiro Gonçalves, ao que parece, fascinado com o luar, despistou-se entregue a essa visão sublime que o prendeu ali para sempre.

 

No texto de Alba, redigido próximo da morte do irmão, não aparece a referência ao luar: “Que luar tão lindo!” Calane da Silva acrescenta-lhe essa frase e diz que a confirmou de um amigo indefetível de Gonçalves, João Schwalbach. Sou amigo há mais de trinta anos do Julius Kazembe. Sei que ele ia com o Carneiro Gonçalves naquela noite, falámos eventualmente de Carneiro Gonçalves, mas sempre evitei abordar a história e os pormenores de um dos trágicos acidentes que marcam a história literária de Moçambique.

 

Há muitos anos que não lia “Malidza”. Olhei sem desespero para a estante e a memória levou-me a esta história da minha adolescência, história que marcou definitivamente a minha vida e que ainda hoje me comove quando a leio como se a lesse pela primeira vez. Tenho dois filhos. A mais nova é uma menina. Uma belíssima rapariga à beira dos 18 anos. Não cheguei a dar o nome da heroína da lenda do Carneiro Gonçalves, como sonhei algures na juventude. Nem sequer teve o nome da cantora Sade Adu por quem me haveria de apaixonar anos mais tarde. Ela chama-se Mayisha, foi o nome escolhido pelo seu mano Irati.

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