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ARTIGOS DE OPINIÃO

Em Junho na Suíça pretende-se realizar uma conferência internacional dita “de paz” sobre a Ucrânia. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Ignazio Cassis, afirmou não pensar que seja celebrado já um acordo de paz durante o evento, mas espera que a reunião lance “um processo com base no qual tudo será construído”. O paradoxo, no entanto, é que o ministro, apesar de reconhecer que as negociações para uma solução pacífica da crise ucraniana não podem ter lugar sem a Rússia, declarou que a conferência, entretanto, se realizará sem ela….

É simbólico que no mesmo dia, 20 de Abril, em que os seguidores do nazismo e fãs do sanguinário Hitler celebram o seu aniversário, o Congresso norteamericano aprova pela lei denominada “Paz através da força” um financiamento de 61 mil milhões de dólares para continuar a confrontação armada com a Rússia, que está a lutar contra os seguidores da ideologia nazi na Ucrânia.

O que é que os participantes da Conferência vão então discutir? De acordo com Sr. Cassis, poderiam chegar a acordo “sobre a melhor altura para convidar a Rússia a participar”. É uma declaração muito interessante para um país que ainda tenta posicionar-se como neutro. Aliás, com as suas acções – apoiando abertamente o regime de Kiev, aderindo a todas as sanções anti-russas, adoptando estratégias que excluem a Rússia do sistema de segurança europeu – a Suíça minou a sua reputação de um mediador imparcial de longa data, não deixando dúvidas para quem está a jogar.

Perante os fracassos das forças armadas ucranianas na frente de batalha e o nível de corrupção sem precedentes no país, o Ocidente está a tentar salvar o regime de Kiev com mais uma conferência de “paz”. Washington e Bruxelas, habituados a confiar apenas em força na resolução de problemas, negligenciaram, à sua maneira típica, a situação a tal ponto que agora os seus fantoches de Kiev têm literalmente de ser salvos. Por seu lado, Vladimir Zelensky, estrelando nesta conferência, entre outros, está obviamente a perseguir o objectivo de legitimar o seu poder aos olhos da comunidade internacional após o termo legal da sua presidência, em meados de Maio do ano em curso.

Assim, o objectivo-chave do Ocidente na cimeira da Suíça é atrair o maior número possível de países, especialmente os Estados não-alinhados do Sul global, para a agenda anti-russa. Precisam disso, entre outros, a fim de unir as fileiras dos Estados europeus, atemorizados pela imaginada ameaça russa, e angariar mais dinheiro para apoiar Kiev. A Ucrânia, neste caso, actua mais uma vez como a ponta da lança no confronto geopolítico entre o Ocidente e a Rússia. A conferência assim visa não apaziguar mas exacerbar ainda mais as tensões globais.

As autoridades russas muitas vezes frisaram que mesmo recebendo o convite, Moscovo não participaria no evento suíço. Porquê? – Trata-se mais uma vez da promoção da famigerada “fórmula de paz” de Zelensky, que é absolutamente inaceitável por não ter nada a ver com a realidade.

Esta fórmula desde já não implica quaisquer compromissos, alternativas. De facto, nas circunstâncias de proibição por decreto de Zelensky de manter quaisquer negociações com a Rússia, é um conjunto de ultimatos, que se reduzem ao único objectivo ilusório de castigar militarmente a Rússia. Dificilmente pode-se chamar-lhe um plano de Paz, já que se pressupõe a derrota definitiva de uma parte. Promovendo esta “fórmula” Kiev prova a sua impreparação para resolução e na prática significa escalação, mas não fim do conflicto. Todas as outras iniciativas que foram expressas por representantes da China, da África do Sul, do Brasil e da Liga Árabe não foram tomadas em consideração. 

Promovendo este “ultimato” a todo o custo, os patrocinadores do regime de Kiev recorrem a vários truques. Por exemplo, sugere-se escolher apenas algum ponto que vários países podem aceitar, recomenda-se também que não se elabore um documento final, mas apenas que se realizem debates. O principal é reunir o maior número possível de países para tirar uma fotografia conjunta, dando a impressão de que as ideias de Kiev são apoiadas em todo o mundo. Uma foto comum com tantas pessoas pretende-se servir, por si só, como um enorme incentivo para que a “fórmula” de Zelensky ganhe apoio. A intenção suíça consiste em “puxar” o maior número possível de países para um ultimato à Rússia por todos os meios possíveis.

A única luz de razão nesta cimeira é uma possível presença e contribuição da China, para tornar esta conferência útil para algo. No plano de paz de 12 pontos apresentado por Pequim no ano passado a ideia razoável é lidar primeiro com os problemas sistémicos de segurança no nosso espaço comum. É resolver as causas profundas, internas e internacionais, da actual situação na Ucrânia. Esta na realidade se converteu numa guerra híbrida que o Ocidente tem vindo a preparar contra a Rússia há muito tempo e que foi finalmente desencadeada pelas mãos e corpos dos ucranianos. 

Estas ideias, aliás, são lógicas. Em 2021 a Rússia mesma, na intenção de prevenir o conflicto, apresentou uma proposta semelhante: chegar a um acordo sobre a indivisibilidade da segurança e a forma como a traduzir em medidas práticas para a não expansão da NATO e em garantias necessárias baseadas em princípios justos e iguais para todos. Na altura a iniciativa foi deixada sem resposta pela parte ocidental. 

Assim, a abordagem chinesa está absolutamente no contexto do debate agora intensificado sobre a forma de garantir a segurança euro-asiática em todo o continente: na sua parte europeia, na Ásia Central, no Cáucaso e noutras regiões do continente onde a situação é turbulenta e os conflitos estão a rebentar. Enquanto as “iniciativas” suíças estão apenas a cumprir uma “ordem” dos Estados Unidos e dos seus aliados de maquilhar a cara dos que já várias vezes frustraram as iniciativas reais de paz.

A Rússia nunca rejeitou a ideia de negociações, estando sempre pronta a sentar-se à mesa e discutir. Tudo depende dos princípios em que se baseia o diálogo. Os EUA e os seus aliados, sem vergonha andam a dizer que querem “liquidar” a Rússia. Não lhes convém a própria forma da nossa existência. Com quem vamos negociar? Em 2022 em Istambul com um grupo de representantes de Kiev já foi concordado o projecto de um possível então acordo nos interesses mútuos. Como gesto de boa vontade a Rússia retirou as tropas de Kiev e algumas outras regiões. Em resposta – sob pressão dos países ocidentais a Ucrânia deitou fora aquele documento. E Zelensky proibiu por decreto qualquer negociação de paz.

Mesmo hoje se realizarmos tais chamadas negociações de paz, amanhã a outra parte enganar-nos-á de novo. Para que conversar com os que não mantêm a sua palavra?

O que a Rússia queria ver como resultado? As negociações podem ser productivas, se conduzirem à eliminação das raízes e causas do conflicto e ao acordo sobre as formas aceitáveis da realização de objectivos da Operação – desmilitarização e desnazificação. 

A resolução pacífica só pode ser feita em pé de igualdade, quando todos podem apresentar e garantir os interesses legítimos dos seus povos. Tem de haver uma conversa honesta baseada em novas realidades geopolíticas. A discussão não deve visar ganhos egoístas ou lançar achas na fogueira, mas ter como objectivo reduzir a tensão e restaurar uma paz e segurança duradoura e justa… A conferência de Bürgenstock não tem nada a ver com a paz. Cuidado com ilusões – elas vão enganar novamente. 

 

Por Alexander Surikov,

Embaixador da Rússia em Moçambique

Com os meus 21 anos, trabalhando como rececionista numa empresa e recebendo um salário mensal de 2.500,00 meticais entre os anos de 2000 e 2010, o Presidente do Conselho de Administração (PCA) da empresa, com 55 anos de idade, teve acesso às minhas informações bancárias e começou a enviar-me, no final de cada mês, um valor extra de 21.000,00 meticais. Quando me apercebi desta situação, procurei o PCA para questionar a razão por detrás do recebimento deste montante tão elevado, tendo em consideração o valor do metical naquela altura. Ele afirmou tratar-se de um incentivo, pois via-me como uma das suas filhas. Agradeci sinceramente, uma vez que a minha família necessitava de dinheiro e aquela ajuda não era ilegal. Esta situação repetiu-se durante mais 8 meses, e a cada final de mês ia ao gabinete dele agradecer. Contudo, numa dessas visitas ao seu gabinete, ao tentar expressar gratidão pelo cuidado do “meu pai” para comigo, ao dar-lhe dois beijinhos na bochecha, ele beijou-me nos lábios. Senti-me tão constrangida que saí do trabalho em lágrimas, incapaz de compreender como é que aquele que me via como uma filha agora me via como mulher.

Dias depois, ele procurou-me e confessou seus sentimentos, expressando a intenção de se casar comigo. Receosa de perder o emprego, pedi conselho à minha avó. Ao saber que ele era muito rico, ela aconselhou-me a casar com ele, justificando que a esposa se habitua ao marido, não necessitando de gostar, apenas habituar-se, e garantindo que eu me acostumaria a ele. Enganada, acabei por aceitar e casar com ele. Durante 10 anos, vivi um verdadeiro inferno, não por falta de amor ou cuidado da parte dele, pois tinha tudo o que alguém poderia desejar naquela época, incluindo viagens, carros de luxo e muito mais. Contudo, o facto de ele me tratar como pai durante o dia, protegendo-me e cuidando de mim, e à noite me querer como mulher, causava-me uma enorme confusão. Até certo ponto, devido ao carinho que tinha por mim, aprendi a vê-lo como pai. Quando ele me procurava como mulher, sentia-me violada pelo meu pai. Apesar da vida luxuosa, repleta de carros, viagens e tudo o que uma pessoa comum poderia desejar, a felicidade estava ausente. Entrei em depressão e busquei ajuda médica. Ao informar a minha mãe sobre a minha intenção de me separar, não obteve apoio; pelo contrário, chamou-me ingrata. Ao conversar com o meu marido, ele acolheu e compreendeu a minha decisão. Propôs comprar-me uma casa e sustentar-me, permitindo que me relacionasse com pessoas da minha idade, desde que estivesse sempre disponível quando ele precisasse. Recusei e separei-me.

Ouvir esta história despertou em mim uma revolta interna, pensando em quantas jovens têm a sua inocência roubada por homens com o dobro ou triplo da sua idade na nossa sociedade moçambicana. O caso que descrevi é menos grave pelo facto da jovem já ter atingido a maioridade. Contudo, há outras que são sujeitas a estas vidas antes mesmo dos 15 anos. Privadas da sua infância, são forçadas a casar e cuidar de um lar, mesmo necessitando de cuidados e proteção que deveriam ser providenciados pelos pais, mas são estes mesmos pais que as vendem e destroem o seu futuro em troca de bens e dinheiro. Moçambique, até quando continuarás a condenar as crianças e adolescentes a realidades como estas?

Recentemente ouvi o relato de uma adolescente de 15 anos que foi violada repetidamente por um homem de 47 anos. Apesar da denúncia, o agressor foi libertado, o que levou ao desespero da mãe da vítima. Não consigo ficar indiferente perante os gritos de socorro da mãe ao ver o agressor ser solto. Não pretendo abordar as questões legais deste caso, mas sim refletir sobre o quão difícil é ser jovem do sexo feminino em Moçambique. Aqui, os homens parecem ter carta branca enquanto as mulheres são relegadas a um pequeno espaço, sem direito a manifestar-se, como se, muitas vezes, a culpa da violação recaísse sobre a vítima aos olhos da sociedade. É frequente culpar as mulheres em casos de violação, insinuando que a adolescente provocou a agressão devido às suas roupas ou ao seu corpo. As mulheres vivem sem paz nesta sociedade.

Relatos como estes revelam as profundas feridas que permeiam nossa sociedade, onde o abuso de poder e a exploração destroem vidas inocentes. É tempo de unir vozes, de erguer-nos em solidariedade pela justiça e pela proteção dos vulneráveis. Devemos romper com o silêncio que aprisiona a coragem e silencia os gritos de socorro. Moçambique, o desafio é nosso, de cada um de nós. Que estejamos dispostos a agir, a nos educar e a proteger uns aos outros. Que a luz da verdade dissipe as sombras do medo e da injustiça. Que cada passo em direção à igualdade e ao respeito seja um farol de esperança para as futuras gerações. O tempo de transformação é agora. Façamos juntos história, erguendo-nos como agentes de amor, justiça e mudança.

Para repudiar este comportamento e trabalhar em direção à mudança, é vital promover programas educacionais e de consciencialização e defender a implementação e aplicação de leis mais rigorosas para proteger as vítimas de abuso e punir os agressores. Oferecer suporte psicológico e social às vítimas é crucial, assim como promover a capacitação económica e a autonomia das mulheres. Através destas mudanças e ações, podemos criar um ambiente mais seguro e protetor para aqueles que sofrem de abuso e violência. 

Quando mergulhamos na contemplação do sofrimento das almas eclipsadas pela sinfonia soturna da pólvora, nas teias da sociedade envolvida num eterno lamento de miséria, onde a alma humilde muitas vezes suplica pelo término da produção bélica, consciências despertas tecem pensamentos vigilantes, testemunhando o sofrimento das massas e a devastação do planeta pelas cinzas das forjas bélicas. As ondas fumegantes do conflito escravizam e envelhecem o manto do ozono, embora sejam tecidas para ornamentar o diagrama financeiro e enriquecer os cofres dos fabricantes.

As armas, que forjam rios de chumbo a banhar o peito humano, diluindo as células da alma em cálices de morte, deixam as aldeias desfavorecidas desprovidas de alegria e da vontade de existir. Urge transcender o medo e buscar a coragem que extingue a fábrica de armamentos, conduzindo o mundo à celebração do baptismo no Rio do Amor, da Paz, da Paixão e dos Prazeres Benevolentes. Talvez seja necessário despertar a consciência para a compreensão de que a arma é o reflexo natural do espectro da morte e do sofrimento.

Sim, o olhar perspicaz detecta nas tintas da guerra cores análogas às das indústrias bélicas que movem oceanos em troca de semblantes de dólares. A padronização da produção de instrumentos letais encobre o destino de vidas inocentes, com a dança macabra de projécteis bélicos que acariciam com a morte o peito desprotegido dos menos afortunados.

Os versos da poesia da guerra mesclam-se às nuances do neocolonialismo engendrado pelas nações opulentas, disfarçadas de auxílio sob pretexto, perpetuando a eterna dependência dos países menos favorecidos, minando a inteligência dos seus líderes e, muitas vezes, usurpando o desenvolvimento das sociedades ao pilhar os seus recursos naturais sem retribuir benefícios directos ao povo, ou impondo políticas que limitam a sua exploração e comercialização, obstaculizando, assim, o avanço desses países.

Os versos da poesia da guerra confundem-se com a claridade do segredo que embriaga as consciências, levando-as a proferir “sim” ao que é “não”, em todas as teorias que não se traduzem em benefícios para as nações menos favorecidas. Às vezes, os versos dessa poesia tomam a cor dos que buscam riqueza, sacrificando a alma dos desprotegidos, esquecendo-se de que todas as almas, sejam elas envoltas na penumbra da opulência ou no fulgor da penúria, enfrentarão a mesma experiência derradeira, o mistério oculto além da morte. Sim, a guerra veste-se com as cores da morte, enriquecendo as nações que olvidam que nenhum povo, de qualquer nação, escapará à experiência do transe final.

Os versos da poesia da guerra ecoam nos gritos das crianças que se escondem nas matas [do Leste da RDC, do Norte de Cabo Delgado, na Faixa de Gaza, na Ucrânia, Burkina Faso, Sudão, Iémen, Síria…] sempre que os seus ouvidos se deparam com o estrondo do cano das armas, cuja produção gera mortes e a miséria de almas desprotegidas, enriquecendo, por outro lado, as nações produtoras de armamentos. O processo de fabricação de armas talvez participe, de maneira dissimulada, na degradação e destruição da mãe natureza.

A imagem da guerra está imbuída do egoísmo e da máscara da benevolência, que buscam restringir o progresso dos países menos favorecidos, impondo-lhes o jugo do sofrimento, da pobreza e das limitações. A guerra assume as cores das nações abastadas, que continuam a exportar políticas que impedem o avanço das sociedades carentes, aproveitando-se da falta de discernimento dos líderes destituídos de luz para direccionar os valiosos recursos existentes, incapazes de vislumbrar caminhos que libertem as suas nações do jugo do subdesenvolvimento humano.

A poesia da guerra reflecte-se nas cores das armas que ceifam prematuramente as almas do povo pobre. Reflecte-se nas tintas que não pincelam o mundo com traços de amor e cenários de benevolência, mas glorificam a riqueza das nações desenvolvidas com o clamor da guerra e o gemido das almas pobres, sem que as organizações humanitárias do mundo se interessem em discutir temas que desestimulem a produção bélica. Hoje, discutem-se exaustivamente as energias fósseis, talvez porque o progresso dos países menos favorecidos esteja ligado à exploração e comercialização desses recursos, algo que poderia abalar a arrogância e prepotência das nações que ditam as regras do jogo global.

Os resultados financeiros da indústria bélica tornam-se mais positivos quanto maior for o consumo de vidas ou o número de vidas ceifadas. O marketing da morte embriaga as consciências compradoras de armamentos, semeando o desespero numa existência que deveria ser pautada pela esperança de viver num mundo justo.

Precisamos de uma mobilização social para resgatar o mundo das garras das armas e secar o rio de lágrimas vermelhas que fertiliza a indústria bélica e os seus acessórios. Precisamos de um esforço colectivo para tecer a paz com as letras da poesia, num mundo bom para todos. Os países pobres não devem mais ser forjados como campos de batalha geneticamente ocidentais; eles precisam de desvendar o véu que esconde as armas e o fardo económico das mãos que oferecem ajuda sob uma falsa aparência de generosidade. 

 

Deus livre o pobre do consumo de armas!!!

Eu era muito jovem e um dia chegou-me às mãos o livro “Mangas Verdes com Sal”, do Poeta Rui Knoplfi, que tinha um prefácio, cheio de vinagre, de Eugénio Lisboa. Era um exemplar maltratado, de uma primeira edição da obra e recordo como o li: sôfrego e exultado. O texto de Lisboa era luminoso e cortante, exaltante e exabundante. Era verrinoso. Ali estavam as firmes ideias do ensaísta. Fiquei chocado com a forma como ele zurzia alguns dos meus mitos  –  entre eles, Noémia de Sousa  –, mas fascinou-me logo aquele espírito seu livre e provocatório, aquela sua verdade, aquela sua virulência, sobretudo lexical, aquela escrita saborosa e informada, encantada e encantadora, aquelas inúmeras citações, aquela erudição toda, aquela torrente, tudo aquilo teve um impacto tremendo sobre mim. Li, depois, quase tudo o que encontraria do crítico, especialmente os dois volumes de “Crónica dos Anos da Peste”.

Eugénio Lisboa, que hoje abandona o reino dos vivos, aos 93 anos – nascera em Lourenço Marques a 25 de Maio de 1930  –, tinha uma coisa de que gosto muito: a coragem de procurar e dizer a verdade. A sua verdade. Podemos gostar ou não do que escreve, do seu juízo crítico, muitas vezes acerbo, ou das injustiças que provavelmente cometeu, mas numa coisa temos que lhe fazer justiça: era dono de uma escrita fascinante. Era um ensaísta instigante, um cronista viperino e um memorialista lustrado. Escreveu poesia, quis ser poeta. Os deuses estavam com o prosador e o seu sangue bom. Basta que nos atenhamos às suas vastas memórias: “Acta Est fabula”. A expressão da antiga língua latina era usada quando terminavam as encenações: “A peça está representada”.

Conheci-o na mesma ocasião em que a Noémia de Sousa me levou aos ombros do Rui Knopfli, nos corredores da Gulbenkian, em Fevereiro de 1989, aquando do mítico I Congresso de Escritores de Língua Portuguesa. Nesse mesmo ano, Eugénio Lisboa revistou “a capital da memória”, como haveria de consignar  Maria de Lourdes Cortez. Recebemo-lo de braços abertos. Anoto parte do seu diário, citado nas memórias (“Acta Est fabula”), uma entrada de 04.06.89: “Ontem, almoço em casa do José Soares Martins, com a presença de alguns moçambicanos: professores, escritores (Raúl Honwana, Nelson Saúte, Baka Cossa (sic), Gilberto Matusse, José Cunha). Conversa animada, franca, surpreendente. Entre Cossa e Honwana estabelece-se um diálogo vivíssimo, revelador das tensões e “bifurcações” existentes actualmente e, ao mesmo tempo, da liberdade de expressão que se conquistou (por quanto tempo?). Conversa com Gilberto Matusse, articulado e informado. Pergunta-me, à queima-roupa, o que penso de Sá de Miranda. Faz-me perguntas, revelando conhecer razoavelmente bem os meus livros. Idem, da parte de Cossa e de Nelson Saúte. Repetem que me consideram a mim e ao Rui Knoplfi escritores moçambicanos – que não abdicam de nós. Depois, querem saber como me sinto: moçambicano ou português? Digo-lhes que me sinto as duas coisas, como sempre me senti: dividido entre um Moçambique que me não sai do sangue e da memória e uma cultura portuguesa (europeia) que me alimentou desde sempre. Quando, em conversa, digo: `a vossa literatura`, corrigem-me, imediatamente: ´a nossa; tu és nosso´. Comovente.”

Noutra entrada do dia 09.06.89: “Perguntei há dias, ao Nelson Saúte – que mostra conhecer as minhas coisas, com algum pormenor – onde as tinha arranjado (ele tinha só 9 anos, quando eu saí de cá). Respondeu-me: “Umas comprei, outras emprestaram-me e outras roubei. “Pas mal. Não deixa de ser lisonjeiro.” Não desminto. Quem sou eu para fazê-lo, embora me tenha surpreendido o “outras roubei”? Creio, a esta distância, que deve ter sido na época em que eu ostentava aquela velha “boutade” de que roubar um livro era um acto de cultura. Mas não recordo que tivesse praticado este tipo de delitos. No mesmo dia, Lisboa anotava: “Daqui a poucos minutos, chega-me aí o Nelson Saúte, para uma entrevista para a revista “Tempo”. Dei duas entrevistas para a Rádio, duas para a Televisão, uma para o “Notícias” e, agora, esta para a “Tempo”. Acho suficiente”.

Nesta longa entrevista falámos de quase tudo: do pai, que fora funcionário dos Correios, da sua infância, da ida para Portugal para cursar Engenharia, de Portalegre, o encontro com José Régio, o regresso, a Escola Industrial onde lecionou Electrotecnia e Mecânica, a colaboração no “Diário de Moçambique”, no “Paralelo 20” e, mais tarde, na “Voz de Moçambique”, publicações de onde iria resgatar textos que fariam parte do seu livro “Crónica dos Anos da Peste”, título sugerido pelo Rui Knopfli, a partir das “Crónicas dos anos da peste” que Eugénio Lisboa publicava então. Falámos do seu tempo na Beira, do “Notícias da Beira”, do Cine-Clube de Lourenço Marques onde se viam filmes marcantes, dos soviéticos Eisenstein ou Pudovkin, do polaco Wadja, entre outros. Falámos de Jorge de Sena. Da Associação dos Naturais de Moçambique. Abordei as polémicas com Alfredo Margarido ou Rodrigues Júnior. Quis saber mais sobre “Caliban”, Knopfli, Grabato Dias. Falámos do Rádio Clube e da memória do poeta Reinaldo Ferreira, que morreu a 30 de Junho de 1959. Nesse ano, Knopfli publicou “O País dos Outros” e começa a amizade entre ambos e do Eugénio com Carlos Adrião Rodrigues, um brilhante e culto advogado, que um dia disse uma das frases mais luminosas: “Craveirinha e Knopfli, o verso e anverso de uma poesia em evolução”. Cito-a de memória. Falámos da sua paixão pelo teatro, ele lembrou Sara Pinto Coelho, a mãe do meu saudoso amigo Carlos Pinto Coelho, que dirigia um programa de teatro no Rádio Clube, onde o Lisboa iria promover Racine, Régio, Montherlant, Ibsen. Falámos das suas empreitadas poéticas e do seu retorno a Moçambique, vastamente cartografado nas suas memórias.

Uma entrevista não dá para tudo, mas aquela é uma primeira arqueologia literária que eu estabelecia com ajuda de um dos protagonistas da cena literária no meu país antes do advento da independência. No volume III da “Acta Est Fabula” iria encontrar pormenores e detalhes que iriam satisfazer a minha gulosice pela nossa história literária. Craveirinha deu-me, nas nossas longas conversas, depoimentos inesquecíveis dessa fase. Knopfli idem. Mesmo com a sua língua, igualmente afiada. Eugénio Lisboa escreveu páginas fascinantes sobre essa época. Sobretudo do seu magistério soberano. Tive o benefício de o ouvir, também, no contacto pessoal, muitas vezes. E sinto-me grato. Como me sinto grato pela sua amizade. Para sempre.

Numa entrada de 17.06.89, já em Londres, Lisboa dava conta: “No dia 11, à noite, depois do regresso da Matola, foi o resto da longa entrevista com o Nelson Saúte. É impressionante o que esta gente nova conhece, com minúcia, daquilo que outrora deixámos disseminado por livros, jornais e revistas. Não é apenas conhecer: é um conhecer tão apaixonado, que quase me aterra.” Com data de 30.05. 96, a seguinte entrada: “Ontem, à noite, jantar em casa do Soares Martins (adido cultural na embaixada de Portugal). Estavam presentes o Nelson Saúte e a mulher (com um bebé de dois meses) e o António Sopa. Foi um convívio simpático e fizemos considerável má-língua. Sem vinagre.” O Irati nascera em Março de 1996.

Convivi com o Eugénio Lisboa, em Londres, em Sevilha, em Lisboa e em Maputo. Uma vez, em sua casa de S. Pedro de Estoril, ele reuniu: Rui Knoplfi, Noémia de Sousa, Fonseca Amaral, Eduardo Pitta e eu próprio. Foi um dia inesquecível. O Fonseca Amaral morreria pouco tempo depois. (Aliás, Lisboa faria, anos mais tarde, o prefácio da obra deste poeta mestre da geração do Knopfli, vergastando-o, o que me pareceu injusto e injustificado). O Knoplfi morreu no Natal de 1997, Noémia em Dezembro de  2002, depois de editarmos o seu “Sangue Negro”. Eduardo Pitta faleceu há meses, a 25 de Julho de 2023. Agora, é o Eugénio Lisboa que desaparece, entre os membros daquela tertúlia.

Quando lancei a antologia “Nunca Mais É Sábado”, pedi ao Eugénio Lisboa que a apresentasse. Não se furtou e cumpriu o mito do seu vinagre milenar, zurzindo-me literalmente. Discordei dele nos critérios, como é óbvio. A poesia moçambicana não poderia apenas ser o escol dos eleitos. Isso não arranhou a minha admiração por ele. Aliás, continuei a lê-lo e admirá-lo. Quando fez 90 anos, em 25 de Maio de 2020, escrevi um texto a saudá-lo. Accolade, diria ele. Na sequência disso mantivemos uma breve comunicação. Ele escreveu-me uma carta que me comoveu.

Nessa homenagem, lembrava-me do facto de ter sido seu hóspede em Londres. Hóspede de Maria Antonieta, a sua mulher, que me acolheu com tanta atenção e carinho. O “Epílogo” da “Acta Est Fabula” é uma pungente evocação de Maria Antonieta, que morreu em 2016. É um livro desolado e desolador. Pungente. Há ainda o livro sobre as viagens e os seus diários. Os seus diários (“Aperto libro”) são dois volumes com uma bizarria que é estranha em toda a obra de Eugénio Lisboa: problemas de revisão. Falta de cuidado na fixação do texto. A despeito, a leitura dos diários é igualmente prazerosa.

Li, depois, os poemas, sobretudo na pandemia, que Eugénio escrevia para esconjurar a morte. Publicara antes uns volumes de poesia, sem a expressão nem dimensão da sua obra ensaísta e crítica. Era imenso na exegese, deslumbrante na hermenêutica. Na poesia não era tão destro. Disse-lhe que os deuses não o tinham protegido nesse quesito. Aceitou a minha opinião, mas foi contumaz na prática, sobretudo de sonetos, que o menorizavam. Os deuses podem ser generosos, mas não o são sempre.

Eugénio Lisboa não só escrevia luminosamente, como falava soberbamente. Era um tribuno exemplar e um conferencista brilhante. A sua conversa, erudita e sedutora, era subjugante e apaixonante. Lisboa  dizia, a propósito de Alberto de Lacerda, que conversar com o Poeta de “Exílio” era melhorar o silêncio: “Conversar com ele era um prazer interminável e inesgotável. Era prodigiosamente culto, assassinamente observador, genialmente parcial, guloso de literatura, de pintura, de música, de escultura e de liberdade. Era um dos poucos génios da arte de conversar, que até hoje conheci. Diz um provérbio qualquer que não se deve falar a não ser que, com isso, se faça melhor do que o silêncio. A conversa do Alberto melhorava extraordinariamente o silêncio.” Lisboa era assim. Eu diria o mesmo dele. Lisboa era um conversador exemplar. Único, jubiloso. Era avassalador.

Num livro de matérias várias (miscelânea de ensaios, estudos e crítica), a que chamou justamente “O Objecto Celebrado”, Eugénio Lisboa cita Marco Aurélio, no frontispício, que afirma: “Tudo passa num dia, o panegírico e o objecto celebrado”. A sua obra imensa é exactamente isso: um “objecto celebrado”. Inteligente, ágil, penetrante. Sedutora. Absolutamente sedutora. Subjugava, era tão bela e iluminada. Uma longa crónica dos intermináveis anos da peste. Obra apolínea, caprichada, admirável. Catita.

Recordo-me de o ouvir falar de gatos, de livros, de música, de pintura, de teatro, de cinema, de Régio, de Sena, de Gide, de Montherlant, da sua velha Lourenço Marques (minha Maputo), da luz do Índico, da “Voz de Moçambique”, do Knopfli, do Craveirinha, de Londres, de Veneza, das cidades, dos escritores e da vaidade de alguns, do génio dos que admirou, ou, simplesmente, da estupidez humana. Sempre culto, felino, sensível. Eugénio Lisboa era sempre fascinante, mesmo quando se discordava dele. Imodesto, ufano, vasto, brilhante, luminoso, espantoso, vibrante, vívido e ofuscante. Ostensivamente inteligente e culto. Tinha o vicio impune da leitura. Fez dos livros o seu magistério. Até ao fim. Acaba de morrer um sábio. Um dos últimos neste tempo sem lustro, génio ou cultura.

 

Acta est fabula.

 

KaMpfumo, 9 de Abril de 2024

A tragédia da embarcação que virou e matou cerca de 100 pessoas na Ilha de Moçambique veio despertar na consciência de muitos moçambicanos que afinal o Estado (Governo) moçambicano não tem a capacidade de nos proteger das tragédias públicas, sejam elas causadas por factores naturais ou humanos, como é o caso em alusão. Diz-se que que tudo na vida tem o seu lado positivo, mas para tragédias como estas da Ilha de Moçambique, é difícil encontrar “um lado positivo”. Principalmente agora que as famílias ainda estão a enterrar os corpos dos seus entes queridos e outras ainda aguardam que os seus familiares regressem, vivos ou mortos. 

O que podemos fazer com esta tragédia é despertar a consciência para reflectir sobre as nossas tragédias colectivas como Estado (povo). Como dizia no Noite Informativa da última segunda-feira, a embarcação da Ilha de Moçambique é o nosso my love marítimo. Se moçambicanos são transportadores de casa para o trabalho e vice-versa, apinhados em camiões de carga (my love), na cidade capital Maputo, não pode haver surpresa que no distrito de Mossuril as pessoas sejam transportadas apinhadas em barcos de pesca. É uma das nossas tragédias colectivas: a tragédia da falta da dignidade da vida humana, principalmente a vida dos pobres.

Não é somente nos my love de Maputo ou nos barcos de pesca de Mossuril em que a vida dos moçambicanos pobres não é valorizada. Por exemplo, nos comboios da Empresa Pública Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM), os passageiros são transportadores pendurados do lado de fora dos vagões – devido à falta de espaço dentro dos vagões. Todos vemos isso sempre que nos cruzamos com um comboio na linha férrea, na hora da ponta. Talvez não estejamos conscientes do quão trágico isso é, até acontecer uma fatalidade como a da Ilha de Moçambique. 

A nossa Estrada Nacional Número 1 (EN1), é também uma tragédia. Cheia de covas, sem sinalização e nem serviços públicos para prestar primeiros socorros às vítimas de acidentes de viação (apesar de ter portagens para cobrar dinheiro aos utentes), a nossa EN1 é uma verdadeira tragédia que mata regularmente e vai continuar a matar.

As nossas tragédias colectivas não estão somente no sector de transporte público. E nem podiam estar. Senão seria um problema do sector (dos transportes) e não do Estado (Governo). 

No sector da Saúde, temos, por exemplo, a tragédia da cólera. Uma amiga cientista me explicou com muita simplicidade que a cólera é uma doença causada por ingestão de fezes humanas. “A pessoa infectada pelo vibrião colérico (a pessoa que tem cólera) vai defecar a céu aberto e não tapa as suas vezes. Estas expostas, são ladeadas por moscas que transportam as fezes para os alimentos (vegetais, por exemplo) que são servidos a pessoas saudáveis sem ser bem lavados. Estas pessoas saudáveis podem, assim, adquirir a bactéria e ficar com cólera. Houve, então, duas situações problemáticas de higiene neste cenário: 1) a pessoa que defecou a céu aberto e 2) a falta de higiene alimentar. Podia acontecer, também, a pessoa que defecou no cenário acima, limpar as fezes e não lavar as mãos. De seguida, poderia ter ido saudar com aperto de mão a pessoas saudáveis. Estas comendo sem lavar as mãos, podem ingerir a bactéria”.

A cólera é uma tragédia em Moçambique pois todos os anos milhares de pessoas ficam doentes e outras milhares morrem! Sem conhecimento das causas da cólera, a população se revolta com as mortes, destrói infraestruturas públicas, casas de agentes de saúde e mata líderes locais, acusando-os de ser agentes propagadores da cólera nas comunidades. 

O Estado (Governo) culpa o povo por ingerir fezes humanas, nas quais encontra a bactéria Vibrio cholerae que causa a doença, por isso o foco tem sido insistir nas campanhas para lavar bem as mãos, os alimentos, os utensílios de cozinha (nos quais se acredita que tem as bactérias causadoras da cólera). Mas poderia também ser o Estado a criar condições de habitabilidade dos assentamentos humanos para que as pessoas não andassem a ingerir involuntariamente as fezes humanas. 

Para entender o que estamos a dizer, basta olhar para bairros dos ricos como Sommerschield, Polana (Maputo), Macuti (beira), Parque (Nampula)! Não há (muitos casos de) cólera lá! Não porque o Governo anda a fazer campanha de educação contra cólera, mas porque as pessoas não defecam a céu-aberto, tem água canalizada nas casas para lavar os alimentos e sobretudo as pessoas que vivem nestes bairros têm instrução para saber o que se pode e o que não se pode fazer.

 A insurgência em Cabo Delgado também é uma das nossas tragédias colectivas, a mais recente a emergir. O Governo gosta de dizer que o que em Cabo Delgado temos uma agressão externa por uma organização terrorista, mas na verdade, são as nossas fragilidades que causaram a insurgência. Jovens locais, sem esperança de uma vida digna, foram facilmente aliciados, radicalizados e mobilizados para entrar nas matas, treinar e matar seus irmãos, amigos, pais, vizinhos e destruir propriedades públicas e privadas. O Governo pode negar que a pobreza, a exclusão económica, a falta de emprego, a falta de instrução e sobretudo a falta de esperança de uma vida digna, sejam a causa raiz da insurgência ou do terrorismo – como o Governo gosta de chamar -, mas negar factos não torna os factos inverídicos.

 

Da mesma forma que a cólera é causada pela falta de higiene, a o terrorismo em Cabo Delgado é causado pela falta de esperança de uma vida digna, pela parte da juventude local.  Os insurgentes não recrutaram jovens dos bairros da Polana, Macuti,  pelas mesmas razoes que o vibrião colérico não infecta (muito) os jovens destes mesmos bairros. 

Ter forças armadas que não conseguem combater a insurgência em Cabo Delgado, ao ponto de precisarmos da intervenção das forças Ruanda, também é nossa tragédia colectiva. É  ainda mais trágico acreditamos que sem treinar, equipar e pagar os nossos militares, ainda assim eles terão força e bravura para defender a pátria. É trágico criticamos os nossos militares pela falta de bravura e coragem, que os ruandeses têm, mas sem analisar os meios e condições de trabalho de que as duas forças dispõem!

O nosso sistema de ensino público é também uma das nossas tragédias colectivas. Das grandes! É muito trágico não construir salas de aulas, não pagar salários aos professores, não disponibilizar livro escolar e ainda assim fingir acreditar que os alunos aprendem alguma coisa. À semelhança da tragédia da cólera, da insurgência, a tragédia do ensino público também afecta mais aos mais desfavorecidos. Aos da periferia. As crianças que vivem em Macuti, na Polana e em outros bairros similares, não frequentem (a maioria) o nosso ensino público trágico. Estudam em escolas privadas. 

Contudo, a nossa maior tragédia colectiva, a TRAGÉDIA (com todas as letras maiúsculas), é acreditarmos (nós o povo) que não somos culpados pelas tragédias que ocorrem na nossa sociedade e que Moçambique pode progredir sem a nossa luta para obrigarmos o Estado (Governo) a resolver as nossas tragédias!

I

A vontade de urinar era tão grande que o motorista da camioneta foi freando o seu veículo até esta imobilizar-se completamente a berma da estrada.

Saiu e correu para a mata, largou um jato de urina para a moita, já aliviado, quando fechava a braguilha eis que se depara com alguém que o mirava com olhos esbugalhados.

Assustou-se, deu um recuo com dois passos, mais movido pela curiosidade voltou a posição inicial, trocaram olhares até que mais uma vez o temor tomar conta de si.

O ser desconhecido tinha a cara muito ressequida, com certeza de muitos dias ao relento, o  cabelo crespo estava completamente desgrenhado e pousavam moscas que zuniam imparavelmente, aparentava ter uns vinte e poucos anos. Tinha o rosto oval,  pálpebras descaídas, o olhar vítreo desarmava quem o mirasse.

O olhar estranho continuava impávido a foca-lo, decidiu então, abalar logo dali, voltou a assumir o comando da sua camioneta de quatro toneladas, e afastou-se rapidamente do local.

Só voltou a parar na esquadra policial do bairro “floresta” na periferia da cidade para relatar o estranho caso do homem com olhar ameaçador que o espreitava.

A polícia intrigada com o relato acorreu de imediato para o local explicado pelo motorista, depois da devida perícia recolheram-no e trataram logo de o levar para o hospital central de Quelimane para ter os devidos cuidados que este merecia.

O médico de serviço recebeu o estranho trazido pela polícia e orientou os seus colegas no sentido de o proverem de melhores condições que se adequavam ao seu tratamento.

Os técnicos da FRIZA Lda, empresa que ganhara o concurso público depois de  evidentemente enluvarem os funcionários do UGEA, apareceram na manhã de segunda-feira no sector de manutenção do hospital para procederem a reparação do sistema de frio da morgue.

O pessoal de sector de manutenção haviam garantido aos técnicos da “friza” que as condições estavam criadas para que estes laborassem tranquilamente. Três frigoríficos faziam parte de sistema de conservação de cadáveres dos seres que desencarnavam na cidade e arredores.

Compressores, termóstatos foram trocados nos primeiros dois frigoríficos  e os técnicos avançaram para trabalhar no terceiro. O técnico chefe fazia as devidas afinações aos aparelhos reparados, para flexibilizar o trabalho pediu que os seus dois colegas iniciassem com o desmontagem das peças que iriam ser substituídas no terceiro.

– Ahhhh! – uma dupla gritaria, bastante estridente foi disparada pelos técnicos quando se depararam com algo bizarro dentro da câmara frigorífica.

Os funcionários da morgue que se encontravam nas redondezas a tomar o pequeno almoço acudiram prontamente aos alaridos, chegaram manuseando seus pães e badjias e encontram os técnicos aterrorizados.

 

II

Quando a noite adentrava os moradores dos bairros circunvizinhos do cemitério da cidade eram abalados por um ser, que diziam os visados ser um anómalo desprovido de cabeça, que andava acompanhado pelo seu ajudante de campo, este servia de interlocutor entre as reivindicações do homem sem cabeça e os moradores visitados.

“Ele quer a cabeça dele” – dizia o seu ajudante de campo.

O anómalo falava por gestos furibundos deixando os visados mortos de susto.

A empreitado nocturna do estranho ser e o seu ajudante acontecia amiúde logo que escurecesse, o primeiro acto do evento era um assobio emanado em decibéis hipnotizadores, depois ouvia-se um bater na porta do morador que iria receber a visita.

O pânico já havia capturado a cidade, e para o cúmulo havia uma crise na rede de distribuição eléctrica da cidade.

A recessão económica agredia as contas dos comerciantes da cidade e arredores, os mais prejudicados eram os “barraqueiros”, os seus clientes recolhiam cedo para as suas casas, por conta do terror protagonizado pelo homem sem cabeça e seu ajudante.

Uma assembleia geral dos anciãos dos bairros atacados foi realizada numa sala disponibilizada pela autarquia da cidade, um “nyanga” vindo de Inhassunge auxilio-os para averiguações inerentes à solução para o questão que os assombrava.

Um decreto para afastamento das incursões malignas do estranho ser foi aprovado por unanimidade, sob comando do “nyanga” devia-se sacrificar uma galinha cafreal e colocar a cabeça do animal na parte interna da porta principal e no chão do principal acesso a casa devia-se fazer um círculo com um “X” no interior.

III

Depois de recuperam o fôlego os técnicos iam tendo focos de lucidez que lhes permitia usufruir da sua racionalidade. Os funcionários da morgue depois de gargalharem até não puderem mais, recobram a serenidade.

Então um dos técnicos que vivia no bairro da periferia do cemitério afirmou:

– O dono dessa cabeça está à sua procura! – afirmou aliviado.

Nos dias que se seguiram foram de procedimentos para encerrar o inédito caso que engolia a periferia e já se arrastava para a cidade.

A burocracia para exumação  foi prontamente atendida, a vereação dos cemitérios da autarquia, sabia da porção de terra que guardava o corpo.

Numa tarde lúgubre de sábado, procedeu-se a reconstituição do corpo e o reenterro.

 

 

“Eu nasci em KaTembe, a 2 de Novembro de 1920, um Domingo, às 11 horas da manhã. A minha mãe chamava-se Jinita Libombo e o meu pai Jeremia Dick Nyaka. Os meus pais conheceram-se em KaTembe, onde ambos cresceram e frequentavam a mesma Igreja. Foi lá que eles se casaram, e tiveram os primeiros dois filhos: o meu irmão Daniel e eu. Tiveram ao todo sete filhos, quatro rapazes e três meninas.”

Nely Nyaka (in “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade”)

 

Amadou Hampâté Bâ disse um dia uma daquelas máximas que nos perseguem sempre que há óbitos que devem constar no livro de assentos da nossa memória colectiva: “Quando um ancião morre, é uma biblioteca que queima”.  Quis a fortuna que hoje, 6 de Abril de 2024, a Vovó Nely registasse o seu epílogo aos 103 anos. Em 2018, Nely Nyaka, no entanto, desmentiu o fatalismo que encerra o anátema do historiador maliano e legou-nos uma obra decisiva e exemplar: “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade”). Nela está o testemunho e testamento da sua soberba vida e obra.

A Vovó Nely foi toda a vida uma activista social. O seu activismo social começou cedo, primeiro no seio da Igreja Metodista Wesleyana e, mais tarde, no Instituto Negrófilo (que depois assumiu a designação de Centro Associativo dos Negros da Colónia de Moçambique), organização de que o seu pai foi sócio-fundador. Recentemente, esteve na criação e é uma das mais notáveis dinamizadoras da associação Pfuna, dedicada a mitigar a pobreza e a miséria de crianças órfãs.

No seu livro “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade” está inscrita a sua longa experiência de vida. O livro é um testamento. Um manancial de valores. Nesta obra ela cartografa não só a sua trajectória individual, mas estabelece um atlas de um tempo e de uma sociedade, a começar pelos seus pais, Jinita e Jeremia, na KaTembe, passando pela então Lourenço Marques (KaMpfumo), fala-nos da vida na periferia (mahanyela: xitiki, bajiyas, machambas e outras formas para ganhar a vida), da casa e os rituais (o namoro, o casamento, a gravidez e parto, o falecimento).

A Moamba e a vida adulta lá nas terras do Sabié. Casara aos 19 anos com Raúl Bernardo Honwana. Raúl, que militou no Grémio Africano nos tempos de Karel Pott, escreveu, em 1984, um livro de memórias. Inspirada pelo exemplo do seu marido, que faleceu em 1994, Nely decidiu também deixar por escrito o seu legado. Nele fala do nascimento dos filhos. A cegueira do filho Raúl. Os tempos duros. Os tempos sombrios. A prisão do marido Raúl. O retorno à Lourenço Marques, a casa de Ximphamanine. A prisão do filho Luís pela PIDE. Os assassinatos políticos. A sordidez do colonialismo no seu estertor.

O livro relata-nos os alvores da Independência, do 7 de Setembro, o Governo de Transição, fala-nos do entusiasmo e da euforia desses tempos, de Samora Machel, dos erros e dos excessos da revolução, como a nacionalização das barracas e casas de madeira e zinco, da Operação Produção, do seu tempo como Juíza eleita, das transformações sociais, da língua e cultura, das novas práticas e das narrativas e brincadeiras da nonagenária com o seus netos e bisnetos. Nessas lengalengas, preferidas pelos netos e bisnetos, cada frase contém uma pergunta (“U ma?” –  Quem és tu?), e uma resposta (“Ni Nwamatxola-Txolana” – Sou o Nwamatxola-Txolana”) e o jogo prossegue entre perguntas e respostas do mesmo género.

Estas memórias percorrem uma longa e enriquecida vida de uma extraordinária personagem deste século moçambicano, mulher dotada de uma memória prodigiosa, exemplo de probidade e repositório de valores. A sua maior obra é o exemplo e o repositório desses valores que nos deixa como dádiva. Esse foi o grande dom da sua vida. O seu génio. O seu grande mérito. Uma vida árdua, laboriosa, dura. Mas ela, sempre obstinada. Perseverante, tenaz.

Profunda conhecedora de Lourenço Marques (Maputo) e, mais particularmente, dos seus bairros periféricos, onde cresceu, Nely Nyaka fala-nos, em “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, dos marcos geográficos e sociológicos da sua cidade, das famílias que a habitavam, das práticas e dos costumes da comunidade e dos artifícios a que se recorria para mitigar a pobreza, e para vencer as enormes barreiras criadas pelo poder colonial a todos os que não fossem brancos.

Aqui está o espólio de uma vida plena, não isenta de provações, contudo absolutamente instigante. Impressiona, neste livro, sobretudo o seu olhar. A perspicácia do seu olhar. A candura do seu olhar.  O seu acerbo espírito crítico e o poder de observação. A filha Gita Honwana Welch, que ajudou na fixação do texto e é autora do prefácio, fala da “candura da observação” uma expressão felicíssima.

O extraordinário livro de contos “Nós Matámos o Cão Tinhoso” (1964), de Luís Bernardo Honwana, as incontornáveis “Memórias” (1985), de Raúl Bernardo Honwana, ou ainda os escritos de Raúl Honwana (filho), autor da obra “O Algodão e o Ouro” (1995), cruzam-se com este “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade” (de Nely Nyaka), e denunciam, se quisermos, uma estética que lhes é comum: uma mesma ética. O supremo valor da ética. A ética é, aqui e sempre, uma espécie de estética da responsabilidade, individual e colectiva. No fundo, estão imbuídos de uma mesma poética. Aliás, num intrépido discurso que fez aquando do lançamento da sua obra, em 2018, a Vovó Nely foi cortante quanto às anomias sociais e aos desvios éticos que abundam e minam a nossa sociedade. Um discurso memorável e exemplar.

Vivemos um contexto adverso, onde a cultura e os valores, onde a ética e a estética, onde o património e o acervo cultural, onde tudo isto perdeu a centralidade. A grande violência das últimas décadas é, para além do aniquilamento de vidas que se perderam, esta degenerescência de valores em que nos atolamos. Ao ouvi-la, com a autoridade da sua idade, rodeada de filhos, netos, bisnetos, amigos, familiares, admiradores, pronunciar-se sobre a sua vida e experiência e sagacidade, foi um momento profundo, uma oração profunda e acutilante, assombrosa e generosa, lúcida e corajosa.

A oração foi feita em ronga, transcrevo parte da tradução:

 

“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo

…os três nomes que nos dão a medida da tua grandeza.

Agradeço-te Deus nesta hora, agradeço-te meu Deus as bênçãos que derramas sobre a minha vida e a generosidade de teres permitido que eu escrevesse este livro.

Escrevi este livro, sim, meu Deus, porque tu abriste a minha mente para que eu tivesse a ideia de o escrever.

Move-me a vontade de tentar explicar a maneira como se vivia antigamente. Sempre ansiei por contribuir para que os mais novos tivessem consciência de como eram as coisas nesta terra, muito antes de eles nascerem.

No meu dizer, meu Deus, é um pouco da história de Moçambique o que quero contar àqueles que me rodeiam.

Agradeço-te meu Deus por teres permitido o tempo e a força para que eu pudesse fazer o que tanto desejava fazer.

E é por isso que uma vez mais rogo que tu estejas connosco também neste momento e neste lugar para que o nosso trabalho de hoje se cumpra em boa ordem.

Sem me esquecer meu Deus de orar pela nossa terra.

Quero orar pela nossa terra.

A nossa terra vive tempos muito atribulados.”

 

Volto a essas palavras hoje no dia do seu declínio. Recordo-a aqui, nesta breve memoração, como uma das mais notáveis personagens do devir moçambicano e um dos grandes vultos da nossa sociedade, história e cultura. Uma figura assombrosa, personagem forte, matriarca exemplar, inspiradora, mulher de uma lucidez implacável e dona de uma memória prodigiosamente lendária.

Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, é uma obra notável, surpreendente e generosa. Disse-o e aqui repito: testemunho e testamento majestoso, sumptuoso, soberbo. A Vovó Nely cumpriu o seu dever e nesta obra está a sua vida, o seu exemplo e os seus valores. Talvez ela quisesse desmentir o aforismo do historiador maliano. A sua experiência não se incinera. Permanece naquelas belas e luminosas páginas. Viveu 103 anos e 115 dias! Uma vida jubilosa. Deus deu-lhe o tempo e a força que fez da sua vida uma lição. Provavelmente ainda não chegaram as suas prédicas, as palavras de consolo ou o lenitivo que nos falta quanto à nossa terra e quanto a estes tempos atribulados que vivemos.

 

Cidade do Cabo, 6 de Abril de 2024

Recebi, há dias, uma chamada de Lino Mukurruza. Entre uma cavaqueira e outra, veio o desafio: “estamos a organizar um colóquio de letras e, desta vez, homenageamos António Carneiro Gonçalves. Gostaríamos que fosse um dos oradores acerca d’A Escrita de Anton”. Daí para frente a conversa tornou-se numa partilha de memórias de textos que compuseram o imaginário de muitos moçambicanos nascidos entre a década 80 e a primeira metade da década 90 do século passado.

Quem, desta geração, não se recorda dos textos “A Gruta de Cantaia; Malidza; e A Mulher do Escritor”? São textos que compõem manuais de Língua Portuguesa que eram usados para o ensino naquela época e ficaram na memória: eram dias e mais dias de leitura e interpretação textual. Este último (A Mulher do Escritor) encantou-me imensamente. Sempre li este texto encarnando o personagem em causa e sonhava com esta coisa de tentar ser escritor. Talvez num dia desses, bem distante, me torne num.

Em benefício da dúvida, podia ater-me numa abordagem isolada dos textos mencionados acima, porque conheço-os já lá vai algum tempo; só muito recentemente recebi a segunda edição do livro “A Escrita de Anton” que é composta por boa parte da sua produção literária e jornalística. Movido pela vontade e entusiamo com que li parte deste volume, vejo-me tentado a tecer alguns comentários:

  1. Neste volume de textos, está muito clara a capacidade de Anton (nome pelo qual Carneiro Gonçalves era chamado pelos seus irmãos em razão de o seu o primeiro contista predileto ter sido Anton Tchekov) nutrir as características dos géneros textuais que produziu e conseguir equilibrar-se na coerência genérica do início ao fim. Ninguém, em sã consciência, dirá que é o jornalista que escreveu lendas e contos; ou é o contista que escreveu artigos de opinião, reportagens e crónicas. Neste tempo em que a pureza dos géneros textuais é uma falácia comprovada e em seu lugar entra o tom agudo do hibridismo de géneros, reina uma autêntica confusão no que diz respeito ao plano de texto característico de um género em comparação com o outro. Estamos numa altura em que o se apelida conto está mais para crónica e o que recebe o nome deste último é, na verdade, o primeiro. Quantos romances chegam-nos à mesa que, no fundo, são mais novelas que romances propriamente ditos? Anton, na sua escrita, separa muito bem o limite destas águas.
  2. Nos últimos dias, tenho estado a desenvolver um crescente interesse pela Linguística Textual, um campo de saber que, dentre tantas coisas, preocupa-se com a explicação dos diferentes modos de composição e sequencialização textual. Jean-Michel Adam, um dos mais renomados teóricos desta área propôs uma classificação de textos que incidisse não sobre a totalidade de extensão, mas, igualmente, em termos de complexidade composicional: as chamadas sequências textuais. Esta reflexão veio-me à memória quando detive-me a reler “A Mulher do Escritor” (p. 38): um texto que me desconcerta pela forma e pelo conteúdo. Na sua estrutura profunda, é um texto narrativo do género conto, por excelência. Contudo, o mesmo é composto por sequências textuais maioritariamente dialogais, havendo, naturalmente, “entradas” descritivas e narrativas que tradicionalmente caracterizam o conto. O uso desta técnica, certamente propositado em “A Mulher do Escritor”, gera uma narrativa única e envolvente, permitindo que o leitor interprete o enredo através do diálogo entre as personagens e não necessariamente através das pistas deixadas pelo narrador.
  3. Na escrita de Anton encontramos a concretização de uma das mais primorosas funções da arte: a catarse; não só do leitor em contacto com o texto, mas do próprio autor, tal como se pode ler nas entrelinhas de “A Galinha dos Ovos de Oiro” (p. 290). O retrato que Anton faz de Gabriel, o gigante de Manjacaze, da coisificação de que foi alvo na Europa e em outros cantos do mundo, reaviva uma empatia entre o leitor e o texto: característica muito comum em textos surgidos da pena de um bom prosador. Pode-se dizer, com razão, que neste caso se trata de uma entidade histórica e, por isso, há uma associação involuntária entre o mundo textual e o plano da realidade, mas não procede. Tomando este desvio do plano da realidade sobre o texto, numa visita que fiz a Nywadjahani, em 2022, soubera pela voz do guia da casa-museu que Gabriel era, afinal, primo de Eduardo Mondlane.
  4. É típico dos grandes génios da escrita jornalística com sensibilidade para a arte, fazer interpelações críticas sobre a arte num exercício pleno de crítica literária. Nesse quesito, desfazem lugares-comuns e descortinam visões que, em princípio, nos pareciam impensáveis. Tiro esta ilação através da leitura de “Pablo Neruda _ perspectiva política de um prémio literário” (p. 405). A leitura deste texto foi-me cheia de afinais, não pela já conhecida subjectividade da Academia Sueca nesta coisa de prémios, mas por ter percebido que tal vício data de muito antes da existência de Moçambique como nação independente. O recorte histórico-biográfico que Anton traça em torno da figura de Pablo Neruda fundamenta a sua colocação a respeito do prémio e se afasta do achismo muito em voga nestes tempos em que soam alaridos sobre os prémios mas ninguém se digna a trazer fundamentos rigorosamente objectivos.

Para mim, a partida de Anton foi bastante prematura. Aliás, parece ser esta a sina dos grandes génios. Foi-se mas fica um legado importantíssimo através da sua escrita. Este volume que reúne a sua produção literária e jornalística é, na verdade, um tutorial sobre o ser escritor. Há janelas que nos transportam para a necessidade de (1) nos apropriarmos dos géneros nos quais queremos produzir os nossos textos. Querendo fazer inovações, que tal parta de um exercício consciente e não numa mera fruição da alma em nome da tão propalada liberdade de criação; (2) termos uma visão holística sobre os fenómenos que nos rodeiam e ver muito além do que nos é mostrado. Nesta coisa de escrever livros e mexer com emoções alheias, damos por nós mesmos a servir de farol de um não sei quanto de pessoas em meio ao caos que o mundo vive. Assim, se tal tiver de ser, que seja um farol verde para que o mundo avance: já temos muitas interdições e pausas neste curso; (3) ainda sobre esta coisa de visão holística e domínio de ferramentas para a escrita, Anton situa-se muito à frente do seu tempo, de tal forma que a abordagem de Jean-Michel Adam com que alicerçamos o comentário sobre sequências textuais em “A Mulher do Escritor” são muito posteriores à sua produção literária.

 

PS: comentário feito no Colóquio de Letras em homenagem a António Carneiro Gonçalves, organizado pelo Clube de Leitura de Quelimane.

Estamos todos, literalmente todos, nós os não empresários, levianamente impávidos perante o tétrico fenómeno dos raptos. Apenas lamentamos e, inacreditavelmente, também os que têm poder de pôr um ponto final a toda essa brutalidade também se lamentam. Inacreditável!

Não quero aqui levantar as mesmas velhas perguntas, tais como: quem são os sequestradores, que na baila da luz do dia fazem e desfazem? Nem mesmo questionar quem lucra com a indústria do sequestro; e, muito menos, querer saber onde está a polícia quando estes distribuidores do medo talham a lufada de ar fresco que restou da nossa tranquilidade. Não!

Quero apenas chamar atenção a nós os outros, nós os não empresários, o cidadão comum, sim, tu mesmo, funcionário público, tu professor, tu médico, tu enfermeiro, tu marceneiro, tu carpinteiro, tu que vives nos constantes apertos diários, com dívida bancária cuja letra anda há muito atrasada, sim, assim como o salário, tu a tentar construir uma humilde casa já há anos, tu pacato cidadão, jornalista, nhoguista do povo, mergulhado desde a matina na labuta do metical.

Sim, tu que somos todos nós: eu e tu, eu o povo, como em outros tempos dizia Mutimati Bernabé João; nós que achamos que os sequestros são coisa de gente rica, de empresários, de monhés, dos endinheirados. O que todos nós achamos disso tudo?

Não achamos que, quando os empresários, os monhés, os endinheirados estarem debelados, os sequestradores vão chegar a nós? Já imaginaste… receber uma chamada de uma quadrilha a exigir uns trinta e tal mil para soltar teu filho que foi levado a caminho da escola?

Já imaginaste tua futura aflição, tu ensopado de suor, com os poros libertos, a ligar para os “bradas” a pedir emprestado dez mil para resgatar o “puto?” Ou então, a recorrer a um agiota para levar uns vinte paus para recuperar a esposa? Vamos lá imaginar todos nós! Todos precisamos de fazer algo. A polícia já mostrou que não tem solução, ou por outras, não faz parte da solução, e de que parte faz, isso eu também não sei! Apenas sei que precisamos de resgatar a nossa colectiva indignação!

De algumas semanas prévias até aquela, estranhos eventos têm ocorrido na povoação de Nguileni, aglomerado comunal que se destaca pela produção agrícola e de criação de manadas de gado bovino e caprino.

Na residência do velho Mugueni as noites têm sido de agitação nos estábulos. O berreiro dos cabritos despertava os residentes. Dir-se-ia que no local algum predador lá penetrara – que os havia em abundância –, alguma serpente inoportuna, algum felino tresmalhado lá das serras ou, porque não?, algum meliante em alguma tentativa de um assalto. Estes, todavia, e como é da experiência de todos, não ocorrem nos estábulos, mas sim durante as pastagens. E para comprovar e eliminar a hipótese de furto não existem testemunhos de faltas de animais entre os efectivos dos criadores.

O velho Mugueni faz vigília aos seus estábulos, acoitado na escuridão de uma sebe crescida nas traseiras do pavilhão principal da casa. A noite decorre tranquila. Os animais ruminam as reservas de alimento, outros sonecam preguiças no conforto do alpendre que os abriga.

Eis senão quando, alguns dos animais erguem-se sobre as patas e agitam-se no terreno do pavilhão. Um vulto movimenta-se com vagares entre aqueles. É de estatura alta, de uma silhueta que se assemelha à de um homem.  Num gesto que parecia automatisado pelo hábito ou por algum instinto particular, alcançou um dos animais e imobilizou-o entre os braços. Arriou os calções  e fez o que para ali o trouxera.

O velho Mugueni presenciou aquele evento de bestialidade do intruso numa   das suas cabras com um misto de perplexidades. Poderia facilmente imobilizar o criminoso e executá-lo no local ou ministrar-lhe um correctivo à medida da violação.  “Para cada crime, a devida punição”, assim pensou.

Com uma agilidade felina saltou sobre o vulto daquele homem. Tamanho pandemónio nunca se vira naquele lugar. O homem a tentar libertar-se dos apertos do Mugueni e este a asfixiá-lo com a tenaz dos braços. Os da casa acorreram munidos de mocas e de varapaus. Cada um contundiu o invasor o “melhor” que pôde. Com os calções ao redor dos tornozelos, ele foi imobilizado com cordas húmidas e encaminhado para a penumbra do recinto do quintal. Aturdido pela sova contínua gemia de dores e balbuciava arrependimentos aos quais os da casa faziam  ouvidos de mercador. O correctivo prolongou-se até ao seu desfalecimento. Dele sobrava apenas um corpo imóvel, coberto de hematomas e lacerações.

“Oh-oh-oh! Afinal é o Muthiasse! Inacreditável!… Afinal é ele que anda a violar as nossas cabras?!…”, espanto geral na comoção da noite.

“Quem diria, este rapaz que parecia tão sossegado e comedido, respeitador e tudo, a fazer isto nos nossos currais?!..”, e uma bofetada com a força de uma tempestade estalou na face do aludido.

Estava distante da imaginação dos habitantes daquele povoado que a série de eventos que ocorriam poderia ter alguma relação com os actos de bestialidade tão correntes. Em certos currais algumas cabras manifestaram sinais de infecções nos respectivos traseiros. Apresentavam feridas que não cediam às terapias  ministradas pelos conhecedores do ofício. Outros registaram mortes de alguns animais com semelhantes afecções. Era, isso sim, um mistério que nem os mais sagazes adivinhos conseguiam esclarecer.

“A verdade”, tal como diz o adágio “é como um furúnculo; qualquer dia acaba por rebentar”. Estava encontrada a resposta às dúvidas sobre as causas dos tumultos nos currais de  Nguileni.

A madrugada chegou com novidades. Uma multidão de vizinhos aglomerou-se no recinto do quintal do velho Mugueni. As bocas não fecham de espanto, os olhos não pestanejam diante da figura do Muthiasse manietado e acocorado ao lado do tronco de uma mangueira. Cada qual, cada vítima das incursões daquele, acha-se no legítimo direito de dar a sua quota parte de desforço pelos danos nos seus estábulos.

A razão prevalesceu. Convocou-se uma banja (1) de emergência na qual compareceram os graúdos do lugar. Alguns adiaram compromissos com as machambas e com o pastoreio. Como perder aquela oportunidade de presenciar o julgamento público daquele transgressor da ordem e moral públicas. Como perdoar aquele acto de invasão a propriedades alheias e molestamento de animais?

Os ânimos exaltaram-se. Não havia consenso sobre as penas a aplicar ao prevaricador.

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  • banja: reunião popular

O chefe de terras, o mulumuzana (2) Zunguene, revestido da autoridade e da sabedoria secular com que os deuses lhe prouveram, proferiu a seguinte alocução:

“Nestas terras de Nguileni os ancestrais concederam-nos a graça da paz e do entendimento mútuo. O sentido de entre-ajuda é um principio que todos cultivamos. O problema de um é aflição doutro. Compartilhamos das nossas alegrias e tristezas. O respeito pelo bem alheio é uma doutrina que sempre nos guiou, é o farol das nossas existências. A sombra de um é sombra doutro, se aquele o permitir. Não vacilamos nesse princípio de respeito pelos bens alheios. É por isso que nesta comunidade não existem crimes. Somos vigilantes dos nossos valores e bens, materiais e espirituais. Somos defensores da nossa moral, a mesma que nos foi legada pelos antepassados”.

O mulumuzana Zunguene fez uma pausa e volveu um olhar feroz ao Muthiasse.

“Este criminoso que temos aqui à nossa frente ousou desafiar os nossos usos e costumes. Como é já do conhecimento de todos violou as regras que orientam a nossa vida. Isso é imperdoável e merece a devida punição”. E sentenciou:

“Já que é da sua preferência violar cabras, deve fazê-lo de um  modo por todos aceitável. Como todos os homens dignos praticam aqui no nosso seio, e em geral, ele deve lobolar (3) a cabra que violou. E não só: deve preparar-se para se casar com ela, em nossa presença, sob o testemunho de toda a comunidade de Nguileni”.

Ululações e uma prolongada ovação de aprovação encheram a manhã de alegria. Era um acto de justiça para com as famílias lesadas, uma lição de que a bestialidade não tinha espaço naquele lugar, um crime hediondo que feria a moral pública e transgredia as normas de bem-estar nas comunidades.

O Muthiasse beneficiou de uma liberdade condicional. Era-lhe facultado o direito de se preparar para os eventos que precederiam os rituais do lobolo (4) da  já cabra-noiva. Esta ficou sob guarda do proprietário, não se vá dar o caso de o criminoso abatê-la e pretextar razões de variada índole para justificar a morte do animal.

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(3)lobolar: pagar um dote de compromisso aos parentes da futura noiva.

(4)lobolo: dote em dinheiro e bens.

Duas semanas transcorreram depois daquele julgamento.

O Muthiasse compareceu à cerimónia do lobolo da cabra-noiva acompanhado por dois cavalheiros e respectivas esposas, todos de ar compungido, em representação dos pais do “noivo”. Transportavam consigo todo aquele rol de encomendas que se presumem que devem ser ofertados aos “sogros”, entre capulanas, lenços de cabeça, um garrafão de vinho tinto, um casaco e uma bengala para o velho, um anel simbólico para a “noiva” e, como é mandatório, uma quantia avultada em dinheiro, chave essencial que franqueava as portas daquela que doravante seria “a casa dos sogros”.

O ritual decorreu no meio de uma algaraviada de vozes e hilaridade, concorrida e presenciada por uma multidão de curiosos. As expectativas eram enormes, pelo ineditismo e pelo alcance da medida justa e histórica.

Ao lado do Muthiasse, a cabra,  açaimada a uma corda decorada de serpentinas e chocalhos ao pescoço, pousava tranquilamente, a ruminar a refeição da manhã.

Durante aquela cerimónia foram aprazadas datas para formalizar detalhes sobre o matrimónio do “casal”.

O Muthiasse era um ser humano que de vida possuía apenas a capacidade de falar. Noites inglórias de insónias, de pesadelos e profusas transpirações constituíam a sua jornada de expiação. Durante os dias ia ao pastoreio exonerado das rotinas e distante dos companheiros, um sonâmbulo que percorria as jornadas da vida sem meta nem fenda onde ancorar-se e esconder a vergonha pelo escândalo. Considera um plano de fuga para lugares distantes, onde ningém o conhecesse ou do seu passado tenha ouvido falar. Mas para onde e como? Plano latente, imposível de realizar, porém.

As cerimónias do matrimónio do Muthiasse com a cabra realizaram-se um mês depois das do lobolo, na residência do velho Mugheni. Oficiou o evento o chefe de terras, o mulumuzana Zungueni, que possuía esses poderes civis e oficiais. Naquelas participou toda a comunidade de Nguileni com cantigas de teor educativo, danças de makwayela (5), de nghalangha (6) e de chigubo (7), manifestações tradicionais e obrigatórias naquele tipo de eventos. As prendas aos “noivos” choveram, provenientes de todas as famílias da comunidade. Um fotógrafo ambulante viajou da vila de Mandhlakaze para registar o acontecimento como testemunho para a posteridade.

Ao fim da tarde as cerimónias atingiram o rubro de regozijo. Foi anunciado o xiguiana, o acompanhamento festivo dos nubentes ao seu lar, a entrega formal da “noiva” à sua nova família: o agregado Mathe, partilhado com o seu “esposo”, o Muthiasse Mangue. Este segura uma ponta da corda nupcial, a outra rodeia o pescoço da cabra-noiva decorada de véu e grinalda. Tranquilamente, ela mastiga confeitos confeccionados com palha seleccionada. Ambos caminham com o passo cerimonial da ocasião, no ambiente festivo de ululações, de cantos e danças.

*

Dos eventos pós-nupciais não reza a História. Ficou, porém, na memória de toda a comunidade, a lição de que a violação e o usufruto de bens alheios pode, um dia, trazer amargos de boca inesperados e definitivos.

 

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5) makwayela: dança popular

(6) nghalangha: dança popular

(7) chigubo: dança popular

 

 

 

Pretória, Fevereiro 2024

 

No passado dia 20 de Março de 2024, como Jornalista voltei a narrar mais uma terrível e avassaladora história de um jovem cheio de vida, enérgico, saudável, com tudo para correr rumo ao desenvolvimento do país em vários domínios. Tem simplesmente 27 anos de idade e estará condenado para o resto da vida de um dia poder voltar a ver o sol, por conta da conjuntivite hemorrágica, uma doença cruel que nunca imaginaria que chegasse a fazer remover os olhos do jovem. 

Não imaginam para mim o que foi contar esta história, para o vasto público da nossa Stv e do Jornal o País. Vocês não fazem ideia como isso dói. Ver alguém que até por razões das actividades que o próprio exercia na cidade de Quelimane, cruzávamos algumas vezes, ele como vendedor e eu como cliente. 

Estou a falar de Babu Aiuba que ficou cego por conta da terrível, cruel, maldosa conjuntivite hemorrágica. Foi duro ouvir ele contar que os seus olhos do nada começaram a libertar líquidos que consumiam a sua visão. Na abordagem, e a quanto calmamente explicava detalhes a mim, enquanto jornalista, via seus olhos carregados de ramelas e completamente bloqueados. 

Parei a entrevista e puxei para o lado alguém do sector da saúde por sinal médica e porta-voz do Hospital Central de Quelimane, na esperança de ouvir que a situação do moço teria cura e voltaria a ver, a andar sozinho sem impedimento. Mas as minhas tentativas foram em vão, pois nada do que eu pretendia ouvir com os meus ouvidos apurados consegui ouvir. “ Fizemos de tudo pra tratar o moço, os médicos oftalmologistas do hospital deram o seu saber, mas infelizmente não voltará” disse a médica também chocada.

Na medida em que ela ia avançando mais informações sobre a situação no corredor do hospital, bem ao lado da sala onde estava internado o jovem Aiuba, virei a minha cabeça e vi no fundo a irmã deste inconsolável, “derramando lágrimas” nas suas mais profundezas. Não me contive a tamanha situação. Indaguei-me: meu Deus por que isso?  

Aproximei-me da irmã e disse bem do fundo de mim com olhar tristonho: terão que aguentar e serem fortes para “ajudar o vosso irmão”. Na ocasião fiquei sabendo que afinal Babu Aiuba tem um filho e esposa para sustentar e nas condições em que passará a readaptar uma nova forma de estar, como será a vida da sua família. Suspirei…e por mim disse no interior sem que a irmã ouvisse e ninguém mais: Conjuntivite hemorrágica cruel. 

Voltei a sala de tratamento, continuei a conversar com Babu Aiuba para ouvir sobre como foi que tudo começou até chegar aquele estágio. Com voz calma ele explicou o seguinte: “Eu contrai a conjuntivite hemorrágica, lavei os olhos com sabão e xixi. Sucede que é uma prática de pessoas lá no bairro, que ao contrair conjuntivite utilizam urina para tratar os olhos. Segui o mesmo tratamento e daí começou meu problema. Depois fui ao hospital e deram-me tetraciclina por duas vezes. A terceira vez foi uma pomada que não cheguei a ver porque a minha visão já não existia” disse Babu Aiuba para quem a sua vida está comprometida e terá que se adaptar à nova realidade. 

Olhei atentamente ao Babu, procurei entrar no seu pensamento, imaginei que devia estar arrependido do porquê ter utilizado urina para tratar de forma caseira os seus olhos. Talvez se o tempo recuasse, Babu não voltaria a fazer. Aliás, a médica contou que a urina foi a principal causa da situação ter agravado naquele estágio. Ademais, sobre urina, ouvi muita gente nos bairros que utilizavam aquele método para tratar seus olhos mas que não chegaram ao estágio de Babu Aiuba por muita sorte.  

Enfim, conjuntivite hemorrágica cruel, não quero julgar Babu Aiuba por nada, pois é avassalador ver a sua situação. 

Na abordagem, tal como explica anteriormente, a equipa médica revelou que a cegueira de Aiuba é definitiva. Eugénia Cavele explicou que Aiuba estava inicialmente com uma conjuntivite hemorrágica, mas devido a uso de medicamentos tradicionais e outras substâncias não comprovadas cientificamente, complicou com uma conjuntivite bacteriana e está por si, evoluiu para uma cegueira. 

Em seguida, terminou a sua intervenção deixando um alerta para toda a sociedade, informando que todo aquele que tiver sintomas ou sinais de qualquer que seja o tipo de conjuntivite, para não utilizar substâncias não comprovadas cientificamente e não pautar para automedicação, porque pode complicar para estágios de cegueira. 

A lavagem abundante das mãos sempre que se tocar qualquer superfície, pode ser uma das vias de prevenção da conjuntivite. 

Fica o alerta.

Conjuntivite hemorrágica cruel!

Não é todos os dias que se apresenta um livro com estas características. Este livro inicia criativamente de forma inusitada com uma declaração publica de amor Moçambiquero-te!  Neste sentido, resgata textos que a autora publicou e discutiu em diferentes lugares, no Brasil, em Portugal e em Moçambique aglutinando-os neste livro porque não os tinha partilhado com os estudiosos e diferentes públicos em Moçambique. Uma vez que foi movida por afectos a autora intitulou o livro de “Moçambiquero-te”, expressão tirada, com a devida vénia, do livro Moçambicanto, da autoria de Gulamo Khan, o poeta que foi também, invocado no Projecto “Moçambiquero-te”, uma peça teatral (criação colectiva sob a direcção de Henning Mankell e a produção de Manuela Soeiro), intitulada “Vestir a terra”, representada pelo Grupo Teatral Mutumbela Gogo, em 1994, a seguir ao “Acordo Geral de Paz”.

Não é de espantar porque em toda a escrita de autora Sara Laisse nos ideais de vida que a perseguem perpassa esse amor pela terra e seus habitantes, um inconformismo um desejo de transformação. Transformação é uma daquelas palavras avulsas, corriqueiras e transversal, mas profundamente necessária à nossa humanidade, hoje mais do que nunca.

A escrita comprometida com causas. Neste sentido, por via das suas actividades de cidadania, e acima de tudo pela escrita, através da pertinência dos temas que aborda, convoca a uma mudança, mas não de superfície. Motiva a uma viragem, mas não apenas de modas ou de ventos. Cada escrito constitui um apelo em prol de transformação da forma total de ver, a maneira de nos vermos a nós próprios, a maneira de percepcionarmos o mundo, de interpretarmos a justa relação com o real, de destrinçarmos o que pode ser portador de sentido e aquilo que, em vez disso, o anula. É uma viragem, certamente. Mas para o efeito ela provoca, através dos seus textos aquela adesão de coração que nos coloca por inteiro a viver — na verdade, a experimentar e a ousar viver — por uma forma de ser e estar diferente, sensível às singularidades. Esta transformação que subentende um nível de consciência que insufle a coragem de olhar para o estado das coisas e redirecionar os trilhos como pessoas, como nação, como mundo, assumindo que a única verdadeira forma de transformar é transformar-se.

Neste sentido, este Moçambiquero-te tem como pano de fundo – em muitos dos textos que o compõem – a questão premente da interculturalidade.  Há a premência de se promover um diálogo intercultural, contínuo e reiterado não deixando que a lógica do medo ou do lucro ponham em causa as práticas múltiplas de hospitalidade, presentes na essência da nossa convivialidade sociocultural.  Moçambiquero-te é um exercício literário que nos remete à necessária experiência do encontro, ao exercício solidário da inclusão.  Ela, aliando ciência e consciência, na vida e na escrita, acredita na igualdade associada ao respeito às diferenças de classe, etnia, sexo, gênero, nacionalidade, língua e religião existentes entre as pessoas.

Logo no texto inicial Interculturalidade como um desafio – Poderá a lusofonia constituir um espaço de compreensão entre povos? kutxula vitu, kutsivela, kuyandla, kubieketa e baptismo católico como rituais para diálogo, onde demonstra a existência de equivalência de funções e de significados entre os rituais de passagem da cultura ronga (kutxula vitu, kutsivela, Kuyandla, Kubieketa) e o baptismo da Tradição Católica Portuguesa, faz- nos perceber que tudo quanto humanamente associamos ao sagrado, na diversidade das suas ritualidades e  morfologia, conserva  entre si flagrantes equivalências.

Que é como quem diz: as experiências religiosas, tal como afiança  Tolentino Mendonça, um dos autores citados no livro  são instrumentos para observar o enigma do mundo; são modos de habitar não apenas a pergunta radical que nós humanos transportamos, mas aquela interrogação ardentemente irremovível que somos; são estratégias de perfuração do visível; são a consideração de que aquilo que tateamos não é o fim, mas o princípio apenas; são laboratórios para o interminável e doloroso espanto que viver significa; são epifania, relance, vislumbre, deslumbre, revelação.

Neste sentido, por derivarem do espanto comum diante do mistério da existência essas espiritualidades diversas tanto derivado das religiões cristãs como das religiões africanas mantêm uma relação íntima com a literatura, numa conexão tão inesperada, tão criativa, tão verdadeira. Assim, porque a Literatura e espiritualidade encontram-se aí: na busca e na tradução de um sentido para a vida, para além desses rituais factuais entra para o reino da ficção literária para complementar a interpretação dos rituais acima mencionados com a análise dos poemas Quengueleuqeze de Rui de Noronha, moçambicano e o Baptsmo de Rubem Alves, autor brasileiro.

Mergulhando em Nyembête ou as cores da lágrima, romance de Calane da Silva, Sara reflecte sobre novos modelos de construção do romance africano ressaltando neles a  presença da  polifonia (diversidade de narradores e vozes, poesia cantada e da morte com possibilidade de retorno, situando-o como um romance auto-ficcional, portador de marcas biográficas do seu autor e ressaltando a presença  da espiritualidade, centrada nos seus estudos sobre Antropologia espiritual. Sara Laisse demonstra como neste romance NCL, o autor hoje  mergulhado em outras dimensões da existência, como ele o diria,   emprega a sua própria vivência da espiritualidade  como uma lente por detrás da qual  se contempla  o assombroso enigma da  existência, onde o crer  se constitui como uma condição necessária para viver e acima de tudo  definir  o caminho que se trilha na vida.

Os temas abordados proporcionam-nos um profundo mergulho em nossas realidades culturais – “minha e dos outras”, onde perpassa a persistente questão  “quem somos nós e quem são os outros”? Pela nossa autoconsciência e valorização precisamos assumir um processo transformador. Mas para isso acontecer é preciso “indignar-se” com a realidade, como pede também o Papa Francisco.

Por via destas leituras múltiplas, que a autora nos apresenta, sentimos como a sabedoria entra pela via do olhar, pelas estradas do sentir, pelas encostas rolantes das  lágrimas, pelos sorrisos de esperança, pela seriedade com que encaramos a vivência da cultura de cada povo.  Da forma como ela mergulha fundo na pesquisa e oferece a alma a esta causa, há como que um apelo, para que por esta via da literatura, da cultura da leitura, possamos perceber que uma coisa é saber, outra coisa é vivenciar na realidade; ultrapassar o saber racional, passando-o para o sentir emocional. É importante sempre criar pontes, mesmo sabendo que elas não são feitas de um dia para o outro, mas que vão se construindo desde a base, começando pelo respeito às diferenças.

          Em Moçambiquero-te, Sara Laisse   demonstra o quão essencial é voltarmo-nos para dentro de nós e analisar em que medida estamos a vivenciar as nossas práticas culturais em nosso modo de ser; se assumimos a nossa identidade, a nossa história, ou se precisamos de voltar ao processo de busca de nossas raízes. Desafia-nos a dar passos, despertar, acolher, aceitar e valorizar a nossa história sem camuflar o que somos; voltar sempre às nossas origens, buscando aprender com nossos avós e pais; continuar a transmitir os valores que herdamos de nossa cultura, seja oralmente, ou através da escrita, dos meios de comunicação social e através de nossa convivência, para que não os percamos, mantendo nossas relações interculturais. E  ela o faz na primeira pessoa, pesquisando e colhendo das fontes viva orais, para além da bibliografia.

Nestes artigos, a autora demonstra que o encontro entre as culturas constitui hoje, mais do que nunca “uma oportunidade de enriquecimento e de desenvolvimento humano integral de todos”.  Parte-se do principio de que se está perante uma “oferta recíproca” entre as culturas, como diria o Papa Francisco.  Para o efeito, por via destes e de outros livros, das tertúlias itinerantes que promove e outros projectos, Sara  Laisse  busca  comunicar, descobrir as riquezas  singulares da nossa diversidade, valorizar aquilo que nos une e olhar as diferenças como possibilidades de crescimento no respeito por todos.

Nessa perspectiva não há escolha senão a fraternidade, pensada não só a nível individual ou grupal, mas também à escala mundial. Se hoje é visível a olho nu que os pilares mundo vem sofrendo um desmoronamento, por falta de fraternidade, e continuarmos a defender posições de superioridade que impedem a fraternidade; é preciso nos decidirmos a dar passos concretos, reais, possíveis, que estão ao nosso alcance, de modo que o mundo se torne mais fraterno! Este livro, pelo conteúdo e pelo testemunho de vida da autora, se enquadra dentro destas premissas.

Leitor como protagonista

No fundo o grande protagonista de Moçambiquero-te  é o leitor, próximo ou distante,  convidado a mergulhar no grande oceano das culturas, da literatura,  através desta carta de navegação, onde a autora o remete para várias outras leituras, dialogando com os mais diversos  autores clássicos e contemporâneos das áreas da literatura, da cultura da filosofia, num estilo límpido que concilia erudição e simplicidade  conjugando o rigor  académico com uma brandura poética,  revestindo cada artigo de uma metodologia clara e transparente.

A interpretação antes focalizada no autor, depois no texto e agora também o advento do leitor – ao ler os comentários interpretativos da autora, o leitor é despertado no sentido de ir ou voltar com uma apetência mais desejosa aos livros alvos de abordagem, a fim de ruminar as palavras e redescobrir as infinitas possibilidades interpretativas, livros que nunca acabam de dizer o que tem a dizer.

Os textos literários apresentados são vividos como lugares de encontro, lugar de cumplicidade entre autor e leitor e ao mesmo tempo chave indispensável para a interpretação do real.  Uma autora hospitaleira que nos convida à tomarmos também o nosso lugar na cozinha da cultura e da literatura, para fazer da leitura uma experiência devorante.

Transdisciplinaridade

Outra dimensão presente no livro é a da transdisciplinaridade, um outro modo de pensar e produzir conhecimento, que recusa a separação rígida entre dos saberes, que se esquiva dos especialismos cegos, que não participa da rígida cisão entre subjetividade e objectividade, que se abstém de tomar parte na separação entre inteligência e sensibilidade, o abismo entre as ciências e entre elas e a filosofia, a arte, a poesia e a experiência vivida no quotidiano, como diria Severino António.  Convido-vos a ler com amorosa atenção este Moçambiquero-te, a captura inteligente da escolha dos muitos textos de autores que ela semeia em cada capítulo, o modo como entrelaça no mesmo fio de conversa autores aparentemente distantes.

Criadora dessa ponte feliz entre saberes, acima aludida, Sara Laisse coloca no mesmo livro questões relacionadas com a Sociologia da Leitura, a Antropologia Cultural, a Literatura, a Teologia da Inculturação, entre outros.

Num texto há um olhar sobre algumas obras de Eduardo White, e a poesia lírica como um estímulo para o despertar de  uma consciência nacionalista e democrática, noutro amparada na Sociologia da Leitura e na História (artigo Literatura moçambicana: rastos e rostos da última década – 2010/2020) a autora arrola autores e obras de escritores moçambicanos, publicados em Moçambique e no estrangeiro, referenciando o género literário dos livros e de algumas das editoras que os publicaram,  críticos literários que abordaram alguns dos textos do período em análise, alguns dos quais  trouxeram inovações do ponto de vista de abordagem a subgéneros literários pouco escritos em Moçambique.

Em  “A Nossa história é a nossa bússola”: desafios para a interculturalidade de Afonso Vassoa aborda questões da interculturalidade e  num  relance a toda a  obra deste autor; em Espelhos e Mapas: a poesia em itinerância aborda o que denomina de  enigmas, dado o uso de  máscaras, imagens ou fantasia para passar a sua mensagem, a existência de muitos trânsitos, tanto temporais quanto histórico-geográficos e culturais com recurso  aos códigos culturais e históricos ligados ao nyau, num estudo antropológico em torno desta obra de Ana Mafalda Leite.

Movida pela necessidade de contribuir para o debate sobre o tema “vidas/narrativas em trânsito: movimentos migratórios nas literaturas contemporâneas de língua portuguesa”, analisa a obra literária Apocalipse dos Predadores (AP), do escritor moçambicano Adelino Timóteo, numa perspectiva que cruza a literatura e outros saberes de cariz etnográfico, com características básicas do Romance Histórico. Em Ver e sentir: voz(es) feminina(s) com saudades do futuro Sara Laisse   aborda a poesia de Noémia de Sousa e como a(s) voz(es) por ela criada(s) literariamente apreendem a época histórica colonial, vozes e mensagens que conforme argumenta, poderiam, no contexto socioeconómico actual em Moçambique, ser relidas e recontextualizadas, pois mantêm uma tremenda actualidade.

Em Lapidar a Palavra em Dentro da Pedra ou a Metamorfose do Silêncio, de Japone Arijuane, exaltada a preocupação deste autor em fazer da palavra a sua matéria-prima, lapidando-a ou esculpindo-a a fim de obter poesia comprometida com a dimensão de um eu lírico solitário que se faz porta-voz de um nós solidário. Com Énia Lipanga reflecte sobre a abordagem da condição humana pela   poesia lírica, onde a escrita se revela trabalho de transformação de uma matéria para sobreviver, a autora apresenta reflexões sobre a produção literária africana e seu contributo para o desenvolvimento, fazendo   a apologia redentora do amor, advogando que: a cultura abre mundos, abre corações e liberta-os para o amor. É de amor que o mundo carece, de amor-próprio e amor para com o outro. É de capacidade de sermos cultos e cidadãos de plenos direitos de o ser que as sociedades precisam. É de renovação de modos de fazer que precisamos para a evolução da nossa espécie.

Com optimismo, a autora augura que a Literatura tanto na perspectiva universalizante, como localista, será chamada a reeducar o mundo; reescrevendo temáticas que estimulem uma maior solidariedade em prol da preservação da espécie humana; um maior intercâmbio na solução de problemas, visto serem os mesmos, ocorrendo algumas excepções derivadas de cada contexto político, económico, cultural e geográfico.

No artigo Da Inculturação ao Diálogo Intercultural e Ecuménico: vida e obra de Monsenhor Joaquim Mabuiangue, baseando-se na biografia deste eminente prelado, de autoria de Maria Carlos Ramos, pode ler-se esse apelo à interculturalidade e ao humanismo, assentes numa diversidade de depoimentos vários, daí ter o título: uma vida a várias vozes.

Em Ohana: fora de casa, com a casa às costas, a autora apresenta o percurso musical e a interpretação de algumas das obras do autor e compositor moçambicano Cândido Xerinda, interpretando três poemas ou letras escolhidas, nomeadamente: Xigubo, Ximeliyana e Ngoma Leyi perscrutando temas de índole socio-cultural, com fundamentos na cultura bantu. Cândido Xerinda demonstra que, afinal, a globalização pode caminhar, festivamente, em dois sentidos, ao levar a língua Cironga a Paris, com plenos direitos de cidadania cultural.

Resumidamente cada assunto deste diálogo escrito com o leitor constitui um desafio tão antigo quanto a própria humanidade, tão actual quanto os dilemas que enfrentamos aqui e agora.  A todos os navegantes deste oceano, em cujas ondas navegamos sob a regência de Sara Laisse, pelos trilhos deste Moçambiquero-te, convocamos como diria Carlos Rodrigues Brandão, a   uma boa leitura, uma boa aventura, uma boa viagem.

Maputo, Fevereiro de 2024.

 

 

 

O País está a 195 dias da realização das Eleições Presidenciais, Legislativas e das Assembleias Provinciais. Em todos os espaços públicos e privados, a conversa converge em torno do mesmo: quem serão os candidatos a Presidente da República dos três partidos, nomeadamente Frelimo, Renamo e MDM? Mais do que conhecer os rostos das figuras que se pretendem apresentar como candidatos à liderança dos destinos desta Nação, o cerne é saber qual o seu pensamento e projecto político para Moçambique. É lugar comum que este silêncio ensurdecedor dos principais partidos políticos não é normal numa democracia multipartidária com três décadas de existência.

Ora, em todas as esferas da nossa sociedade, nomeadamente política, económica, social e cultural, a preocupação maior é conhecer o candidato da Frelimo, o que radica do facto de a opinião pública assumir que este será o próximo Presidente da República, salvo alguma hecatombe política. Pelo poderio político da Frelimo, hoje manifestamente diminuído, em razão de uma diversidade de factores que não são, para já, objecto desta reflexão, não creio que tal suceda e argumento que o próximo inquilino da Ponta Vermelha será aquele que for apresentado como candidato da Frelimo.

O facto de a Frelimo não ter apresentado o seu candidato tem estado a suscitar o surgimento de inúmeras teorias de conspiração para o explicar. De todos os quadrantes sociais, ouvem-se narrativas diferentes sobre a matéria. Muitas destas teorias são infundadas, mas preenchem um vazio e dão respostas às questões que são colocadas pelos diferentes actores. Elas surgem porque os factos sociais precisam sempre de uma explicação. As pessoas procuram, com base nas ferramentas e nos dados disponíveis, avançar razões explicativas para a situação. É preciso ter presente que o homem é um ser racional e precisa de dar explicação a tudo o que lhe ocorre no quotidiano.

Seja qual for a tendência e a narrativa, o facto é que a sociedade anseia por conhecer as ideias políticas daqueles que têm a pretensão de se apresentar como pré-candidatos a candidato na Frelimo. Arrisco em afirmar que deixou de ser uma preocupação apenas da Frelimo.  A preocupação da sociedade moçambicana é legítima, uma vez que, do leque de pré-candidatos que se apresentarem, sairá aquele que, com muita probabilidade, vai dirigir Moçambique. A Frelimo não vai escolher um candidato que agrade apenas a si e aos seus milhões de membros. É expectável que a escolha responda aos desafios que o País enfrenta e traga as respostas que se lhes devem dar a curto, médio e longo prazo. Até porque a maioria do eleitorado não é militante da Frelimo.

O exposto acima significa que as suas vitórias eleitorais são garantidas por simpatizantes que têm toda a legitimidade de conhecer, com a devida antecedência, as ideias políticas, daquele(s) a quem vão depositar confiança para liderar os destinos de Moçambique no quinquénio 2025-2029 e, quiçá, no seguinte: 2030-2034. Isso deve merecer atenção particular da Frelimo. Na verdade, é aos moçambicanos que o partido governa e não somente aos seus militantes e/ou simpatizantes. Mais uma vez, daqui resulta a necessidade de responder às preocupações desta esmagadora maioria dos moçambicanos. É, sim, legítimo que conheçam os pré-candidatos a candidato da Frelimo.

É tendo presente que a escolha que vai ser feita, quiçá em Maio, como se propala, que nos dirigimos aos (des)conhecidos pré-candidatos a candidatos da Frelimo. Tratamo-los por desconhecidos porque não sabemos quem são e muitos menos conhecemos as suas ideias sobre a governação e sobre o rumo que o País deve trilhar. Concomitantemente, tratamo-los por conhecidos, porque quando apresentarem os nomes (ou o nome) não será nenhuma novidade, visto que já teremos alguma vez ouvido falar nessa figura como dirigente de algo.

Portanto, independentemente de serem ou não conhecidas, temos questões que merecem a reflexão destas figuras, dado não haver tempo razoável para a apresentação de projecto de governação, de modo a que o escrutínio seja feito interna e externamente, isto é, pelos militantes da Frelimo e pela sociedade, no geral. Além disso, há também, no País, diversos desafios que afectam o desenvolvimento e a qualidade de vida da população, tais como:

  1. A qualidade do ensino público nos diferentes subsistemas de ensino;
  2. A segurança nacional, particularmente no que toca aos raptos e à presença de grupos armados em alguns distritos de Cabo Delgado;
  3. A corrupção impregnada na função pública e até no sector privado;
  4. O modelo de descentralização;
  5. Desastres Naturais: Moçambique é vulnerável a ciclones, inundações e secas, com impacto directo na agricultura, recursos hídricos e na segurança alimentar;
  6. O impacto das mudanças climáticas;
  7. O peso da dívida externa;
  8. A desobstrução do espaço cívico em Moçambique;
  9. O modelo de desenvolvimento de Moçambique;
  10. O emprego e a habitação para a juventude;
  11. O lugar da agricultura e do turismo no desenvolvimento de Moçambique; e
  12. A estratégia de combate às assimetrias regionais, levando Moçambique a caminhar a diferentes velocidades.

 

A situação de Moçambique e os seus desafios mais estruturais – da produtividade e crescimento económico aos rendimentos e desigualdade, assimetrias regionais, da pobreza, das qualificações dos moçambicanos à sustentabilidade dos serviços públicos essenciais, entre muitos outros – exigem respostas políticas e reformas que a sociedade está expectante por ouvir daqueles que se pretendem apresentar como candidatos. Como não haverá tempo suficientemente razoável para os pré-candidatos apresentarem a sua visão de governação e serem interpelados pelos diferentes sectores da sociedade, ousamos colocar algumas questões que devem merecer o pronunciamento público de quem pretende governar este País, a saber:

  • Em primeiro lugar, preocupa-nos que a qualidade da democracia possa sair fortalecida. Que propostas políticas nos serão apresentadas para fortalecer a gestão democrática e transparente dos processos políticos? Como propõe melhorar o escrutínio público dos dirigentes?
  • Que propostas pretende levar a cabo para elevar a qualidade do ensino público nos subsistemas do ensino primário e secundário? E o ensino técnico profissional? Como elevar a qualidade de formação dos professores?
  • Que solução apresenta para a insegurança em Cabo Delgado? O Ruanda é um parceiro para manter ou a viragem para a SADC é inevitável? Como gerir a situação das populações que vivem deslocadas?
  • A terra é propriedade do Estado. Não será altura de nacionalizar as concessões mineiras e estruturar um modelo no qual o Estado é parceiro na gestão de todos os recursos naturais com maioria do sector privado?
  • Quais são os caminhos para tornar a agricultura na base para o desenvolvimento de Moçambique? 
  • Como tornar o turismo num dos pilares de desenvolvimento de Moçambique? Que projectos com as pérolas de turismo, que são Inhambane e Cabo Delgado?
  1. Que modelo de descentralização propõe para Moçambique? Como garantir que os presidentes dos municípios e governadores provinciais sejam eleitos seguindo o modelo de eleição do Presidente da República?
  2. Que reformas serão feitas no partido?

Quem ousa liderar e reformar o Estado não o pode fazer sem reformar a sua organização, uma vez que parte de intelligentsia que empreenderá tais reformas vem da sua organização. Ansiamos por conhecer os pré-candidatos e a sua visão de governação para Moçambique. Quem vai governar deve, obrigatoriamente, ser escrutinado pela sociedade. O escrutínio não é feito no boletim de voto. O processo de votação é o epílogo do escrutínio. Este  é, pois, um contributo cívico, construtivo e guiado pelo interesse nacional quanto sabemos ser o critério que exclusivamente enforma a decisão. 

Boa Páscoa a todos os cristãos!

A região Sul do país, com destaque para a nossa capital moçambicana, Maputo, está a ser fustigada por chuvas intensas, desde a madrugada de domingo, 24 de Março. Este facto está a condicionar negativamente a vida de centenas de famílias. De facto, a chuva não está para menos, com 100 milímetros por mais de 24 horas, como é o caso, poucas cidades no mundo conseguem garantir o escoamento com a flexibilidade desejável.

A situação torna-se mais calamitosa para as nossas cidades, onde os níveis de construções desordenadas correm a uma velocidade tal, muitas vezes com o olhar impávido de quem devia intervir para evitar cenários de fraco escoamento. As cidades moçambicanas, com destaque para a capital, observaram, ao longo dos tempos, construções em locais por onde passam os canais de escoamento das águas pluviais.

Como sabemos, as bacias de retenção têm sido, muitas vezes, utilizadas como armazenamento de água para diversos fins, com destaque para a agricultura e drenagem, reduzindo, assim, a retenção das águas das chuvas no interior dos bairros e garantindo a vida normal das famílias.

No entanto, como disse anteriormente, muitas construções de casas em várias cidades do país, nos últimos anos, foram feitas justamente por onde passam os canais de escoamento, obstruindo o caminho da água da chuva. Como consequência deste fenómeno, ouvimos gritos de socorro de muitos compatriotas nos últimos dois dias. As redes sociais, os órgãos de informação e diversas outras plataformas provam isso, veiculando imagens tristes, chocantes, avassaladoras de homens, mulheres e crianças com bagagens à cabeça, à procura de locais seguros para buscar abrigo.

É, certamente, uma situação extremamente complicada e que retira a dignidade da vida humana. Mas não há alternativa senão buscar por locais seguros para evitar a perda de vidas humanas.

Afinal, por onde andam as nossas autoridades da administração do Estado, que deixam ter lugar construções de casas em locais proibidos? Que políticas têm sido desenhadas ao nível do Ministério das Obras Públicas Habitação e Recursos Hídricos para evitar ou minimizar impactos severos nas famílias sempre que chove?

Estas e outras perguntas, obviamente, não encontram respostas plausíveis, mas o certo é que urge a necessidade de se repensarem políticas que visam assegurar a requalificação dos bairros, fazendo com que os canais de escoamento não sejam obstruídos pelas famílias e que se obedeça a construções de casas nos padrões recomendados pela administração do Estado, enquanto entidade que assegura tal facto.

O certo é que, sempre que chove, em qualquer cidade do país, cenários de casas inundadas e famílias em desespero ocorrem a cada momento, como apontam Vasco Catanda e Joaquim Notice, num artigo lançado em 2022, que retrata as construções desordenadas em Moçambique como acção que impacta negativamente o meio ambiente. Na mesma senda, Amorim e Cordeiro (2008) referem que a ocupação antrópica inadequada gera uma cadeia de impactos ambientais, tais como impermeabilização do solo, alterações na topografia, erosão do solo, perda das matas nativas, diminuição da biodiversidade e aumento do escoamento superficial.

Partindo deste pressuposto, nota-se que o homem é o principal responsável por aquilo que tem vindo a acontecer nas cidades moçambicanas. O ser humano provoca mudanças estruturantes no clima, com consequências nefastas a curto e longo prazos.

A chuva acima do normal, que tem caído, coloca à prova a nossa real situação, de fraca capacidade de escoamento das águas, daí a necessidade de repensarmos as nossas acções sobre o meio em que vivemos, que tipo de cidades queremos e, quiçá, uma elaboração de políticas públicas neste sentido, para que se reverta o cenário.

Ademais, face ao actual fenómeno, precisamos de avançar para o monitoramento da construção de novas habitações nos centros urbanos e não só, para que não se observe o processo de degradação, não só ambiental, mas do sistema de escoamento e das bacias de retenção de água. Isso poderá permitir um grande vazamento, do contrário iremos assistir a uma situação cada vez mais complicada para as famílias sempre que chover.

Silêncio total. Nenhum partido dá um passo à frente. A sociedade ansiosa colapsa de tensão, enquanto os partidos brincam aos joguinhos infantis. Tratam-nos como metidos e curiosos, quando estamos no pleno exercício da responsabilidade cívica. Queremos conhecer as propostas dos partidos para que, com antecedência, façamos a pré-avaliação de merecimento da nossa confiança. E, neste capítulo, chamem-nos o que quiserem, a pressão sobre vós continuará intensa, enquanto entendermos que disso depende o nosso futuro, enquanto as nossas escolhas forem o nível mais importante de decisão. Às cegas, não queremos continuar rumo às eleições.

A Frelimo, a Renamo e o MDM são, nesta matéria, indistinguíveis. Estão no mesmo saco e com a mesma aparência inconsequente, destacando-se a Frelimo, para quem recai o ónus da disciplina: prega organização e prática o oposto. Exalta um sentimento de importância e adia a indicação do candidato, como se de uma eleição relâmpago se tratasse. Quatro anos passaram e não foram suficientes para que o partido fizesse juz à sua tese “a vitória prepara-se, a vitória organiza-se”.

Tudo isto nos faz esculpir o sentido que a democracia tem para o partido e, sem surpresas, perceber que é falseada, maquilhada, mas sem disfarce convincente. Ora vejamos: se os candidatos são eleitos, em princípio, deveria haver manifestação de interesse, aprovação das candidaturas, pré-campanha e eleição. Mas o que agora acontece é repressão de candidaturas voluntárias e indicação de candidatos com base em critérios inacessíveis à maioria dos militantes com importância favorável para a decisão. No fim, reina a disciplina do silêncio e ovação do escolhido, o impingido. E assim vamos nós, registando e aplaudindo a democracia do faz de contas.

É inaceitável que, num momento político crucial em que se desenha o futuro de um país, o cenário político ainda esteja suspenso. Adensa-se o ar e esta falta de transparência e inacção dos partidos políticos propiciam uma já palpável tensão social, com especulações de um terceiro mandato forçado à mistura.

Este silêncio prolongado não apenas mina a confiança do eleitorado, como alimenta especulações e incertezas que afectam o ambiente económico. Ouvir vozes de proa do partido a dizerem que o tema “candidato da Frelimo às presidenciais” não está na agenda da sessão do Comité Central marcado para Abril próximo agita ainda mais as águas. Este adiamento deliberado que denuncia falta de prioridade ou ausência de consenso interno faz subir o clima de incerteza que paira sobre a Nação e ignora que o impacto transpassa as fronteiras políticas: desencoraja investimentos e atrasa projectos de desenvolvimento, prejudicando o crescimento económico do país. Um ambiente político estável é salutar para a tomada de decisões informadas e planificação do futuro com confiança, mas ninguém se rala com isso.

Entretanto, enquanto prevalecer o silêncio, o descontentamento emerge e ninguém se garante contra a inimizade do povo. O tempo que se perde fragiliza o candidato que já deveria estar a criar empatia para elevar as suas possibilidades de vitória. Será sobre a lama que estes vão correr em nossa direcção em busca do voto. Nossa importância, hoje diminuta, vai em breve exponenciar por 45 dias, mas rapidamente desvanecer quando às urnas voltarmos as costas.

Preocupa-me esta racionalidade ingénua dos partidos ou prudência imprudente, ao ignorarem o poder de reacção do povo, só porque este se reveste de receios e se esconde no silêncio. Porém, esta dose elevada de silêncio já vai de remédio para veneno, e a insistência na aplicação pode ser fatal.

O país não goza de uma boa saúde política e não temos exclusividade no problema. Na região, também há turbulências, com a África do Sul em destaque, porque se aproximam eleições intranquilas para o partido no poder. Todavia, deste panorama, nada aprendemos e esforçamo-nos em escrever uma história que produz resultados previsíveis. Quando há sintomas de mal-estar, o melhor é trabalhar mais no diagnóstico para ser fácil chegar à cura, porque, de contrário, quando for evidente o mal-estar, a cura fica mais difícil. Este jogo de antecipação não devia ser preterido pelos partidos, que se despedaçam a olhos vistos.

É hora de fortalecer os alicerces da democracia. É urgente e necessário desencalhar o país. De responsabilidade e transparência se precisa. Afinal, quem é o senhor que se segue?

Uma conhecida telefonou-me numa manhã qualquer, relatando que tinha sido agredida fisicamente pelo marido. Esta notícia chocou-me profundamente, pois tratava-se de uma jovem de 21 anos que se casara recentemente. O relato dos desafios que ela enfrenta no casamento fez-me refletir sobre a forma como a sociedade trata as mulheres, desde o nascimento até à morte, com desconsideração.

Como referi anteriormente no meu texto “Desafiando estereótipos de género: em busca de uma sociedade inclusiva”, as famílias moçambicanas, tendem a incentivar as raparigas a procurar o sucesso apenas no âmbito conjugal, sem apresentar outras possibilidades que elas possam ter de igualmente serem relevantes em outras esferas.

A título de exemplo, conheço uma jovem em Maputo que se casou logo depois de concluir o ensino secundário e já trabalhava na época. No entanto, após o casamento, o marido exigiu que ela parasse de trabalhar para cuidar da casa, especialmente por estar grávida. Com medo de desagradar ao marido, ela deixou o emprego para se dedicar exclusivamente às tarefas domésticas e à criação dos filhos.

Com o tempo, ela percebeu que estava a abdicar da sua educação e conversou com o marido, que a questionou:
– Por que é que queres estudar, estudar para quê se eu não quero uma mulher que trabalha!

Essa situação reflete não apenas a mentalidade desse homem, mas também como a sociedade moçambicana e africana, em geral, incutiu a ideia de que as mulheres não precisam estudar nem trabalhar, pois o seu papel é cuidar da casa e da família.

Deveria ser natural que as raparigas procurassem educação e crescimento profissional, no entanto, muitas acabam por se casar cedo (antes dos 21 anos, por exemplo) por acreditar que o casamento é a realização máxima das suas vidas. A sociedade ensina-as a competir entre si, não pela excelência académica e pelo conhecimento, mas por quem se casa mais cedo, quem mantém o lar por mais tempo e ainda quem tem o corpo mais aceitável que a outra… Este enfoque precoce no casamento leva as raparigas a desperdiçar a juventude e oportunidades, resultando em gravidezes precoces e diminuição das chances de sucesso na vida, incluído a possibilidade de desenvolvimento de uma carreira profissional promissora.

Um outro exemplo, diz respeito a uma mulher que foi proibida pelo marido de frequentar a escola, e ela concordou, pois não queria desagradá-lo. Contudo, anos mais tarde, o mesmo marido começou a evidenciar o desrespeito por ela, alegadamente porque o envergonhava por ser analfabeta e ele não a podia apresentar aos amigos e colegas por tal facto, sendo-lhe ordenado que se mantivesse escondida em casa.

Situações similares as acima expostas, entristecem-me! pois mulheres submetidas as diferentes formas de abusos acabam tendo o seu futuro comprometido. Elas tornam-se não só incapazes de desenvolver habilidades técnicas e profissionais que as permitiriam competir em igualdade com os homens no mercado de trabalho, como também podem potenciar os meios de perpetuação da dominação masculina na sociedade.

Por que é que as mulheres têm de suportar esse fardo?

Ainda sobre a violência doméstica, lembro-me de uma situação que presenciei num salão de beleza, onde a proprietária, enquanto me atendia, foi brutalmente agredida fisica e verbalmente pelo marido, que claramente estava ébrio. Mesmo perante a violência, ela manteve a calma e pediu que conversassem em casa, visto que estava a trabalhar. Sem hesitar, procurei ajuda, visto que sozinha não seria capaz de conter a força brutal daquele homem. A violência do episódio permanece indelevelmente gravada na minha memória, pois nunca tinha presenciado uma situação de violência doméstica tão de perto.

Estes acontecimentos levam-me a refletir sobre como as mulheres lidam com situações de abusos em silêncio, muitas vezes ignorando os sinais para preservar os seus lares. Ninguém merece passar por isso! E não podemos permitir que tais comportamentos se perpetuem impunemente. É responsabilidade da sociedade encorajar as mulheres a denunciar os agressores sem medo de retaliação, em vez de associar a denúncia à separação ou a quaisquer outros tipos de julgamentos sociais que levam as mulheres a temer mais a solidão do que a morte nas garras da violência doméstica. É imprescindível que as mulheres valorizem-se, empoderem-se e busquem ajuda, rompendo com os padrões sociais que as oprimem. Sem isso, a luta pela valorização e reconhecimento do papel da mulher na sociedade poderá desembocar em fracasso.

Concluo com um grito de alerta urgente para um despertar coletivo: é imperativo rompermos com padrões ultrapassados e nocivos que subjulgam e oprimem as mulheres! Chegou o momento de uma revolução silenciosa, mas poderosa, onde o amor-próprio, a autovalorização e a autonomia das mulheres ergam-se como pilares inabaláveis.

Dirijo-me, com fervor, às jovens e mulheres: que a chama da educação seja a luz que guia os vossos passos, que a busca pela independência financeira e emocional seja o alicerce das vossas escolhas e que relacionamentos saudáveis, baseados no respeito mútuo, floresçam como jardins de igualdade e dignidade.

Transformemos a lamentação em ação, a revolta em determinação e o silêncio em voz. Juntas, erguemos uma nova narrativa, onde os casamentos são belos não pela simples união de corpos, mas pela fusão de mentes, corações e almas que se fortalecem mutuamente.

Que este apelo ecoe não apenas nas palavras, mas nas ações diárias, moldando um futuro onde as mulheres não apenas sobrevivam, mas floresçam em plenitude, como seres dignos de respeito e amor incondicional.

A mudança começa em cada uma de nós e propaga-se como ondas de liberdade e justiça num mar de transformação.

Os grupos que estão no controlo do Estado ou influenciam amplamente as decisões do Estado (movers and shakers) estão a conduzir o país no sentido antidemocrático. Promovem a manipulação das eleições, limitam o exercício de direitos civis e políticos, exercem controlo sobre as instituições do Estado, destacadamente o judiciário, sobretudo nos casos em que os litígios põem em causa interesses do partido no poder ou de seus grandees.

Moçambique nunca foi uma democracia plena, e a situação está a piorar desde há alguns anos, sobretudo desde que o presidente Chissano saiu do poder (2004). Os mais importantes índices globais que avaliam a efectividade da democracia, o desempenho da governação e o respeito pelas liberdades individuais mostram inequivocamente que o país está em queda livre nos indicadores mais importantes.

No Freedom House index, que avalia os direitos políticos e liberdades civis em todo o mundo, a pontuação de Moçambique está abaixo da metade e a tendência é de queda. No relatório publicado em 2024, Moçambique tem 44 dos 100 pontos possíveis. Ou seja, o exercício das liberdades em Moçambique é de apenas 44%. O nosso país já esteve melhor neste índice. Em 2016, por exemplo, Moçambique tinha 56 pontos no Freedom House Index. Significa que, em 8 anos, caiu 8 pontos (ou 8%) no respeito e exercício dos direitos políticos e liberdades civis. Esta é considerada uma queda dramática em 10 anos. Ainda assim, o país é considerado parcialmente livre, mas, a seguir esta tendência, não tardará que seja considerado um país não livre.

No The Economist Intelligence Unit Democracy Index referente ao ano 2022 (o mais recente disponível), que avalia a efectividade da democracia, Moçambique tem uma pontuação de 3,51 em 10 pontos possíveis. Ou seja, a democracia em Moçambique é de apenas 35%. [Imagine-se se fosse desempenho escolar de um aluno, seria mais do que medíocre e não iria agradar a nenhum pai.] A este nível, Moçambique é classificado como um regime autoritário desde 2018, e a manipulação das eleições autárquicas desse ano foi o que justificou que o regime de governação em Moçambique fosse considerado autoritário. Com a manipulação ainda mais arrogante nas eleições de 2023, não se pode esperar melhor classificação do nosso país neste índice.

No Mo Ibrahim Index of African Governance de 2022, Moçambique tem uma classificação global 48,6 de 100 pontos possíveis (um desempenho de governação de 48,6%). Neste índice também o país já esteve melhor. Em 2008, Moçambique tinha 54 pontos ou 54% de desempenho da governação. O nosso país já foi considerado muito bem governado neste índice, de tal forma que o Presidente Joaquim Chissano faz parte de um restrito grupo de líderes africanos que já venceram o prémio de melhor governante do continente, atribuído pelo patrono do índice, o Sir Mo Ibrahimo.

Este índice avalia indicadores como a ausência da influência negativa no Governo, pluralismo político, ausência da violência contra civis, ausência de conflito armado, liberdade de expressão e de crença, eleições democráticas, políticas de redução de pobreza, igualdade na representação política (de vários grupos), checks and balances (controlo e equilíbrio) institucionais.

Os índices captam e sistematizam apenas a realidade que os moçambicanos vivem no dia-a-dia. Eles (os índices) são o reflexo de que a democracia e a governação do país vão mal. E isto acontece porque os indivíduos e grupos que controlam e influenciam as decisões do Estado decidiram sacrificar os interesses e o bem-estar da colectividade para ganhar benefícios políticos e económicos próprios e imediatos. De forma consciente ou não, estas pessoas estão a fragilizar e a corroer a credibilidade das instituições democráticas. Estão a pôr em perigo a democracia em Moçambique.

A democracia é um sistema de governação baseado na confiança. Os governados acreditam que os governantes irão defender os seus interesses (dos governados). Em termos práticos, os governados acreditam que os governantes irão criar e equipar forças armadas e policiais capazes garantir a segurança de todos; confiam que os governantes irão adoptar e implementar políticas públicas capazes de gerar o bem-estar para todos ou para a grande maioria da população; acreditam que os tribunais irão dirimir os conflitos com justeza e independência, protegendo os mais fracos dos abusos dos mais poderosos e sancionando, também, os mais fracos quando estão errados.

É com base nestas expectativas – legítimas – que as pessoas escolhem um grupo de governantes em detrimento de outros. E se os eleitos falham em cumprir com as expectativas dos cidadãos eleitores, a relação de confiança é quebrada. Se as falhas forem sistemáticas, a relação colapsa e há uma forte probabilidade de que os eleitores conscientes não voltem a eleger os mesmos grupos que falharam no cumprimento dos seus deveres.

No caso de Moçambique, as falhas no comprimento das funções do Estado são sistemáticas e os mecanismos de escolha livre dos dirigentes não são efectivos. Por outras palavras, os governantes governam mal e, quando os eleitores os tentam trocá-los por outros que julgam que vão fazer melhor trabalho, os governantes recusam-se a sair, recorrendo a manipulações dos processos eleitorais. Os dirigentes permanecem por mais anos no poder e não melhoram a qualidade de governação.
É daí que o pior pode surgir, e geralmente surge. As pessoas perdem a confiança, não somente nos dirigentes, mas também nas instituições democráticas. Primeiro porque não desempenham as funções que era suposto desempenharem, e segundo porque, mesmo assim, mantêm no poder dirigentes com desempenho insatisfatório, contra a vontade da maioria ou de uma grande parte da população.

Como sair disto? Há muitas formas. As mais comuns são duas. O mais recomendável é que as pessoas e instituições com poder tomem, elas próprias, a decisão de mudar o rumo das coisas. Esta é a melhor e menos dolorosa forma de mudança. Mas significa que os governantes devem renunciar aos seus privilégios obtidos e mantidos de forma ilegítima, para poder beneficiar a maioria. Se isso for bem feito, o país cresce a todos os níveis (económico, democrático e social).

A segunda forma é a mudança imposta de fora (do Governo), geralmente através da violência política organizada. Esta forma é muito dolorosa e imprevisível quanto à probabilidade de gerar os resultados desejados. Em muitos casos, a situação da democracia, governação, liberdades individuais, desenvolvimento, direitos humanos deteriora-se enquanto se busca fazer a mudança imposta por fora. Infelizmente, esta é a forma mais comum a nível global, e Moçambique já passou por isso na transição do regime monopartidário para democracia multipartidária.

Infelizmente, parece que nos esquecemos rápido da nossa história. Mas a história não costuma falhar. Quando uma nação toma rumo como o que o nosso país tomou, a mudança sempre irá acontecer. Só não se pode prever de que forma. Seria bom que a mudança fosse por decisão dos que detêm o poder. Seria menos doloroso para todos. A questão é quem dá as cartas!

Em 2020, escrevi dois artigos de opinião, nos quais esgrimi a minha incerteza sobre a governação descentralizada. Naquele ano, percebi que a nova tendência de governação não tinha pernas para andar. Aliás, neste quesito, não fui o único cidadão desta pátria a ter tal convicção, pois a nação moçambicana caminhava para um pontapear sem precedentes do espírito real da democracia, conquistada com muito suor.

Neste aspecto, para consubstanciar a minha convicção, abraço o saber do cientista político americano Robert Dahl, que muito aprecio pela sua forma épica de estudar democracia. Nos escritos de Dahl, apreende-se que “a democracia é representativa quando o povo governa através dos seus representantes eleitos em escrutínios”. No entanto, ele diz que os regimes actuais não constituem na realidade uma poliarquia, ou melhor, governo de povo, em que as formas de governo permitem a participação activa do povo na tomada de decisões, respeitando os direitos de todos os cidadãos e garantindo a liberdade individual.

Partindo desta narrativa, a avaliar pela onda de auscultação sobre o pacote da descentralização em curso no país, onde a Comissão de Reflexão das Eleições Distritais (CREMOD), procura fundamentalmente aferir, junto dos vários actores, a viabilidade ou não deste modelo governativo, com pretensão de corrigir algumas nuances de natureza de consolidação do processo de descentralização a nível provincial, ficou claro que o modelo foi efectivamente aprovado apenas para pôr término o conflito político-militar e não uma governação para o bem do povo, tal como se caracterizava.

Dito de outra maneira, não foram envolvidos os vários actores para a viabilização do novo modelo governativo, o que ficou mal para a democracia moçambicana, pois não houve aquilo que se chamaria de aglutinação de ideias dos melhores filhos desta pátria. Aliás, Lourenço de Rosário, um renomado e famigerado académico deste país, membro da CREMOD trabalhou na Zambézia com diversas entidades e autoridades buscando aferir o nível de prossecução do modelo descentralizado. Do Rosário diz que se constatou  que vários factores administrativos e normativos demonstram que o período 2020-2024 foi manifestamente insuficiente para consolidar o processo de descentralização provincial.

Eis o ponto. Definitivamente, este modelo de governação terá mesmo de cair por terra, pois não tem pernas para andar. Foi duro e forte ouvir actores envolvidos no processo de governação provincial darem parecer negativo sobre o modelo, por não ser funcional no nosso contexto, pois há duplicação das estruturas administrativas. Mais do que isso, o modelo é oneroso e insustentável, diziam na abordagem os vários membros do conselho de representação de Estado e vários outros de nível distrital, chegando-se até a defender a ideia de se avançar para o federalismo. Este último ponto não fazia parte da agenda do debate.

Do latino gubernatore, significa governador, compreendendo-se como “cargo político geralmente eleito, que detém a autoridade máxima do poder executivo em uma província, distrito ou então Estado de uma federação”. Esta definição mostra quanto erro o país cometeu ao tornar a figura de representante de Estado ao mesmo nível de administração com a do governador eleito. Um duplo governo para uma província, tudo para acomodar o que nunca tinha sido aprimorado ou debatido por todos os interessados no modelo.

Aliás, por causa deste modelo, a balança financeira do Estado ficou tão pesada. No desenrolar do debate, ficou claro que a descentralização foi mais administrativa e não acompanhou a gestão financeira, um cenário diferente no Conselho Executivo Provincial. Lourenço do Rosário chegou até a defender, na ocasião, que há uma má metodologia de gestão financeira no país, sendo que modelos de descentralização em discussão não são apenas administrativos, mas totais.

Nestes dias de debate sobre o modelo de governação descentralizada, ficou claro que o modelo através dos resultados obtidos pela CREMOD no terreno poderá colocar o país a recuar para um modelo mais adequado, que não lacere os princípios democráticos.

Há espaço para que se transforme a figura de secretário de Estado, a funcionar com grupos de poucos assessores, em árbitro para controlar os excessos do Executivo. Uma experiência que os municípios até já têm, quando contam com a presença da tutela administrativa no processo governativo.

Estou certo de que é verdade que a figura do secretário de Estado na província deverá, sim, manter-se, pois se trata de algo irreversível, contudo, apartando-se dos actuais moldes, sendo que o país poderá caminhar para o que há muito se fazia em relação à figura do governador de província.

Hélder Jauana
“Je suis un intellectuel. C´est mon métier que de penser.
Je suis payé pour ça (Mamadou Diouf)”

Moçambique enfrenta desafios que colocam em causa o seu projecto de construção e consolidação de uma Nação desenvolvida, alicerçada e fundada na Unidade Nacional. O terrorismo em Cabo Delgado, a “indústria dos raptos”, a mercantilização da religião, a qualidade da educação pública, em particular no ensino primário, as bolsas de fome recorrentes, as crises e a violência pós-eleitoral permanentes, a intolerância política e o recrudescimento dos ismos que adiam qualquer nação, nomeadamente o tribalismo, regionalismo, lambebotismo.

De Cabo Delgado, assiste-se e ouvem-se relatos aterradores de destruição de infra-estruturas e, acima de tudo, de tratamento insensível e animalesco da vida humana. Os raptos paralisam a nossa economia com a fuga do país dos poucos projectos de capitalistas que o país tem. Uma das consequências é o desemprego pelo encerramento de negócios em resultado da fuga dos seus proprietários para o estrangeiro. Os relatos de um país inseguro para empresários retraem potenciais investidores de colocar o seu capital em Moçambique.

A crise no ensino público caracterizada pelo défice de jovens com competências técnicas; incapacidade de acompanhar o desenvolvimento tecnológico, através da criação de start ups, por exemplo; ausência de atitude crítica fundamentada (não baseada em leituras ligeiras da realidade) cujas consequências se começam a sentir, compromete qualquer projecto sério de construção de uma nação desenvolvida e competitiva. É fundamental ter um sistema educacional em que a liberdade é um dos seus pilares fundamentais porque a criatividade radica da liberdade.

É lugar comum que a intelligentsia de uma nação com confrontação permanente de ideias, visão de mundo e de sociedade faz uma esfera pública actuante e que propicia desenvolvimento. A história da humanidade mostra-nos que a sociedade moderna promoveu uma crescente racionalização e burocratização, resultando no desencantamento do mundo. Este desencantamento gerou os contestadores da ordem e do poder político vigente, os inconformistas, os que construíram novas ordens e produziram novos contestadores e novos defensores da ordem – os intelectuais.

O intelectual é aquele que se empenha pessoalmente na interrogação dos fenómenos e dos acontecimentos; aventura-se no seu diagnóstico e no seu prognóstico, problematiza de maneira crítica o que parece evidente e natural, mobiliza a sua consciência e a sua reflexão de humano e de cidadão, elucidando os seus pares intelectuais e, por via disso, a sociedade. Intelectual é aquele que se dedica a reflectir – ler e escrever – criticamente sobre a realidade. O único acto que constitui a força dos intelectuais é a permanente reflexão na esfera pública com produção de conhecimento sobre a realidade, isto é, ler e escrever criticamente sobre a realidade.

Ora, a reflexão e a leitura são actos solitários. Portanto, reflectir e ler exige do indivíduo momentos de solidão que o ajudam a distanciar-se do aparente, do óbvio, da tentação em assumir os factos como nos são dados – o Senso Comum – como verdade. E, como defende muito bem o historiador senegalês Mamadou Diouf, a leitura e a reflexão são posturas difíceis de ter e observar em sociedades de convivialidade onde a oralidade é constantemente colocada em causa pela conversação e onde a conversa soberana se realiza em actos (1993). Tal não significa que em África os africanos não reflictam criticamente sobre a sua realidade. Esta assumpção tão somente significa que a leitura e reflexão crítica sobre a realidade são exercícios penosos que a nossa intelligentsia se eximiu de fazer criando assim espaço para a consolidação e afirmação dos inimigos da sociedade aberta.

Uma simples observação do que se passa em Moçambique permite-nos notar que a nossa intelligentsia se esconde na esfera privada, em particular em grupos de família, amigos e colegas. É na esfera privada e restrita muitas vezes em ambientes etilizados que se emitem juízos de facto sobre as opções estratégicas tomadas pelo Governo, universidades, empresas, da ausência dos sindicalistas da esfera pública, do status quo dos partidos políticos, do desemprego entre outros. É nesses ambientes que a nossa intelligentsia grosso modo desabafa transformando esses ambientes de convivialidade do nosso muro das lamentações.

Alguns argumentam que não participam do debate na esfera pública porque o ambiente não permite. Outros que o farão quando o sistema melhorar, outros ainda que o farão quando conquistarem o título de PhD. Quando é que o ambiente vai melhorar? Quem faz o ambiente melhorar? Quando é que vão alcançar o PhD? O facto é que, salvo raras excepções conhecidas cujos nomes não preciso apresentar, a nossa intelligentsia se recusa a intervir na esfera pública.

A nossa intelligentsia prefere alinhar no que Ambroise Kom, Achille Mbembe e Kwame Appiah denominam cooptação e na mafiosa “lei da boca que come e não fala”. Não tenho dúvidas de que o país teria a ganhar se a nossa esfera pública fosse caracterizada pelo que o sociólogo Jean Copans denomina de intelectuais d´en bas. O intelectual d´en bas é aquele que reflecte criticamente sobre a realidade social, económica, política e cultural.

Como referimos acima, os males que nos afligem nomeadamente o terrorismo em Cabo Delgado, a “indústria dos raptos”, a mercantilização da palavra de Deus, o trafico de droga, a qualidade da educação pública, as bolsas de fome recorrentes, as crises e a violência pós eleitoral permanentes, a intolerância política e o recrudescimento dos ismos que adiam qualquer nação, nomeadamente o tribalismo, regionalismo, lambebotismo colocam um desafio à nossa intelligentsia. Mas, perante estes males que perigam a nossa existência como Nação e atrasam o nosso desenvolvimento assistimos, regra geral, a um silêncio e mutismo da nossa intelligentsia em quase todas as esferas. Há quase uma tese consolidada na nossa sociedade de que a nossa intelligentsia se recusa a reflectir criticamente na esfera pública. O medo de intervir na esfera pública radica do receio de ser conotado como ideologicamente desalinhado, ambicioso, antipatriota ao serviço da agenda ocidental, contra o BIG MAN, como desalinhado. Um mutismo comprometedor e, acima de tudo, cuja consequência é adiar e/ou comprometer o desenvolvimento da Nação.

O que a nossa intelligentsia não percebeu ainda é que a crise que vivemos é, antes de mais, uma crise moral e intelectual fruto de uma reação subjectiva. Ela radica da reacção que a nossa intelligentsia tem em relação à realidade política, económica, social e cultural do País. Ela radica da resposta que a nossa intelligentsia dá aos factos que enfrentamos como sociedade. A nossa crise radica da desconfiança que temos das nossas elites que consequentemente leva-nos a perder confiança em nós próprios. Como sociedade enfrentamos uma crise de referências. Parece que perdemos as nossas referências e a nossa intelligentsia, seja qual for o seu compromisso partidário, tem um discurso desfasado da realidade que os seus concidadãos vivem. A crise que vivemos não é de todo má. Ela poderia ser salutar se pudesse levar a uma retoma da consciência da realidade que abrisse caminho a uma reforma intelectual que nos permitisse encontrar respostas demasiado rápidas aos desafios que vivemos.

Uma intelligentsia que continua a reproduzir o modelo colonial retrógrado de ligação ao hinterland, que serviu para alimentar o projecto de ocupação efectiva e alimentar os cofres do Estado colonial. Uma intelligentsia que se recusa a reflectir na definição de distritos estratégicos cuja ligação entre si alavanca o desenvolvimento das províncias, criando Zonas Económicas Especiais integradas (ZEEI) com políticas e incentivos fiscais atractivos aos investidores. Nessas ZEE seria capacitada mão-de-obra para atrair os grandes grupos a deslocalizarem a sua indústria para o local. Uma intelligentsia que insiste na manutenção de taxas de juro que não permitem desenvolver um empresariado nacional que recorre à banca para investir. Uma intelligentsia que transformou a Autoridade Tributária em simples cobrador de impostos e não numa Autoridade que pense num modelo tributário que permite o desenvolvimento de Moçambique a várias velocidades. Uma intelligentsia que se recusa a fazer um exercício básico de revisitar o Plano Prospectivo Indicativo (PPI) e dele buscar os aspectos positivos do projecto de industrialização. Uma intelligentsia que ama a descontinuidade. Mas como nos desafiou Eduardo Mondlane, continuemos A Lutar por Moçambique. Um dia vamos ouvir e compreender-nos mais e aí não haverá os fantasmas que inventamos para nos combater e dividir com toda a consequência para o desenvolvimento de Moçambique.

Infelizmente, perante estas crises, as nossas elites a todos os níveis contraíram-se e menos suportam a crítica. O verdadeiro perigo que vivemos não é a crise que nos ameaça, mas os comportamentos perante os factos. O que a nossa intelligentsia se recusa a entender é a sua responsabilidade e culpa perante a crise que vivemos. A sua culpa e responsabilidade em segundo grau por não fazer nada para mudar a crise do sistema. A culpabilidade é colectiva e dela faço parte. A história julgará a inércia e o descomprometimento da nossa intelligentsia perante a crise que vivemos.

Saiu de uma campanha pouco expressiva, tímida e atípica para o partido do batuque e maçaroca, uma campanha voltada para uma comunicação em quatro paredes, forçada pela rejeição coral das massas, que à luz do sol não escondiam o seu desprezo e apatia pelo partido que sempre governou, mas agora com a percepção de baixa satisfação.

Na capital, foi mesmo assim. A caça ao voto não foi tarefa fácil para o candidato da Frelimo. Rasaque Manhique não encantou à primeira vista. O povo, saturado de falsas promessas, vociferou impropérios e deu costas sem aceitar ouvir a cantada política, fez pré-juízos e seguiu às cegas comprando outros discursos sem certificados de veracidade. Mas isso não importava.

Foi uma prova dos nove reprovada e ofuscada pela acidez da oposição, que maquiavelicamente plantava a semente do ódio em terra fértil, mas que ironicamente não colheu vitória, colheu tempestade num poço com profundidade infinita.

Hoje, como uma fénix ressurgida dos escombros do processo eleitoral, temos, de facto, a oportunidade de conhecer o presidente do Município de Maputo. Aquele que, no silêncio da campanha, não se agitou nas ruas, mas construiu um projecto que agora se faz visível, em termos de ideias, e vai à avaliação popular.
Entrou forte, cheio de moral, de peito aberto, de cabeça firme e erguida, fito num propósito que ainda ansiamos por conhecer. Dominamos as intenções verbais, mas navegamos ainda na fina luz da verdade, essa que apenas o tempo nos vai revelar no compasso do relógio que não vai parar. O tempo será o seu árbitro, num jogo sem prolongamentos, e o cronómetro, um juiz rígido, aguardando o fim do mandato para proferir a sentença.

Na audácia das promessas de Rasaque Manhique, ouvimos: “Não sejamos, nós, esbanjadores do erário público”, aplaudimos e depois ouvimos: “Não faz sentido que ocorram construções de forma desordenada na Cidade de Maputo. Não faz sentido demolir. Onde estávamos quando foram edificadas?”, aplaudimos com mais energia e continuámos atentos e ouvimos: “Não é elegante ver disputas entre a polícia municipal e a população (…). Não é para fomentar o informalismo, mas não é para actuar sem dó. Não é bonito a polícia municipal arrancar água de coco. Este edifício (Conselho Municipal) não bebe água de coco, temos de disciplinar…”, colocámo-nos de pé e aplaudimos bem mais alto e mais promessas ouvimos: “Empolar valores na facturas de obras, ou qualquer outro serviço, não tem outro nome senão roubo. Ao tomar conhecimento, vamos imediatamente anular os contratos (…)”. Com o subir de tom, sentimos que era hora de frear a emoção e trazer a razão ao de cima. Mas ainda estamos sob o efeito analgésico dos discursos até agora consumidos.

E Rasaque Manhique não pára, soma e segue coleccionando sonhos no imaginário colectivo. Entrou como um exímio conhecedor dos problemas e ancorou-se em discursos melosos que confundem resultados com uma versão ebriamente aumentada da sensação de acção. Vale-se da retórica para estes ganhos iniciais. Suas promessas adubam expectativas e elevam a ameaça de sincronização com os resultados projectados. O caminho ainda é longo, sr. presidente.

Nosso cérebro, esta máquina de construção de significados baseada na experiência, chama-nos para sermos pessimistas, porque é insano ignorar o conhecimento produzido pelo registo do tempo que passou. Mas porque o conhecimento não é estático – ele renova-se constantemente e reformula-se –, acreditar que pode ser diferente ajuda a contribuir para que os bons resultados venham. Pregar desgraça para o irremediável também seria insano. Mas registar as promessas, observar as acções e deixá-lo trabalhar é o mais sensato.

Os dias vão passar e os resultados serão conhecidos, sejam eles positivos ou negativos. Com a sabedoria do tempo, a verdade não será enviesada nem nos chegará estilhaçada ou desfocada. Será cristalina e estará pronta para que, com os óculos de cada munícipe, se formule a verdade individual conveniente, aquela cuja discussão é de total estupidez, até porque o voto resulta da percepção individual de capacidade de realização.

O caminho ainda é longo, senhor presidente.

 

O Governo de Moçambique já fez muita coisa para acabar com a guerra em Cabo Delgado. Já contratou empresas militares privadas (“mercenários”), recorreu a tropas estrangeiras, estabeleceu acordos com outros Estados para treinarem as Forças Armadas de Defesa de Moçambique, apoiou a criação e equipou milícias populares, e criou uma agência de desenvolvimento dedicada a conter o alastramento da guerra. Só há uma coisa que o Governo não faz e não deixa fazer: dialogar com os insurgentes.

Há muitos argumentos apresentados pelo Governo e pelos seus ideólogos para negar o diálogo como uma forma válida de resolução de conflito em Cabo Delgado. O mais comum de todos é o de que não se sabe com quem dialogar, pois “os insurgentes não têm rosto (um líder conhecido)”.

E já se ouviram vários outros argumentos. Um meu (antigo) professor no Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI) afirmou, há dias, num debate público em Maputo, que não se pode sequer pensar no diálogo para a resolução do conflito em Cabo Delgado, pois os insurgentes são extremistas e não reconhecem a autoridade do Estado. Argumentou, também, que “o actual contexto internacional não é favorável ao diálogo com terroristas”, para além de que “os terroristas” têm presença em apenas alguns distritos de Cabo Delgado.

Um outro meu (antigo) professor na Escola Superior de Relações Internacionais (ESRI) da Universidade Joaquim Chissano (UJC), argumentou num seminário recente em que partilhámos painel, em Pretória, que “não podemos [nós, o Estado] dialogar com terroristas, porque não somos iguais”.

Os argumentos contra o diálogo têm o mérito que têm. Mas o que pretendo argumentar, neste texto opinativo, é que o diálogo é possível e necessário, para acabar com a guerra em Cabo Delgado. Dificilmente se vai acabar com a guerra em Cabo Delgado sem que se tenha recorrido ao diálogo com as pessoas que promovem os ataques.

Escrevo este artigo a partir da vila de Mocímboa da Praia, a mesma que, entre Agosto de 2020 e Agosto de 2021, foi a capital dos insurgentes. Destruída, com sinais visíveis de guerra, a vila de Mocímboa da Praia voltou a ser habitada por civis, mas está longe de ser uma terra de paz.

A vila é guarnecida por centenas de militares e polícias ruandeses, e a população local diz, abertamente, que, caso os ruandeses se retirem de Mocímboa da Praia, também sairá da vila, pois não há garantia de segurança sem ruandeses.

A população da vila de Mocímboa da Praia vive sitiada. Não pode sair para os campos de produção situados a um raio de cerca de 10 quilómetros, pois não há segurança. Os insurgentes estão a habitar as matas e as ilhas ao redor, e estão infiltrados na vila. De todos a quem perguntei se a guerra já acabou, a resposta foi um categórico NÃO! O argumento principal é de que “esta é uma guerra promovida pelos filhos da casa e as causas que levaram os jovens a entrarem no mato ainda não foram resolvidas”.

É aqui onde o diálogo se revela necessário, pois pode ser uma ferramenta importante para abordar os factores de conflito a vários níveis. Quando se fala de diálogo em Cabo Delgado, muitos tendem a pensar imediatamente nas negociações entre o Governo e os insurgentes. Mas o diálogo não começa nem acaba aqui.

O diálogo pode consistir em os líderes locais legítimos – políticos, tradicionais, religiosos – discutirem as reivindicações da juventude e procurarem soluções pacíficas para disputas latentes e emergentes, quer entre membros da mesma comunidade quer entre comunidades.

Isto é relevante porque o conflito em Cabo Delgado é alimentado por factores internos. Desemprego, falta de oportunidades de formação técnica e superior para poder trabalhar nos projectos de exploração de gás e na função pública, e corrupção no acesso aos serviços públicos são algumas das causas apontadas pelos locais como tendo motivado a juventude a aderir aos grupos radicais islamistas (não confundir com islâmicos) que protagonizam ataques em Cabo Delgado.

Para serem bem-sucedidos, os grupos extremistas violentos precisam de que os membros das comunidades onde operam adiram à sua causa. O processo pelo qual os grupos extremistas mobilizam os membros da comunidade para aderirem à sua causa é a radicalização. Os jovens são geralmente os membros da comunidade mais vulneráveis a aderir a grupos extremistas violentos.

Moçambique rejeita dialogar com “terroristas”, mas por trás dos ataques “terroristas” existe toda uma panóplia de factores de pressão e de atracção que tornaram possível que as populações locais fossem mobilizadas, recrutadas, treinadas para realizar os ataques, e são esses factores que uma resposta puramente militar muito dificilmente conseguirá resolver. O diálogo pode ser um instrumento útil para abordar os factores de pressão e de atracção subjacentes à radicalização e ao recrutamento de indivíduos dentro das comunidades.

A segunda dimensão do diálogo é a que envolve efectivamente ou conduz a negociações entre o Governo e os insurgentes, com vista a pôr termo aos confrontos militares. Embora não existam muitos exemplos bem-sucedidos deste tipo de diálogo no continente africano, há registos da vontade de o fazer. Um exemplo é o Governo do Mali, que manifestou interesse em encetar um diálogo com o maior grupo jihadista do país, o Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), para pôr termo ao seu conflito.
Para o caso de Cabo Delgado, existem iniciativas regionais (Peacemaking Advisory Group – PAG – baseado na África do Sul) e internacionais (caso da Advisory Group – DAG, baseado em Amsterdão) que têm como objectivo utilizar o diálogo para resolver o conflito em Cabo Delgado.

Todavia, o Governo moçambicano mostra pouca abertura para apoiar iniciativas de diálogo para a resolução do conflito em Cabo Delgado, o que compromete o sucesso das iniciativas de diálogo.

As iniciativas de diálogo existentes poderiam trabalhar na componente de diálogo entre o Governo e os insurgentes e poderia também trabalhar no sentido de facilitar o diálogo entre as comunidades e o Governo.

O Governo de Moçambique devia apoiar e criar condições para o trabalho das iniciativas de diálogo para a resolução de conflitos existentes, incluindo permitir-lhes o contacto com os insurgentes. Além disso, o Governo devia estar aberto a ouvir opiniões de especialistas sobre os possíveis factores de conflito e abordagens holísticas para a resolução de conflitos. É possível negociar com os insurgentes, basta o Governo querer!

O anúncio, quarta-feira, pela FIBA-África de que Moçambique não reunia requisitos para acolher a segunda janela de acesso ao Campeonato Africano de Basquetebol sénior masculino (“Afrobasket 2025”) veio, uma vez mais, destapar o véu sobre a incapacidade das autoridades desportivas nacionais em matéria de gestão de infra-estruturas.

Se, por um lado, o presidente da FIBA-Africa, Aníbal Manave, considerou um crime jogarem-se provas de dimensão internacional em condições de humidade muito altas (temperaturas acima dos 32 graus), por outro, deu clara indicação de que o órgão reitor do basquetebol africano já não vai pactuar com situações “paternalistas” de atribuir provas a um país sem pavilhões em condições, tal como aconteceu num passado recente.

É que, num cenário cada vez mais acelerado e contagiante de criação de melhores condições para a prática de basquetebol (pavilhões multiúsos, bem equipados) a que o continente tem assistido, revela-se cada vez menos sério jogar-se numa infra-estrutura descontinuada como o Pavilhão do Maxaquene. A FIBA-África (já) não quer normalizar o anormal.

O recinto há já algum tempo devia ter sido riscado para sediar provas internacionais de salão, mormente pelo facto de não apresentar um piso com qualidade, cadeiras confortáveis, marcador electrónico moderno, operador de 24 segundos, balneário com padrões internacionais e uma cobertura com problemas sérios de infiltração. Outrossim, os acessos à maior sala de visitas do basquetebol moçambicano estão fora dos padrões actualmente exigidos, colocando, decerto, em causa a segurança dos espectadores.

Aliás, porque o hábito faz o monge, sempre que chove, mesmos aos cantaros, parte da quadra fica “inundada”, recorrendo-se ao uso de baldes, pasme-se, para minimizar o problema.

É, decididamente, o “vê se te avias” para os atletas e árbitros que, num piso escorregadio, ficam a patinar até se cansarem. Um verdadeiro perigo à integridade física destes actores do basquetebol.

Mas o mais intrigante é que, em 2011, se fez um investimento de USD 3 milhões para a reabilitação do Pavilhão do Maxaquene, uma das infra-estruturas desportivas que acolheu os malfadados Jogos Africanos.

Pintou-se o recinto, fizeram-se intervenções na quadra, no tecto, no sistema de iluminação, mexeu-se nos balneários e reabilitou-se o campo de aquecimento, paredes-meia também com o Pavilhão do Desportivo. E depois?

Foi, claramente, tudo aquilo que se viu: a infra-estrutura secundária degradou-se, com o tempo, chegando mesmo a ter o seu tecto caído. No Pavilhão principal, mesmo com os retoques para acolher o “Afrobasket” 2013, a triste realidade alimenta as vistas de quem lá vai. Um autêntico forno!

O Comité Organizador dos Jogos Africanos prometeu intervir junto com o responsável da obra, mas não atravessou a fronteira de promessa.

“Tudo máfia”! Dinheiro do erário público jogado fora. Ninguém foi responsabilizado por falta de responsabilidade. Danos colaterais.

E a “corja” do COJA teve outros casos bicudos por gerir nos pavilhões do Estrela Vermelha e Universidade Eduardo Mondlane, que se beneficiaram, igualmente, de obras de melhoria.

O tempo provou que as intervenções não foram, nem tampouco, de vulto e que colocassem estas infra-estruturas na rota do modernismo. Hoje por hoje, alimenta-se o coro de lamentações pela inexistência de infra-estruturas desportivas pujantes.

Não conseguimos gerir o Estádio Nacional do Zimpeto e seus espaços adjacentes. Fomos obrigados a jogar fora (África do Sul) e a despender dinheiro para os Mambas jogarem no FNB Stadium, em Joanesburgo, diante do Ruanda no acesso ao CAN 2023.

Mas exultamos, há pouco, com o anúncio de financiamento pela Argélia de uma arena multiúsos, no valor de USD 30 milhões. É prioridade, actualmente, perante os problemas que o país atravessa? Quem irá gerir uma infra-estrutura de grande dimensão? Como? Há parcerias público-privadas já identificadas para que se tenha uma gestão empresarial? Temos pessoas capacitadas para fazer a gestão de uma arena multiúsos? Já olhamos para o modelo de gestão da Arena do Kilamba ou mesmo de Kigali, no Ruanda?

Esquecemos, pois, que, pela incompetência, se chegou mesmo ao extremo de “roubar-se” energia para alimentar o Pavilhão do Maxaquene. O recinto ficou alguns meses sem corrente eléctrica por conta de uma dívida à EDM. Vergonhoso, simplesmente.
Por nossa culpa, por nossa tão grande culpa, estamos onde estamos no que diz respeito às infra-estruturas desportivas. Corremos, hoje, para materializar algo que os outros pensaram e projectaram há muito tempo.

PS 1:
Moçambique vai aos Jogos Africanos de Acra, Gana, onde há expectativas de conquistar medalhas. Facto que faz escola cá, no burgo, é que os atletas não tiveram a preparação que desejavam

PS 2:
A Comissão de Gestão da Associação de Basquetebol da Cidade de Maputo está a dar um exemplo de inovação na modalidade da bola ao cesto. Destaque, igualmente, para a equipa jovem da Federação Moçambicana de Basquetebol que, em pouco tempo, conseguiu resolver alguns aspectos básicos na selecção, como autocarro para transporte e acesso ao ginásio. Há, claramente, muito trabalho pela frente.

A vida cria muitas sombras que fazem com que a mente humana tenha uma relação não fiel com a verdade. Muitas vezes a pressa e pressão da vida leva o ser humano a não ter pena e nem paixão de proteger os traços da verdade ou firmar um acordo, mesmo que seja precário, com a verdade. Há muita tendência do ser humano procurar se esconder em factores que minam o relacionamento com a verdade. O contorno da verdade muitas vezes afasta os seres humanos de terem um casamento honesto com a verdade. Por causa da falta de conhecimento de gestão dos desejos e vontades, muitos assassinam e sepultam a verdade gigante e superior que os animais da classe mammalia que pertence à família Elephantidae, em pleno raiar do sol, perigando o alcance da satisfação comum, mas, procurando satisfazer os desejos particulares. Muitas vezes contorna-se o imbondeiro da verdade, e esquece-se que a verdade nunca é pequena e ela vai se alojando sempre na esquina mágica do inconsciente, apesar do inconsciente na visão Freudiana ser entendido como acontecimento para o pensamento, e esse acontecimento concerne não apenas ao estatuto do sujeito e a história do desejo, mas também a natureza e aos contornos da verdade”. 

O que fragiliza o relacionamento com a verdade, é o facto da verdade perder o seu ser com o tempo e, a imagem da verdade é muitas vezes desenhada para ter a forma, que vai ao encontro dos valores criados pela mente ou grupo de mentes que tem vontade restrita para satisfazer. O contorno da verdade é visto como o único caminho que leva a mente ao alcance da satisfação da vontade. Muitos separam-se da verdade mesmo depois de proferir em sede da mente, que irão viver com a verdade em todas situações. Há muitos factores que invadem a mente para estruturar uma verdade, principalmente, a verdade social que respeita os valores que cobrem a verdade pura. A separação com a verdade surge muitas vezes quando a sinceridade se torna ausente no relacionamento com a verdade. Para relacionar-se com a verdade, é preciso estar sempre atento ao conjunto de valores, que vão ao encontro dos princípios éticos e morais de uma determinada sociedade ou grupo social. É verdade que pode existir o relativismo no significado da palavra verdade, mas, é mesmo surreal quando o relativismo é imposto pelo segmento não significativo dum determinado grupo. Muitas vezes o que desliga os indivíduos da relação com a verdade é o peso superior que estes atribuem a «autonomia da vontade», sem, no entanto, reparar na mentira escondida nessa vontade, que vai entrar em conflito com os valores que a verdade exige. Muitas vezes o casamento com a verdade tem sido um relacionamento efêmero porque, às vezes a vontade de satisfazer o Eu, muitas vezes, arquiteta pinturas duma verdade com fundo de mentira verdadeira, que cria ilusão a mente. Como bem elucida a filosofia Alemã que “a verdade se dá através dos fenômenos que são observáveis, perceptíveis e sensíveis, verdade esta que reside na essência do indivíduo”

A exclusão que o indivíduo atribui a verdade, tortura e castiga de forma perpétua a mente. A mente de um ser normal não consegue desfazer-se das pequenas verdades   e em cada segundo que o ser se afasta do seu louco, e envolve-se em tempo curto com a lucidez, a mente retira do inconsciente a cada vírgula da verdade julgada de forma injusta. As marcas deixadas pela verdade no chão da  mente, são indeléveis. 

Na metafísica de Aristóteles existe uma máxima que diz: “Dizer do que ė que não ė, ou do que não ė que ė, ė falso enquanto dizer do que ė que ė, o do que não ė que não ė, ė verdade”.

Na Sociedade da qual faço parte, é comum ver as mulheres que pedem dinheiro a homens serem julgadas, muitas vezes recebendo tratamento desrespeitoso. Elas são alvo de estereótipos de género, perpetuando uma visão limitada e prejudicial que precisa ser revista. Desde a minha infância, tenho ouvido a ideia de que as mulheres devem ser boas donas de casa, cuidar dos lares e das crianças, enquanto os homens devem buscar trabalho para sustentar suas famílias. Esta visão estereotipada de género nutre a nossa sociedade de crenças limitantes que, de facto, merecem ser repensadas.

Imaginem se encorajarmos tanto homens quanto mulheres a buscarem educação e oportunidades de carreira de forma igualitária para sustentar a si mesmos. Será que precisaríamos rotular e julgar mulheres com base em suas escolhas? Infelizmente, muitas meninas são privadas da educação, sendo sobrecarregadas com afazeres domésticos que as impedem de auto-conhecerem-se e desenvolver seu potencial, estas meninas são treinadas para serem “domésticas” onde devem cuidar dos seus maridos e filhos e a sua visão se torna logo cedo limitada àquela realidade, sem dar espaço à liberdade de pensamentos que as permitiram alcançar horizontes mais promissores e risonhos. Essa realidade evidencia como as oportunidades das mulheres são frequentemente limitadas desde cedo, enquanto os homens desfrutam de privilégios e liberdades. E depois a mesma sociedade que ensina que só os homens devem trabalhar para sustentar as mulheres, julga as ditas “posso te pedir algo” quando aplicam o que foram ensinadas desde cedo…

Desviar-se dos estereótipos de género, foi inconscientemente nossa base em casa, a prioridade de todos, meninas e rapazes, sempre foi a escola. Os relatos de minha própria experiência familiar ressaltam a importância de uma educação inclusiva e igualitária desde cedo. Meu pai, pai de três meninas e um rapaz, priorizou a educação de todos, enfatizando a importância dos estudos desde a infância. Ele nos guiava para estabelecermos metas de aprendizagem, validando actividades domésticas apenas se o estudo fosse priorizado, o que moldou minha mentalidade e prioridades ao longo da vida. Seu comprometimento com uma educação igualitária é um exemplo vivo de como a mudança de mentalidade pode começar no ambiente familiar, gerando impacto positivo para as futuras gerações. Tanto é que quero que outras meninas/mulheres, tenham a oportunidade de ver o mundo nesta perspetiva.

Tomem como exemplo o meu irmão Imelde Jauane, que quando comecei a escrever sobre a Equidade de Género e temas transversais sociais, dentre os meus irmãos foi o que mais me deu apoio. Outrora, enquanto meu pai já era falecido, praticamente “obrigou-me” a ingressar no ensino técnico profissional, com vista a ter uma formação que me possibilitasse facilmente ingressar no mercado laboral e assim alcançar a minha independência financeira. 

Ao discutir a importância de uma educação inclusiva, é essencial ressaltar o papel de toda a sociedade nesse processo de mudança. O envolvimento colectivo de pais, educadores e comunidades é crucial para criar uma cultura de igualdade de género e desconstruir visões estereotipadas. Assim, estaremos construindo um mundo mais igualitário, onde homens e mulheres possam usufruir das mesmas oportunidades, reconhecidos por suas capacidades e méritos, não por convenções sociais restritivas.

Vamos incentivar uma educação mais inclusiva, que prepare tanto meninos quanto meninas para despertar o seu potencial rumo a um futuro onde possam alcançar sucessos, independentemente do género. 

Recordo-me que minha mãe sempre exigiu que o meu irmão Imelde, aprendesse a cozinhar logo cedo, mas em outras famílias isso não é permitido porque quem trata da cozinha é a mulher… mas, hoje compreendo que a educação e princípios moldam aquilo que seremos no futuro. Ensinar homens as tarefas domésticas não os torna menos masculinos, pelo contrário, os acrescenta. E faz com que estejam preparados para qualquer adversidade da vida. 

Porquê não ensinar as mulheres e os homens desde cedo a investir na sua educação e crescimento profissional? Se educássemos nossos filhos e filhas de forma mais inclusiva, em 20/30 anos não teríamos uma sociedade melhor? 

É importante ressaltar que defender a igualdade de género não significa desvalorizar as características únicas de homens e também de mulheres. Reconheço as diferenças físicas e biológicas, mas questiono a justiça em privar as mulheres de oportunidades com base apenas em seu género. É fundamental repensar os padrões sociais que colocam as mulheres em desvantagem e limitam seu potencial de crescimento e sucesso.

Mas será que no meio da sociedade, por terem nascido diferentes, isso faz com que as mulheres devam estar em posição de desvantagem? 

Uma questão para a reflexão de todos.

Ante o olhar impávido e sereno das autoridades policiais, o crime de rapto vai-se impregnando no país e tornando-se uma moda esbelta, intáctil e completamente impune. Indesejável e nefasta para o ambiente socioeconómico, não se percebe o porquê de tanta inércia no combate. Um deixa andar desolador e estrangulador.

Começou como uma aventura que nos lembrava os filmes de Hollywood, mas tão rápido saiu da ficção para pura e dura realidade. Os amadores sucumbiram, inspiraram os predadores que agora tomaram conta da zona com incursões mais sofisticadas e inteligentes.

Mas falar de inteligência neste tipo de crime, em Moçambique, é subestimar a própria inteligência. Porque basta uma dose de inteligência permitida para lograr resultados mínimos. Só que, de onde deve emanar a ordem de avanço, reina a teia que complexifica as operações, agita as peças do puzzle e, num jogo louco, brinca-se de apenas querer montar.

Com o aparente querer na montra, para falsear a confiança do povo, exibe-se o peixe miúdo, os coitados que nunca sabem porque entraram no esquema, para quem trabalham e muitos menos quanto se movimenta nestas operações. Funcionam como anzóis descartáveis que trocam a liberdade por migalhas. Lembram-me o que tanto ouvi da minha querida mãe, quando criança, com o objectivo de me disciplinar: “quando a cabeça não regula, o corpo é que paga”.

Pois é, estes fazem mal as contas e, no final, pagam a factura. Ficam socialmente expostos e com o futuro lixado.

Já o peixe graúdo, desconhecido, mas não oculto, desfila impune e altivo entre os corredores da alta sociedade, crava respeito social e brinda-nos com um alto perfil reputacional. A podridão que o caracteriza fede apenas no seu consciente, se eventualmente tiver laivos de lucidez. Age como animal felino, predador que contempla a sua vítima com aparente desinteresse e ataca-na sorrateiramente quando menos se espera. Usa tácticas simples, que os que verdadeiramente ganharam experiência no combate ao crime de rapto conhecem, porém, acuados de medo e limitados de agir, defendem a vida com o silêncio cúmplice e propositada cegueira. Por vezes, são chamados a integrar as fileiras do crime e, porque obedecer é a palavra de ordem, alinham. Mas o mais triste é que eles mesmos desconhecem o quão superior ou lateral é a ordem. Também tacteiam a verdade como crianças às cabras-cegas.

Nos murmúrios sociais, ouvimos de tudo um pouco. Várias teorias são tecidas, mas sempre em voz baixa, e por vezes até temos de nos agachar para captar os sussurros em desmaio. É isso mesmo. Sobre este tema, ninguém levanta a voz. Todos sabem de tudo, mesmo quando pouco ou nada sabem. Os mandantes, os implicados, os inocentes alistados, a sequência, o plano operacional e os motivos são sobejamente conhecidos. O que se deveria fazer e como se deveria actuar também sabem. Os craques de bancada abundam, mas ficam obscurecidos na sua covardia. Das tantas camadas deste tema, muitos só conhecem algumas. É, na verdade, o véu que ninguém levanta.

O Serviço Nacional de Investigação Criminal, vezes sem conta, expõe-se ao ridículo em conferências de imprensa com resultados superficiais. Apressa-se em apresentar trabalho com os “…inhos” do processo, sem conseguir ludibriar a consciência colectiva. Tem passo célere para escamotear e letárgico para apurar.

Entre informação e desinformação, o certo é que nada é eterno e nesta premissa podemos ancorar a nossa esperança. Porém, não basta querer e ficar parado. Podemos poderosamente exercer o nosso direito cívico e escrever a história que sonhamos para esta ou para as futuras gerações.

Precisamos de uma liderança com capacidade de fazer restart e de tecer novas linhas da nossa história, com os não contaminados.

Cada livro deve ser uma
pincelada num grande quadro.
-Jean Cocteau

 

O livro não tinha sido ainda apresentado ao público e muito menos decorava as estantes das livrarias, todavia, nas conversas de ocasião, já se cogitava sobre o seu conteúdo. Imaginavam-se parágrafos extensos, contundentes, atirando cocktais molotovis contra o actual presidente da “nossa república”. “Assim não, senhor Presidente”, propiciava esta expectativa, por vivermos momentos de alguma conturbação política, de algum desencanto, onde, com ou sem razão, vemos reeditados os murmúrios do povo, do cidadão moçambicano, quão povo de Israel no deserto, depois de liberto das masmorras do Faraó, no Egipto, à caminho de Canaã. Apesar de os murmúrios serem outros, em vez de se reclamar ao Moisés porque nunca mais se chega a Terra Prometida e estar-se cansados de comer manã, murmura-se porque no nosso Canaã, o leite e o mel que jorram não está a chegar para todos, enquanto alguns o desperdiçam outros apenas lhe sentem o cheiro ou, quando mais afortunados, lambem as bordas dos potes transbordantes dos que têm o domínio da manada e das colmeias. Murmura-se também porque o “Faraó” multiplicou-se, infiltrou-se, transformou-se em formigas e está a atacar o mel e o leite que jorram no chão do nosso Canaã.

Dizíamos que o livro não estava ainda nas estantes das livrarias e sobre ele existiam várias cogitações, facto bastante previsível se considerarmos a curiosidade que habitualmente antecede a apresentação duma obra deste autor, e neste caso uma curiosidade acentuada pela sugestibilidade do título: a que presidente o Ungulani se referia no seu livro? Estaria mesmo a falar do nosso Presidente da República? Porventura, estaria a dissertar sobre o Presidente duma Cooperativa de Consumo? Estaria o Ungulani a falar do Presidente de uma agremiação desportiva ou então duma Associação de Engraxadores? A expectativa manteve-se até ao lançamento do livro, até cada leitor adquirir o seu exemplar e começar a “devorá-lo”. Só depois da leitura é que se acendeu a luz e se descobriu que o livro revisitava a história deste nosso belo Moçambique que vai fazendo o seu percurso rumo a encontrar o seu melhor caminho, a encontrar o melhor de si mesmo.

O quadro narrativo que se oferece nesta obra resume o desmoronar duma expectativa e a aparente dificuldade de se construir uma outra. Ungulani deixa neste livro de se preocupar com as habilidades literárias modernaças, como diria o crítico literário Fernando Venâncio, para se assumir apenas como arauto de um tempo que ninguém deve se esquecer. Para a criação desse quadro narrativo quis a providência que se criasse uma cumplicidade entre o historiador que Ungulani é, e o escritor cujos méritos são por todos nós reconhecidos. Ambos sentiram esse apelo incontornável de revisitar a história, por um lado o escritor, com toda a largueza de voo e de ficcionar a realidade que lhe é permitido, por outro lado o historiador tentando estabelecer uma interpretação histórica que permitisse grafar uma época da nossa realidade. De modo que ambos, o escritor e o historiador, decidiram exilar-se nas terras de Marracuene, a comer o peixe grelhado do seu encantamento e a desfrutar a inefável frescura das águas do rio Incomáti enquanto preenchiam as páginas deste livro. E diga-se: não somente se inspiraram no sabor do peixe grelhado como o livro Assim não, senhor Presidente se viu abastado nas suas páginas de saborosas iguarias moçambicanas que prestáveis cozinheiros pretos colocavam à mesa nas casas do patrão colono.

“Assim não, senhor Presidente” é um livro perturbador, como aliás, se tornam perturbadoras as obras literárias que experimentam mergulhar nos meandros políticos. Ouso afirmar que no decorrer das quatro décadas que decorreram no nosso desafio de construção duma Nação, nunca uma obra foi tão contundente, tão corajosa, como esta recente obra do Ungulani. Diria, a propósito, o jornalista e escritor Daniel da Costa, que se trata de “um livro surpreendentemente cáustico, um autêntico manifesto. Livro premonitório, de um autor preocupadíssimo com o seu tempo, com o rumo dos acontecimentos em Moçambique”. Estamos, apesar dos temas controversos que aborda, perante um Ungulani mais sereno, a sua escrita deixou de ser tempestuosa, as ondas turbulentas que encontramos nos anteriores livros amainaram. Busca, agora, uma narrativa simples que se evidencia nas longas descrições como também nos significativos diálogos. Ungulani, neste seu livro, apenas se preocupa em deixar marcas dos lugares e pessoas que caracterizaram uma determinada época histórica, pois, como é sabido, a Literatura serve também a Memória, já que possui o poder de imortalizar os espaços, os tempos e as lembranças. Sentir-se-ão talvez desapontados os que esperavam encontrar neste livro de Ungulani Baka Khosa aquela narrativa fabulosa, surrealista a que nos remeteram algumas obras do autor, tais como “Orgia dos Loucos”,” Choriro” ou “Os Sobreviventes da Noite”. Creio que a escrita que agora o Ungulani nos oferece busca outros destinos, ensaia outros voos, e cada vez que o lemos fica-nos essa agradável sensação de que algo se moveu e algo sempre se transforma na sua escrita.

O livro começa descrevendo o início das coisas. A proclamação da República. A implantação do poder colectivo. A morte do eu e a criação do nós e cito: “Não havia pessoa. O nome, essa marca socialmente aceite como distintivo, como pertença, como exteriorização do ADN diferenciador, esvaziava-se no colectivo, nos grupos de vigilância, nas células de base”. Fim de citação. O que o autor pretende deixar ficar é que a partir de determinada altura as regras do jogo mudaram duma forma profunda, abalando aquilo que desde sempre vinha sendo o modus vivendi. Os discursos tornaram-se diferentes. Criaram-se novos ícones. As novas palavras de ordem tentavam fazer esquecer um passado que ainda teimava em fazer-se presente. Escreve aliás o Ungulani: “Ninguém se preocupava com o passado remoto, com os valores de antanho; a história faz-se do presente e com um passado a remontar ao tempo da vitoriosa luta de libertação nacional. Todos os bons exemplos foram colhidos nas zonas libertadas durante o tempo da guerra. Nada é valorizado fora dessas experiências. O sofrimento, a dor e a resistência dos presos políticos, a memória de centenas e centenas de patriotas que morreram e outros que resistiram às mãos dos algozes da polícia e da política do governo fascista português, foram deitados no caixote de lixo.” E aqui termina a citação.

Depois, ao longo da leitura, o desfile de acontecimentos que marcaram de forma indelével a nossa história, os nossos podres, o nosso lado mais censurável, a perseguição dos que olhavam de forma reticente o sistema político a seguir, aqueles que “a nação nascente não lhes devia pertencer”. Os campos de reeducação. Os fuzilamentos. As chicotadas. As tramas políticas onde alguns de nós, segundo Ungulani, comportavam-se como uma quizumba, animal oportunista, sempre à espreita, e que ao mínimo deslize aproveita-se do esforço alheio. Segundo o Ungulani, o país estava cheio de quizumbas, gente que não queria trabalhar, sempre à espera da melhor oportunidade para se sentir bem na vida. E ainda ao longo da leitura nos confrontamos com o início da debandada dos brancos apavorados com a proximidade do comunismo e o medo atroz do poder popular. E como não quisessem viver sob o governo de pretos, muitos começaram a emigrar para a Africa do Sul e para a Rodésia, territórios sob o domínio de governos minoritários brancos. As pontes aéreas entre Lourenço Marques e Lisboa aumentaram de número. O tráfego marítimo de retorno a pátria portuguesa aumentou. Apesar de tudo Moçambique perseguiu o caminho que havia traçado, um caminho cheio de espinhos, de derrotas e vitórias, de interrogações e incertezas. Lutava-se pela revolução.

O que também se desmoronou, segundo o autor do Assim Não, senhor Presidente, não foi somente o homem, a cidade também se deteriorou. Ungulani fala das “descoloridas varandas com ferros retorcidos, às margens da avenida, às lascas de tinta sem cor a descolarem-se das enormes paredes dos prédios precocemente envelhecidos, às grades de ferro de cor indistinta nas vivendas sem alegria, às acácias tristes e a desfalecerem, meio moribundas, nos passeios, sob o efeito mortífero da urina que os transeuntes, em total desafecto, despejavam nos troncos feitos urinóis.” O autor traz-nos, pois, uma imagem sombria dum lugar que perdeu o seu esplendor. A mensagem que se pretende deixar, penso, é que a cidade pode voltar a ser aquilo que se pretende que seja, isto é, recuperar o seu esplendor, a partir do momento que recuperemos essa maneira de ser que um dia se perdeu nos caminhos da vida. Precisamos de recuperar a nossa cidade. A sua beleza. A sua alma. A sua paisagem. Dizia, aliás, Fernando Pessoa, que “a paisagem é um estado de alma”.

Assim não, Senhor Presidente é um livro que nos remete a uma certa tristeza e amargura quando lemos, página a página, sobre os “infortúnios” que se abateram na Nação moçambicana durante uma governação que se pretendeu revolucionária. As duzentas e quatro páginas que Ungulani nos oferece quase que sufocam outras realizações de ordem social que a revolução marxista ofereceu ao seu povo. Em algum momento nos questionamos se terá sido boa a revolução e se os seus intentos terão sido alcançados. Esta é uma das linhas de debate que este livro pretende levantar e cuja resposta sairá, certamente, em cada um de nós. Mas convenhamos, o que marca os grandes momentos históricos são as coisas negativas, são elas que permanecem e se tornam marcantes. E perante esse facto nada se pode fazer. De resto, como muito bem o disse a escritora Lídia Jorge, autora do clássico livro A Costa dos Murmúrios, “não pensamos todos da mesma maneira os fenómenos sociais”. Ainda bem que é assim, porque isso possibilita que existam visões diferentes dum País ou processo histórico, afinal de contas uma moeda é necessariamente constituída pelas suas duas faces. Mas o que considero interessante neste livro é o exercício da memória, a retenção da história, exaltada por uns e negado por outros, como o filósofo alemão Hegel ao afirmar que “A História nos ensina que a História não nos ensina nada”. Ungulani, ao escrever este livro, tinha a dimensão das inúmeras questões que poderiam ser levantadas em torno do seu conteúdo, e é salutar que isso esteja a acontecer, principalmente quando essas questões giram em torno duma literatura nova, em crescendo, como a moçambicana.

Com esta obra, creio que teremos dois tipos de leitores, os que vão se sentir incomodados com a crueza desta abordagem, indignados por esta leitura despudorada sobre os ideais dum sistema que esta narrativa de Ungulani desconstrói; e, por outro lado, leitores que se sentirão recompensados e satisfeitos por as palavras e as histórias deste livro se prolongarem neles próprios e trazer duma forma singular a verdade dum tempo que também lhes pertenceu e os marcou duma forma profunda. Em suma, o “Assim não, senhor Presidente”, oferece-nos uma face da moeda sobre a nossa história na primeira governação depois da independência. Digamos que se trata de um exorcismo que traduz um acto de cidadania. Ungulani cobriu uma importante etapa da nossa história, cabe agora a todos nós termos a ousadia de incorporar no corpus literário moçambicano outras obras com reflexões capazes de traduzir os passos deste país ainda em construção.

Marcelo Panguana
Bilene, dezembro de 2023

 

Muito sangue jorra entre as matas da terra que abriu caminhos para a independência. Afinal, o primeiro tiro ou a sua história viriam a amaldiçoar um povo? Ao celebrarmos a independência, construímos histórias triunfalistas, epopeias de um povo entusiasmado pela vitória. Desenhámos no imaginário colectivo heróis cuja experiência atravessaria gerações e fortificaria a guarda da nossa pátria pela eternidade. Mas quando mal se perdia o eco do grito da vitória, as muralhas tornavam-se tijolos soltos e sem arquitectura, denunciando a nossa frágil força combativa. Amaldiçoados por todos os males, vivemos 16 anos de guerra, com seca, cheias e muita fome à mistura.

No princípio da década 90, o arco-íris brilhou com a assinatura dos Acordos de Paz, em Outubro de 1992. Sol de pouca dura saboreámos. Docinho roubado na boca, antes mesmo do tacto ou a sensação do adocicado emergir. A tão almejada democracia tornou-se uma banheira de pólvora. Em cada ciclo eleitoral, o povo mergulhava e enfrentava a artilharia de guerra da Renamo, que agitava as águas em protesto contra os resultados proclamados, e até mesmo pela vaidade de exibição da sua musculatura militar e táctica de guerra. De intervalo em intervalo, experimentámos a paz emprestada a prazo incerto.

Calejados deste sofrimento, a história quis poupar-nos e silenciou as armas da Renamo, mas não nos disse que era apenas um intervalo e que novos engenhos viriam, subitamente, em nossa direcção a partir de Cabo Delgado. Seis anos passaram-se e o que se augurava passageiro fez morada e habita tranquilamente entre nós, semeando luto e dor entre os moçambicanos. Os sistemáticos ataques terroristas deixam uma trilha de destruição e desespero e desfazem o futuro de comunidades.

O Governo, reconhecendo a gravidade da situação, aceitou ajuda de forças estrangeiras, porém os resultados têm uma positividade instantânea.

Vivendo em constante estado de terror, os inúmeros episódios traumáticos levaram a que milhares de vítimas desabrigadas procurassem amparo em terras vizinhas, como Nampula e Quelimane, e um pouco pelas demais províncias do país. Mas quando os terroristas fingiram fragilidade e deram uma pausa estratégica, impingiram-nos, precipitadamente, a ideia de vitória e de controlo da província. Ansioso por retornar às origens, o povo migrante de Cabo Delgado foi, aos poucos, testando essa tese, mas tramou-se. Novos ataques colocaram a nu esta fantasia e esvaiu-se a esperança com o agudizar do conflito nos últimos dias.

Um novo episódio de drama humanitário avizinha-se. Esta semana, mais de 20 mil pessoas do distrito de Chiúre, em Cabo Delgado, saíram em pânico à procura de abrigo seguro. Muitos seguiram para o distrito de Eráti, em Nampula, percorrendo cerca de 60 km a pé em busca de socorro, um socorro que não veio. A equipa da STV trouxe aos olhos da audiência a lamentável situação de abandono a que estavam sujeitos. A qualidade de resposta do Instituto Nacional de Gestão e Redução do Risco de Desastres é um autêntico desastre.

Passaram-se 24 horas sem que esta equipa de emergência percebesse a emergência em que mais de cinco mil crianças e cerca de 15 mil adultos estavam. É inadmissível a insensibilidade do Governo para com um povo que vive calejado de dor e em permanente crise, há mais de seis anos. É dever do Governo garantir o bem-estar dos cidadãos e ajuda humanitária, quando necessária, tal e qual a situação exigia. Mas não! O que ouvimos foi que a população se precipitou ou mesmo que ela deveria produzir e não ficar infinitamente à espera de apoio. Palavras que os padres, na sua humilde interpretação, consideram inocentes e oram pelo perdão de quem as profere. É lamentável. Cometemos erros com uma arrogância fútil e fugimos da realidade com extraordinária insensatez. O apelo à produção, indubitavelmente, não foi oportuno.

Largados à sua própria sorte, quando o ronco da fome soou mais alto, muitas famílias se lançaram à estrada e, debaixo de um calor escaldante, percorreram quilómetros de estradas para sobreviver, entre o risco da morte por bala ou catana e a hipótese de prover alimentos e escapar à morte por fome. Guiados pela lei da sobrevivência, com crianças ao colo, estes vão, naturalmente, desenvolver novas crenças e ressignificar as suas vidas. É a lei de esforço invertido que agora lhes fará sentido.

Ignorar o sofrimento deste povo é igual a esquecer que as pessoas que sofrem com acontecimentos traumáticos e se superam a si próprias traçam novas filosofias de vida. Neste caso, o Governo pode tornar-se parente distante e os terroristas, mais próximos. Estamos órfãos, órfãos de pais vivos, e quem nos está a adoptar são os terroristas.

Moçambique, SURGE ET AMBULA. Ainda há tempo.

Escrevi e publiquei recentemente dois artigos de opinião. Um tinha como título (IN) Dependência: Não se esqueçam de voltar e, o outro, A Demissão do Povo. No primeiro, tentei fazer um chamamento aos libertadores de ontem, por alguns considerados opressores de hoje; conforme pode ler-se num dos parágrafos do artigo: “Os nossos libertadores, os nossos heróis e os nossos referenciais de luta e verticalidade foram se transfigurando ao sabor do vento, e alguns deles viraram, nossos opressores. Nasceram elites negras, que se esqueceram dos ideais da revolução e se preocuparam em vestir a máscara de ovelha em corpo de lobo. Os nossos libertadores, tornaram-se obcecados pelo poder e pela posição de destaque no banquete pós-independência. Recriamos e personificamos a aquilo a que Frantz Fanon designou de “Pele Negra e Máscaras Brancas”, onde pretos oprimem outros pretos e se acham dignos para o fazer em virtude do tempo emprestado na mocidade e juventude para que fossemos hoje o país livre que somos. E Será que realmente somos?”

No segundo, A Demissão do Povo, iniciei aludindo o facto de o povo ter sido demitido. Em diálogo aceso entre eu, a folha e a esferográfica, não sabia se dizia que o povo se demitiu ou se o povo foi demitido.

Disse: “O povo foi demitido do seu papel de fiscalizador. Foi demitido de monitorar, de reclamar, de pedir para ter dignidade mínima. (…) A pobreza generalizou, as assimetrias agudizaram, a corrupção institucionalizou-se, as liberdades reduziram-se, o espaço cívico afunilou-se, e o povo começou a sentir-se estranho na sua própria terra.”

Longe de pretender fazer futurologia, o alcance era lançar uma reflexão em torno do país que estamos a (des) construir, e perspectivar o amanhã que queremos para nós. Revisitei estes dois textos e vi neles alguma actualidade. Encontrei neles o mote para escrever este artigo que baptizei de resignificar Moçambique. Por resignificar entenda-se a necessidade de dar um novo significado ou recuperar a mística que com o tempo fomos perdendo – A mística da moçambicanidade.

Ouvi, recentemente, a mamã Graça Machel, numa das suas aparições públicas – se dirigir ao povo no geral, mas focando mais à juventude como alvo. Um dos pontos que mais chamou atenção foi quando ela disse: “Jovens, não se sentem em cima do legado de Samora (…) Não deixem o legado deste grande homem se perder.” Entendi como um recado, como uma chamada à acção e um convite à reflexão sobre o legado do Primeiro Presidente de Moçambique independente; à preservação e seguimento do legado deste estandarte da nossa moçambicanidade.

Na cerimónia de outorga do Doutoramento Honoris Causa à renomada e consagrada escritora e activista social – Paulina Chiziane, durante a sua alocução disse em viva voz, socorrendo-se do famoso adágio popular – “A boa fruta se conhece pela sua árvore”; a fruta que temos hoje é azeda, é tirana. O que se passa com a árvore então? E quem é a árvore? – indagou.

A árvore somos nós os mais velhos; somos nós que dirigimos o estado, as instituições, as religiões e a sociedade. E se essa geração esta assim, é porque alguma coisa está errada na árvore. – Retorquiu!

Poderia trazer algumas vozes que ecoam de forma audível entre os mais comprometidos com o projecto de dar um rumo ao país. Vozes de valor agregado para o debate da construção de uma nação em que os valores sociais são mais importantes que todos restantes. Severino Ngoenha, Adriano Nuvunga, Óscar Monteiro, Teodoro Waty, Elísio Macamo, Mia Couto, e outros tantos nomes que não trarei por economia de tempo e espaço, são unanimes em afirmar que precisamos repensar Moçambique e dar um significado a luta pela independência e construção do Estado-nação.

Urge pensar um país mais inclusivo, onde as liberdades individuais e colectivas sejam respeitadas. Um país com independência das instituições, dos três poderes e com uma máquina estatal mais capaz, progressista, comprometida e livre de amarras político-partidárias. Um país em que a corrupção, o despesismo e o nepotismo não figurem entre as primeiras palavras do dicionário social e político.

Precisamos criar uma narrativa para o presente e que possa criar bases de um futuro onde a moçambicanidade possa rimar com a integridade. Uma narrativa que se desconstrói a ideia de existência de sucesso sem trabalho, sem mérito e sem sacrifício. Uma narrativa que coloca o cidadão, e a pessoa humana no centro de todo o processo governativo e como elemento primordial para o desenvolvimento do país. Enfim, uma narrativa que o forte não é quem tem mais recursos e mais poder, mas aquele que pensa de forma mais inclusiva, englobante e acima de tudo nutre amor pelo país.

Precisamos igualmente de sedimentar o pluralismo na nossa sociedade; revigorar a unidade nacional e a aceitação do diferente, combatendo o divisionismo e o etnicismo. Uma sociedade em que os vários pensares confluem para a solidificação deste longo, contínuo e complexo processo da moçambicanização da nossa identidade, de edificação de bases fortes para uma governação forte, altruísta e progressista.

No país conhecido comummente como o país de Mondlane e Machel, onde as liberdades vem sendo sistematicamente reprimidas e asfixiadas, a dúvida é uma realidade não assumida e o medo tomou conta de vários sedimentos da sociedade.

Sim, temos medo de reivindicar o direito de sermos nós mesmos. Sentimento este que gera um questionamento sobre o nosso contributo social e humano para o país, e ao mesmo tempo convida-nos a abandonar esta longa noite escura que nos engole; noite esta caracterizada por discursos vazios, demagogias e descrédito sobre o nosso ser como país.

Agora temos dúvidas sobre a nossa gloriosa epopeia e medo de afirmar que Moçambique é dos Moçambicanos. Parafraseando Mia Couto: Há quem tenha medo que o próprio medo acabe. E eu acrescento, que há quem tenha medo de dormir e acordar sem personalidade jurídica.

A herança da violência do homem branco contra o homem preto – o chicote colonial -, não pode nem deve ser replicada pelas instituições de defesa nem pelos famosos esquadrões na sua mais crua forma de reprimir aquilo que julgávamos ter conquistado com a independência – a liberdade, o direito à autodeterminação e a participação no processo de construção de um estado-nação.

É meu entendimento, e talvez não apenas meu, que a bolha social da tolerância estoirou, e, é resultado de um acumular de situações que levaram anos e talvez décadas para se cristalizarem. Com ela (a bolha social), emergem e as ditas formas de ação popular punitiva e apelo a alternativa e a alternância, ainda que se subassuma que seria mais do mesmo. Nesta manifestação silenciosa, mas bastante ruidosa assistimos a segunda vaga da auto-demissão do povo.

Neste exercício de resignificar precisamos buscar as referências e as bases da criação do nosso Estado – O Estado que outrora foi motivo e objecto de orgulho e júbilo. Um estado onde o bem-estar social e o respeito pelas liberdades individuais e colectivas são respeitadas; onde a educação é um instrumento emancipador e não fonte de opressão e destruição, e onde os mais básicos serviços estejam disponíveis para a maioria.

Entre consonâncias e dissonâncias, uma coisa está a ganhar forma – há uma tentativa de busca incessante por um significado para a nossa existência como povo – a busca por um futuro melhor em que todos nos sintamos parte integral e integrante deste projecto chamado desenvolvimento.

No final o sonho de todos é apenas ter um Moçambique para todos.

Semear o medo que propicia o florescimento do afecto, fertilizar o receio de perder um olhar que não desvia a atenção do amor, abandonar o medo que convida a um carinho fascinante – são imperativos para a edificação de um castelo de sentimentos. Sim, é vital a apropriação desse medo que aduba o terreno do amor sincero. Quando se dissolve o medo de amar, o temor de perder um afecto, encerra-se uma grandiosa marcha pelo deserto que conduz o coração à terra prometida do amor.

O medo benéfico não julga o amor, ao contrário, rejuvenesce a ânsia de amar e perpetua a vida em um eterno cárcere de afecto a dois. Esse medo nobre insufla uma humildade sincera no amor, transformando a existência em algo sempre simples e belo.

Como evitar a perda do temor de perder um grande amor e a fantasia da paixão que pinta em nosso comportamento distraído quadros de amor com cores que ocultam ilusões e deturpam as figuras reais das experiências vividas? A ausência desse medo promove promessas de amor tingidas em ouro, tatuadas na arte de uma verdadeira mentira. O medo saudável se dissipa quando submetemos a fonte do amor a temperaturas elevadas, permitindo que as folhas da humildade chamusquem e exalem o perfume do amor autêntico.

Ao perdermos a honesta humildade e a leal cumplicidade no amor, a vida perde o sentido de alcançar a plenitude. O medo benéfico auxilia na expressão de sentimentos naturais, sem receio de críticas. A ausência da inteligência desse medo propicia uma operação na consciência sem anestesia, expondo os neurónios do amor à dor que ressuscita os nervos, mantendo viva a chama, a vida no amor e o conhecimento da filosofia do medo.

As pessoas necessitam extinguir os conflitos no céu do amor, garantindo paraquedas com cordas de experiências que unem corações e constroem laços para que os problemas não apaguem as saudades do beijo e carinho que edificam desejos de uma eternidade amorosa. Os corações precisam se importar não com as dificuldades formadas pelas ondas do mar do amor, mas sim com o que mais importa na plantação de letras que cultivam lembranças vislumbrando a vida para além do horizonte.

Às vezes, a vida não é justa para uma multidão de almas justas, mas não é necessário quebrar a existência, pois seu concerto pode ser desafiador. Por vezes, é preciso acreditar na ilusão da óptica do pensamento para corrigir as imagens sombrias do passado com as cores nítidas do presente. É necessário compreender que o mal e o bem coabitam nos corações humanos, cabendo a cada dedo do coração escolher a opção correcta. Em certas ocasiões, pode ser imperativo renunciar às demandas naturais das relações humanas para harmonizar o amor a dois. Tudo isso se torna possível quando se valoriza o medo de perder o que clareia vivamente a vida.

O filósofo alemão Martin Heidegger, em seu texto intitulado “O Sentido do Medo”, defende que o ser humano possui uma disposição afectiva, uma abertura para vivenciar tudo que há no mundo. Os objectos, por si só, não despertam medo, mas sim a maneira como o indivíduo se relaciona com eles. O medo consiste na experiência de ameaça ao ser, retirando-o da confortável sensação de que tudo está em ordem e sob controle. O medo da perda de um objecto que tenha importância afectiva, por exemplo, pode significar uma ameaça à própria existência.

Quando minha mãe engravidou de mim, meu pai pediu-a para fazer um aborto. Ele não queria mais ter filhos, pois já era pai de duas meninas, e a probabilidade de ter uma terceira era maior. No entanto, minha mãe decidiu forçar e levar adiante a gestação, e assim nasci, uma menina. Meu pai esqueceu-se de sua posição anterior e celebrou o meu nascimento, orgulhoso por ser pai das “três irmãs”.

Na infância, eu era a melhor amiga do meu pai dentre as minhas irmãs, e ele o meu melhor amigo. Adorava ir ao futebol com ele e ficar sem camisa na varanda, mimetizando sua atitude. Sinto saudades do meu pai. Infelizmente, ele partiu, levando consigo o meu melhor amigo. No entanto, antes de partir, em seu estado de coma no hospital, ele ainda encontrou uma maneira de fazer-me chegar o que estava em seu coração. Na madrugada em que ele partiu, tive um sonho com ele, onde ele me disse: “Minha filha, estuda, a vida está difícil”, e mais nada disse. Ao acordar, tivemos a triste notícia de sua partida. Que descanse em paz!

Cresci e tornei-me mulher. Casei-me e, em determinado momento, fiquei grávida. Meu esposo estava eufórico pois seria pai pela primeira vez, e a expectativa dele era ter um menino. Isso criou em mim uma pressão psicológica e uma vontade de satisfazê-lo. Quando fiz a minha primeira ecografia para saber o sexo, a médica disse-me que parecia uma menina, mas não tinha certeza; que teríamos que esperar pela próxima ecografia. Após algum tempo, tivemos a certeza de que realmente carregava uma menina no meu ventre. Fiquei feliz, pois disse a mim mesma que teria uma “mini-eu”. Meu esposo, depois que ela nasceu, amou-a, talvez até mais do que eu, e continua a amá-la cada vez mais nos dias de hoje.

Com a minha própria experiência e outras que tenho acompanhado, percebi que na minha sociedade, ter um filho do sexo masculino é o que tem mais peso e mérito. Isso suscitou em mim a seguinte questão: até que ponto a sociedade moçambicana contribui para a discriminação e desigualdade de gênero?

A discriminação e desigualdade de gênero são questões profundamente enraizadas em muitas sociedades ao redor do mundo, incluindo a moçambicana. É vital que questionemos e desafiamos as normas estabelecidas, promovendo uma mentalidade mais igualitária, onde todos os filhos sejam valorizados e amados independentemente do sexo. A educação e a conscientização desempenham papéis fundamentais na mudança dessas percepções e na criação de uma sociedade mais justa e equitativa para todos.

Em certos pontos do meu país moçambique, muitas mulheres perdem seus lares por não poder conceber e em casos piores pelo facto de não conseguirem ter filhos do sexo masculino, são desprezadas e não tem valor nestas mesmas sociedades.

As dificuldades que as mulheres enfrentam em Moçambique devido à pressão para conceberem e terem filhos do sexo masculino são profundamente perturbadoras e refletem normas culturais arraigadas que perpetuam a desigualdade de gênero. É fundamental aumentar a conscientização sobre essas questões e promover a mudança nas atitudes sociais para garantir que todas as mulheres sejam valorizadas independentemente de sua capacidade reprodutiva.

Para combater esse tipo de discriminação e exclusão, é necessário um esforço coletivo que envolva a sensibilização pública, a promoção da igualdade de gênero e o fortalecimento das leis e políticas que protegem os direitos das mulheres. Além disso, é crucial oferecer apoio e recursos às mulheres que enfrentam essas dificuldades, garantindo que elas tenham acesso a cuidados de saúde adequados e apoio emocional.

Essa é uma questão profundamente enraizada na sociedade, mas com um esforço contínuo e a promoção de valores que valorizem todas as pessoas independentemente do sexo, é possível trabalhar para uma sociedade mais justa e inclusiva em Moçambique.

Sinto-me honrado por fazer parte da geração de moçambicanos que, com alguma audácia, vai construindo e narrando a nossa história. É gratificante saber que estamos percorrendo um caminho em que a nossa sapiência, como nação, está sendo registada por nós. É um exercício feito de forma institucional, no protótipo estatal, privado e por indivíduos que presumem ser parte complementar do registo dos factos da nossa nação. Porém – há sempre um «mas» – não estamos, internamente e com maior engajamento, a partilhar as fontes e a fazer circulá-las para que o circuito de lavra de conhecimento, registo e disseminação seja permanente e fecundo. Se a nossa herança material e imaterial serve de base para a construção do conhecimento histórico julgo ser importante e pertinente a liberalização e a partilha de fontes de informação. Sou persuadido a reconhecer que a matéria sobre a partilha de fontes é tão sensível por isso deve passar por parâmetros jurídicos e legais. E, sem rodeios, concordo em absoluto. Aceito que devemos ter parâmetros éticos para o manejo de fontes. Por isso, para ser mais específico deixo bem explicito que, neste artigo, falo de fontes socioculturais e, sem quisermos alargar mais a contestação, de fontes artísticas. [Sobre fontes bélicas e da legitimidade do primeiro tiro, deixo com os outros].

Na sociedade moçambicana, culturalmente, valorizamos os saberes escritos, os acervos e os registos vivos da tradição oral. Evidentemente, nem sempre são honrados de acordo com a sua importância. Muitos desses saberes ficam relegados, a maior parte do tempo, a uma condição de invisibilidade nos diversos subsistemas de partilha, réplica e divulgação de erudição. Assim é, pois são escondidos ou porque uma certa entidade (estatal, privada ou individual) crê que o mosaico que possui é de consumo exclusivo. Chegado a este obstáculo cabe questionar sobre os factores que fomentam essa condição: o quê faz uma entidade negar de partilhar fontes? Quais são as motivações para uma entidade ou uma pessoa com alguma notabilidade social negue de ser uma fonte? Sem nos apercebermos estamos a legitimar a catalogação negativa que sofremos ao longo dos séculos que engorda o seguinte pensamento: somos um povo, exclusivamente, oral e que não sabe ortografar a sua história. Sim, sem giros, estamos! Partilho para melhor percepção, acostando-me no ofício de editor, alguns contextos: individual e institucional. Embora, encarquilhados, servirão de exemplos.

No contexto individual parto da forma que me predispus a escrever/documentar, nos últimos anos, com uma logística insignificante e hiper-limitada, sobre o percurso de alguns cultores das nossas artes. Falo de dois tipos de autores: escritores e músicos, para ser mais específico. A primeira marcha, principal mas não única, para escrever sobre uma personalidade artística é aproximar-se dela e partilhar o anelo e utopia de escrever uma biografia, um ensaio, um artigo ou um outro documento que mesmo sendo da sua profissão artística irá, inevitavelmente, falar da sua vida privada. Sigo esse procedimento pois ajuda a construir um facto histórico sobre o autor a ser estudado e reforça as leituras circunscritas à volta dele.

Ouvir, directamente, o protagonista possibilita uma maior compreensão dos acontecimentos históricos. Do mesmo modo, permite-nos o acesso ao passado, o qual já não podemos vivenciar, nem alcançar directamente. Ou seja, o autor – sobretudo vivo – é a verdadeira fonte para o conhecimento da sua história. Posteriormente, podemos cruzar com outras fontes sejam elas escritas ou audiovisuais. Nessa busca tenho convidado alguns autores.

Porém, recebo respostas cómicas e que não merecem estar neste texto. As diversas respostas, agrupo-as em duas abordagens: i) autores que afirmam «não ter tempo» para facultar informação e, consequentemente, não aceitam ser fontes primárias do seu próprio labor artístico; [esta forma de dizer «não» tem sido um balde de trampa para alguns estudantes, mesmo credenciados, que desejam fazer uma tese de final de curso em assuntos de género; alguns autores ainda acreditam, infelizmente, no antropólogo muzungo e que a entrevista deve ser cedida com o tilintar do dólar ou euro]; e ii) artistas que, liminarmente, querem ser pagos antes de tudo. Óbvio que o artista deve viver do seu labor. É justo e legítimo que assim seja. Porém, mesmo com um plano e uma explicação editorial límpida o artista continua querendo ter Metical antes da obra feita.

É assim em outros quadrantes e é justo que assim seja. Sim, é. Porém, para nós essa realidade ainda é uma miragem por razões todos conhecem. Infelizmente, por estar a sonhar coadjuvado por uma logística insignificante e hiper-exígua, pois o assunto mecenato anda no plano sobrenatural, limito-me a estagnar a minha utopia nas garrafas de maçarico que outrora foram abrigo de azeitonas-pretas-oxidadas.

É neste enredo que passeamos ao ponto de não termos uma simples brochura e crónicas, para não dizer história, do pandza, do tufo, do rap moçambicano, do mapiko & Cia; não temos biografias de Eduardo White, Kapa Dêch, Pai Leão, Massukos, Amin Nordine, Mingas, Lília Momplé, Zena Bakar e outr@s que robustecem a música/literatura moçambicana.

Não aceitamos ser fontes e não liberamos as fontes de informação. Perante este cenário, como devem afigurar, não se faz nenhum registo, não se produz nenhum documento e continuamos na paz e na alegria do Olimpo até o dia que o nosso autor é chamado para ir ao terráqueo celestial. Quando isso acontece nos consolamos com frases como «foi embondeiro», «colosso das nossas artes», «decano da nossa moçambicanidade» e aquelas frases hipócritas de auto-consolação e homenagens póstumas. Resultado, ficamos sem registo porque a fonte essencial não foi acolhedora o suficiente para que o seu percurso e labor artístico fossem documentados. [Mais uma vez aceito ponderação: o artista deve viver, óbvio, do seu labor e não estou afirmando que ele deve dizer «sim» para tudo que lhe aparece. Mas, viver do «não» até para um movimento que serve de replica para o nosso labor artístico é um acto inconcebível. Enfim, não citarei nomes porque «a vitho i mpondo»].

No contexto institucional a coisa tem mais fetidez. A burocracia para ter acesso a uma informação em instituições, sobretudo estatais, um dia fará Ngungunhane ressuscitar. Mesmo com o cumprimento de todo o protocolo que passa por apresentar uma credencial, fazer um requerimento para ter a anuência da instituição que nos deve facultar a informação, ainda me deparo com respostas como: «teu pedido ainda não foi respondido», «o chefe que deve assinar este documento não está», «volta dia seguinte». De refutação em refutação, passam-se semanas sem ter uma resposta para aceder a uma informação como, por exemplo, «quantas editoras, quantas livros ou quantos discos foram registados, em 2022» ou «quantas casas de cultura existem no país».

Se uma instituição que zela pelas indústrias culturais e criativas leva meses para me facultar uma informação básica, não quero imaginar no dia que irei perguntar sobre o orçamento gasto para organizar um festival da cultura. É perturbador a sonegação de uma informação que devia ser de conhecimento nacional sem que ninguém fosse bater a porta do ministério. Cito, a título de exemplo, as enunciações culturais que foram proclamadas pela UNESCO património imaterial da humanidade: timbila (Novembro de 2005), nyau (2007) e, recentemente, o mapiko (2023). Adquirimos chancelas mundiais, todavia não temos acervo sobre essas expressões culturais. É atroz estar nessa condição. Os agentes submissores dessas propostas contentam-se, apenas, com a proclamação mundial. Não se comprometeram em fazer divulgação e partilha para que nós, outros – editores, jornalistas, académicos e demais interessados – sejamos replicadores dessa informação. Consequência: temos poucos livros, brochuras ou folhetos que falam das manifestações chanceladas pela UNESCO como património mundial. O que devia ser de domínio público tornou-se exclusivo.

Por isso, não tenhamos vergonha de assumir, que muitos moçambicanos – sobretudo em idade escolar – não tem noção que essas práticas artísticas são património imaterial. Portanto, vamos liberar as fontes para escaparmos do cerco que arroga espólio como, apenas, uma doutrina solene, de cariz política e de ratificação de bem cultural sem que não seja do domínio do cidadão. Liberemos as fontes, os arquivos para criarmos acervos pois de nada vale termos inúmeros patrimónios imateriais sem existência, mínima, de documentos de consulta (e.g., livros, folhetos, brochuras, documentários).

[O plangor vai para outras entidades: imprensa escrita e audiovisual (e.g., RM, TVM, Notícias); repartições públicas, entidades de investigação (estatais e privadas); fundações que se crê serem filantrópicas e museus (e.g., não se percebe como o curador de um museu saracoteia, durante meses, para dizer quantas mostras faz por ano e qual é a média de visitantes mensais). Sonegar informação devia ser crime pois não possibilita a criação de saber e de produção de acervos. As instituições devem se vincular a Lei n.º 34/2014, Lei do Direito à Informação. Mais do que vincular-se a lei, as instituições devem operacionaliza-la. Creio, embora seja professor da 4.ª classe e não jurista, estamos perante uma interrupção legal. Entendo que a lei mencionada tem o potencial de gerar uma mudança radical na forma como os moçambicanos passam a se relacionar com o acesso à informações de utilidade pública e para fins a que este artigo reclama. Por exemplo, instituições de ensino superior como Escola Superior de Jornalismo e Escola de Comunicação e Artes/Universidade Eduardo Mondlane formam profissionais de informação, nessa área específica, para fechar a lacuna de organização, divulgação e, sobretudo, promoção de informação. Óbvio que ter informação é ter um tipo de poder. Assim de viés e por respeito a lei alargo a reflexão – que será complementada por outros profissionais – com algumas questões: o que muda com a implantação desta lei; porque essa mudança tarda a observar-se; o que está faltando; quem ganha com isso; o que se perde; o que é maior entre o que se ganha e o que se perde? É certo que existem restrições de acesso à informação: segredo de estado, justiça, sigilo profissional […] como esclarece o art. 20, lei n.º 34/2014, lei do direito à informação. Porém, não percebo onde pode existir sigilo para dizer quantas editoras foram registadas, em 2023; ou o artista me facultar o número de músicas que gravou].

Trouxe exemplos artístico-culturais, convicto de que existem de outra natureza, para espelhar o quão é doloroso não ter informação para rabiscar um artigo, uma biografia ou um documento sobre uma determinada exteriorização artística que deve ser do conhecimento nacional. Portanto, enquanto continuarmos a sonegar informação continuaremos com uma república sem acervos – sim, estou a repetir, propositadamente, a palavra «acervos» – pois é urgente começarmos com essa marcha para não perpetuemos a falácia de que somos um povo que não sabe registar a sua história. Por estas e outras razões, para cessar este artigo, continuarei na linha da frente, a bater portas e a incomodar as instituições e alguns dos nossos cultores (músicos, escritores e gestores culturais) com o desígnio de fazer acervos e ser replicador do que existe de melhor e detestável da nossa sina artístico-cultural.
Bayete!

 

P.S.: aos que ofereceram suas jornadas artísticas para que eu fazer ensaios (Ghorwane, Paulina Chiziane, Pureza Wafino, João Cabral, João Ribeiro, Elcides Carlos, Aniano Tamele, Carlos Cardoso, Edson da Luz), bayete; uma vénia para instituições que documentam a vida cultural do país (ARPAC, Khuzula e Museu da Mafalala); e, todos participantes do primeiro volume do caderno de música moçambicana. Kanimambo!

Eduardo Mondlane completaria 104 anos se continuasse no nosso seio. A sua amada de sempre, Janet Rae Johnson Mondlane, caminha de forma robusta para os 89 anos. A meio da atmosfera da festa de todas as festas, recebi e li, com agrado, uma das cartas que Mondlane escreveu para o seu maior amor, Janet. O simbolismo destas cartas se encaixa num plano que se situava muito para além do simples amor, e fazia jus, contextualmente, à grandiosa epopeia que foi a luta de libertação e independência de Moçambique. Estas são as cartas que fizeram a nossa liberdade e o sonho de vivermos como moçambicanos e sem distinções.
Estas relíquias de um passado que se quer manter presente, revisitam o tempo de todos os tempos. Relembrar as intimidades do casal equivale a abrir uma janela para o passado, para vislumbrar o arco-íris da emancipação e apreciar como cada linha e cada página traçada são o elo que reconecta o presente que um dia foi passado para que todos tivéssemos um melhor futuro. Segue abaixo um trecho:

“… O mundo está à espera do momento em que o homem conhecerá os outros em termos do seu valor humano, e não, em termos de cor e de língua. As culturas estão a fundir-se lenta, mas, seguramente. Há uma comunicação cada vez mais rápida, tanto física como espiritual. … Tudo isto significa que tu e eu podemos ser cidadãos do mundo se, assim, o desejarmos… O mundo tem fome de pessoas que se atrevam a sair e a conhecer outros seres humanos. Não me interpretem mal, não quero dizer que uma cultura seja má ou inadequada. Mas, quero dizer que qualquer cultura pode ser inadequada se fizermos dela um ídolo. Embora, amemos a nossa própria cultura, não devemos esquecer que ela é uma parte e apenas uma parte de um mundo maior – a humanidade. Esta ideia é aceite por milhões de pessoas hoje em dia, mas é difícil encontrar alguém que se aventure a ir mais longe, excepto muito poucos. Sejamos, tu e eu, esses poucos. As gerações futuras vão agradecer-nos por termos começado, mesmo que os nossos nomes desapareçam na confusão do progresso.” Eduardo Mondlane para Janet Books.

Cartas Editadas. Ecos da Tua Voz 1920-1950.

Quem sabe poderemos ter, em 2024, a próxima edição do “Ecos da Tua Voz”.

Pela primeira vez na história da televisão moçambicana, uma novela completa dois anos de sessões ininterruptas. De segunda à sexta-feira, em horário nobre, os telespectadores viajam numa narrativa coroada de emoções intensas e revira-voltas de tirar o fôlego.

Não se pode falar da telenovela Maida sem mencionar os papéis dos protagonistas que dão vida a esta cativante narrativa, tornando-a num verdadeiro sucesso em Moçambique e além-fronteiras. Mauro Sitoe (Evan Muteto) e Maida (Tânia Tembe) são os personagens-âncora desta produção e responsáveis por nos conduzir durante as três fascinantes temporadas.

Foi precisamente a 17 de Janeiro de 2022 que tudo começou… uma data que jamais será esquecida por Evan Muteto e Tânia Tembe, dois jovens que se experimentam como actores numa produção de luxo, única no país, quando o assunto é ficção na televisão.

Desengane-se quem pensava que Tânia Tembe nunca se tinha imaginado como protagonista de uma telenovela. “Como toda a criança, quando eu assistia à TV me imaginava a fazer um papel principal”, conta a actriz, mas o que ela não previa é que esse sonho se tornaria uma realidade.

“Sinceramente, ‘a minha ficha demorou muito para cair’, para assimilar tudo, e mesmo quando eu recebi a proposta, eu não sabia qual seria a proporção, onde o projecto iria me levar; foi e continua sendo uma surpresa a cada dia, porque o trabalho tem sido levado além-fronteiras”, conta Tembe.

Para Muteto, 17 de Janeiro tem um grande significado, aliás, não só para ele como também para muitos moçambicanos. “Fazer parte desta história é uma coisa incrível e eu espero que este domínio continue por muito mais tempo porque temos muitos vários jovens neste país com capacidade para produzir telenovelas, seriados e outros conteúdos para televisão que seriam muito bons”, partilha o actor.

Muteto assume que continua incrédulo por ser um dos rostos principais da Telenovela Maida. E a razão é simples: o actor não é um filho das artes cénicas, foi uma recente descoberta que, de repente, deu vida a Mauro Sitoe, um dos protagonistas da novela.
“Deixa-me muito satisfeito fazer parte desta história, é um marco em minha vida e posso assumir que o Evan deixa o seu nome patente nesta história das telenovelas em Moçambique como um dos fazedores da novela e, por isso, é uma responsabilidade enorme”, refere.

É um trabalho que lhe acresce valor, assume, embora não consiga quantificar por serem vários e valiosos resultados. “É uma experiência não só social, mas também profissional que me tem alavancado a cada dia, tornando-me uma pessoa mais conhecida, o que permite ganhar influências em outros campos que também no futuro podem me levar além”, realça, acrescentando que um dos seus maiores sonhos é fazer novelas em outros países.

Diferentemente de Evan Muteto, Tânia Tembe soma ligeira experiência no cinema, tendo participado num seriado durante dois anos. Aliás, o seu convite à telenovela Maida surge com o desaire deste projecto que passou para a província de Nampula. É caso para dizer há males que vem para o bem: “foi aí que eu recebi esta proposta e sinceramente foi magnífico”, assume.

Para Tembe, a sua vida mudou completamente através desta telenovela. Por exemplo, conta a actriz que (já) não consegue sair à rua sem sentir o calor das pessoas. Ora, este resultado não é só no prisma emocional, refere a nossa entrevistada, o projecto está a ter impacto, também, na sua área financeira, porque “era muito difícil, em Moçambique, termos um projecto a longo prazo com um salário fixo, e nós já estamos há dois anos a trabalhar neste projecto”, justifica.

Dois anos depois, Muteto e Tembe celebram “Maida” com uma avaliação positiva, porque, como justificam, tem sido uma verdadeira escola. Sendo que os dois actores não carregam nenhuma formação, pelo menos formal, quer em teatro como em cinema, a experiência de cruzar cenários com figuras mais destacadas do universo audiovisual tem sido um grande alicerce para o crescimento dos dois jovens actores.

Refira-se que o aniversário da Telenovela Maida coincide com a do Maningue Magic, o primeiro canal que se dedica à promoção de conteúdos audiovisuais com alma local. “Cenas moçambicanas” tem espaço preferencial na DStv e GOtv e, durante 24 horas, entretenimento é que não falta.

…a gente até tenta, mas está difícil, Senhor Professor.

Escrever sobre livros e seus autores é uma tarefa inglória, como bem pontuou o Professor Nataniel Ngomane numa entrevista concedida a Cláudio Fortuna, publicada na Revista Angolana de Sociologia, em Abril de 2011, ao problematizar esta função nos seguintes termos: “quanto é que ganha um crítico por escrever um texto de crítica? Deixa de fazer as suas coisas, escreve um texto crítico… e não recebe nada por isso. Não será, este, um grande problema? Porque as restantes profissões são pagas para fazerem o que estão a fazer. Quem é que paga a crítica? Quem respeita a crítica? Quem dá valor à crítica? As pessoas pedem sempre para fazer um prefácio, uma apresentação dos seus livros. Quanto se ganha por isso? Imaginam quanto se despende para fazer isso?”
De facto, no quadro de “profissionais” que intervêm na cadeia de valor do livro, o crítico literário é o único que não recebe pelo que faz. Aliás, recebe, sim: pedras. Dos próprios autores; dos editores; dos convivas a quem o autor paga as sopas. São ossos do ofício: dir-se-á.

Tenho notado, com muito agrado, a emergência de vozes (pouquíssimas) que se dedicam a este exercício em vários canais de mídia, sobretudo a electrónica. Curiosamente, não são vozes oriundas das nossas “academias” de Jornalismo como se poderia esperar. São graduados de cursos de letras (filosofia, ensino de línguas, literatura moçambicana, linguística, sociologia e afins) que, tendo paixão pela literatura, alimentam as páginas dos jornais, blogs e revistas com um ar da sua graça, ainda que seja de forma irregular.

Este esforço para com a coisa literária é muito benéfico e positivo: movimenta o “sistema”, ainda que tal seja inglório para as suas receitas. Haveria justiça divina se assim fosse. É bíblico: “comerás do fruto do teu trabalho, serás feliz e próspero” (Salmos, 128: 2).

Ainda bem que, neste caso e cá na terra, a prosperidade é um valor relativo.

Esta militância que certamente será registada nos anais da história, remete-me a uma conversa tida com o Professor Francisco Noa, aquando da sexta edição do Festival Internacional de Poesia, organizado pela Associação Cultural Xitende, na cidade de Xai-Xai. Num painel reservado à reflexão sobre a crítica literária em Moçambique, Noa recordou-se de um episódio que tivera com Jeremias Langa. Este último pretendia conduzir uma pesquisa em torno do mesmo tópico e apontava para a ausência de critica literária no nosso meio. Note-se, então, que este não é um lugar-comum dos últimos cinco anos. É coisa dita há já algum tempo.

Noa referiu que sugeriu uma outra forma de observar o fenómeno, destacando que temos, sim, falta de crítica literária jornalística. A crítica literária (académica) está firme e a cada dia surgem ensaios, artigos científicos, monografias, dissertações e outros géneros académicos que têm como base de reflexão a literatura feita em Moçambique.

Lembro-me, também, de o mesmo ter dito que há uma tendência de se incorporar, nos jornais, alguma crítica, contudo esta ainda é de foro académico. José dos Remédios é, neste quesito, uma figura de destaque por não só ser das poucas vozes que se evidenciam no contexto do Jornalismo Cultural, como, também, cede espaço para que outras vozes se possam fazer ouvir. Pessoalmente, sou-lhe grato. Está para breve o dia em que lhe irei pagar um descafeinado.

Mesmo assim, nem tudo são rosas. De acordo com Noa, a crescente onda de jovens que se querem firmar neste exercício é, ainda, devedora de uma critica literária académica que melhor serve aos propósitos académicos que os efectivamente jornalísticos. É uma escrita pejada de citações, desde Todorov às Mendonças cá da terra.

Conforme referi no início deste texto, são vozes herdeiras de bases teórico-conceptuais dos Estudos Literários, da Filosofia, sobretudo, e de algumas bases da Linguística Textual. Mal nisso não há, contudo, se uma das premissas do exercício da crítica no contexto jornalístico é a informatividade, estará o nosso leitor preparado para tamanho linguajar tecnicista e, quiçá, opulento? Se neste exercício, furtamo-nos da necessidade de situar o leitor relativamente ao estágio e âmbito das abordagens sobre o tópico em causa, estaríamos a ser suficientemente honestos? Ou, se calhar e sem perceber, estejamos a enfrentar o dilema descrito por Schopenhauer no seu “a arte de escrever”?

Para este filósofo alemão, “quem lê muito e quase o dia todo, mas nos intervalos passa o tempo sem pensar nada, perde gradativamente a capacidade de pensar por si mesmo – como alguém que, de tanto cavalgar, acabasse desaprendendo a andar”, (p. 60).

Leio, com alguma regularidade, os nossos textos a respeito dos livros dos nossos confrades escritores ou da cena literária no seu todo e o que me ocorre é mesmo isto: a gente até tenta, mas está difícil, senhor Professor.

 

Contacto: elisiomiamboem@gmail.com

 

Há muito por se dizer da carreira deste senhor. Sinto-me minúsculo demais para rabiscar o que quer que seja sobre ele. Quem sabe, um dia ganhe coragem para tal. São muita histórias que ele partilhou desde que cedo abandonou Chiconela usando Oliveiras, cheio de sonhos e ilusões, na esperança de para lá retornar. A primeira música de Antoninho que eu ouvi era mesmo sobre a ideia de voltar a Choconela, ainda que tenha saído decepcionado, porque a filha de Caim lhe fez entregar tudo que tinha, para nada. Depois de entregar o gado para lobolo da moça, ela foi “pilar” noutra família. Pobre dos pais que são cantados por Antoninho. Eles aceitaram o espólio sabendo que a menina não era boa de palavra.

Ficou esperto, Antoninho. Para a segunda menina fez uma promessa. “Vou a Maputo e regresso com coisas boas e lindas. Vou pegar Nkondjane de Xitonhana e vou lutar pela vida”. A menina de Chiconela nunca via o Antoninho regressando com as prometidas coisas boas. Até os madjoni-djoni iam e vinham com saias, vestidos, lenços e mais benesses, mas o seu querido Marquitos, nada. Ensaiou a bela prometida de Antoninho uma ida a Maputo, para ver com os próprios olhos as moças que se alimentavam de saladas para manter os corpos fitness enquanto ela descia a baixa de Limpopo para ajeitar uma couve e depois beber água, como recomendou Eugênio Mucavele em Mali ya Phepa e secundado por aquele outro, para lembrar aos professores que estão de greve desde 1990. A moça sente-se enganada por Antoninho. seduzida e com promessas brilhantes, ela vive sofrimento e solidão. Avisa ao António Marcos que outros poderão achar graça a menina triste, suja e abandonada.

Quando isso acontecer, o corajoso que tirar a moça da sarjeta vai levantar a voz para defender a sua fêmea e não mais o Antoninho terá direito de dizer “voltei, amor”. Ra bonga duna.

O que a menina não sabe é que ele chegou a Maputo e teve que usar as luvas para lutar pela vida. António Marcos lamentou-se pelo facto da mãe não o ter levado à escola. Chegado a Maputo teve que carregar chapas de 12 pés para se sustentar. Não restava muito, nem mesmo para levar uma menina nas faras de Malhangalene. Só lhe restava aceitar para aguentar com a dureza da vida na capital.

A vida dele era mesmo um Tsatsaztsa em Mafalala, vendo meninas e rapazes dançando Msakazi. Adiava-se cada vez mais o regresso para encontrar a menina de Chiconela. Andou no boxe, andou na igreja até encontrar o conforto na música. A viola la mina la vula-vula. é com a viola que terá os valores que precisa para retornar a Chiconela. Até porque a maronga que o distraiu em Maputo é duma conduta duvidosa. Para ela há sempre cultos nocturnos na igreja. Precisa ser enquadrada tipo Garakunha (fémea de peru) que só entra na capoeira depois de umas boas pancadas.

Está difícil a trajectória deste senhor. Já não é um Antoninho. Saiu de casa e deixou a mãe com muitos filhos, um team de futebol, diga-se. Entretanto, ao regresso, todo Xikwata (Squad) desapareceu, só resta ele, tipo cria de uma rola que escapou dos predadores que atacam, o ninho.

Este é António Marcos Matusse, grande músico, grande dançarino e … uma voz sem igual. Ele não é enganador. Maputo é que foi duro para com ele. Pode até não parecer, porque as luvas estão tão limpas e branquinhas, mesmo depois de muitos combates.

No seu livro, as origens do totalitarismo, escreveu a filósofa Hannah Arendt, a tortura é mais agoniante quando ainda reside na vítima a esperança de ela escapar. Ou seja, enquanto sobrar na vítima a ideia de libertar-se, o medo de ela não resistir à dor física torna-se maior, agudizando, assim, a agonia. Por isso, como explicou Frantz Fanon, no livro Os condenados da terra, o torturador, antes de tudo, tinha de persuadir a vítima que lhe daria a liberdade, se cooperasse, sem essa condição, o torturado se entregava resignadamente à morte sem revelar o segredo. Deste modo, onde há esperança, as visitas da ansiedade são frequentes e, quando a esperança nasce duma promessa dada, a ilusão toma o controlo das decisões.

É em torno do último cenário “a ilusão” que o conto notícias do salário nos fala dos males de esperar pelo prometido. Baltazar é um personagem “vítima” da esperança gerada pela promessa de aumento do salário no seu sector laboral. Tal promessa fá-lo contrair dívidas para realização da festa de aniversário dos seus filhos gémeos sob o apoio da sua esposa Malmequer, tomando assim o aumento salarial como uma coisa garantida e o futuro como se fosse um tempo previsível e inabalável.

Entretanto, a infalibilidade e a certeza nunca foram propriedades intrínsecas do futuro. O futuro sempre foi duma natureza volátil e imprecisa, ainda que permita previsões que se devam entender como probabilidades, mas jamais certezas. A desilusão sofrida pelo casal Baltazar e Malmequer corrobora nesse sentido como uma prova loquaz. O aumento salarial esperado no final do mês não chegou a acontecer. E porque a esperança tem o poder de erguer um castelo de certezas na nossa mente, a sua ruína, amiúde, não é súbita e rápida perante o impacto duma realidade contraproducente. Muitas vezes, o esperançado leva algum tempo para cair na realidade. Foi preciso mais um mês para Baltazar finalmente conformar-se da falta do tão almejado aumento.

Com a falsa promessa do aumento salarial, o casal experimentou três estados de espírito engendrados pela esperança, tal como esquematizou Arthur Schopenhauer: primeiro o desejo, de seguida o tédio e, por fim, a angústia.

“O mês findou, a notícia de aumento não chegou a ser facto. Para Malmequer, foi como o fim do mundo. Ficou uma semana sem falar e com um olhar de quem estava (a) pensar em muitas coisas ao mesmo tempo. (Lineu, 2023: 53).

A esse descalabro, o casal chegou devido à cega esperança que o levou a tomar o futuro como garantido. Depois dessa experiência negativa, era suposto que o casal fosse mais cauteloso com os tentáculos da esperança. Porém, a doçura intensa da promessa muitas vezes faz da nossa memória curta. A empresa onde Baltazar é trabalhador voltou a prometer um aumento salarial por duas vezes, e nenhuma dessas vezes tal promessa se cumpriu.

Sendo assim, quando há uma falha contínua de promessas feitas, o que naturalmente acontece no coração de quem é prometido é uma conversão degenerativa da esperança em cepticismo. Do espírito ingénuo, Baltazar passa a guiar-se pelo espírito de dúvida um tanto radical na medida em que chega a influenciar não só o seu modus vivendi, mas as suas relações interpessoais.

“Ao ensinar (os) filhos, agia como se tivesse mais dúvidas do que os meninos. Quando eles falavam dos seus sonhos, aconselhava-os a se deixarem ser guiados pela vida, aí não se decepcionariam com nada. No trabalho, tornou-se mais escrupuloso, não pelo zelo, (mas) para ter a certeza de não ter surpresas indesejáveis. Várias vezes, acordou à noite, e deixou a esposa preocupada, por achar não ter dado conta de algum ofício” (LINEU, 2023: 55-56).

Desse excerto, pode-se presumir que o estado de espírito do Baltazar se mostrava menos sadio. Um cepticismo que nos proíbe de sonhar e tentar, obrigando-nos a estar num estado de alerta e desconfiança do mundo afigura-se um mal para realização da nossa existência. E, de facto, não há uma inovação substancial ou um acto extraordinário que se possa esperar dum espírito demasiado céptico.

Mediante o dilema entre guiar-se pela esperança ante um futuro que se mostra impenetrável e guiar-se pelo cepticismo num mundo que exige atitudes firmes, é possível uma sobressaída que não tenda nem para um polo nem para outro. Tal sobressaída configura-se o espírito de incerteza. Diferente da convicção que cega advinda da esperança e da desconfiança que tolhe os passos gerada pelo cepticismo, a incerteza é um estado livre de optimismo e pessimismo. A incerteza não significa obviamente certeza nem desconfiança, mas reunião de ambas possibilidades. Ou seja, a incerteza significa assumir na mesma proporção as hipóteses de que as coisas podem dar errado, assim como podem dar certo, e mesmo assim seguir adiante. Uma pessoa guiada por incerteza difere-se duma pessoa indecisa ou hesitante e, da mesma forma, se difere duma pessoa convicta. É uma pessoa sem esperança nem desespero. Parafraseando, uma pessoa de incerteza trata-se de uma pessoa sem certeza, mas que não se desespera por conta disso. Nisso, reside a sua sabedoria tal como declarou o filósofo Immanuel Kant: uma alma inteligente prova-se pelo número de incertezas que consegue suportar.

Apesar de o Baltazar ter adoptado o cepticismo exacerbado, em algum momento, passou a gozar duma relativa tranquilidade quando já não tinha esperança do aumento salarial, ajeitando-se desse modo com o que tinha. E foi quando menos esperava que se lhe deu uma feliz surpresa: o aumento salarial, finalmente, se tornou um facto. A família regozijou-se, desta vez, com algo concreto. Algo presente e não vindouro. Entretanto, porque na vida, nada dura para sempre, a alegria do Baltazar foi deveras fugaz, quando soube da esposa que o aumento do salário de nada valeu, pois, o custo de vida também havia paralelamente aumentado.

Mas o que dizer, definitivamente, da lição deste conto? Talvez que tudo na vida, muda num sopro. Nada está fadado a eternizar-se. E se nada se eterniza e tudo se altera constantemente, a melhor forma de mover-se pelo mundo é abster-se tanto da esperança e do cepticismo exagerados e aprender a conviver com a incerteza, pois ela não ilude nem aprisiona, torna-nos livres e abertos para lidar com qualquer situação que vier.

Hélder Tsemba
tsembah@gmail.com

A ambição do homo sapiens desde muito que mexe com o seu comportamento, e de forma consciente tem atropelado as boas maneiras de convivência com a natureza. Sim, agride constantemente a natureza. Como elenca Adriano Souza, a natureza desde sempre vem sendo atacada por nós seres humanos, destruímos nossa flora, poluímos nosso ar e nossas águas, envenenamos nosso solo, despejamos lixo em lugares inadequados construímos um lugar de concreto, impermeabilizando o solo, o efeito estufa cada vez mais presente, e assim o planeta começa a mandar a factura de nossa irresponsabilidade.

Estamos na verdade a destruir a nossa única e insubstituível casa chamada planeta. A fúria do planeta é bem visível nos dias de hoje. Chuvas excessivas, tsunamis e ciclones estão atormentando o homem. Secas e estiagens com períodos prolongados, temperaturas ao extremo, fenómenos atmosféricos em escalas, mostra a reacção do planeta face a nossa falta de carinho para com o ambiente. As estações do ano andam confusas, o Inverno já abraça calor, os termómetros em muitos pontos da terra, andam tontos por observar variações constantes de temperaturas nas quatro estações do ano. Estamos aqui a ser egoístas de mais, estamos a pensar em nós e esquecemos de organizar o planeta para as futuras gerações. Precisamos de mudar o nosso comportamento.

O nosso indico que tanto refresca a areia branquinha com as suas águas mornas, precisa da nossa atenção, dos nossos abraços para que continue oferecendo-nos a brisa e o sorriso em cada raiar do sol. O brilho do Rovuma precisa do nosso amor para que continue a nos dar alegria por muito tempo. A melodia da música fornecida em cada manhã pela nossa flora, precisa do somatório de esforços, para a sua manutenção e continuidade. Vamos dizer todos não ao consumo do plástico, não as queimadas descontroladas, não ao abate descriminado de árvores, não a caça furtiva, mas sim a conservação da natureza, através do consumo ecológico, protecção de espécies em via de extinção e viver responsável.

Precisamos higienizar as nossas mentes para que tenham um comportamento ecológico. O descarte dos resíduos provenientes do consumo não deve consistir no despejo desorganizado, mas sim, na sua reciclagem ou reaproveitamento. Temos que ter um consumo responsável, sermos consumidores verdes ou ecológicos, consumidores com comportamento ambientalmente desejável, sermos eco-activos (consumidores que preferem sempre produtos ecológicos. Estes superam as barreiras do preço, e a sua maior satisfação deriva da qualidade ecológica do produto ou serviço).

As empresas precisam de equilibrar a tríade: satisfazer as necessidades dos seus consumidores; atingir os objectivos da organização com margens de lucros satisfatórias e; realizar as actividades com processos que gerem o mínimo impacto negativo no ecossistema. Enquanto que nós como consumidores, precisamos de ter atributos de consumidores verdes, manifestando sempre a nossa preocupação com o meio ambiente no nosso comportamento de compra, ou seja, devemos buscar produtos que sejam percebidos como amigos do meio ambiente. Para sermos consumidores ecológicos, o qualificativo ecológico deve passar a ser um atributo valorativo do produto no nosso processo de decisão de compra. Os produtos ecológicos desfazem-se do uso do material poluente e nocivo para o ambiente. Os produtos amigos da natureza são fiéis a natureza e não se revestem em embalagens que agridem o ecossistema. Proteger o planeta e criar o futuro das gerações vindouras. Save the planet. He is your only home!

Caros Munícipes de Quelimane,

Hoje, nos encontramos aqui para celebrarmos 12 anos de uma jornada singular, uma década e dois anos de compromisso inabalável com a cidade que amamos. Há 12 anos, iniciamos juntos um pacto de transformar Quelimane em um farol da modernidade, inclusão, hospitalidade e sustentabilidade. Hoje, olhamos para trás com gratidão pelos desafios que superamos e para frente com a esperança renovada.

Esta jornada não foi fácil, mas foi moldada com zelo, rigor e dedicação de todos nós. A nossa administração sempre foi inclusiva, unindo vereadores e directores de diferentes partidos. Trabalhamos lado a lado com empresários e a sociedade civil, buscando sempre as melhores abordagens para elevar Quelimane de um estado de negligência a uma cidade que reflecte o orgulho de seus cidadãos.

Lembram-se de como, em 2011, a nossa cidade estava afundada em desafios? Vivíamos lado a lado com os ratos, em uma porquice jamais vista. Mas, com determinação, transformamos esse cenário. Unimos esforços para dirigir a conclusão das valas de drenagem, um passo decisivo para impedir que as águas submergissem na nossa cidade. Quelimane, está situada abaixo da linha das águas do mar, enfrentava o constante risco de inundações. Mas, com a conclusão dessas valas, testemunhamos uma mudança expressiva.

Foi o prenúncio de uma era de grandes transformações. Quelimane emergiu de suas águas turbulentas para abraçar uma nova realidade, uma era onde os munícipes não precisam mais temer as inundações que assolavam os nossos bairros. Essa conquista não apenas protegeu os nossos lares, mas também sinalizou o início de uma nova jornada para uma cidade mais resiliente, pronta para enfrentar os desafios do século XXI.

Ao longo desses 12 anos, construímos pontes – não apenas as de concreto, mas também aquelas que unem corações e mentes em prol do bem comum. Juntos, ultrapassamos fronteiras partidárias, trabalhando para o benefício de todos os quelimaneses. Essa colaboração é a força que impulsionou o nosso progresso e nos permitiu alcançar marcos importantes

Celebramos não apenas o tempo que passou, mas também o futuro que está à nossa frente. Continuaremos a trabalhar incansavelmente para moldar Quelimane em uma cidade que reflecte o melhor de nós – uma cidade onde cada cidadão é valorizado, onde a inovação prospera e onde a sustentabilidade guia as nossas acções.

Que os próximos anos sejam tão promissores quanto os que celebramos hoje. Juntos, moldaremos o destino de Quelimane e continuaremos a fazer história.

Neste momento de reflexão e celebração, gostaria de destacar as realizações que transformaram a nossa cidade ao longo destes anos, tornando-a um lugar mais próspero, seguro e vibrante para os seus cerca de 300 mil habitantes.

Semáforos:
Em 2011, a visão da nossa administração para uma Cidade mais organizada e segura levou à instalação de semáforos em pontos estratégicos da cidade, facilitando a mobilidade e reduzindo o congestionamento do tráfego bem como os acidentes de viação.

Sanitários Públicos:
A implementação de sanitários públicos em toda a cidade desde a avenida Samora Machel, passando pelos mercados e pontos de grande aglomerado populacional na urbe foi o primeiro sinal que demos no capítulo da melhoraria das condições de higiene, garantindo o bem-estar de todos os cidadãos.

Estradas Pavimentadas e Asfaltadas:
O investimento na infra-estrutura viária, com estradas pavimentadas e asfaltadas, começando pelos bairros mais pobres e negligenciados não só proporcionou maior acessibilidade, mas também impulsionou o crescimento económico e a conectividade entre os bairros. Quem não se lembra que para um turista entrar em Zalala de carro, tinha de vir ao centro da cidade para encontrar uma estrada asfaltada, hoje não precisa chegar no centro, de qualquer bairro, pode passar, porque lá também tem estrada asfaltada.

Mercados Municipais:
Criamos mercados municipais modernos e que fomentam o comércio local, promovendo a sustentabilidade económica e garantindo uma oferta diversificada de produtos aos munícipes. Um dos exemplos mais recentes é a actual requalificação do mercado central que terá até creche para as mamãs com filhos pequenos descansaram enquanto elas praticam a sua actividade comercial.

Carro Funerário e Ambulâncias:
A aquisição de um carro funerário e ambulâncias reforçou a capacidade de resposta em situações de emergência, garantindo cuidados médicos adequados e dignidade em momentos difíceis. Quem aqui nunca testemunhou pessoalmente a eficiência das ambulâncias municipais que conseguem embrenhar nos bairros para buscar os nossos concidadãos enfermos até aos hospitais?

Reabilitação da Catedral Velha:
Estivemos sempre na linha da frente para reabilitação da Catedral Velha e que hoje ostenta o nome de Centro Cultural “Bons Sinais”, não apenas preservamos o nosso património cultural, mas também proporcionamos um espaço revitalizado para actividades culturais e intelectuais.

Bombeiros Municipais:
A criação dos Bombeiros Municipais elevou o nível de segurança da cidade, hoje temos uma resposta rápida a situações de incêndio e emergências.

Praça da Juventude e Praça da Paz:
As Praças da Juventude e da Paz se tornaram locais de encontro, lazer e celebração, que reflectem o compromisso do nosso governo com a promoção da harmonia e da cultura entre os cidadãos.

Aumento de Postos Administrativos:
O aumento de 5 para 7 postos administrativos descentralizou os serviços públicos, aproximando a administração municipal dos cidadãos e agilizando os processos burocráticos.

Como se pode depreender, cada iniciativa reflecte o nosso compromisso inabalável com o bem-estar dos munícipes de Quelimane e mostra que, quando trabalhamos juntos, podemos alcançar grandes resultados.

A nossa jornada está longe de terminar, e com o Programa de Adaptação das Cidades Costeiras em parceria com a USAID fizemos avanços na protecção do Mangal, o Movimento Quelimane Cidade Limpa que envolveu a abertura de valas de drenagem secundárias e terciárias e que muitos de nós aqui presentes estivemos envolvidos retirou Quelimane na rota de uma cidade com doenças de origem hídrica, o Orçamento Participativo, onde decidimos e por votação popular as prioridades dos nossos bairros, permitiu a construção de diversas infra-estruturas e o PERPU que financiou diversas iniciativas empreendedoras, é um, testemunho disso que vos falo.
Lembremo-nos de outras iniciativas implementadas com sucesso:
1. Escola Comunitária construída de raiz no bairro Ivagalane
2. Estradas pavimentadas e asfaltadas
3. Bibliotecas em todos os postos administrativos
4. Centros de informática nos postos administrativos
5. Ciclovias
6. Passadeiras
7. Latrinas melhoradas em Icidua
8. Casa do Direito e do Cidadão
9. Casa do Bairro em Icidua
10. Casas resilientes em Icidua
11. Palestras
12. Carnaval de Quelimane
13. Feira de Livros
14. Festival Municipal de Cultura
15. Fontenários em Icidua
16. Aquisição de viaturas para as vereações
17. Aquisição de contentores de lixo e viaturas para Emusa
18. Ginásio ao ar livre em Quelimane
19. Dois Autocarros de transporte
20. Parques Infantis

Hoje, celebramos não apenas as realizações tangíveis, mas também a força da unidade e da visão compartilhada que nos impulsiona para um futuro ainda mais brilhante. Parabéns, Quelimane, pelos 12 anos de progresso e prosperidade!

Senhoras e Senhores,

Em 2014, a cidade de Quelimane ganhou o prestigioso “Drivers of Change Government Award”. Esse prémio não apenas reconheceu a excelência na administração municipal, mas também destacou a capacidade de Quelimane sob a nossa liderança para catalisar mudanças notáveis. Essa conquista não foi apenas um feito local, mas um testemunho do impacto global da nossa visão transformadora.

Ao longo dos anos, a nossa administração consolidou o seu lugar entre os líderes municipais de destaque em todo o mundo. Neste 2023, fomos nomeados como um dos nove finalistas para o cobiçado prémio mundial, World Mayor 2023, um testemunho inquestionável da nossa dedicação à inovação, sustentabilidade e equidade na governança municipal.

Recentemente, em Abril de 2023, a Universidade da Pensilvânia nos Estados Unidos reconheceu o nosso compromisso com o desenvolvimento sustentável e equitativo, concedendo-nos o Prémio de Liderança Urbana Lawrence C. Nussdorf. Um reconhecimento internacional da excelência na liderança municipal, que coloca Quelimane como um farol de boas práticas em todo o mundo.

Em 2022, a Organização das Nações Unidas também prestou homenagem a cidade de Quelimane, concedendo-lhe o Prémio Anual. O mecanismo de apoio à sociedade civil também elogiou a nossa administração, reconhecendo-a como transparente e inclusiva. Isso não é apenas uma conquista burocrática, mas um testemunho tangível da abordagem participativa e aberta que caracteriza a nossa governação.

Neste momento de celebração, devemos reconhecer não apenas os prémios conquistados, mas também os inúmeros benefícios que essas realizações trouxeram para os cidadãos de Quelimane. O desenvolvimento sustentável, a equidade e a transparência não são apenas palavras vazias, mas princípios fundamentais que guiaram cada decisão e acção da nossa administração .

Hoje, vamos erguer as nossas taças para brindar não apenas aos prémios conquistados, mas ao impacto duradouro que a nossa liderança teve na nossa amada cidade. Que os próximos anos sejam marcados por ainda mais realizações, inovação e prosperidade para Quelimane e seus cidadãos.

Reúno-me diante de vocês também com um coração pesado, mergulhado na tristeza e na indignação diante das perdas que enfrentamos como sociedade. Hoje, peço a todos que compartilhem um momento de reflexão, de solidariedade, e de silêncio, em homenagem a Max-Love e inúmeros outros jovens cujas vozes foram silenciadas, cujas vidas foram interrompidas brutalmente, e cujas famílias foram marcadas pela dor da perda, por este regime que nos sufoca.

Somos chamados a recordar não apenas o Max-Love, mas também os presos políticos que ao longo dos últimos doze anos sofreram injustiças deste regime ditatorial. Assim como Martin Luther King Jr. inspirou uma geração a lutar pela justiça e pelos direitos civis, hoje recordamos a sua mensagem de paz, igualdade e liberdade.

Assistimos a um período em que as vozes dissidentes foram caladas, onde a liberdade de expressão foi restringida e onde a justiça se tornou selectiva. Max-Love, foi uma vítima dessa realidade. Seu sacrifício não deve ser em vão.

Em homenagem a Max-Love e a todos os presos políticos, como o Raul Novite e Paulo Vahanle, que enfrentaram perseguição, e outros que enfrentam tortura e perda das suas vidas, peço a todos que observem um minuto de silêncio. Este momento não é apenas para lamentar, mas para fortalecer o nosso compromisso com os valores que nos tornam humanos: a dignidade, a liberdade e a justiça.

MINUTO DE SILÊNCIO

 

30 de Dezembro de 2023

 

 

Viver no “primeiro mundo” também significa testemunhar nutricionistas a transmitirem o que é natural e divino, como se fosse uma excentricidade.

Pregam que devamos comer animais que se tenham alimentado de capim. Reiteram “capim”, de forma quase que alarmante, dando a entender que os animais que andamos a comer, alimentam-se de outras coisas.

O sangue que vemos no frango, é claramente decorativo – só se vê um pouquinho na superfície (em frango cortado). Dá para questionar se se usam técnicas de sugação de sangue, antes do frango chegar às prateleiras.

Já o bife, esse pode ser produzido em laboratórios. Façam Google e aprenderão.

Penso que posso afirmar que não existem patas (frescas) de frango à venda, em Aberdeen (Escócia). Noutro dia comprei umas congeladas, importadas da China e, por ironia do destino (ou da partida), estavam “tocadas”. Dizer que entrei em depressão, is an understatement!

Há quem se mude para o “terceiro mundo” em busca de normalizar comer animais que comam capim. Existem vários testemunhos, em várias plataformas.

Sobre esta fraude toda que vivemos aqui no Ocidente, nenhum poderoso está preocupado. Qualquer dia não teremos uma vaca real sequer, para contar a História.

“Terceiro mundo”, salve o mundo! Cuidado com os avanços tecnológicos contra o que é divino.

Querem destruir o mundo campesino (destruindo não apenas a agricultura orgânica, como também o modo de vida campesino, ao tornarem todo o ambiente em ubano, onde o laboratório cuide da nossa dieta alimentar, ao pormenor), diminuir a utilidade do Homem de sangue verdadeiro…

O número de descontentes, dentre os cidadãos comuns que pensam, vai crescendo no Ocidente. Alguns até estão a criar verdadeiros enclaves no “terceiro mundo”, onde estão a criar animais que comem capim, para o consumo de tais enclaves. Estão também a estabelecer regras diferentes (que se aproximam ao mais orgânico/normal/divino) das que deixaram nos seus tão eficientes países. E não, este grupo de pessoas não é apenas composto por “hippies”.

Por favor, não imitem tudo o que o Ocidente faz. Estamos a viver como robôs aqui, sob o ponto de vista alimentar.

Com uma lágrima no canto do olho peço-vos para que saboreiem patas de frango e cabeça de cabrito (água e sal) por mim!

Meu Povo, festas felizes!

Agora que o ano está mesmo prestes a viajar de forma eterna, faz sentido, as pessoas orientadas por uma consciência social, estarem preocupadas em fazer análise ou balanço do seu primeiro e maior património: a personalidade. Apesar de o conceito de personalidade ser bastante amplo, ele aglutina termos como traços sociais, status, qualidade, atributos e outras variáveis que influenciam o comportamento humano, como estilo de vida, grupos sociais e outros.

É verdade que personalidade é um património da vida constituído por variáveis acima descrita, mas o património da personalidade é construído por cada indivíduo como ser social ao longo da sua vida, através de sentimentos e experiências interiorizadas, que depois se vão reflectir na maturidade psicológica do indivíduo. É verdade, também, que as pessoas nas épocas festivas do ano ficam mais preocupadas em fazer análise da composição do seu património (no sentido contabilístico) e pouco se importam em fazer o balanço do “património da personalidade”.

Uma das coisas interessantes que o balanço do “património da personalidade” tem é que ele tem menos riscos de ser viciado, isto porque é elaborado e analisado pelo próprio dono da personalidade e serve muito mais para reflexões, correcções e melhorias futuras da personalidade do indivíduo. O balanço poderá revelar aspectos do ser do indivíduo, indicar os caminhos que devem ser trilhados em certos sectores da vida, o que deve ser trabalhado no potencial latente do indivíduo, entre outros aspectos.

Por estarmos no campo que trata da personalidade humana, é importante percebermos os aspectos numerológicos que muitas vezes influenciam na formação da personalidade humana e no “património da personalidade”. A numerologia ensina-nos que as vibrações que acontecem no universo, no dia e momento do nascimento de um indivíduo, têm influência na formação da personalidade e do carácter do indivíduo. Os valores numerológicos como o dia do nascimento, ano de nascimento e hora do nascimento dum indivíduo, conforme sublinham os numerólogos, definem o caminho de destino da pessoa dentro do plano universal e este caminho é influenciado muitas vezes pela vibração terrestre no momento de nascimento da pessoa. Por isso, a diferença de segundos no momento do nascimento entre duas pessoas pode criar diferenças em certos aspectos na formação da personalidade desses indivíduos, isto por terem vindo ao mundo em momentos em que as vibrações terrestres eram diferentes, mesmo que a diferença seja ligeira.

As vibrações é que orientam a pessoa por toda vida e algumas vezes mostram definições de personalidades que coincidem nas pessoas que nascem no mesmo dia. Só para elucidar, os numerólogos apresentam as indicações de como as vibrações de cada dia do mês podem influenciar na personalidade do indivíduo. De forma propositada, podemos usar o dia 29 de cada mês como marco para percebermos o significado do nascer neste dia e como as vibrações influenciam na personalidade da pessoa. Os resultados dos numerólogos dizem que o dia 29 é um dia de vibrações intensas, em que nascem pessoas marcantes. Tem como características prováveis positivas e decisivas, que podem servir de exemplo de vida para os outros, são líderes, intuitivas e idealistas, generosas e gostam de ajudar os outros e são capazes de grandes realizações. Apresentam características negativas como: tensas e dramáticas, inclinados à melancolia e as suas emoções são muito instáveis.

A personalidade do indivíduo, pode ter influência no crescimento profissional do indivíduo, no sucesso político, na sabedoria dos filhos que dele brotam como ramo de oliveira. A personalidade influencia também a liderança com classe e sabedoria que um indivíduo exerce numa organização. Portanto, mais do que fazer o balanço que reflecte a nossa situação económica e financeira para termos a imagem do nosso património, é de extrema importância fazer o balanço da nossa personalidade para termos a imagem real do nosso Eu como seres criados a imagem de Deus. A nossa prosperidade no ano prestes a chegar pode depender das ilações extraídas no nosso balanço da personalidade.

A Kika esqueceu-se completamente de ser Eldevina. Neste sábado à noite, apresentou-se no palco da Sala Grande do Franco-Moçambicano, em Maputo, e, naturalmente, partilhou com o público o que há anos está bem enraizado no seu ADN. Com um ar alegre, a maestrina recebeu vários aplausos do público e lá reagiu com a aquela destreza de artista que sabe o que está a fazer.

Momentos antes, entretanto, Estevão Chissano tinha lá estado na função de maestro. Cumpriu o seu papel até quando o programa permitiu e ainda foi o protagonista de uma bela homenagem a Edilson da Conceição (antigo aluno do Xiquitsi), quando o Coro e a Orquestra Xiquitsi interpretou o tema “Tsama”. Mas como fazer ficar alguém que partiu, de forma prematura, para a eterna viagem?

Depois de “Tsama”, do ronga “senta” ou “fica” em português, Chissano deixou a batuta para aquela que há 10 anos fundou o projecto Xiquitsi.

Destemida, como sempre, até porque a música clássica faz parte da sua personalidade desde muito nova, Kika Materula assumiu a função de maestrina numa fresca noite de Dezembro, em que os astros conspiraram a favor da harmonia musical, entre o clássico e o popular. Há-de ser por isso que o Xiquitsi deu tanto sentido a “Liquirikita” e “Kinachukuro”, de Ali Faque, um músico de outra época, no entanto, ainda actual na memória desta geração…

Na composição de Ali Faque, o macua foi geralmente interpretado num sotaque ronga ou changanizado no Franco. Por isso mesmo, ao invés de “Kinachukuro”, só se ouvia “kina xkuro”, que, numa língua que não existe, quer dizer “dança e canta”.

Bem, a parte da dança não se viu lá grande coisa. Como se sabe, os artistas da música clássica trabalham mais o canto do que o movimento corporal. O mesmo se pode dizer de Ali Faque. O músico cantou e tocou a sua guitarra, mas, dançar que é bom, nada. Claro, nem se exigiu nada além disso. O que importa mesmo é que Ali Faque levou o auditório a uma viagem pelo tempo, em que muitos de nós tínhamos de ligar a televisão pública para podermos ver música de qualidade. Agora as coisas mudaram. Os megas levam-nos até onde não deviam. Mas isso não vem ao caso. Até porque vale a pena falar de Aniano Tamele.

O filho de Zeburani voltou a apresentar-se no Franco. Desta vez, à boleia do Xiquitsi. O músico apresentou-se no palco como que meio envergonhado. Alguns intérpretes são assim mesmo, aparentemente tímidos, quando são humanos, e absolutamente audazes, quando transcendem para dimensão artística. Foi o que se verificou com Aniano Tamele. No entanto, mal segurou o microfone, a delicadeza vocal ecoou aos quatro cantos da Sala Grande e, com isso, até quem não o conhecia, cantou “Nkosikaszi” e o afamado “Tsunela Papai”, uma homenagem ao mostro Zeburani e a todos os pais que têm algum juízo na cabeça.

Com Ali Faque e Aniano Tamele, a noite já estava resolvida. Mas havia muito mais, inclusive um KO que violou todas as regras protocolares. Antes disso, entretanto, o Xiquitsi interpretou o clássico “Dry your tears Africa” – John Williams, numa espécie de interlúdio para o que se seguiria. Na verdade, o assalto à batuta que derrubaria Kika Materula estava prestes a acontecer, sem que a oboísta pudesse prever.

Quando a interpretação do tema “Dry your tears Africa” terminou, Kika Materula apenas disse ao público: “Até já”. E lá foi ao backstage buscar Ubakka. Voltaram de mãos dadas. O cantor todo encabulado, quase sem saber como reagir àqueles bons tratos. Mas é fácil. No caso em que um cantor não sabe como reagir, dá-se um microfone e tudo resolve-se, como se viu.

Ubakka, agora com uns quilitos amais, relativamente ao ano que lançou o seu primeiro EP, lembrou que há uma música bonita nesse disco: “Khoma”, um hino ao amor e aos casais. De repente, na Sala Grande, os rapazes e as raparigas começaram a “khomar-se”, entre abraços e beijinhos. A música clássica, nessa mistura com a popular, estava a aproximar pessoas numa viagem que parecia não ter fim.

Foi então que, já na terceira apresentação musical, Ubakka cantou “Minha ostentação”. A maestrina, nessa altura, claro, era Kika Materula. No meio daquela emoção toda, Ubakka, que sem o Xiquitsi, provavelmente, nunca cantaria com coro e orquestra, viu diante de si uma grande oportunidade. Realizado o sonho de cantar com coro e orquestra, percebeu que a noite poderia ser ainda memorável. “ – E que tal se eu desse um KO na ministra, quer dizer, na maestrina do Xiquitsi?”.

Sem que ninguém percebesse qualquer intenção, Ubakka avançou para sua investida final. Para quem a ostentação era a mulher, os filhos e comida na mesa, exactamente naquele instante, passou a ser a batuta. Então o cantor aproximou-se sorrateiramente à maestrina. Sabendo que ela não iria resistir, tomou a batuta para si e ascendeu para o Olimpo. A partir daquele momento, os 70 membros do Coro e Orquestra Xiquitsi, bem como a banda convidada, passaram a ser comandados por Ubakka. Kika Materula foi destronada na derradeira noite da décima Temporada de Música Clássica. A oboísta nem sequer percebeu como aquilo aconteceu. Mas foi suficientemente ágil para decidir abandonar o palco onde se trava a luta de uma vida. Logo se viu, tinha sido despromovida para espectadora.

Com aquele KO dado a Kika Materula, o Xiquitsi ficou entregue à sorte.

– E agora, quem vai comandar o barco? – Perguntou uma espectadora.

– Esse é de igreja. Vai maestrar com engenharia! – Respondeu a outra.

– Maestrar?! Com engenharia?! – Perguntou um tipo com cara de mal disposto, que até aí tentava pedir o contacto telefónico a uma das míudas. Só que o ensaio foi muito mal feito e o pobre coitado ficou completamente ignorado, sem nenhum Plano B para voltar ao assalto.
“Quem não tem cão, caça com gato”. Diz o ditado. O problema é que o nosso amigo de gato não tem nada. Então, a reacção das meninas foi compreensível. Mas não se perca, caro leitor, que este texto não é sobre meninas e tentativas frustradas…

Voltando ao que interessa, Ubakka cumpriu bem a missão que se propôs. Colocou o coro a cantar “Minha ostentação”, quando convinha, e a orquestra a tocar, quando oportuno. O miúdo é bom e fez aquilo aparentemente de improviso. Tudo fácil. Tão fácil que, quando notou que liderar 70 pessoas no palco soava a pouco, voltou-se para o público. Aí, sim, a ostentação do cantor passou a ser colocar aquelas centenas de pessoas desafinadas a interpretar os coros.

A batuta não lhe pesou em nada. Pelo contrário, tirou tão bem a Kika de cena que a oboísta se habituou a bater palmas. Mas quem tem Ubakka conta com um moço educado. Quando o artista percebeu que tinha realizado o sonho de ser maestro do Xiquitsi e do público, devolveu a batuta a Kina Materula.

A oboísta recebeu o objecto sorrindo, como se dissesse “Agora deves ir até o fim”. Ubakka nem sequer quis interpretar o sorriso. Retirou-se alegre do palco. Sol de pouca dura. No instante seguinte, Kika Materula voltou a chamar o cantor para terminar com aquela coisa da ostentação. Ali Faque e Aniano Tamele seguiram o miúdo e, sempre que possível, todos improvisaram uns passos de dança. Nessa altura, já ninguém se lembrava daquele KO malandro que em muito ajudou a colorir a derradeira noite da décima Temporada de Música Clássica.

O livro faz o sentido e o sentido faz a vida.

In O prazer do texto, de Roland Barthes.

 

Ao longo destes anos que me dedico ao ensaio, tenho a felicidade de contar com a confiança da Fundação Fernando Leite Couto para apresentar livros e/ou moderar conversas com autores. Os nomes são vários, mas ficam aqui alguns exemplos: Luís Carlos Patraquim, Carlos Reis, Mia Couto, Álvaro Carmo Vaz e Virgília Ferrão. Para mim, que até antes de ontem nem sequer ousava sonhar com estes momentos tão envolventes, tem sido uma experiência agradável poder cruzar percepções e ainda deixar-me levar pelos universos infinitos proporcionados pelos artistas da palavra.

Apesar de reconhecer nos convites da Fundação um privilégio, entretanto, sinto que vêm sempre carregados de muita responsabilização, pois ser uma figura intermediária entre os autores e os leitores exige de nós o que, geralmente, não conseguimos dar na plenitude. E hoje, em particular, a minha missão é ainda complicada, porque o meu amigo Celso Muianga ligou-me há dias a “intimar-me” para apresentar O descalço [dos] murmúrios, de Gibson João, e Incêndios à margem do sono, de Óscar Fanheiro. Se apresentar um livro já é um assunto complexo, imaginem dois?

Em todo o caso, aceitei o desafio e quero agradecer à Fundação Fernando Leite Couto por estas possibilidades que me dá de estar e conviver com autores.

Ainda hoje, pela tarde, aconteceu-me uma coisa muito bonita. O Gibson João, que se estreia em livro, pela primeira vez, assinou um autógrafo. Quis o destino que eu fosse o escolhido neste contexto em que o poeta está a iniciar o seu percurso literário. Desde hoje, tanto faço parte da sua história quanto ele faz parte da minha. Talvez, por isso, o nosso poeta premiou-me com as seguintes palavras no autógrafo que me concedeu: “Para o José dos Remédios, com carinho, escute os meus murmúrios”.

A seguir, proponho-me partilhar convosco o que escutei…

***

O descalço [dos] murmúrios, de Gibson João, e Incêndios à margem do sono, de Óscar Fanheiro, são obras laureadas (ex-aequo) na quinta edição do Prémio Literário Fernando Leite Couto. Com muita satisfação, eu integrei o júri que, com muita naturalidade, decidiu premiar os dois originais. Não houve grandes dúvidas em relação a essa decisão porque, desde o princípio, sentimos que estávamos diante do que felizmente a literatura moçambicana nos pode proporcionar em termos de qualidade poética. Em relação aos outros livros, os “Murmúrios” e os “Incêndios” demarcaram-se com muita notoriedade. Conforme se lê na acta do júri, tal é a complementaridade que, alguns de nós, julgamos que eram originais do mesmo autor. Mas vamos por partes.

Em O prazer do texto, Roland Barthes afirma que “O livro faz o sentido e o sentido faz a vida”. Se concordarmos com esta afirmação, facilmente podemos deduzir que a cada leitura de um livro desenvolvemos uma forma diferente de pensar o mundo. E se o livro em causa for muito bom, como é o caso de O descalço [dos] murmúrios, o sentido é algo múltiplo e cheio de perspectivas interiores e exteriores. Quer dizer, nesta sua estreia, Gibson João dá-nos alguns pontos de fuga, os quais são decisivos para reflectirmos sobre a relevância dos efeitos visuais da palavra.

Em Gibson João, a construção do sentido, na verdade, é um evento árduo e contrastivo. Num momento, a poesia é a circunstância e, no outro, é imensidão. Nesse intervalo, flutuamos como um pêndulo à procura de direcção ou de dois pólos onde morar simultaneamente. E o melhor disso tudo é que podemos contrariar as leis da Física e ocuparmos, paralelamente, dois espaços no mesmo instante em que diferentes sentimentos nos ocorrem. Quer dizer, não somos a mesma vida quando lemos este livro que nos surpreende pela sua acutilância e autenticidade.

O descalço [dos] murmúrios é um exercício sobre o lugar que habitamos e que nos habita por associação. Nesse aspecto, facilmente identificamos uma relação intertextual com Os ângulos da casa, de Hirondina Joshua, ou com “Inventário de imóveis e jacentes”, de Luís Bernardo Honwana. Afinal, o espaço doméstico é o principal destino de uma partida iminente numa permanência constante. O poema “O bolor da casa”, que agora será bem lido pela Matilde Uelissene, quase imita a interpretação que estou a tentar expressar nesta apresentação:

 

a casa acorda no polo mais vertiginoso do meu sonho

com as suas ramelas obscuras

com os hematomas vivos do encéfalo e

com o bolbo alucinado pela vida

 

a casa sonha chuva que morre na cobertura

que silencia a sede dos campos herbívoros

como a mãe, pelo vácuo elementar das mudas

fruteiras da casa

 

a noite morreu, na calefacção negra da epiderme

da inocência. O resto, é medo e treva fria

por cima

como o sofá sombrio do pai

 

eu digo que a casa é um casulo de infortúnios –

um celeiro de gritos,

de monólogos degenerativos como o dos móveis

como o de enfermidades entre enfermidades

 

é com isso que:

– a dor argumenta lágrimas (p. 25).

 

Enquanto em Nós matamos o cão-tinhoso temos um “Inventário de imóveis e jacentes”, neste O descalço [dos] murmúrios, o inventário é de angústias. Pois, a casa simboliza um espaço crítico, tornando os sujeitos de enunciação elegíacos. Aliás, a elegia aproxima o tom poético de Gibson João a de autores como Luís Carlos Patraquim ou Sangare Okapi. É na elegia de Gibson João onde morre o silêncio, onde as vozes se rebelam contra os objectos, as emoções, os sentimentos e as definições previsivelmente felizes. A elegia corrói o âmago do sujeito e, nessa degeneração do corpo e da alma, a dor e o espanto se confrontam em prol de uma poesia incisiva.

Neste O descalço [dos] murmúrios, pouco importa a mancha gráfica dos poemas que perfazem 75 páginas, o desassossego, inclusivamente naquele carácter whiteano, atravessa todo o livro. A questão que se coloca é: porquê os sujeitos poéticos de Gibson João são desassossegados e angustiados?

À pergunta retórica aqui colocada, vou responder mais à frente. Por enquanto, convido-vos a segurarem este Incêndios à margem do sono sem temerem queimar.

Quando li o original de Óscar Fanheiro, ainda projecto, lembrei-me imediatamente d’O livro da dor, como sabem, da autoria de João Albasini, publicado a título póstumo em 1925. Quer isto dizer que o nosso poeta conseguiu, inconscientemente, fazer-me recuar 100 anos da nossa história para do séc. XX, digamos assim, resgatar uma das vozes importantes da cultura moçambicana. Particularmente, gosto quando os livros me permitem constatar diálogos com o tempo, com o espaço e com tantas outras dimensões da nossa existência colectiva. Isso torna a lembrança possível e daí a memória pode rejuvenescer com certa amabilidade.

Em primeiro lugar, lembrei-me do célebre O livro da dor devido ao monólogo como registo de proa nesta navegação pelo mar das letras. Do mesmo modo que naquele livro as cartas de Albasini são dirigidas a um amor confesso, porém não correspondido, um cenário igualzinho se verifica em Incêndios à margem do sono. No entanto, aqui o amor não é uma disputa de afectos, mas uma impossibilidade por causa da eterna partida… Sempre prematura.

Segundo me disse Óscar Fanheiro, quando conversamos mais cedo, este livro também é uma homenagem à sua irmã, que a perdeu para a morte de uma forma ingrata. A morte sempre é uma ingratidão e isso piora porque nunca aprendermos a lidar com esse estado final que nos atormenta. Então, como se pretendesse cruzar a fronteira de uma Missão impossível, superando até todos os recordes de Tom Cruise, Fanheiro escreve cartas em forma de poemas em verso e em prosa poética para as enviar ao além, onde todos nós temos ou teremos uma musa presa. No inferno ou numa cela de Zeus.

Dito de outro modo, Incêndios à margem do sono é uma tentativa de chegar ao infinito, de tocar o intangível e de buscar respostas onde apenas sobram perguntas. Num tom rebelde, amuado ou contrariado, os sujeitos do poema se exprimem como se a lógica das coisas dependesse da presença de quem está ausente. Consequentemente, a resignação, o inconformismo e a angústia (uma vez mais a angústia) formam uma espécie de tríade inabalável para a tempestade perfeita. E com isso se gera na atmosfera da poesia esse efeito monólogo evidente. Tomemos como exemplo o texto “Blackout”, na leitura de Matilde Uelissene:

 

São três da madrugada e preparas-te para mais um black-out,

mas antes visitas a cela de Zeus

o lençol em que as lágrimas se precipitam,

visto que já não se pode suportar a letargia das manhãs,

sobre os molares da alma.

 

E, mesmo assim, carregas contigo a raiva do mundo,

o desejo sanguinário de resolver a pau as coisas com Deus,

e, p’ra isso, tens no silêncio a tua secreta arma

– o poço fundo onde invocar a ruina interior desses verbos celestiais –

a eterna magia de colocar o medo a vigiar

a memória polvorenta dessas mãos agoniadas

e a casa onde os ventos conduzem os olhos

para o fim dos tempos, repito, para o fim dos tempos,

ou para o beco onde o caos de todos

os (corpos e) nomes se anuncia:

Agosto, Agosto, Agosto.

Que rufem as nuvens no inferno das nossas horas (p. 15).

 

Neste poema, podemos tomar “black-out” e “cela de Zeus” como expressões que incitam a revolta contra a morte e contra o abismo. São apenas dois exemplos do que faz do Incêndios à margem do sono um livro sobre a densidade do silêncio e da noite. Nesse aspecto, claro está, Óscar Fanheiro faz soar a velha constatação de Gérard Genette, quando firma que “A valorização poética da noite é quase sempre sentida como reacção, como contra valorização”.

Ao trabalhar a noite, com efeito, Óscar Fanheiro investe numa linguagem dura, descomprometida com a delicadeza. Sem medir os versos e o tamanho da sua prosa poética, os sujeitos textuais questionam, confrontam e inquietam-se sem muita moderação. Antes pelo contrário, são impulsivos e irreverentes porque, aparentemente, perderam mais do que ainda podem ganhar. Portanto, Incêndios à margem do sono é um longo poema dividido em partes. Cada parte é um suspiro, um choque e um drama que não cabe na singularidade semântica de uma língua. Logo, o que não se consegue expressar em português, as palavras inglesas aparecem num registo denso, mesmo à semelhança da poesia de Mbate Pedro e de Álvaro Fausto Taruma.

Resumindo, o que estou a tentar dizer é o seguinte: a beleza da escrita de Óscar Fanheiro encontra-se precisamente na liberdade da expressão poética, nessa imprevisibilidade malandra a ameaçar o caótico.  A questão que podemos colocar é: porquê os sujeitos poéticos de Óscar Fanheiro são desassossegados e angustiados?

Bem, na Crónica dos anos da peste I, Eugénio Lisboa sugere que José Craveirinha é um poeta das suas próprias circunstâncias. Quando penso nessa ideia, concluo que boa parte da resposta à pergunta sobre a razão do desassossego e da angústia em O descalço [dos] murmúrios e em Incêndios à margem do sono tem a ver com a impossibilidade de Gibson João e Óscar Fanheiro desligarem-se do seu mundo interior e da vida à volta. Os poetas absorveram, com a poesia, as instabilidades de ordem socioeconómica e política de Moçambique. Os autores sentem a nuvem carregada de trevas, não escapam às crises nacionais, desde o que se passa em Cabo Delgado à fome e à incerteza que se repete em tantas outras províncias.

Os sujeitos poéticos de O descalço [dos] murmúrios e em Incêndios à margem do sono são feitos de desassossego e angústias, igualmente, porque o país não está bem. Como pode estar, se há gente a morrer sem saber porquê e não ter o que comer? Como podem os poetas escreverem sobre flores e borboletas se a sua alma é afectada pelas suas dores e inerentes àqueles que morrem à busca da esperança?

A essa pergunta, não vou responder. Mas, antes de terminar, deixo cá ficar uma sugestão aos meus amigos Gibson e Óscar. Na verdade, a minha sugestão é apropriação de um verso da música “Não espero o sol”, da cantora brasileira Becca Perret: “Não esperem o sol para a felicidade acontecer”. Claro, vocês não têm nada que seguir esta minha sugestão, porque, a escreverem assim, a felicidade é uma certeza.

 

*Texto escrito de cor na sequência da apresentação dos livros O descalço [dos] murmúrios, de Gibson João, e Incêndios à margem do sono, de Óscar Fanheiro, no dia 30 de Agosto de 2023, na Fundação Fernando Leite Couto, Cidade de Maputo.

 

Torna-se inadiável fazer a discussão da ‘‘Eticidade’’ nos dias em que vivemos, onde o bem e a verdade são desprezados em cada canto do mundo. Pensar em afirmar princípios e valores no seio do cidadão que está em processo lento de construção deve ser o desafio das sociedades. Viabilizar a ideia de conservar a dignidade durante a temporada da vida, parece não estar a importar no seio de muitas sociedades. Parece que estarmos a viver num mundo em que o louco escondido em cada ser humano e superior ao lúcido, como firma a psicologia, “cada ser humano tem um louco escondido dentro de si”. Pensar na dimensão ética durante o nosso trajecto de vida já não faz parte do pensar de muitos viventes, porque a dimensão económica sobrepôs-se à dimensão ética. Articular a dimensão ética à dimensão económica ficou longe de ser do ser humano.

Hoje as sociedades pouco discutem o pensar no valor da ‘Eticidade’ para o desenvolvimento das sociedades. O pensar no valor da ética na competência profissional foi esquecido. A competência sem ética afasta o saber que reproduz a reflexividade dum sistema social. Esquecemos que a competência e habilidades técnicas podem não influenciar de forma positiva nos resultados esperados, quando a dimensão ética não estiver presente em todos momentos da manifestação da competência. O vigor profissional pode não ter um brilho quando, não for acompanhado pela ‘Eticidade’.

O ser consciente do cidadão em contribuir na formação duma sociedade ética foi consumido pela força superior do querer pôr a dimensão ética como a última de todas dimensões. O ethos social, fez desaparecer o olhar sensível, e deu lugar o olhar sarcástico ao próximo. Perdeu-se a arte de desenhar a vida com as letras do bem, da razão e da verdade. O mundo esqueceu que a mente humana ė a parte do intelecto infinito de Deus, como refere Spinoza. Muitos tem a narrativa de construir o mal, poucos pensam na fórmula que cria um equilíbrio social. A ausência da aplicação ética da nossa experiência de vida na construção de uma sociedade mais humana, vê-se na vontade que as pessoas têm de viver alheias ao sofrimento do outro. Poucos lançam a semente da sabedoria no coração pobre para não fortalecer a mente com o poder critico ou saber infinito. Vivemos em um mundo do egoísmo total, onde poucos doam o amor e afecto, mas muitos oferecem o sorriso de um bom lobo. Um mundo que sabe muito dividir decepções, mas que perdeu a aritmética de viver as vitórias e emoções com o próximo. Procurar viver com dignidade, deixou de ser interesse de muitos. Os valores morais vão desaparecendo rapidamente, sem que haja formação de correntes que evidenciem os princípios éticos da dignidade humana. Alicerçar a conduta moral na plena consciência responsável e fugir do vazio da ignorância do bem, como afirma Platão (1954) é fundamental para quem precisa de levar a vida com dignidade. Para Platão, as ideias existem apenas quando são percebidas pela razão e, o bem ė um imperativo moral. Conhecer a verdade ética torna o mundo melhor.

 

Por Alexander Surikov,
Embaixador da Federação da Rússia
na República de Moçambique

No dia 21 de Novembro na Ucrânia alguns ainda celebram o Dia da Dignidade e da Liberdade, mas com caras tristes. Após os acontecimentos iniciados nesta data em 2013, o país mergulhou numa tragédia histórica (com perda de ambos destes símbolos) para si e preocupação dos seus vizinhos, tragédia que continua estremecendo muitos outros povos do mundo. O que se passou então? – O Presidente ucraniano, Viktor Yanukovych, no seu último ano de mandato adiou a assinatura do acordo de associação com a EU, cujo preço foi considerado exorbitante para o país. A seguir, uma manifestação de protesto orquestrada por embaixadas dos países ocidentais na praça de Maidan em Kiev a favor da integração europeia se transformou num confronto prolongado e logo conduziu a uma profunda crise política, provocou uma cadeia de acontecimentos que até hoje estão a abalar a Europa e todo o mundo.

Três meses depois, num contexto de motins em massa na capital ucraniana, com disparos de provocadores que custaram a vida a várias dezenas de pessoas, surgiu uma chance de voltar à vida pacífica. O então Presidente e os líderes da oposição, com a mediação de representantes da União Europeia e da Rússia assinaram o acordo que previa a realização de eleições presidenciais antecipadas e a formação de um “governo de confiança nacional”, bem como a retirada das forças policiais do centro de Kiev, o fim da violência e a entrega de armas pela oposição. No entanto, esta chave para a resolução do grave conflito interno foi deitada fora – as disposições do documento tornaram-se apenas um papelzinho amossado pelos protestantes que em seguida ocuparam todos os órgãos de poder.

As primeiras acções e declarações das autoridades que chegaram a Kiev através do golpe de Estado, para o qual, de acordo com a Subsecretária de Estado Victoria Nuland, os Estados Unidos tinham atribuído 5 mil milhões de dólares, desde princípio reflectiram claramente os seus instintos russofóbicos e racistas. Quase de imediato, a língua russa foi privada do estatuto oficial. Depois, foi anunciada uma “marcha” para a Crimeia para expulsar todos os russos. O novo governo provou a sua total afinidade espiritual com o nazismo: elogiou os heróis que tinham colaborado com Hitler nos crimes de extermínio – o Holocausto e condenados no Tribunal de Nuremberga e declarou feriado as datas de criação de estruturas anti-humanas (“SS Galicia” e outras unidades do Reich de Hitler). De que “liberdade” gostam de falam os dirigentes ucranianos com qualquer oposição ao regime cortada de imediato pela raiz e os média independentes fechados…

Nem a Crimeia nem as regiões do leste da Ucrânia historicamente russas aceitaram tais mudanças radicais e recusaram-se a cumprir quaisquer instruções das novas autoridades anticonstitucionais. Como consequência, os golpistas no poder em Kiev desencadearam uma guerra contra as regiões “rebeldes”. A fim de parar uma verdadeira carnificina em 2015 foram assinados os acordos de Minsk, que previam outorgar a estes territórios o estatuto da autonomia etnolinguística dentro da Ucrânia. Mais uma vez surgiu uma chance para prevenir uma tragédia com consequências globais, mas foi sabotada propositadamente pelas autoridades de Kiev e os “garantes” ocidentais. O ex-chanceler alemã Ângela Merkel e o ex-presidente francês François Hollande (os que assinaram os acordos de Minsk) recentemente confessaram que havia um plano para ganhar tempo para que a Ucrânia preparasse melhor para um confronto com a Rússia. O país foi literalmente enchido com armas, conselheiros da NATO e suas instalações militares e medico-biológicas no interesse do Pentágono.

A máquina militar da Aliança do Atlântico do Norte como bulldozer aproximava-se das fronteiras da Rússia. No final de 2021, os Estados Unidos e a NATO rejeitaram categoricamente as propostas russas de acordo mútuo sobre garantias de segurança para todos numa base não-alinhada, o que significa uma recusa de “arrastar” a Ucrânia para a Aliança. Não foi a nossa exigência de surpresa, mas uma recordação da promessa dada há 30 anos de que a NATO não se moveria nem um centímetro para leste após a reunificação alemã. Durante o resto dos 30 anos, continuaram a mentir-nos que não tinham qualquer intenção de transformar a Aliança do Atlântico Norte num bloco agressivo. Tudo em vão: a NATO expandiu-se cinco vezes em direcção às fronteiras russas.

Assim, foram criadas ameaças militares directas à segurança da Rússia no território ucraniano. As regiões, que deveriam receber um estatuto especial como parte de uma Ucrânia unida (em primeiro lugar, o direito de usar a sua própria língua junto com o ucraniano), passaram a ser sujeitos a bombardeamentos repetidamente intensificados. Durante oito anos, cada dia dezenas de pessoas morriam: no total, mais de 14 mil, na sua maioria – civis. A posição dos “parceiros” ocidentais que fechavam os olhos ao extermínio dos russofalantes e preparações de um ataque ucraniano iminente definitivo contra Donbass (com a sorte de Palestina) não nos deixou outra alternativa senão lançar uma Operação militar especial. A finalidade é clara – proteger as pessoas inocentes das regiões historicamente russas. Não tínhamos o direito moral de atirar à mercê dos nazis aqueles que viviam nas terras onde durante séculos os antepassados do povo russo tinham construído cidades, estradas, portos, igrejas e desenvolvido esses territórios.

O objectivo da Rússia nunca foi de ameaçar a Ucrânia como Estado, nem os ucranianos como povo, nem muito menos os vizinhos europeus. São os “amigos” de Kiev que de facto estão a ajustar as contas nostálgicas com a Rússia por mãos e corpos dos ucranianos. Sob pretexto de garantir a soberania deste país, eles destroem os seus restantes. Hoje as capitais ocidentais já não escondem a gestão externa directa do regime fantoche de Kiev.

Usando a Ucrânia como estado-tampão foi desencadeada contra a Rússia uma guerra híbrida, na qual é dado um papel especial às medidas restritivas unilaterais ilegais – “sanções”. No que diz respeito à Rússia, a quantidade delas não tem precedentes e ultrapassou os dezassete mil! Os objectivos declarados – minar a economia russa e forçar a liderança política a abandonar a sua linha independente nos assuntos externos, e finalmente virar a população contra as autoridades.

No entanto, estes cálculos não se concretizaram. Sendo absolutamente contraditórias ao andamento económico global, as sanções exacerbaram os desequilíbrios económicos globais criados antes. São resultados de erros sistémicos na política macroeconómica dos países ocidentais durante o período de combate à pandemia da COVID-19 e da sua corrida irreflectida à “transição verde”.

Após o início da operação militar especial, os EUA e os seus seguidores ocidentais tentaram apresentar a crise energética mundial como se tivessem sido provocada pelas acções russas. Na verdade, a causa principal dos fenómenos negativos foi a imposição da agenda ecológica sem ter em conta falta de capacidades tecnológicas, peculiaridades e indicadores económicos básicos da maioria dos países do mundo. Nos seus esforços para impor as suas “regras do jogo” no domínio climático, os autores fazem descaradamente vista grossa às prioridades dos países em desenvolvimento. Exortam-nos a abandonar a produção de carvão e petróleo mais rentável e acessível, a deixar de estimular o desenvolvimento de depósitos de combustíveis fósseis e a reduzir os investimentos na produção de hidrocarbonetos. Em paralelo, romperam a cadeia logística e financeira da exportação dos hidrocarbonetos russos ao mercado.

A estes grosseiros erros de cálculo macroeconómicos juntam-se fenómenos como os ataques dos terroristas “desconhecidos” aos gasodutos “Nord Stream” no Mar Báltico, que enterraram as esperanças da Europa de voltar a receber o gás barato. Em vez disso, recebem o LNG americano – caro e com uma pegada de carbono bastante negativa. Nada de estranhar – é a sorte dos que se submeteram à hegemonia maligna.

À luz do conflicto na Ucrânia, a mídia mundial põe em realce o problema da segurança alimentar. Para o Ocidente é mais um pretexto para acusar a Rússia, desta vez, de “fome global”. Faz tudo para esconder que, logo no início da pandemia de COVID-19, os EUA, o Japão e a Europa imprimiram triliões de dinheiro não garantido, compraram todos os alimentos ao seu alcance, na expectativa de que a COVID-19 obrigasse todos a “fechar”, criando assim uma crise aguda no mercado global.

Neste contexto, não se pode deixar de recordar a situação do famoso “acordo dos cereais”, assinado em pacote. A primeira parte foi ucraniana e a segunda – russa. As obrigações perante a Ucrânia foram devidamente cumpridas. No entanto, apenas 3% dos alimentos fornecidos aos mercados mundiais destinaram-se para os países da lista do Programa Alimentar Mundial. A maioria foi para a Europa e outros mercados de países ricos. O facto de o Ocidente ter desencadeado uma campanha tão histérica quando nós suspendemos o Acordo, em que a parte russa do “pacote” nem sequer foi posta em prática, explica-se simplesmente: mais de um terço das terras férteis da Ucrânia pertencem às empresas americanas, que estão a ganhar lucro com isso. Com os obstáculos de fornecer os alimentos ucranianos aos mercados mundiais, estas companhia têm medo de perder as rendas…
Aliás, é impossível enganar o mundo para sempre. A política sem escrúpulos dos países que procuram reanimar o seu passado domínio colonial pelos meios actualizados já deu os seus “frutos”: “os senhores” transformaram-se numa minoria na cena internacional. A maioria do “Sul Global” está a ganhar força. Um número crescente de países soberanos resiste activamente às tentativas duma nova escravização. A utilização generalizada de moedas nacionais nas transacções internacionais tornou-se uma marca dos tempos, com um declínio gradual e constante da quota do dólar e do euro.

A insatisfação com a mítica preocupação com o bem-estar dos habitantes da Ucrânia é cada vez mais sentida nos próprios países europeus com o “crescimento” económico negativo. Uma escandalosa polarização política nos EUA já custou ao país uma descida do seu ranking de crédito.

A mesma Ucrânia que na época da URSS foi comparada com a Alemanha e França por seu potencial industrial e agrícola, agora vive graças ao financiamento directo dos EUA e EU e com uma população a diminuir devido à emigração em massa. Em dez anos “a Revolução de dignidade e liberdade” levou a Ucrânia à perda completa de ambas, à dependência quase colonial e ditadura militar dirigido de fora.

No pano do fundo da crise mundial e a divisão da comunidade internacional não é de estranhar que os nervos dum dos estados mais ressentidos não aguentaram. O povo que injustamente foi privado do seu próprio território agitou-se. Quem sabe, talvez, se em 2013 não tivessem começado os motins em Kiev que afinal não trouxeram nem dignidade, nem liberdade, hoje fosse possível achar uma saída pacífica para este conflito de longa data. E se uma parte da comunidade internacional não provocasse crises e golpes de estado, hoje não se deramaria sangue nem dos palestinianos, nem israelitas, nem ucranianos, nem russos…

Resta apelar aos autores e patrocinadores desta catástrofe de dez anos e suas consequências: entendem o que fizeram? Talvez, basta de sangue pago pela importação forçosa e custosa da ordem baseada em regras “made in…”?

É corriqueiro as eleições moçambicanas terminaram com focos de violência armada em algumas zonas da região centro de Moçambique. Parece que a história sempre se repete. De forma cíclica, depois das eleições o país passa por uma espiral de violência, onde pessoas indefesas são tiradas vidas e bens. Nisso, a pergunta vociferada nas reflexões pós-eleições é: por que realizamos eleições se os resultados eleitorais sempre empurram o país para a violência armada? Também, como blindar o povo da violência armada pós-eleitoral? Triste! Albert Einstein já dizia que Insanidade é fazer a mesma coisa várias vezes e esperar obter resultados diferentes. Os ataques e assaltos armados depois das eleições já estão a virar rotina. As motivações da violência armada depois das eleições precisam ser aprofundadas pela academia em estudos muito sérios. É importante entender que a guerra aumenta a nossa crise social e entope os bolsos de um punhado de gente particularista, egoísta e não comprometida com o desenvolvendo comum.

Não é justo que as contradições eleitorais transformem os filhos desta pátria em carne-de-canhão outra vez. Depois dos acordos gerais de paz assinados em 1992, o país teve as suas primeiras eleições na sua história como país multipartidário, e a nação viveu um pouco mais de 20 anos de paz, ou seja, o fantasma de guerra não se viu durante esse tempo. A pergunta é: qual foi a fórmula magica que o ex-presidente Joaquim Chissano utilizou para manter a paz por esses longos anos? Também, por que não pedir ao Presidente Chissano essa fórmula. Não queremos ser beefsteak de ninguém.

É altura de pensarmos num Moçambique melhor, um país sem vukuvuko, temos que pensar grande. Depois do primeiro acordo geral de paz, o país teve diversificados acordos para pôr o fim as armas que não chegaram a devolver a paz perpetua para o país. Quando é que o país terá acordos que tragam uma paz consistente? Os nossos acordos não podem ser precários como os acordos dos colombianos. O clima de tensão e agressividade que a Estrada Nacional Número 1 vive, somado a tensão dos insurgentes em cabo delgado, retrai investimentos, numa altura em que o país caiu alguns degraus no ranking do doing business, que é o relatório que indica os índices sobre a facilidade de fazer negócio em determinados países.

Os partidos que estão em cisão, que procurem unir-se, pois o exercício político democrático num mercado político justo é feito com partidos organizados. Por isso os ambulantes políticos que procurem definir-se, consolidarem-se e estabelecerem-se nos seus partidos, contribuindo com suas experiências e inteligência para a vida político-democrática dos seus partidos, pois o exercício democrático não é feito com armas em punho. É importante entender que nas zonas onde há violências armadas, já se nota a existência de deslocados, ou seja, a população está a abandonar o seu património para salvaguardar a sua vida, e essas deslocações provocam a perca do ano lectivo das crianças e o atraso do desenvolvimento socioeconómico. Basta de sermos carne de canhão, vamos proteger a vida!

I
John Mac Gavin, director da mina de ouro de “Stanford Mine” na periferia de Joanesburgo estava transtornado com os resultados de produção dos últimos meses que não justificavam os investimentos por ele solicitados as lideranças em Londres e na cidade de Luxemburgo.
A mina já existia há mais de vinte anos e grande parte dos mineiros eram provenientes do país vizinho, Moçambique.
Desesperado, o director decidiu marcar uma reunião com os mineiros para explicar a grave situação que enfrentavam e que corriam riscos de perderem os seus empregos.
Carlos Mulungo, um experimentado mineiro moçambicano, trabalhava na Stanford Mine há mais de dez anos, saiu da sua terra natal, Manhiça, no sul de Moçambique na companhia de seu amigo de infância António Cossa para o eldorado em busca de melhores condições para si e suas famílias, aliás ele, era a quinta geração de mineiros da família.
António perdera a vida num incidente no interior da mina, não resistiu aos ferimentos causados pela queda de uma rocha na sua cabeça, o seu corpo foi transladado para sua terra natal, passaram-se seis meses desde do fatal incidente.
No final da tarde de uma sexta-feira decorreu uma reunião no pátio do escritório, estavam todos apreensivos sobre a decisão que a direcção tomaria, pois era sabido pelos mineiros que muitas minas que não geravam lucros acabam encerradas.
Estavam todos capturados pela fala do director, que se lamentava pelo rumo que a mina tomava, que certamente acabaria no descalabro.
Mas ele tinha interesse em salvaguardar o interesse de todos, dele inclusive, por isso pediu maior empenho na prospecção.
– Sei qual é o problema que acontece na mina. – manifestou inesperadamente Carlos.
Uma estupefectação colectiva apreendeu a atenção de todos, olharam-se num misto de admiração e desconfiança.
O pretenso salvador levantou-se, suspirou e pausadamente iniciou a sua fala:
– Temos que levar o espírito de António para casa, – afirmou convicto – Ele tem que voltar para a terra. – reafirmou sereno.
Depois de sua firme afirmação, um silêncio envolvente habitou o local, durou o tempo suficiente para a memória do falecido revisitar a mente dos presentes.
Mac Gavin largou um sorriso sarcástico influenciado pela erudição que herdara dos ensinamentos dos seus anos na Universidade de Oxford.
A visão místico-espiritual do mineiro não se compactuava com a sua percepção intelectual.
– Não me deixo corromper por atitudes pagãs. – afirmou o director seguro de si.
Formaram-se pequenas assembleias onde se debatia a proposta de Carlos para solucionar o problema que enfrentavam.
John Mac Gavin não tinha uma contraproposta convincente, por isso decidiu por um sufrágio para acalentar o mal-estar que se tinha gerado. O resultado do sufrágio foi apoio para execução do ritual para levar o espírito de António para sua terra natal.
24h após a realização da votação e aceitação dos resultados, um mineiro da ala leste descobriu um filão de ouro.
O cepticismo do director foi suplantado pelo poder dos deuses.
Agora Carlos tinha por missão dar continuidade a cerimónia, precisava terminar o ritual na terra do falecido.
Todas as condições para efectuar a viagem foram criadas e ele partiu. No dia seguinte, chegou a Manhiça, não demorou, procurou os familiares do falecido para efectuar-se a cerimónia de entrega do espírito.
Depois do intróito de apresentação dos espíritos dos antepassados da família do falecido, iniciaram o ritual” com o “nyanga” a dirigir as cerimónias.
Inadvertidamente pelas cordas vocais do “nyanga” fez-se ouvir:
– Obrigado por me trazeres a casa – afirmou António pelas cordas vocais do “nyanga”, mas ao som da sua voz.
Os desavisados alarmaram-se pelo “Kufemba” exercida pelo “nyanga”, o próprio curandeiro há muito que não era visitado por esse poder.
O possesso ainda confessou uma última vontade do espírito e depois cessou a sua mediunidade.
II
Dois petizes, Mário o mais velho e Benedito órfãos de pais haviam abandonado a escola para se dedicar ao serviço de tratadores de campa, para que com os ganhos adquiridos ajudarem as suas mães e irmãos.
Honravam contratos verbais que tinham com os seus clientes de cuidar de campas dos familiares e amigos destes.
Um recente túmulo devidamente ornamentado que desconheciam os seus representantes chamou-lhes atenção.
Um reflexo luminoso advindo de um dos objectos que ficavam na sepultura chamou atenção de Mário, movido pela curiosidade convocou o companheiro para darem uma vista de olhos.
O que descobriram encheu os seus quatro olhos e aguçou-lhes a ganância, retiraram os 1000 rands que estavam depositados numa chávena, Mário como o mais velho, por ter descoberto ficou com a maior fasquia e o restante para o colega.
Empolgados com a sua aquisição rumaram apressadamente para a loja do “monhé” na sede da vila da Manhiça para procederem o câmbio para a moeda nacional. Ali mesmo fizeram as primeiras compras, arroz, açúcar, sabão entre outros produtos.
Cada um foi recebido nas suas casas como benfeitor, Mário foi quem mais compras fez, e na noite desse mesmo dia preparou-se um banquete.
Mário apareceu para o festim junto da sua família todo bem aprumado, usava tudo novo, uma camisa colorida, calças de caqui e sapatilhas que havia comprado na loja mais concorrida da vila.
O frenesim inicial extinguiu-se quando o patrocinador da banga se retirou para o seu quarto movido pelo embriaguez e cansaço. Logo que se descalçou atirou-se para a cama, não demorou para começar a ressonar, sua mãe e irmão ainda riram quando o ouviram.
Cântico dos xiricos que debicavam restos de comida do festim da noite passada, anunciavam a manhã que acabava de nascer.
Quando os raios solares adentravam pela janela, dona Ana, mãe de Mário, a muito custo despertou, saiu para varrer o quintal, os xiricos agora, num número considerável cantavam e debicavam a comida.
Fez-se silêncio, os pássaros calaram-se, o som do vento leve que sacudia a ramagem das árvores também cessou, instantes depois o mesmo gemido sofrido voltou a fazer-se ouvir.
O instinto materno de dona Ana fez com que ela corresse para o quarto de seu filho Mário, encontrou o corpo desmedido ocupando toda a extensão da cama, as roupas romperam-se, banhas de carne extravasavam a borda da cama. O corpo franzino estava completamente inchado.
Ela soltou um grito, depois lágrimas banharam-lhe o rosto, soluçava enquanto chorava. De repente pela boca do moribundo saiam larvas, não se aguentou, vomitou, vomitou incessantemente.
O filho mais novo ouviu os gritos da mãe e correu para acudir, quando deparou com os factos pôs-se logo a vomitar.
O inchaço de Mário incrementava-se rapidamente enquanto sua mãe e irmão continuavam a vomitar enchendo o chão de uma amalgama malcheiroso.
Pum, um estrondo fez-se ouvir, a barriga do moribundo abriu-se e as entranhas ficaram expostas, os intestinos mergulharam no vómito.
Dona Ana e o filho empreenderam uma correria desenfreada pelas ruas da vila, ora gritavam ora choravam.
A loja do “monhé” foi fustigada por uma praga de ratos e quase todos os produtos ficaram contaminados, sem dinheiro para um novo investimento acabou arruinado.
Benedito o comparsa de Mário amalucou.
Os residentes da vila e arredores sussurravam sobre o acontecimento e temiam despertar a ira do espírito de António.
A vila ficou submersa num temor colectivo, as manhãs dominicais não eram mais preenchidas pelas visitas ao cemitério, os vivos coibiram-se de tal missão. Os mortos sentiram-se ainda mais abandonados.
Os funerais eram realizados sob os auspícios de um curandeiro destacado para esse fim.

A vida é apenas a soma bruta das nossas escolhas.
in Sina de Aruanda, Virgília Ferrão

A dança, muitas vezes, é um exercício inefável. Por isso mesmo, só sentir as linguagens manifestadas pelo corpo, portanto, em silêncio, já constitui uma espécie de confronto à razão das coisas que forçamos explicar. Talvez, por isso, os movimentos do corpo, nesse sentido performativo, são geralmente anteriores ao verbo, porque antes dos predicados que as palavras imprimem na sua ressignificação, há um objecto humano que se configura na sua imensidão.

Na noite desta quarta-feira, durante a apresentação na Sala Grande do Franco-Moçambicano, o espectáculo de dança Bantu, de Victor Hugo Pontes, foi, aparentemente, mais ou menos esse vector gerador do inexplicável, o palco onde coabitam a tentativa e a acção com as devidas reticências.

Com 70 minutos de duração, o espectáculo “desvaloriza” a inteligibilidade do discurso oral, até porque o corpo é a base (mais) comum à humanidade. Embora os universais linguísticos afirmem que em todas as línguas do mundo o Homem encontra o que necessita para exprimir emoções, sentimentos e ideias, com o corpo do Bantu, entrelaçando sete bailarinos, parece que não nos sujeitamos a precisar de dicionários ou de traduções. Pelo contrário, o espectáculo é um desafio à capacidade de o espectador construir narrativas sem recorrer às prescrições gramaticais.

Logo no início da peça, a apresentação do suspense é um investimento que silencia o auditório. Entre os efeitos sonoros e cénicos, com efeito, as feições dos intérpretes/bailarinos levam-nos a adivinhar o que se projecta no horizonte das personagens por si interpretadas, simultaneamente expectantes, intrigadas e com receio de algo a aproximar-se. Com Dinis Abudo, Dinis Duarte, João Costa, José Jalane, Maria Emília Ferreira, Marta Cardoso, Osvaldo Passirivo, os olhares insinuam desconforto e os movimentos comprovam a tímida reacção ao desconhecido. Nesse registo, todos são humanos. No entanto, quase em câmara lenta, as figuras antropomórficas, no palco, vão-se transformando num pouco de tudo, inclusive nesse insecto gigante tão bem retratado em A metamorfose, de Kafka. Desse ponto de vista, Bantu é um texto sobre as diferentes formas que o corpo humano pode adoptar diante de situações adversas e complexas. Entretanto, ao contrário de Gregor Samsa, a metamorfose gerada neste espectáculo é voluntária e colectiva.

Bantu não é uma peça com muitos adereços no palco. Geralmente, o palco é um campo aberto, a sugerir um lugar recôndito no qual o contacto com o tempo faz sentido quando se olha o passado. Assim, os bailarinos podem correr, dar acrobacias e multiplicarem-se nos seus gestos sem comprometerem a coerência das interpretações possíveis e imaginadas. Ainda assim, os poucos adereços utilizados ficam reservados no backstage, aparecendo para quebrar alguns momentos de monotonia cénica.

No expectáculo, o que não se faz com os objectos, é preenchido com o jogo de luz. A iluminação muda a perspectiva sobre o espaço e a percepção sobre as personagens. Também por isso, questionamo-nos sobre o que somos e o que poderemos ser, enquanto espécie, sem a língua que nos pode separar e unir. Quer dizer, no plano real e da peça, a língua é um elemento fundamental. Evidentemente, não do ponto de vista fonético ou fonológico, mas do ponto de vista do significante. Logo, em várias partes da peça, os artistas exibem o máximo da elasticidade da língua que possuem. Com isso ou viram bichos ou pelo menos libertam o instinto selvagem que as convenções sociais ajudam a conter.

Finalmente, mais do que lembrar uma família de línguas faladas na África subsariana ou um mecanismo cultural, Bantu parece um reflexo do Homem despido de artefactos. Trata-se aqui de um ensaio sobre a lucidez da loucura, uma antítese, claro está, que nos retira do registo sensato da nossa personalidade para ousarmos ser alternativa à nossa própria humanidade. Só com uma dose de loucura e devaneio da direcção, produção, dos artistas, do espectador e etc., o espectáculo ganha linguagens particulares, capazes de impressionar o público sem que a interpretação lógica seja uma obrigatoriedade. É também disso o que precisamos para ultrapassar as fronteiras do nosso universo, afinal, conforme nos escreve Virgília Ferrão, “A vida é apenas a soma bruta das nossas escolhas”.

As pessoas perguntam-me, muitas vezes, Tony O. Elumelu como é que eu aprendo a liderança. Devo ir a um curso? Comprar um livro? Arranjar um mentor? Os líderes nascem líderes ou é possível tornar-se um líder?

Tal como digo em relação ao sucesso empresarial, a liderança tem muitas componentes – sorte, estar no sítio certo e à hora certa. Mas também acredito que os talentos e as disciplinas que traz consigo, criando uma visão e resiliência e concentração necessárias para concretizar essa visão, também podem forjar a  sua própria liderança pessoal.

Tive a sorte de trabalhar com o verdadeiro líder, no início da minha carreira. A minha filosofia de liderança foi construída ao trabalhar com ele. Tudo começou com o facto de o Chefe Banigo ter lido a minha carta de candidatura e ter-me dado uma oportunidade de provar o meu valor em 1988.

Quando os meus colegas me dizem hoje: “Tony, respondes muito depressa aos nossos e-mails”, rio-me porque aprendi com o próprio mestre – o Chefe Banigo. Quando eu lhe enviava memorandos, ele respondia no prazo de vinte e quatro horas; por isso, porque é que eu não hei-de responder ainda mais depressa nesta era da tecnologia?

Estes são alguns dos valores de liderança que aprendi com o Chefe Banigo e que pratico actualmente.

1. Os líderes devem exigir excelência
Só se formos mais longe e nos esforçarmos é que nos desenvolvemos e destacamos verdadeiramente. O trabalho árduo e a excelência fizeram com que os meus chefes Toyin Akin-Johnson e Ebitimi Banigo reparassem em mim e, subsequentemente, acreditassem em mim. Aos vinte e sete anos, passei de estagiário a chefe, quando fui nomeado gerente da Agência, o mais jovem gerente de Agência bancária na altura. Tudo o que aprendi anteriormente foi posto em prática, e continuei a aprender.

2. Os bons líderes descobrem nas pessoas aquilo que elas não sabiam que possuíam
Os líderes reconhecem o talento da sua equipa e depois esforçam-se por revelar esse talento. Quando trabalho, trabalho para atingir os meus objectivos, mas também trabalho para revelar as competências das minhas equipas. Sei que todas as pessoas com quem trabalho têm um enorme potencial – para mim, o meu sucesso também tem a ver com o sucesso dos outros, com crescimento e desenvolvimento do seu talento. Este foco no talento, nas equipas, na transformação pessoal, é a razão pela qual sou tão insistente na criação de instituições, culturas e caminhos, onde o capital humano pode prosperar. É por isso que sou um investidor em empresas, mas também em jovens empreendedores em toda a África.

3. Os líderes têm de ser coerentes com o que dizem
Um líder tem de ser coerente. As pessoas querem confiar num líder que acreditam ser íntegro. A liderança não consiste apenas em dizer às pessoas o que devem fazer, mas também em dar o exemplo. Um bom líder deve dar o exemplo e praticar o que prega, o que demonstra integridade, cria confiança e respeito.

4. Os líderes devem transmitir conhecimentos
Beneficiei-me da orientação do Chefe Banigo, ele ajudou-me a desenvolver o meu pensamento estratégico, os meus quadros de referência e a canalizar as minhas ideias para acções concretas, de modo a que, quando chegou o momento da oportunidade, aos trinta e quatro anos, eu tivesse a autoconfiança necessária para reunir um pequeno grupo e assumir o controlo e a recuperação de um banco em dificuldades – dar esse enorme passo, que ainda hoje está a moldar uma indústria e um continente.

Hoje, quando me deparo com uma situação impossível, pergunto a mim próprio: “O que é que o Chefe Banigo faria?” Trabalhei com o Chefe Banigo de 1988 a 1995 e, até hoje, é ele a quem recorro quando preciso de conselhos.

Tony O. Elumelu é filantropo, economista, investidor, presidente do principal grupo pan-africano de serviços financeiros, o United Bank for Africa (UBA), com presença global em 20 países africanos, nos EUA, Reino Unido, Paris e UAE. Ele preside à empresa de investimentos privada Heirs Holdings com serviços financeiros que abrangem bancos, seguros, bancos de investimento, gestão de activos e registo no mercado de capitais. Tony Elumelu foi incluído na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo pela Forbes, fundador da Tony Elumelu

Foundation, onde têm financiado o empreendedorismo jovem em toda a África no valor de 10 milhões de dólares americanos. Ele também é membro da Comunidade de PCA do Fórum Económico Mundial.

A primeira vez que vi um concerto de Bongeziwe Mabandla foi há um ano e meio, em Saint-Pierre, Ilha Reunião. Nessa altura, o músico sul-africano actuou num dos cinco palcos do Sakifo Music Festival e, como se não tivesse alternativa, deixou o público proveniente de diversas regiões do mundo impressionado com a sua sonoridade, difícil de encaixar num único género musical.

Esta sexta-feira, no seu regresso ao Centro Cultural Franco-Moçambicano, voltei a ver Bongeziwe Mabandla no seu registo particular, sempre acompanhado pelo multi-instrumentista moçambicano, Tiago Correia-Paulo, e, igualmente, pelo baixista Bruno.
O pretexto, desta vez, foi a apresentação das músicas do novo álbum, intitulado amaXesha. Trata-se de um exercício profundamente intimista, que nos convoca a uma espécie de meditação enquanto ouvimos a associação de ritmos e sons que, aparentemente, apenas têm sentido no desempenho vocal do sul-africano.

Na Sala Grande do Franco, a primeira música interpretada por Bongeziwe Mabandla foi “sisahleleleni (i), uma proposta musical com versos curtos, em que se retrata a tentativa de um sujeito buscar um lugar ideal. Numa espécie de monólogo, mas estabelecendo diálogos possíveis, Bongeziwe fez dos gestos e do tom musical uma possibilidade viável para ser compreendido pelo público moçambicano e sul-africano que esteve bem representado no concerto.

Na sua interpretação, Bongeziwe Mabandla teceu uma narrativa em partes, sendo que na primeira apresentou “sisahleleleni (i)”, “sisahleleleni (ii)” e “ukuthanda wena”. Este é um tema sobre o amor a uma ideia de musa a escapulir-se a todo o instante do campo visual de quem a quer. O sul-africano interpretou as três propostas eventualmente como foram compostas, num investimento poético musicado. Os que no Franco não entenderam nada da mensagem enunciada numas das  línguas bantu da África do Sul limitaram-se a sentir a sonoridade ou então a cantar os coros das músicas, que são bem mais fáceis.

Na segunda parte do seu repertório, Bongeziwe Mabandla cantou “noba bangathini” e “soze”. Aí levou lágrimas aos rostos do auditório, pois o som catártico, sofrido e melancólico foi expurgando as dores dos que permitiram tirar de dentro de si o que constitui excesso. Esse também é um tema sobre o amor, conforme ilustra a seguinte passagem: “noba bangathini (Não importa o que eles digam)/ Thina sadalelwa ukuba kunye (Nós nascemos para ficar juntos)// Ndincame konke ebendinako (Eu desisti de tudo o que eu tinha)/ Ndakhetha ukuba nawe (Eu escolhi estar consigo)/ Ngoba xa ndihleli nawe (Porque quando estou consigo)/ Liyama ilizwe lami (meu país está de pé).

Na terceira parte, Bongeziwe Mabandla interpretou “ndikhale” e a muito aplaudida “zange”. No enredo, como é habitual nos temas do sul-africano, há uma personagem que se revela na dor e na dificuldade. No entanto, diferente das músicas anteriores, essa é das que inspira um certo movimento coordenado do corpo, mesmo sem que se compreenda muito do que é dito.

Na apresentação do álbum amaXesha, houve ainda uma quarta parte, em que o músico interpretou “hlala”, outro som dançante; uma quinta, em que fez soar “Ndokhulandela”, “jikeleza”; e uma sexta, reservada a “isiphelo” e “ndiyakuthanda”.

Ao longo das suas actuações, Bongeziwe Mabandla foi alternando a sua liberdade versátil de cantar, sem receio, com um certo embaraço ao dirigir-se ao público. O artista e o sujeito existencial confundiram-se várias vezes, pois, para o sul-africano, cantar parece bem mais fácil do que falar em público.

Ainda assim, levando a mão várias vezes ao rosto, ora envergonhado, ora buscando palavras, confessou sentir-se satisfeito e estar a viver um momento muito especial no seu regresso a Maputo. Talvez por isso “Maputo, lets go” fosse das frases que mais pronunciou enquanto cantou no palco e, por duas vezes, no meio do público da Sala Grande.

Os espectadores aproveitaram a presença mais próxima do músico. Deixaram-se fotografar e filmar com o músico, através dos seus celulares, e, durante os 100 minutos que o concerto durou, no Franco, parece que ninguém se lembrou de que, horas antes, uma manifestação pôs em xeque uma cidade.

As eleições autárquicas, cujo desfecho definitivo só irá acontecer com as decisões do Conselho Constitucional, e enquanto não acontece, vão dando espaço, não só para o que é mais visível, que são as manifestações de repúdio ou de celebração, de uns e de outros, como de revelações sobre como elas foram realmente organizadas e decorreram, e também de ulteriores desenvolvimentos que vêm ocorrendo á volta e por causa das mesmas. Tudo isso abre, amplia e alimenta, o espaço para análises e comentários nas redes sociais, nos órgãos de comunicação social, públicos e privados, e em conversas a todos os níveis. Pode-se afirmar, sem grande margem de erro, que este é o assunto dominante da vida nacional, desde a família, célula base da sociedade, até ao espaço público mais amplo, de forma contínua e ininterrupta, desde o dia 11 de Outubro.

Por isso, quer se queira quer não, este é um assunto que não precisamos de o procurar, porque ele vem a nós, nos persegue, nos entra em casa, nos inquieta, interpela e questiona, não deixa ninguém indiferente. Obriga a preocuparmo-nos, a reflectir seriamente. Tanto que não é lícito presumir que o silêncio de quem quer que seja, só possa ter um significado, qual seja…de assentimento, concordância ou cumplicidade. Esse não é o único significado, longe disso. E não é por várias razões objectivas, já devidamente identificadas por quem se esforçou por analisar as razões de um silêncio que é institucional e organizado como componente essencial de um sistema de poder. A partir de certos partidos, que não careço de nomear, e, depois, na sociedade e no Estado. Portanto, além das vozes em silêncio, de que se tem falado, temos vozes silenciadas, inúmeras, e para ouvir estas vozes basta ter ouvidos de ouvir e curar em ouvi-las. Mas deixemos este intróito sobre o silêncio e vamos adiante ao que interessa, até porque, no que me diz respeito, trata-se, uma vez mais, de romper esse silêncio. Então vejamos:

Não obstante as questões que envolvem este processo eleitoral, e o tornam problemático, não sejam de todo novas, por causa das mesmas, vemo-nos de repente na emergência de um momento decisivo e de grande perigo sobre o nosso futuro colectivo, sobre o destino do nosso País, na pendência de decisão sobre essas questões.

Não pretendo abordar aqui as questões de ordem estritamente constitucional ou legal, de foro criminal, meramente policial, organizacional ou procedimental. Importantes que são, essas questões têm merecido muita atenção, abordagem e discussão, e esperemos que do Conselho Constitucional nos venha finalmente a mais elevada e profunda consideração, ponderação e decisão sobre as mesmas. E não apenas de um ponto de vista estritamente legal ou legalista, como veremos adiante.

O que pretendo aqui reter, e relevar, é a abordagem de um ponto de vista e de um ângulo que, salvo poucas excepções, não tem sido privilegiado, sendo no entanto, a meu ver, o que é de maior relevância, visto que deve preceder todo o processo, deve acompanhá-lo em todo o decurso, e deve ser preponderante e determinante em todas as decisões que se tomem, até ao seu desfecho. Refiro-me ao fundamental ponto de vista ético e moral.

Deste ponto de vista, quero reportar-me em primeiro lugar ao Comunicado da CEM, pela inquestionável respeitabilidade e credibilidade dessa instituição na sociedade moçambicana.

Antes de mais a Igreja Católica não se limitou ao papel de simples espectador do desenrolar do processo. Tal como em eleições anteriores, como faz questão de nos lembrar, a Igreja Católica fez parte do grupo de observadores eleitorais da Comissão de Justiça e Paz, que, por sua vez integra o Consórcio Eleitoral «Mais Integridade».

E é nessa condição que o Comunicado da CEM, além dos «ilícitos e irregularidades eleitorais, uns mais graves que outros, aqueles reportados oficiosamente e difundidos pelos Mídias sociais, e outros reportados pontualmente pelos observadores eleitorais», nesse contexto, acolheu relatos essencialmente sobre o seguinte:

– destruição de materiais de campanha, confrontos violentos, pessoas presas injustamente;
– actuação questionável dos que deveriam garantir a ordem e segurança das pessoas;
– diversidades de irregularidades na votação, contagem e justeza dos resultados pronunciados;
Neste cenário, constata, com muita preocupação, o crescimento dos níveis de incompreensão e de expressões de descontentamento no povo, sobretudo dos que se sentem trapaceados.

Face a esta situação, os Bispos Católicos de Moçambique fazem um veemente apelo «a todos os homens e mulheres de boa vontade para manter a PAZ, como valor supremo da nossa convivência e cidadania”, o que deve, segundo eles, compreender necessariamente:

1-Diálogo entre o Governo, os órgãos de gestão eleitoral, os Partidos políticos, a sociedade civil, o Conselho Constitucional, o Conselho de Estado;
2- Reposição da legalidade, sabendo que não há legalidade sem verdade, fazendo com que a força da lei seja a que dirima e ajude a superar toda a possível manipulação de resultados ou fraude eleitoral;
3-Busca da justiça, que é o maior caminho para a paz e para a convivência saudável e fraterna de todos os moçambicanos;
4-Respeito da razão e da ética para que se evite por todos os meios qualquer possibilidade de derramamento de sangue entre irmãos;
5- Oração, uns pelos outros, que nos une como criaturas do mesmo Deus nas diferentes religiões existentes no país;
6- Aos órgãos eleitorais, a reverem com responsabilidade e justiça todo o processo de apuramento dos resultados, garantindo que os resultados sejam o reflexo verdadeiro dos votos depositados nas urnas, e, portanto, da vontade do povo;
7- Às lideranças do partido beneficiário desta crise eleitoral que chamem à razão os seus membros e simpatizantes para aceitarem a contestação dos resultados como parte do jogo democrático, multipartidário e inclusivo, e colocarem a viabilidade política, social e económica do país acima dos interesses partidários de uma mera vitória eleitoral questionável;
8-Às lideranças dos partidos que protestam os resultados eleitorais, a que chamem à razão os seus membros e simpatizantes a fazerem-no de forma pacífica, seguindo os princípios consagrados na Constituição da República e os trâmites legais, sem violência;
9-As Forças de Segurança assumam o seu papel de protecção do cidadão, independentemente da sua filiação partidária e zelem pela manutenção da lei e ordem, sem extremismos, não intimidando nem favorecendo ninguém;
10-Que não falte a ninguém a coragem de fazer presente a justiça que conduza os moçambicanos à concórdia e convivência saudável como nação.

Transcrevi, no que julgo serem todos os seus pontos essenciais, este posicionamento dos Bispos Católicos, por duas razões: por um lado, a consciência que tenho de que nos encontramos a caminho do pico de uma crise, que não cessou de se agravar, num crescendo que agudiza a iminência de um perigo catastrófico sobre nós; por outro lado a consciência de que é justamente nesse posicionamento dos Bispos Católicos que está a chave para que o perigoso curso dos acontecimentos não se torne irreversível, e retomemos rapidamente o caminho conducente à normalidade e à paz.

Com efeito, a complexidade e os perigos desta crise não se compadecem com atitudes de surdez e cegueira, de obstinação, arrogância e soberba, hostis ao diálogo profícuo e necessário.

Ainda menos se compadecem com o refúgio em tecnicidades de ordem legal, ignorando ou violando o princípio de que a legalidade tem que assentar na verdade, e que não há legalidade sem a verdade. A legalidade que nos impede o caminho da verdade pode ser legalismo mas não é legalidade.
Assim como não haverá justiça sem a verdade. Donde, a paz só será paz verdadeira se for o fruto da justiça.

Todos sabemos que não existe senão uma ética, essa que tem na verdade o alicerce fundacional. Neste sentido a ética confunde-se com o Bem, e tudo o mais que não se identifica com ela, ou lhe é contrário, não é outra coisa senão o Mal, as forças do mal, as forças negativas, da destruição, contrárias à sociedade, ao homem, à Humanidade.

Ninguém está acima ou à margem da ética, como quem possa dispensar a luz do sol para ter como suficiente a luz da sua própria lanterna ou candeeiro.

No curso cego de uma continuação da guerra por todos os outros meios, perdemo-nos da razão e da ética que nos ditam que não há pior vitória do que aquela que se alcança, ou se arranca, contra o seu irmão ou compatriota. Porque ela só nos pode votar à desgraça da continuação da guerra.

Por isso este ponto de vista dos Bispos Católicos tem carácter ecuménico, e está virado para todos os cidadãos, independentemente da sua filiação religiosa, política ou partidária, da sua etnia ou nacionalidade.

Esta é a ética fundamental que vincula a Sociedade e o Estado, de tal sorte que é imperativo que todos, cidadãos, instituições, partidos e Estado, a tenham como ponto de partida para enfrentar e responder aos desafios que o presente processo eleitoral nos coloca.

«A César o que é de César, ao Povo o que é do Povo»

Chegados a este ponto, lancemos mão daquele ensinamento segundo o qual se deve «Dar a César o que é de César», significando isso que os cidadãos têm obrigações para com o Estado, cujo cumprimento é irrecusável. Os cidadãos pagam impostos, taxas e outras contribuições ao Estado. Porém esta não é uma relação unilateral mas contratual. É que, sendo eles cidadãos e não meros súbditos, o Estado tem em contrapartida obrigações incontornáveis para com eles. Donde que seja imperativo que «César dê ao povo o que é do povo». E entre o que «é do povo» avulta, em lugar cimeiro, respeitar e fazer respeitar a Constituição e fazer justiça aos cidadãos. E nisto se resume toda a ética, razão e justiça, e toda a lei.

Na situação com que nos confrontamos, a das eleições, isso significa garantir que prevaleça a vontade do povo expressa nas urnas, e não qualquer outra coisa, fruto de manipulações, de fraudes, ou de decisões tomadas por quem se refugie e enfie a cabeça nos labirintos, ou nos becos e impasses legalistas, criados para impedir ou dificultar o caminho da verdade. Com o fim de não se confrontar com a verdade da vontade expressa nas urnas, e assim passar por cima ou à margem da mesma.

Assumindo que «a vontade do povo é a vontade de Deus», é imperdoável agir ou interferir, a qualquer nível que seja, institucional ou pessoal, para a perverter! Ou não agir para a fazer prevalecer!

Assim, se César não der ao povo o que é do povo, César estará a provocar o tumulto e a revolta daqueles cidadãos, que não mais são súbditos, e que, eventualmente, em algum momento, podem reivindicar e chamar a si a soberania, de que são donos, para decidir sobre César, e para decidir sobre o seu próprio futuro. Portanto, ao fim do dia, terá sido César quem terá criado este estado de coisas, e não os cidadãos.

Alguns outros pronunciamentos

Apesar de o pronunciamento dos Bispos Católicos merecer a especial atenção que eu dei, não é o único a assinalar, deste ponto de vista ético. Com efeito, e deste ponto de vista, são para mim de destacar ainda os pronunciamentos que lemos ou ouvimos de Samora Machel Jr, de Mulweli Rebelo, e de Brazão Mazula. Qualquer deles pronuncia-se assente fundamentalmente no imperativo ético que é, essencialmente, o dos Bispos Católicos. Senão vejamos:
Samora Machel Jr, depois de reconhecer que «por todo Moçambique o clamor do povo é de desacordo perante os atropelos flagrantes à integridade das escolhas feitas pelos eleitores», e de declarar o seu «total desacordo e desdém aos actos antipatrióticos, profundamente antidemocráticos» que «…comprometem a paz que se deseja para todo o povo Moçambicano, independentemente das opções partidárias», e de lamentar que que «em momentos cruciais da nossa vida, como são as eleições, interesses pessoais e de grupo se sobreponham ao desiderato colectivo, pondo em causa o nome do Partido Frelimo e da nação que um dia ousamos edificar», conclui que: 1- porque aquelas «acções e comportamentos minam a confiança que os cidadãos depositam nas instituições «…é fundamental que se esclareça, antecedido de uma exaustiva investigação para identificar os responsáveis» e que «Sem excepções os culpados devem ser levados à barra da justiça..»; 2- que para «..o Partido Frelimo, é imperativo do momento a educação e qualificação de seus membros sobre a importância do respeito aos princípios democráticos, do estado de direito e a vontade do povo expressa nas urnas.»; 3-que «A nossa postura em relação aos futuros processos eleitorais deve ser guiada pela ética e integridade, em vez de sentimentos meramente partidários»; 4- que «Não podemos, nem devemos tolerar nas nossas fileiras, indivíduos que cometeram actos condenáveis, pois a nossa conduta não se coaduna com este tipo de postura»; 5-que «Devemos continuar a trabalhar incansavelmente para assegurar que a visão e os princípios fundamentais do partido sejam restaurados e protegidos».

Mulweli Rebelo, no mesmo espírito, diz-nos na sua carta: 1-«Estamos actualmente num processo de eleições, em que está claro que o partido está envolvido em actividades questionáveis, talvez por saber que está prestes a perder. Isto não é algo que pode ser ignorado ou justificado»; 2- «Pessoalmente, sinto vergonha por fazer parte de um grupo elitista que continua a apoiar cegamente um partido ignorante e arrogante, sem uma avaliação crítica das suas acções, mas pelos benefícios pessoais e vantagens…»; 3-«Não foi para isto que nossos pais lutaram»; 4- «Que legado queremos deixar para os nossos filhos? De lambebotismo? Covardia de pais que seguiram a direcção de corrupção e da bajulação em benefício próprio? Como jovens podemos questionar juntos e tomar acções que busquem mudanças, escolhas que estejam alinhadas com a justiça, a transparência e o bem-estar não apenas deste grupo»

Estes são dois exemplos dos jovens da geração seguinte à minha geração, a geração dos seus pais. Sem dúvida que eles se situam na continuação, e reivindicam a restauração e preservação, dos valores e princípios pelos quais os seus pais tanto lutaram e se sacrificaram. O seu posicionamento significa a sobrevivência e perenidade desses princípios e valores fundamentais e é à luz dos mesmos que analisam e avaliam a situação que vivemos. Construindo e argumentando com solidez e elevada consciência cívica e patriótica, com maturidade.

O ponto de convergência entre o pronunciamento dos Bispos Católicos, e agora também o do Conselho da Igreja Anglicana (que acabo de conhecer pelos resumos dos telejornais já depois de terminado este meu texto), e os pronunciamentos de Samora Machel Jr e Mulweli Rebelo, é justamente a razão e a ética que devem iluminar-nos e guiar-nos a todos, cidadãos, instituições, Estado, para fazer prevalecer a verdade da vontade expressa nas urnas, ou seja, a vontade do Povo.

Finalmente, e neste contexto, o posicionamento de Brazão Mazula é uma inestimável contribuição, em convergência com as que antecedem, na medida em que:1- dá-nos os instrumentos de análise que permitem compreender melhor como funciona todo o sistema, pois que se trata de um sistema e de uma engrenagem; 2- de como nada acontece acidentalmente, como se fossem actos isolados, por erro ou por iniciativa individual, mas de forma orientada, organizada, portanto premeditada.

Brazão Mazula, ao introduzir os conceitos de uma CNE formal e de uma CNE real, de um STAE formal e de um STAE real, ilustra como, na prática, funcionam os mecanismos daquilo que, no contexto da análise da separação dos poderes no nosso País (isto é, da ausência real da separação dos poderes e da não despartidarização do Estado), eu designei de «centralismo presidencialista absoluto».

E a grande vantagem de Brazão Mazula é que ele conhece bem estas instituições, esteve envolvido no momento da sua emergência, do seu problemático parto. Acompanhou depois, como nós, o seu crescimento, e constatou, também como nós outros, a forma como a cada passo, a cada alteração, seja da Constituição seja das leis pertinentes, essas instituições foram sendo ajustadas de forma útil ao sistema de «centralismo presidencialista absoluto». Para podermos entender melhor como o problema não está propriamente nelas, sem que isso signifique isentar quem quer que seja das suas responsabilidades pessoais e de cidadania.

Não encerrarei este texto que já vai longo para o que era minha intenção( infelizmente não tive tempo para ser mais breve), sem um apontamento crítico a algumas vozes que criticam Samora Machel Jr e Mulweli Rebelo, por falarem «fora das estruturas». Na realidade só por indesculpável distracção ou por declarada má-fé se pode fazer tal crítica. É que por um lado se fala de um «silêncio ensurdecedor» de dentro da Frelimo, mas por outro lado quando se fazem ouvir corajosamente estas vozes, que são bem de dentro da Frelimo, lançam-lhes essa crítica. Sejamos honestos…ou somos intelectuais, analistas, comentaristas, jornalistas, livres e independentes, ou então se é para exigir publicamente que os membros doa partidos não saiam da caixa e se mantenham no silêncio do «falar só nas estruturas», acho que se deviam candidatar a membros dos «grupos de choque» organizados nos partidos para manter essa «lei e ordem». E, para não me alongar mais, permito-me remeter esses críticos ao capítulo sobre o «Debate interrompido» do Volume I de «À sombra da Utopia», de José Luís Cabaço, e ao comentário que eu fiz sobre o mesmo em entrevista ao semanário Savana.

 

Teodato Hunguana
26.10.23

 

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– Vai casa, menino. A velha pronunciou “minino”, como falam por aqui os que têm por língua mãe a língua das suas mães. – Vai.

Zubeida

(inspirado numa velha lenda urbana da minha cidade) A regularização de sua conta bancária era o último empecilho para que a direcção de finanças do

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