O País – A verdade como notícia

ARTIGOS DE OPINIÃO

Hélder Jauana
“Je suis un intellectuel. C´est mon métier que de penser.
Je suis payé pour ça (Mamadou Diouf)”

Moçambique enfrenta desafios que colocam em causa o seu projecto de construção e consolidação de uma Nação desenvolvida, alicerçada e fundada na Unidade Nacional. O terrorismo em Cabo Delgado, a “indústria dos raptos”, a mercantilização da religião, a qualidade da educação pública, em particular no ensino primário, as bolsas de fome recorrentes, as crises e a violência pós-eleitoral permanentes, a intolerância política e o recrudescimento dos ismos que adiam qualquer nação, nomeadamente o tribalismo, regionalismo, lambebotismo.

De Cabo Delgado, assiste-se e ouvem-se relatos aterradores de destruição de infra-estruturas e, acima de tudo, de tratamento insensível e animalesco da vida humana. Os raptos paralisam a nossa economia com a fuga do país dos poucos projectos de capitalistas que o país tem. Uma das consequências é o desemprego pelo encerramento de negócios em resultado da fuga dos seus proprietários para o estrangeiro. Os relatos de um país inseguro para empresários retraem potenciais investidores de colocar o seu capital em Moçambique.

A crise no ensino público caracterizada pelo défice de jovens com competências técnicas; incapacidade de acompanhar o desenvolvimento tecnológico, através da criação de start ups, por exemplo; ausência de atitude crítica fundamentada (não baseada em leituras ligeiras da realidade) cujas consequências se começam a sentir, compromete qualquer projecto sério de construção de uma nação desenvolvida e competitiva. É fundamental ter um sistema educacional em que a liberdade é um dos seus pilares fundamentais porque a criatividade radica da liberdade.

É lugar comum que a intelligentsia de uma nação com confrontação permanente de ideias, visão de mundo e de sociedade faz uma esfera pública actuante e que propicia desenvolvimento. A história da humanidade mostra-nos que a sociedade moderna promoveu uma crescente racionalização e burocratização, resultando no desencantamento do mundo. Este desencantamento gerou os contestadores da ordem e do poder político vigente, os inconformistas, os que construíram novas ordens e produziram novos contestadores e novos defensores da ordem – os intelectuais.

O intelectual é aquele que se empenha pessoalmente na interrogação dos fenómenos e dos acontecimentos; aventura-se no seu diagnóstico e no seu prognóstico, problematiza de maneira crítica o que parece evidente e natural, mobiliza a sua consciência e a sua reflexão de humano e de cidadão, elucidando os seus pares intelectuais e, por via disso, a sociedade. Intelectual é aquele que se dedica a reflectir – ler e escrever – criticamente sobre a realidade. O único acto que constitui a força dos intelectuais é a permanente reflexão na esfera pública com produção de conhecimento sobre a realidade, isto é, ler e escrever criticamente sobre a realidade.

Ora, a reflexão e a leitura são actos solitários. Portanto, reflectir e ler exige do indivíduo momentos de solidão que o ajudam a distanciar-se do aparente, do óbvio, da tentação em assumir os factos como nos são dados – o Senso Comum – como verdade. E, como defende muito bem o historiador senegalês Mamadou Diouf, a leitura e a reflexão são posturas difíceis de ter e observar em sociedades de convivialidade onde a oralidade é constantemente colocada em causa pela conversação e onde a conversa soberana se realiza em actos (1993). Tal não significa que em África os africanos não reflictam criticamente sobre a sua realidade. Esta assumpção tão somente significa que a leitura e reflexão crítica sobre a realidade são exercícios penosos que a nossa intelligentsia se eximiu de fazer criando assim espaço para a consolidação e afirmação dos inimigos da sociedade aberta.

Uma simples observação do que se passa em Moçambique permite-nos notar que a nossa intelligentsia se esconde na esfera privada, em particular em grupos de família, amigos e colegas. É na esfera privada e restrita muitas vezes em ambientes etilizados que se emitem juízos de facto sobre as opções estratégicas tomadas pelo Governo, universidades, empresas, da ausência dos sindicalistas da esfera pública, do status quo dos partidos políticos, do desemprego entre outros. É nesses ambientes que a nossa intelligentsia grosso modo desabafa transformando esses ambientes de convivialidade do nosso muro das lamentações.

Alguns argumentam que não participam do debate na esfera pública porque o ambiente não permite. Outros que o farão quando o sistema melhorar, outros ainda que o farão quando conquistarem o título de PhD. Quando é que o ambiente vai melhorar? Quem faz o ambiente melhorar? Quando é que vão alcançar o PhD? O facto é que, salvo raras excepções conhecidas cujos nomes não preciso apresentar, a nossa intelligentsia se recusa a intervir na esfera pública.

A nossa intelligentsia prefere alinhar no que Ambroise Kom, Achille Mbembe e Kwame Appiah denominam cooptação e na mafiosa “lei da boca que come e não fala”. Não tenho dúvidas de que o país teria a ganhar se a nossa esfera pública fosse caracterizada pelo que o sociólogo Jean Copans denomina de intelectuais d´en bas. O intelectual d´en bas é aquele que reflecte criticamente sobre a realidade social, económica, política e cultural.

Como referimos acima, os males que nos afligem nomeadamente o terrorismo em Cabo Delgado, a “indústria dos raptos”, a mercantilização da palavra de Deus, o trafico de droga, a qualidade da educação pública, as bolsas de fome recorrentes, as crises e a violência pós eleitoral permanentes, a intolerância política e o recrudescimento dos ismos que adiam qualquer nação, nomeadamente o tribalismo, regionalismo, lambebotismo colocam um desafio à nossa intelligentsia. Mas, perante estes males que perigam a nossa existência como Nação e atrasam o nosso desenvolvimento assistimos, regra geral, a um silêncio e mutismo da nossa intelligentsia em quase todas as esferas. Há quase uma tese consolidada na nossa sociedade de que a nossa intelligentsia se recusa a reflectir criticamente na esfera pública. O medo de intervir na esfera pública radica do receio de ser conotado como ideologicamente desalinhado, ambicioso, antipatriota ao serviço da agenda ocidental, contra o BIG MAN, como desalinhado. Um mutismo comprometedor e, acima de tudo, cuja consequência é adiar e/ou comprometer o desenvolvimento da Nação.

O que a nossa intelligentsia não percebeu ainda é que a crise que vivemos é, antes de mais, uma crise moral e intelectual fruto de uma reação subjectiva. Ela radica da reacção que a nossa intelligentsia tem em relação à realidade política, económica, social e cultural do País. Ela radica da resposta que a nossa intelligentsia dá aos factos que enfrentamos como sociedade. A nossa crise radica da desconfiança que temos das nossas elites que consequentemente leva-nos a perder confiança em nós próprios. Como sociedade enfrentamos uma crise de referências. Parece que perdemos as nossas referências e a nossa intelligentsia, seja qual for o seu compromisso partidário, tem um discurso desfasado da realidade que os seus concidadãos vivem. A crise que vivemos não é de todo má. Ela poderia ser salutar se pudesse levar a uma retoma da consciência da realidade que abrisse caminho a uma reforma intelectual que nos permitisse encontrar respostas demasiado rápidas aos desafios que vivemos.

Uma intelligentsia que continua a reproduzir o modelo colonial retrógrado de ligação ao hinterland, que serviu para alimentar o projecto de ocupação efectiva e alimentar os cofres do Estado colonial. Uma intelligentsia que se recusa a reflectir na definição de distritos estratégicos cuja ligação entre si alavanca o desenvolvimento das províncias, criando Zonas Económicas Especiais integradas (ZEEI) com políticas e incentivos fiscais atractivos aos investidores. Nessas ZEE seria capacitada mão-de-obra para atrair os grandes grupos a deslocalizarem a sua indústria para o local. Uma intelligentsia que insiste na manutenção de taxas de juro que não permitem desenvolver um empresariado nacional que recorre à banca para investir. Uma intelligentsia que transformou a Autoridade Tributária em simples cobrador de impostos e não numa Autoridade que pense num modelo tributário que permite o desenvolvimento de Moçambique a várias velocidades. Uma intelligentsia que se recusa a fazer um exercício básico de revisitar o Plano Prospectivo Indicativo (PPI) e dele buscar os aspectos positivos do projecto de industrialização. Uma intelligentsia que ama a descontinuidade. Mas como nos desafiou Eduardo Mondlane, continuemos A Lutar por Moçambique. Um dia vamos ouvir e compreender-nos mais e aí não haverá os fantasmas que inventamos para nos combater e dividir com toda a consequência para o desenvolvimento de Moçambique.

Infelizmente, perante estas crises, as nossas elites a todos os níveis contraíram-se e menos suportam a crítica. O verdadeiro perigo que vivemos não é a crise que nos ameaça, mas os comportamentos perante os factos. O que a nossa intelligentsia se recusa a entender é a sua responsabilidade e culpa perante a crise que vivemos. A sua culpa e responsabilidade em segundo grau por não fazer nada para mudar a crise do sistema. A culpabilidade é colectiva e dela faço parte. A história julgará a inércia e o descomprometimento da nossa intelligentsia perante a crise que vivemos.

Saiu de uma campanha pouco expressiva, tímida e atípica para o partido do batuque e maçaroca, uma campanha voltada para uma comunicação em quatro paredes, forçada pela rejeição coral das massas, que à luz do sol não escondiam o seu desprezo e apatia pelo partido que sempre governou, mas agora com a percepção de baixa satisfação.

Na capital, foi mesmo assim. A caça ao voto não foi tarefa fácil para o candidato da Frelimo. Rasaque Manhique não encantou à primeira vista. O povo, saturado de falsas promessas, vociferou impropérios e deu costas sem aceitar ouvir a cantada política, fez pré-juízos e seguiu às cegas comprando outros discursos sem certificados de veracidade. Mas isso não importava.

Foi uma prova dos nove reprovada e ofuscada pela acidez da oposição, que maquiavelicamente plantava a semente do ódio em terra fértil, mas que ironicamente não colheu vitória, colheu tempestade num poço com profundidade infinita.

Hoje, como uma fénix ressurgida dos escombros do processo eleitoral, temos, de facto, a oportunidade de conhecer o presidente do Município de Maputo. Aquele que, no silêncio da campanha, não se agitou nas ruas, mas construiu um projecto que agora se faz visível, em termos de ideias, e vai à avaliação popular.
Entrou forte, cheio de moral, de peito aberto, de cabeça firme e erguida, fito num propósito que ainda ansiamos por conhecer. Dominamos as intenções verbais, mas navegamos ainda na fina luz da verdade, essa que apenas o tempo nos vai revelar no compasso do relógio que não vai parar. O tempo será o seu árbitro, num jogo sem prolongamentos, e o cronómetro, um juiz rígido, aguardando o fim do mandato para proferir a sentença.

Na audácia das promessas de Rasaque Manhique, ouvimos: “Não sejamos, nós, esbanjadores do erário público”, aplaudimos e depois ouvimos: “Não faz sentido que ocorram construções de forma desordenada na Cidade de Maputo. Não faz sentido demolir. Onde estávamos quando foram edificadas?”, aplaudimos com mais energia e continuámos atentos e ouvimos: “Não é elegante ver disputas entre a polícia municipal e a população (…). Não é para fomentar o informalismo, mas não é para actuar sem dó. Não é bonito a polícia municipal arrancar água de coco. Este edifício (Conselho Municipal) não bebe água de coco, temos de disciplinar…”, colocámo-nos de pé e aplaudimos bem mais alto e mais promessas ouvimos: “Empolar valores na facturas de obras, ou qualquer outro serviço, não tem outro nome senão roubo. Ao tomar conhecimento, vamos imediatamente anular os contratos (…)”. Com o subir de tom, sentimos que era hora de frear a emoção e trazer a razão ao de cima. Mas ainda estamos sob o efeito analgésico dos discursos até agora consumidos.

E Rasaque Manhique não pára, soma e segue coleccionando sonhos no imaginário colectivo. Entrou como um exímio conhecedor dos problemas e ancorou-se em discursos melosos que confundem resultados com uma versão ebriamente aumentada da sensação de acção. Vale-se da retórica para estes ganhos iniciais. Suas promessas adubam expectativas e elevam a ameaça de sincronização com os resultados projectados. O caminho ainda é longo, sr. presidente.

Nosso cérebro, esta máquina de construção de significados baseada na experiência, chama-nos para sermos pessimistas, porque é insano ignorar o conhecimento produzido pelo registo do tempo que passou. Mas porque o conhecimento não é estático – ele renova-se constantemente e reformula-se –, acreditar que pode ser diferente ajuda a contribuir para que os bons resultados venham. Pregar desgraça para o irremediável também seria insano. Mas registar as promessas, observar as acções e deixá-lo trabalhar é o mais sensato.

Os dias vão passar e os resultados serão conhecidos, sejam eles positivos ou negativos. Com a sabedoria do tempo, a verdade não será enviesada nem nos chegará estilhaçada ou desfocada. Será cristalina e estará pronta para que, com os óculos de cada munícipe, se formule a verdade individual conveniente, aquela cuja discussão é de total estupidez, até porque o voto resulta da percepção individual de capacidade de realização.

O caminho ainda é longo, senhor presidente.

 

O Governo de Moçambique já fez muita coisa para acabar com a guerra em Cabo Delgado. Já contratou empresas militares privadas (“mercenários”), recorreu a tropas estrangeiras, estabeleceu acordos com outros Estados para treinarem as Forças Armadas de Defesa de Moçambique, apoiou a criação e equipou milícias populares, e criou uma agência de desenvolvimento dedicada a conter o alastramento da guerra. Só há uma coisa que o Governo não faz e não deixa fazer: dialogar com os insurgentes.

Há muitos argumentos apresentados pelo Governo e pelos seus ideólogos para negar o diálogo como uma forma válida de resolução de conflito em Cabo Delgado. O mais comum de todos é o de que não se sabe com quem dialogar, pois “os insurgentes não têm rosto (um líder conhecido)”.

E já se ouviram vários outros argumentos. Um meu (antigo) professor no Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI) afirmou, há dias, num debate público em Maputo, que não se pode sequer pensar no diálogo para a resolução do conflito em Cabo Delgado, pois os insurgentes são extremistas e não reconhecem a autoridade do Estado. Argumentou, também, que “o actual contexto internacional não é favorável ao diálogo com terroristas”, para além de que “os terroristas” têm presença em apenas alguns distritos de Cabo Delgado.

Um outro meu (antigo) professor na Escola Superior de Relações Internacionais (ESRI) da Universidade Joaquim Chissano (UJC), argumentou num seminário recente em que partilhámos painel, em Pretória, que “não podemos [nós, o Estado] dialogar com terroristas, porque não somos iguais”.

Os argumentos contra o diálogo têm o mérito que têm. Mas o que pretendo argumentar, neste texto opinativo, é que o diálogo é possível e necessário, para acabar com a guerra em Cabo Delgado. Dificilmente se vai acabar com a guerra em Cabo Delgado sem que se tenha recorrido ao diálogo com as pessoas que promovem os ataques.

Escrevo este artigo a partir da vila de Mocímboa da Praia, a mesma que, entre Agosto de 2020 e Agosto de 2021, foi a capital dos insurgentes. Destruída, com sinais visíveis de guerra, a vila de Mocímboa da Praia voltou a ser habitada por civis, mas está longe de ser uma terra de paz.

A vila é guarnecida por centenas de militares e polícias ruandeses, e a população local diz, abertamente, que, caso os ruandeses se retirem de Mocímboa da Praia, também sairá da vila, pois não há garantia de segurança sem ruandeses.

A população da vila de Mocímboa da Praia vive sitiada. Não pode sair para os campos de produção situados a um raio de cerca de 10 quilómetros, pois não há segurança. Os insurgentes estão a habitar as matas e as ilhas ao redor, e estão infiltrados na vila. De todos a quem perguntei se a guerra já acabou, a resposta foi um categórico NÃO! O argumento principal é de que “esta é uma guerra promovida pelos filhos da casa e as causas que levaram os jovens a entrarem no mato ainda não foram resolvidas”.

É aqui onde o diálogo se revela necessário, pois pode ser uma ferramenta importante para abordar os factores de conflito a vários níveis. Quando se fala de diálogo em Cabo Delgado, muitos tendem a pensar imediatamente nas negociações entre o Governo e os insurgentes. Mas o diálogo não começa nem acaba aqui.

O diálogo pode consistir em os líderes locais legítimos – políticos, tradicionais, religiosos – discutirem as reivindicações da juventude e procurarem soluções pacíficas para disputas latentes e emergentes, quer entre membros da mesma comunidade quer entre comunidades.

Isto é relevante porque o conflito em Cabo Delgado é alimentado por factores internos. Desemprego, falta de oportunidades de formação técnica e superior para poder trabalhar nos projectos de exploração de gás e na função pública, e corrupção no acesso aos serviços públicos são algumas das causas apontadas pelos locais como tendo motivado a juventude a aderir aos grupos radicais islamistas (não confundir com islâmicos) que protagonizam ataques em Cabo Delgado.

Para serem bem-sucedidos, os grupos extremistas violentos precisam de que os membros das comunidades onde operam adiram à sua causa. O processo pelo qual os grupos extremistas mobilizam os membros da comunidade para aderirem à sua causa é a radicalização. Os jovens são geralmente os membros da comunidade mais vulneráveis a aderir a grupos extremistas violentos.

Moçambique rejeita dialogar com “terroristas”, mas por trás dos ataques “terroristas” existe toda uma panóplia de factores de pressão e de atracção que tornaram possível que as populações locais fossem mobilizadas, recrutadas, treinadas para realizar os ataques, e são esses factores que uma resposta puramente militar muito dificilmente conseguirá resolver. O diálogo pode ser um instrumento útil para abordar os factores de pressão e de atracção subjacentes à radicalização e ao recrutamento de indivíduos dentro das comunidades.

A segunda dimensão do diálogo é a que envolve efectivamente ou conduz a negociações entre o Governo e os insurgentes, com vista a pôr termo aos confrontos militares. Embora não existam muitos exemplos bem-sucedidos deste tipo de diálogo no continente africano, há registos da vontade de o fazer. Um exemplo é o Governo do Mali, que manifestou interesse em encetar um diálogo com o maior grupo jihadista do país, o Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), para pôr termo ao seu conflito.
Para o caso de Cabo Delgado, existem iniciativas regionais (Peacemaking Advisory Group – PAG – baseado na África do Sul) e internacionais (caso da Advisory Group – DAG, baseado em Amsterdão) que têm como objectivo utilizar o diálogo para resolver o conflito em Cabo Delgado.

Todavia, o Governo moçambicano mostra pouca abertura para apoiar iniciativas de diálogo para a resolução do conflito em Cabo Delgado, o que compromete o sucesso das iniciativas de diálogo.

As iniciativas de diálogo existentes poderiam trabalhar na componente de diálogo entre o Governo e os insurgentes e poderia também trabalhar no sentido de facilitar o diálogo entre as comunidades e o Governo.

O Governo de Moçambique devia apoiar e criar condições para o trabalho das iniciativas de diálogo para a resolução de conflitos existentes, incluindo permitir-lhes o contacto com os insurgentes. Além disso, o Governo devia estar aberto a ouvir opiniões de especialistas sobre os possíveis factores de conflito e abordagens holísticas para a resolução de conflitos. É possível negociar com os insurgentes, basta o Governo querer!

O anúncio, quarta-feira, pela FIBA-África de que Moçambique não reunia requisitos para acolher a segunda janela de acesso ao Campeonato Africano de Basquetebol sénior masculino (“Afrobasket 2025”) veio, uma vez mais, destapar o véu sobre a incapacidade das autoridades desportivas nacionais em matéria de gestão de infra-estruturas.

Se, por um lado, o presidente da FIBA-Africa, Aníbal Manave, considerou um crime jogarem-se provas de dimensão internacional em condições de humidade muito altas (temperaturas acima dos 32 graus), por outro, deu clara indicação de que o órgão reitor do basquetebol africano já não vai pactuar com situações “paternalistas” de atribuir provas a um país sem pavilhões em condições, tal como aconteceu num passado recente.

É que, num cenário cada vez mais acelerado e contagiante de criação de melhores condições para a prática de basquetebol (pavilhões multiúsos, bem equipados) a que o continente tem assistido, revela-se cada vez menos sério jogar-se numa infra-estrutura descontinuada como o Pavilhão do Maxaquene. A FIBA-África (já) não quer normalizar o anormal.

O recinto há já algum tempo devia ter sido riscado para sediar provas internacionais de salão, mormente pelo facto de não apresentar um piso com qualidade, cadeiras confortáveis, marcador electrónico moderno, operador de 24 segundos, balneário com padrões internacionais e uma cobertura com problemas sérios de infiltração. Outrossim, os acessos à maior sala de visitas do basquetebol moçambicano estão fora dos padrões actualmente exigidos, colocando, decerto, em causa a segurança dos espectadores.

Aliás, porque o hábito faz o monge, sempre que chove, mesmos aos cantaros, parte da quadra fica “inundada”, recorrendo-se ao uso de baldes, pasme-se, para minimizar o problema.

É, decididamente, o “vê se te avias” para os atletas e árbitros que, num piso escorregadio, ficam a patinar até se cansarem. Um verdadeiro perigo à integridade física destes actores do basquetebol.

Mas o mais intrigante é que, em 2011, se fez um investimento de USD 3 milhões para a reabilitação do Pavilhão do Maxaquene, uma das infra-estruturas desportivas que acolheu os malfadados Jogos Africanos.

Pintou-se o recinto, fizeram-se intervenções na quadra, no tecto, no sistema de iluminação, mexeu-se nos balneários e reabilitou-se o campo de aquecimento, paredes-meia também com o Pavilhão do Desportivo. E depois?

Foi, claramente, tudo aquilo que se viu: a infra-estrutura secundária degradou-se, com o tempo, chegando mesmo a ter o seu tecto caído. No Pavilhão principal, mesmo com os retoques para acolher o “Afrobasket” 2013, a triste realidade alimenta as vistas de quem lá vai. Um autêntico forno!

O Comité Organizador dos Jogos Africanos prometeu intervir junto com o responsável da obra, mas não atravessou a fronteira de promessa.

“Tudo máfia”! Dinheiro do erário público jogado fora. Ninguém foi responsabilizado por falta de responsabilidade. Danos colaterais.

E a “corja” do COJA teve outros casos bicudos por gerir nos pavilhões do Estrela Vermelha e Universidade Eduardo Mondlane, que se beneficiaram, igualmente, de obras de melhoria.

O tempo provou que as intervenções não foram, nem tampouco, de vulto e que colocassem estas infra-estruturas na rota do modernismo. Hoje por hoje, alimenta-se o coro de lamentações pela inexistência de infra-estruturas desportivas pujantes.

Não conseguimos gerir o Estádio Nacional do Zimpeto e seus espaços adjacentes. Fomos obrigados a jogar fora (África do Sul) e a despender dinheiro para os Mambas jogarem no FNB Stadium, em Joanesburgo, diante do Ruanda no acesso ao CAN 2023.

Mas exultamos, há pouco, com o anúncio de financiamento pela Argélia de uma arena multiúsos, no valor de USD 30 milhões. É prioridade, actualmente, perante os problemas que o país atravessa? Quem irá gerir uma infra-estrutura de grande dimensão? Como? Há parcerias público-privadas já identificadas para que se tenha uma gestão empresarial? Temos pessoas capacitadas para fazer a gestão de uma arena multiúsos? Já olhamos para o modelo de gestão da Arena do Kilamba ou mesmo de Kigali, no Ruanda?

Esquecemos, pois, que, pela incompetência, se chegou mesmo ao extremo de “roubar-se” energia para alimentar o Pavilhão do Maxaquene. O recinto ficou alguns meses sem corrente eléctrica por conta de uma dívida à EDM. Vergonhoso, simplesmente.
Por nossa culpa, por nossa tão grande culpa, estamos onde estamos no que diz respeito às infra-estruturas desportivas. Corremos, hoje, para materializar algo que os outros pensaram e projectaram há muito tempo.

PS 1:
Moçambique vai aos Jogos Africanos de Acra, Gana, onde há expectativas de conquistar medalhas. Facto que faz escola cá, no burgo, é que os atletas não tiveram a preparação que desejavam

PS 2:
A Comissão de Gestão da Associação de Basquetebol da Cidade de Maputo está a dar um exemplo de inovação na modalidade da bola ao cesto. Destaque, igualmente, para a equipa jovem da Federação Moçambicana de Basquetebol que, em pouco tempo, conseguiu resolver alguns aspectos básicos na selecção, como autocarro para transporte e acesso ao ginásio. Há, claramente, muito trabalho pela frente.

A vida cria muitas sombras que fazem com que a mente humana tenha uma relação não fiel com a verdade. Muitas vezes a pressa e pressão da vida leva o ser humano a não ter pena e nem paixão de proteger os traços da verdade ou firmar um acordo, mesmo que seja precário, com a verdade. Há muita tendência do ser humano procurar se esconder em factores que minam o relacionamento com a verdade. O contorno da verdade muitas vezes afasta os seres humanos de terem um casamento honesto com a verdade. Por causa da falta de conhecimento de gestão dos desejos e vontades, muitos assassinam e sepultam a verdade gigante e superior que os animais da classe mammalia que pertence à família Elephantidae, em pleno raiar do sol, perigando o alcance da satisfação comum, mas, procurando satisfazer os desejos particulares. Muitas vezes contorna-se o imbondeiro da verdade, e esquece-se que a verdade nunca é pequena e ela vai se alojando sempre na esquina mágica do inconsciente, apesar do inconsciente na visão Freudiana ser entendido como acontecimento para o pensamento, e esse acontecimento concerne não apenas ao estatuto do sujeito e a história do desejo, mas também a natureza e aos contornos da verdade”. 

O que fragiliza o relacionamento com a verdade, é o facto da verdade perder o seu ser com o tempo e, a imagem da verdade é muitas vezes desenhada para ter a forma, que vai ao encontro dos valores criados pela mente ou grupo de mentes que tem vontade restrita para satisfazer. O contorno da verdade é visto como o único caminho que leva a mente ao alcance da satisfação da vontade. Muitos separam-se da verdade mesmo depois de proferir em sede da mente, que irão viver com a verdade em todas situações. Há muitos factores que invadem a mente para estruturar uma verdade, principalmente, a verdade social que respeita os valores que cobrem a verdade pura. A separação com a verdade surge muitas vezes quando a sinceridade se torna ausente no relacionamento com a verdade. Para relacionar-se com a verdade, é preciso estar sempre atento ao conjunto de valores, que vão ao encontro dos princípios éticos e morais de uma determinada sociedade ou grupo social. É verdade que pode existir o relativismo no significado da palavra verdade, mas, é mesmo surreal quando o relativismo é imposto pelo segmento não significativo dum determinado grupo. Muitas vezes o que desliga os indivíduos da relação com a verdade é o peso superior que estes atribuem a «autonomia da vontade», sem, no entanto, reparar na mentira escondida nessa vontade, que vai entrar em conflito com os valores que a verdade exige. Muitas vezes o casamento com a verdade tem sido um relacionamento efêmero porque, às vezes a vontade de satisfazer o Eu, muitas vezes, arquiteta pinturas duma verdade com fundo de mentira verdadeira, que cria ilusão a mente. Como bem elucida a filosofia Alemã que “a verdade se dá através dos fenômenos que são observáveis, perceptíveis e sensíveis, verdade esta que reside na essência do indivíduo”

A exclusão que o indivíduo atribui a verdade, tortura e castiga de forma perpétua a mente. A mente de um ser normal não consegue desfazer-se das pequenas verdades   e em cada segundo que o ser se afasta do seu louco, e envolve-se em tempo curto com a lucidez, a mente retira do inconsciente a cada vírgula da verdade julgada de forma injusta. As marcas deixadas pela verdade no chão da  mente, são indeléveis. 

Na metafísica de Aristóteles existe uma máxima que diz: “Dizer do que ė que não ė, ou do que não ė que ė, ė falso enquanto dizer do que ė que ė, o do que não ė que não ė, ė verdade”.

Na Sociedade da qual faço parte, é comum ver as mulheres que pedem dinheiro a homens serem julgadas, muitas vezes recebendo tratamento desrespeitoso. Elas são alvo de estereótipos de género, perpetuando uma visão limitada e prejudicial que precisa ser revista. Desde a minha infância, tenho ouvido a ideia de que as mulheres devem ser boas donas de casa, cuidar dos lares e das crianças, enquanto os homens devem buscar trabalho para sustentar suas famílias. Esta visão estereotipada de género nutre a nossa sociedade de crenças limitantes que, de facto, merecem ser repensadas.

Imaginem se encorajarmos tanto homens quanto mulheres a buscarem educação e oportunidades de carreira de forma igualitária para sustentar a si mesmos. Será que precisaríamos rotular e julgar mulheres com base em suas escolhas? Infelizmente, muitas meninas são privadas da educação, sendo sobrecarregadas com afazeres domésticos que as impedem de auto-conhecerem-se e desenvolver seu potencial, estas meninas são treinadas para serem “domésticas” onde devem cuidar dos seus maridos e filhos e a sua visão se torna logo cedo limitada àquela realidade, sem dar espaço à liberdade de pensamentos que as permitiram alcançar horizontes mais promissores e risonhos. Essa realidade evidencia como as oportunidades das mulheres são frequentemente limitadas desde cedo, enquanto os homens desfrutam de privilégios e liberdades. E depois a mesma sociedade que ensina que só os homens devem trabalhar para sustentar as mulheres, julga as ditas “posso te pedir algo” quando aplicam o que foram ensinadas desde cedo…

Desviar-se dos estereótipos de género, foi inconscientemente nossa base em casa, a prioridade de todos, meninas e rapazes, sempre foi a escola. Os relatos de minha própria experiência familiar ressaltam a importância de uma educação inclusiva e igualitária desde cedo. Meu pai, pai de três meninas e um rapaz, priorizou a educação de todos, enfatizando a importância dos estudos desde a infância. Ele nos guiava para estabelecermos metas de aprendizagem, validando actividades domésticas apenas se o estudo fosse priorizado, o que moldou minha mentalidade e prioridades ao longo da vida. Seu comprometimento com uma educação igualitária é um exemplo vivo de como a mudança de mentalidade pode começar no ambiente familiar, gerando impacto positivo para as futuras gerações. Tanto é que quero que outras meninas/mulheres, tenham a oportunidade de ver o mundo nesta perspetiva.

Tomem como exemplo o meu irmão Imelde Jauane, que quando comecei a escrever sobre a Equidade de Género e temas transversais sociais, dentre os meus irmãos foi o que mais me deu apoio. Outrora, enquanto meu pai já era falecido, praticamente “obrigou-me” a ingressar no ensino técnico profissional, com vista a ter uma formação que me possibilitasse facilmente ingressar no mercado laboral e assim alcançar a minha independência financeira. 

Ao discutir a importância de uma educação inclusiva, é essencial ressaltar o papel de toda a sociedade nesse processo de mudança. O envolvimento colectivo de pais, educadores e comunidades é crucial para criar uma cultura de igualdade de género e desconstruir visões estereotipadas. Assim, estaremos construindo um mundo mais igualitário, onde homens e mulheres possam usufruir das mesmas oportunidades, reconhecidos por suas capacidades e méritos, não por convenções sociais restritivas.

Vamos incentivar uma educação mais inclusiva, que prepare tanto meninos quanto meninas para despertar o seu potencial rumo a um futuro onde possam alcançar sucessos, independentemente do género. 

Recordo-me que minha mãe sempre exigiu que o meu irmão Imelde, aprendesse a cozinhar logo cedo, mas em outras famílias isso não é permitido porque quem trata da cozinha é a mulher… mas, hoje compreendo que a educação e princípios moldam aquilo que seremos no futuro. Ensinar homens as tarefas domésticas não os torna menos masculinos, pelo contrário, os acrescenta. E faz com que estejam preparados para qualquer adversidade da vida. 

Porquê não ensinar as mulheres e os homens desde cedo a investir na sua educação e crescimento profissional? Se educássemos nossos filhos e filhas de forma mais inclusiva, em 20/30 anos não teríamos uma sociedade melhor? 

É importante ressaltar que defender a igualdade de género não significa desvalorizar as características únicas de homens e também de mulheres. Reconheço as diferenças físicas e biológicas, mas questiono a justiça em privar as mulheres de oportunidades com base apenas em seu género. É fundamental repensar os padrões sociais que colocam as mulheres em desvantagem e limitam seu potencial de crescimento e sucesso.

Mas será que no meio da sociedade, por terem nascido diferentes, isso faz com que as mulheres devam estar em posição de desvantagem? 

Uma questão para a reflexão de todos.

Ante o olhar impávido e sereno das autoridades policiais, o crime de rapto vai-se impregnando no país e tornando-se uma moda esbelta, intáctil e completamente impune. Indesejável e nefasta para o ambiente socioeconómico, não se percebe o porquê de tanta inércia no combate. Um deixa andar desolador e estrangulador.

Começou como uma aventura que nos lembrava os filmes de Hollywood, mas tão rápido saiu da ficção para pura e dura realidade. Os amadores sucumbiram, inspiraram os predadores que agora tomaram conta da zona com incursões mais sofisticadas e inteligentes.

Mas falar de inteligência neste tipo de crime, em Moçambique, é subestimar a própria inteligência. Porque basta uma dose de inteligência permitida para lograr resultados mínimos. Só que, de onde deve emanar a ordem de avanço, reina a teia que complexifica as operações, agita as peças do puzzle e, num jogo louco, brinca-se de apenas querer montar.

Com o aparente querer na montra, para falsear a confiança do povo, exibe-se o peixe miúdo, os coitados que nunca sabem porque entraram no esquema, para quem trabalham e muitos menos quanto se movimenta nestas operações. Funcionam como anzóis descartáveis que trocam a liberdade por migalhas. Lembram-me o que tanto ouvi da minha querida mãe, quando criança, com o objectivo de me disciplinar: “quando a cabeça não regula, o corpo é que paga”.

Pois é, estes fazem mal as contas e, no final, pagam a factura. Ficam socialmente expostos e com o futuro lixado.

Já o peixe graúdo, desconhecido, mas não oculto, desfila impune e altivo entre os corredores da alta sociedade, crava respeito social e brinda-nos com um alto perfil reputacional. A podridão que o caracteriza fede apenas no seu consciente, se eventualmente tiver laivos de lucidez. Age como animal felino, predador que contempla a sua vítima com aparente desinteresse e ataca-na sorrateiramente quando menos se espera. Usa tácticas simples, que os que verdadeiramente ganharam experiência no combate ao crime de rapto conhecem, porém, acuados de medo e limitados de agir, defendem a vida com o silêncio cúmplice e propositada cegueira. Por vezes, são chamados a integrar as fileiras do crime e, porque obedecer é a palavra de ordem, alinham. Mas o mais triste é que eles mesmos desconhecem o quão superior ou lateral é a ordem. Também tacteiam a verdade como crianças às cabras-cegas.

Nos murmúrios sociais, ouvimos de tudo um pouco. Várias teorias são tecidas, mas sempre em voz baixa, e por vezes até temos de nos agachar para captar os sussurros em desmaio. É isso mesmo. Sobre este tema, ninguém levanta a voz. Todos sabem de tudo, mesmo quando pouco ou nada sabem. Os mandantes, os implicados, os inocentes alistados, a sequência, o plano operacional e os motivos são sobejamente conhecidos. O que se deveria fazer e como se deveria actuar também sabem. Os craques de bancada abundam, mas ficam obscurecidos na sua covardia. Das tantas camadas deste tema, muitos só conhecem algumas. É, na verdade, o véu que ninguém levanta.

O Serviço Nacional de Investigação Criminal, vezes sem conta, expõe-se ao ridículo em conferências de imprensa com resultados superficiais. Apressa-se em apresentar trabalho com os “…inhos” do processo, sem conseguir ludibriar a consciência colectiva. Tem passo célere para escamotear e letárgico para apurar.

Entre informação e desinformação, o certo é que nada é eterno e nesta premissa podemos ancorar a nossa esperança. Porém, não basta querer e ficar parado. Podemos poderosamente exercer o nosso direito cívico e escrever a história que sonhamos para esta ou para as futuras gerações.

Precisamos de uma liderança com capacidade de fazer restart e de tecer novas linhas da nossa história, com os não contaminados.

Cada livro deve ser uma
pincelada num grande quadro.
-Jean Cocteau

 

O livro não tinha sido ainda apresentado ao público e muito menos decorava as estantes das livrarias, todavia, nas conversas de ocasião, já se cogitava sobre o seu conteúdo. Imaginavam-se parágrafos extensos, contundentes, atirando cocktais molotovis contra o actual presidente da “nossa república”. “Assim não, senhor Presidente”, propiciava esta expectativa, por vivermos momentos de alguma conturbação política, de algum desencanto, onde, com ou sem razão, vemos reeditados os murmúrios do povo, do cidadão moçambicano, quão povo de Israel no deserto, depois de liberto das masmorras do Faraó, no Egipto, à caminho de Canaã. Apesar de os murmúrios serem outros, em vez de se reclamar ao Moisés porque nunca mais se chega a Terra Prometida e estar-se cansados de comer manã, murmura-se porque no nosso Canaã, o leite e o mel que jorram não está a chegar para todos, enquanto alguns o desperdiçam outros apenas lhe sentem o cheiro ou, quando mais afortunados, lambem as bordas dos potes transbordantes dos que têm o domínio da manada e das colmeias. Murmura-se também porque o “Faraó” multiplicou-se, infiltrou-se, transformou-se em formigas e está a atacar o mel e o leite que jorram no chão do nosso Canaã.

Dizíamos que o livro não estava ainda nas estantes das livrarias e sobre ele existiam várias cogitações, facto bastante previsível se considerarmos a curiosidade que habitualmente antecede a apresentação duma obra deste autor, e neste caso uma curiosidade acentuada pela sugestibilidade do título: a que presidente o Ungulani se referia no seu livro? Estaria mesmo a falar do nosso Presidente da República? Porventura, estaria a dissertar sobre o Presidente duma Cooperativa de Consumo? Estaria o Ungulani a falar do Presidente de uma agremiação desportiva ou então duma Associação de Engraxadores? A expectativa manteve-se até ao lançamento do livro, até cada leitor adquirir o seu exemplar e começar a “devorá-lo”. Só depois da leitura é que se acendeu a luz e se descobriu que o livro revisitava a história deste nosso belo Moçambique que vai fazendo o seu percurso rumo a encontrar o seu melhor caminho, a encontrar o melhor de si mesmo.

O quadro narrativo que se oferece nesta obra resume o desmoronar duma expectativa e a aparente dificuldade de se construir uma outra. Ungulani deixa neste livro de se preocupar com as habilidades literárias modernaças, como diria o crítico literário Fernando Venâncio, para se assumir apenas como arauto de um tempo que ninguém deve se esquecer. Para a criação desse quadro narrativo quis a providência que se criasse uma cumplicidade entre o historiador que Ungulani é, e o escritor cujos méritos são por todos nós reconhecidos. Ambos sentiram esse apelo incontornável de revisitar a história, por um lado o escritor, com toda a largueza de voo e de ficcionar a realidade que lhe é permitido, por outro lado o historiador tentando estabelecer uma interpretação histórica que permitisse grafar uma época da nossa realidade. De modo que ambos, o escritor e o historiador, decidiram exilar-se nas terras de Marracuene, a comer o peixe grelhado do seu encantamento e a desfrutar a inefável frescura das águas do rio Incomáti enquanto preenchiam as páginas deste livro. E diga-se: não somente se inspiraram no sabor do peixe grelhado como o livro Assim não, senhor Presidente se viu abastado nas suas páginas de saborosas iguarias moçambicanas que prestáveis cozinheiros pretos colocavam à mesa nas casas do patrão colono.

“Assim não, senhor Presidente” é um livro perturbador, como aliás, se tornam perturbadoras as obras literárias que experimentam mergulhar nos meandros políticos. Ouso afirmar que no decorrer das quatro décadas que decorreram no nosso desafio de construção duma Nação, nunca uma obra foi tão contundente, tão corajosa, como esta recente obra do Ungulani. Diria, a propósito, o jornalista e escritor Daniel da Costa, que se trata de “um livro surpreendentemente cáustico, um autêntico manifesto. Livro premonitório, de um autor preocupadíssimo com o seu tempo, com o rumo dos acontecimentos em Moçambique”. Estamos, apesar dos temas controversos que aborda, perante um Ungulani mais sereno, a sua escrita deixou de ser tempestuosa, as ondas turbulentas que encontramos nos anteriores livros amainaram. Busca, agora, uma narrativa simples que se evidencia nas longas descrições como também nos significativos diálogos. Ungulani, neste seu livro, apenas se preocupa em deixar marcas dos lugares e pessoas que caracterizaram uma determinada época histórica, pois, como é sabido, a Literatura serve também a Memória, já que possui o poder de imortalizar os espaços, os tempos e as lembranças. Sentir-se-ão talvez desapontados os que esperavam encontrar neste livro de Ungulani Baka Khosa aquela narrativa fabulosa, surrealista a que nos remeteram algumas obras do autor, tais como “Orgia dos Loucos”,” Choriro” ou “Os Sobreviventes da Noite”. Creio que a escrita que agora o Ungulani nos oferece busca outros destinos, ensaia outros voos, e cada vez que o lemos fica-nos essa agradável sensação de que algo se moveu e algo sempre se transforma na sua escrita.

O livro começa descrevendo o início das coisas. A proclamação da República. A implantação do poder colectivo. A morte do eu e a criação do nós e cito: “Não havia pessoa. O nome, essa marca socialmente aceite como distintivo, como pertença, como exteriorização do ADN diferenciador, esvaziava-se no colectivo, nos grupos de vigilância, nas células de base”. Fim de citação. O que o autor pretende deixar ficar é que a partir de determinada altura as regras do jogo mudaram duma forma profunda, abalando aquilo que desde sempre vinha sendo o modus vivendi. Os discursos tornaram-se diferentes. Criaram-se novos ícones. As novas palavras de ordem tentavam fazer esquecer um passado que ainda teimava em fazer-se presente. Escreve aliás o Ungulani: “Ninguém se preocupava com o passado remoto, com os valores de antanho; a história faz-se do presente e com um passado a remontar ao tempo da vitoriosa luta de libertação nacional. Todos os bons exemplos foram colhidos nas zonas libertadas durante o tempo da guerra. Nada é valorizado fora dessas experiências. O sofrimento, a dor e a resistência dos presos políticos, a memória de centenas e centenas de patriotas que morreram e outros que resistiram às mãos dos algozes da polícia e da política do governo fascista português, foram deitados no caixote de lixo.” E aqui termina a citação.

Depois, ao longo da leitura, o desfile de acontecimentos que marcaram de forma indelével a nossa história, os nossos podres, o nosso lado mais censurável, a perseguição dos que olhavam de forma reticente o sistema político a seguir, aqueles que “a nação nascente não lhes devia pertencer”. Os campos de reeducação. Os fuzilamentos. As chicotadas. As tramas políticas onde alguns de nós, segundo Ungulani, comportavam-se como uma quizumba, animal oportunista, sempre à espreita, e que ao mínimo deslize aproveita-se do esforço alheio. Segundo o Ungulani, o país estava cheio de quizumbas, gente que não queria trabalhar, sempre à espera da melhor oportunidade para se sentir bem na vida. E ainda ao longo da leitura nos confrontamos com o início da debandada dos brancos apavorados com a proximidade do comunismo e o medo atroz do poder popular. E como não quisessem viver sob o governo de pretos, muitos começaram a emigrar para a Africa do Sul e para a Rodésia, territórios sob o domínio de governos minoritários brancos. As pontes aéreas entre Lourenço Marques e Lisboa aumentaram de número. O tráfego marítimo de retorno a pátria portuguesa aumentou. Apesar de tudo Moçambique perseguiu o caminho que havia traçado, um caminho cheio de espinhos, de derrotas e vitórias, de interrogações e incertezas. Lutava-se pela revolução.

O que também se desmoronou, segundo o autor do Assim Não, senhor Presidente, não foi somente o homem, a cidade também se deteriorou. Ungulani fala das “descoloridas varandas com ferros retorcidos, às margens da avenida, às lascas de tinta sem cor a descolarem-se das enormes paredes dos prédios precocemente envelhecidos, às grades de ferro de cor indistinta nas vivendas sem alegria, às acácias tristes e a desfalecerem, meio moribundas, nos passeios, sob o efeito mortífero da urina que os transeuntes, em total desafecto, despejavam nos troncos feitos urinóis.” O autor traz-nos, pois, uma imagem sombria dum lugar que perdeu o seu esplendor. A mensagem que se pretende deixar, penso, é que a cidade pode voltar a ser aquilo que se pretende que seja, isto é, recuperar o seu esplendor, a partir do momento que recuperemos essa maneira de ser que um dia se perdeu nos caminhos da vida. Precisamos de recuperar a nossa cidade. A sua beleza. A sua alma. A sua paisagem. Dizia, aliás, Fernando Pessoa, que “a paisagem é um estado de alma”.

Assim não, Senhor Presidente é um livro que nos remete a uma certa tristeza e amargura quando lemos, página a página, sobre os “infortúnios” que se abateram na Nação moçambicana durante uma governação que se pretendeu revolucionária. As duzentas e quatro páginas que Ungulani nos oferece quase que sufocam outras realizações de ordem social que a revolução marxista ofereceu ao seu povo. Em algum momento nos questionamos se terá sido boa a revolução e se os seus intentos terão sido alcançados. Esta é uma das linhas de debate que este livro pretende levantar e cuja resposta sairá, certamente, em cada um de nós. Mas convenhamos, o que marca os grandes momentos históricos são as coisas negativas, são elas que permanecem e se tornam marcantes. E perante esse facto nada se pode fazer. De resto, como muito bem o disse a escritora Lídia Jorge, autora do clássico livro A Costa dos Murmúrios, “não pensamos todos da mesma maneira os fenómenos sociais”. Ainda bem que é assim, porque isso possibilita que existam visões diferentes dum País ou processo histórico, afinal de contas uma moeda é necessariamente constituída pelas suas duas faces. Mas o que considero interessante neste livro é o exercício da memória, a retenção da história, exaltada por uns e negado por outros, como o filósofo alemão Hegel ao afirmar que “A História nos ensina que a História não nos ensina nada”. Ungulani, ao escrever este livro, tinha a dimensão das inúmeras questões que poderiam ser levantadas em torno do seu conteúdo, e é salutar que isso esteja a acontecer, principalmente quando essas questões giram em torno duma literatura nova, em crescendo, como a moçambicana.

Com esta obra, creio que teremos dois tipos de leitores, os que vão se sentir incomodados com a crueza desta abordagem, indignados por esta leitura despudorada sobre os ideais dum sistema que esta narrativa de Ungulani desconstrói; e, por outro lado, leitores que se sentirão recompensados e satisfeitos por as palavras e as histórias deste livro se prolongarem neles próprios e trazer duma forma singular a verdade dum tempo que também lhes pertenceu e os marcou duma forma profunda. Em suma, o “Assim não, senhor Presidente”, oferece-nos uma face da moeda sobre a nossa história na primeira governação depois da independência. Digamos que se trata de um exorcismo que traduz um acto de cidadania. Ungulani cobriu uma importante etapa da nossa história, cabe agora a todos nós termos a ousadia de incorporar no corpus literário moçambicano outras obras com reflexões capazes de traduzir os passos deste país ainda em construção.

Marcelo Panguana
Bilene, dezembro de 2023

 

Muito sangue jorra entre as matas da terra que abriu caminhos para a independência. Afinal, o primeiro tiro ou a sua história viriam a amaldiçoar um povo? Ao celebrarmos a independência, construímos histórias triunfalistas, epopeias de um povo entusiasmado pela vitória. Desenhámos no imaginário colectivo heróis cuja experiência atravessaria gerações e fortificaria a guarda da nossa pátria pela eternidade. Mas quando mal se perdia o eco do grito da vitória, as muralhas tornavam-se tijolos soltos e sem arquitectura, denunciando a nossa frágil força combativa. Amaldiçoados por todos os males, vivemos 16 anos de guerra, com seca, cheias e muita fome à mistura.

No princípio da década 90, o arco-íris brilhou com a assinatura dos Acordos de Paz, em Outubro de 1992. Sol de pouca dura saboreámos. Docinho roubado na boca, antes mesmo do tacto ou a sensação do adocicado emergir. A tão almejada democracia tornou-se uma banheira de pólvora. Em cada ciclo eleitoral, o povo mergulhava e enfrentava a artilharia de guerra da Renamo, que agitava as águas em protesto contra os resultados proclamados, e até mesmo pela vaidade de exibição da sua musculatura militar e táctica de guerra. De intervalo em intervalo, experimentámos a paz emprestada a prazo incerto.

Calejados deste sofrimento, a história quis poupar-nos e silenciou as armas da Renamo, mas não nos disse que era apenas um intervalo e que novos engenhos viriam, subitamente, em nossa direcção a partir de Cabo Delgado. Seis anos passaram-se e o que se augurava passageiro fez morada e habita tranquilamente entre nós, semeando luto e dor entre os moçambicanos. Os sistemáticos ataques terroristas deixam uma trilha de destruição e desespero e desfazem o futuro de comunidades.

O Governo, reconhecendo a gravidade da situação, aceitou ajuda de forças estrangeiras, porém os resultados têm uma positividade instantânea.

Vivendo em constante estado de terror, os inúmeros episódios traumáticos levaram a que milhares de vítimas desabrigadas procurassem amparo em terras vizinhas, como Nampula e Quelimane, e um pouco pelas demais províncias do país. Mas quando os terroristas fingiram fragilidade e deram uma pausa estratégica, impingiram-nos, precipitadamente, a ideia de vitória e de controlo da província. Ansioso por retornar às origens, o povo migrante de Cabo Delgado foi, aos poucos, testando essa tese, mas tramou-se. Novos ataques colocaram a nu esta fantasia e esvaiu-se a esperança com o agudizar do conflito nos últimos dias.

Um novo episódio de drama humanitário avizinha-se. Esta semana, mais de 20 mil pessoas do distrito de Chiúre, em Cabo Delgado, saíram em pânico à procura de abrigo seguro. Muitos seguiram para o distrito de Eráti, em Nampula, percorrendo cerca de 60 km a pé em busca de socorro, um socorro que não veio. A equipa da STV trouxe aos olhos da audiência a lamentável situação de abandono a que estavam sujeitos. A qualidade de resposta do Instituto Nacional de Gestão e Redução do Risco de Desastres é um autêntico desastre.

Passaram-se 24 horas sem que esta equipa de emergência percebesse a emergência em que mais de cinco mil crianças e cerca de 15 mil adultos estavam. É inadmissível a insensibilidade do Governo para com um povo que vive calejado de dor e em permanente crise, há mais de seis anos. É dever do Governo garantir o bem-estar dos cidadãos e ajuda humanitária, quando necessária, tal e qual a situação exigia. Mas não! O que ouvimos foi que a população se precipitou ou mesmo que ela deveria produzir e não ficar infinitamente à espera de apoio. Palavras que os padres, na sua humilde interpretação, consideram inocentes e oram pelo perdão de quem as profere. É lamentável. Cometemos erros com uma arrogância fútil e fugimos da realidade com extraordinária insensatez. O apelo à produção, indubitavelmente, não foi oportuno.

Largados à sua própria sorte, quando o ronco da fome soou mais alto, muitas famílias se lançaram à estrada e, debaixo de um calor escaldante, percorreram quilómetros de estradas para sobreviver, entre o risco da morte por bala ou catana e a hipótese de prover alimentos e escapar à morte por fome. Guiados pela lei da sobrevivência, com crianças ao colo, estes vão, naturalmente, desenvolver novas crenças e ressignificar as suas vidas. É a lei de esforço invertido que agora lhes fará sentido.

Ignorar o sofrimento deste povo é igual a esquecer que as pessoas que sofrem com acontecimentos traumáticos e se superam a si próprias traçam novas filosofias de vida. Neste caso, o Governo pode tornar-se parente distante e os terroristas, mais próximos. Estamos órfãos, órfãos de pais vivos, e quem nos está a adoptar são os terroristas.

Moçambique, SURGE ET AMBULA. Ainda há tempo.

Escrevi e publiquei recentemente dois artigos de opinião. Um tinha como título (IN) Dependência: Não se esqueçam de voltar e, o outro, A Demissão do Povo. No primeiro, tentei fazer um chamamento aos libertadores de ontem, por alguns considerados opressores de hoje; conforme pode ler-se num dos parágrafos do artigo: “Os nossos libertadores, os nossos heróis e os nossos referenciais de luta e verticalidade foram se transfigurando ao sabor do vento, e alguns deles viraram, nossos opressores. Nasceram elites negras, que se esqueceram dos ideais da revolução e se preocuparam em vestir a máscara de ovelha em corpo de lobo. Os nossos libertadores, tornaram-se obcecados pelo poder e pela posição de destaque no banquete pós-independência. Recriamos e personificamos a aquilo a que Frantz Fanon designou de “Pele Negra e Máscaras Brancas”, onde pretos oprimem outros pretos e se acham dignos para o fazer em virtude do tempo emprestado na mocidade e juventude para que fossemos hoje o país livre que somos. E Será que realmente somos?”

No segundo, A Demissão do Povo, iniciei aludindo o facto de o povo ter sido demitido. Em diálogo aceso entre eu, a folha e a esferográfica, não sabia se dizia que o povo se demitiu ou se o povo foi demitido.

Disse: “O povo foi demitido do seu papel de fiscalizador. Foi demitido de monitorar, de reclamar, de pedir para ter dignidade mínima. (…) A pobreza generalizou, as assimetrias agudizaram, a corrupção institucionalizou-se, as liberdades reduziram-se, o espaço cívico afunilou-se, e o povo começou a sentir-se estranho na sua própria terra.”

Longe de pretender fazer futurologia, o alcance era lançar uma reflexão em torno do país que estamos a (des) construir, e perspectivar o amanhã que queremos para nós. Revisitei estes dois textos e vi neles alguma actualidade. Encontrei neles o mote para escrever este artigo que baptizei de resignificar Moçambique. Por resignificar entenda-se a necessidade de dar um novo significado ou recuperar a mística que com o tempo fomos perdendo – A mística da moçambicanidade.

Ouvi, recentemente, a mamã Graça Machel, numa das suas aparições públicas – se dirigir ao povo no geral, mas focando mais à juventude como alvo. Um dos pontos que mais chamou atenção foi quando ela disse: “Jovens, não se sentem em cima do legado de Samora (…) Não deixem o legado deste grande homem se perder.” Entendi como um recado, como uma chamada à acção e um convite à reflexão sobre o legado do Primeiro Presidente de Moçambique independente; à preservação e seguimento do legado deste estandarte da nossa moçambicanidade.

Na cerimónia de outorga do Doutoramento Honoris Causa à renomada e consagrada escritora e activista social – Paulina Chiziane, durante a sua alocução disse em viva voz, socorrendo-se do famoso adágio popular – “A boa fruta se conhece pela sua árvore”; a fruta que temos hoje é azeda, é tirana. O que se passa com a árvore então? E quem é a árvore? – indagou.

A árvore somos nós os mais velhos; somos nós que dirigimos o estado, as instituições, as religiões e a sociedade. E se essa geração esta assim, é porque alguma coisa está errada na árvore. – Retorquiu!

Poderia trazer algumas vozes que ecoam de forma audível entre os mais comprometidos com o projecto de dar um rumo ao país. Vozes de valor agregado para o debate da construção de uma nação em que os valores sociais são mais importantes que todos restantes. Severino Ngoenha, Adriano Nuvunga, Óscar Monteiro, Teodoro Waty, Elísio Macamo, Mia Couto, e outros tantos nomes que não trarei por economia de tempo e espaço, são unanimes em afirmar que precisamos repensar Moçambique e dar um significado a luta pela independência e construção do Estado-nação.

Urge pensar um país mais inclusivo, onde as liberdades individuais e colectivas sejam respeitadas. Um país com independência das instituições, dos três poderes e com uma máquina estatal mais capaz, progressista, comprometida e livre de amarras político-partidárias. Um país em que a corrupção, o despesismo e o nepotismo não figurem entre as primeiras palavras do dicionário social e político.

Precisamos criar uma narrativa para o presente e que possa criar bases de um futuro onde a moçambicanidade possa rimar com a integridade. Uma narrativa que se desconstrói a ideia de existência de sucesso sem trabalho, sem mérito e sem sacrifício. Uma narrativa que coloca o cidadão, e a pessoa humana no centro de todo o processo governativo e como elemento primordial para o desenvolvimento do país. Enfim, uma narrativa que o forte não é quem tem mais recursos e mais poder, mas aquele que pensa de forma mais inclusiva, englobante e acima de tudo nutre amor pelo país.

Precisamos igualmente de sedimentar o pluralismo na nossa sociedade; revigorar a unidade nacional e a aceitação do diferente, combatendo o divisionismo e o etnicismo. Uma sociedade em que os vários pensares confluem para a solidificação deste longo, contínuo e complexo processo da moçambicanização da nossa identidade, de edificação de bases fortes para uma governação forte, altruísta e progressista.

No país conhecido comummente como o país de Mondlane e Machel, onde as liberdades vem sendo sistematicamente reprimidas e asfixiadas, a dúvida é uma realidade não assumida e o medo tomou conta de vários sedimentos da sociedade.

Sim, temos medo de reivindicar o direito de sermos nós mesmos. Sentimento este que gera um questionamento sobre o nosso contributo social e humano para o país, e ao mesmo tempo convida-nos a abandonar esta longa noite escura que nos engole; noite esta caracterizada por discursos vazios, demagogias e descrédito sobre o nosso ser como país.

Agora temos dúvidas sobre a nossa gloriosa epopeia e medo de afirmar que Moçambique é dos Moçambicanos. Parafraseando Mia Couto: Há quem tenha medo que o próprio medo acabe. E eu acrescento, que há quem tenha medo de dormir e acordar sem personalidade jurídica.

A herança da violência do homem branco contra o homem preto – o chicote colonial -, não pode nem deve ser replicada pelas instituições de defesa nem pelos famosos esquadrões na sua mais crua forma de reprimir aquilo que julgávamos ter conquistado com a independência – a liberdade, o direito à autodeterminação e a participação no processo de construção de um estado-nação.

É meu entendimento, e talvez não apenas meu, que a bolha social da tolerância estoirou, e, é resultado de um acumular de situações que levaram anos e talvez décadas para se cristalizarem. Com ela (a bolha social), emergem e as ditas formas de ação popular punitiva e apelo a alternativa e a alternância, ainda que se subassuma que seria mais do mesmo. Nesta manifestação silenciosa, mas bastante ruidosa assistimos a segunda vaga da auto-demissão do povo.

Neste exercício de resignificar precisamos buscar as referências e as bases da criação do nosso Estado – O Estado que outrora foi motivo e objecto de orgulho e júbilo. Um estado onde o bem-estar social e o respeito pelas liberdades individuais e colectivas são respeitadas; onde a educação é um instrumento emancipador e não fonte de opressão e destruição, e onde os mais básicos serviços estejam disponíveis para a maioria.

Entre consonâncias e dissonâncias, uma coisa está a ganhar forma – há uma tentativa de busca incessante por um significado para a nossa existência como povo – a busca por um futuro melhor em que todos nos sintamos parte integral e integrante deste projecto chamado desenvolvimento.

No final o sonho de todos é apenas ter um Moçambique para todos.

Semear o medo que propicia o florescimento do afecto, fertilizar o receio de perder um olhar que não desvia a atenção do amor, abandonar o medo que convida a um carinho fascinante – são imperativos para a edificação de um castelo de sentimentos. Sim, é vital a apropriação desse medo que aduba o terreno do amor sincero. Quando se dissolve o medo de amar, o temor de perder um afecto, encerra-se uma grandiosa marcha pelo deserto que conduz o coração à terra prometida do amor.

O medo benéfico não julga o amor, ao contrário, rejuvenesce a ânsia de amar e perpetua a vida em um eterno cárcere de afecto a dois. Esse medo nobre insufla uma humildade sincera no amor, transformando a existência em algo sempre simples e belo.

Como evitar a perda do temor de perder um grande amor e a fantasia da paixão que pinta em nosso comportamento distraído quadros de amor com cores que ocultam ilusões e deturpam as figuras reais das experiências vividas? A ausência desse medo promove promessas de amor tingidas em ouro, tatuadas na arte de uma verdadeira mentira. O medo saudável se dissipa quando submetemos a fonte do amor a temperaturas elevadas, permitindo que as folhas da humildade chamusquem e exalem o perfume do amor autêntico.

Ao perdermos a honesta humildade e a leal cumplicidade no amor, a vida perde o sentido de alcançar a plenitude. O medo benéfico auxilia na expressão de sentimentos naturais, sem receio de críticas. A ausência da inteligência desse medo propicia uma operação na consciência sem anestesia, expondo os neurónios do amor à dor que ressuscita os nervos, mantendo viva a chama, a vida no amor e o conhecimento da filosofia do medo.

As pessoas necessitam extinguir os conflitos no céu do amor, garantindo paraquedas com cordas de experiências que unem corações e constroem laços para que os problemas não apaguem as saudades do beijo e carinho que edificam desejos de uma eternidade amorosa. Os corações precisam se importar não com as dificuldades formadas pelas ondas do mar do amor, mas sim com o que mais importa na plantação de letras que cultivam lembranças vislumbrando a vida para além do horizonte.

Às vezes, a vida não é justa para uma multidão de almas justas, mas não é necessário quebrar a existência, pois seu concerto pode ser desafiador. Por vezes, é preciso acreditar na ilusão da óptica do pensamento para corrigir as imagens sombrias do passado com as cores nítidas do presente. É necessário compreender que o mal e o bem coabitam nos corações humanos, cabendo a cada dedo do coração escolher a opção correcta. Em certas ocasiões, pode ser imperativo renunciar às demandas naturais das relações humanas para harmonizar o amor a dois. Tudo isso se torna possível quando se valoriza o medo de perder o que clareia vivamente a vida.

O filósofo alemão Martin Heidegger, em seu texto intitulado “O Sentido do Medo”, defende que o ser humano possui uma disposição afectiva, uma abertura para vivenciar tudo que há no mundo. Os objectos, por si só, não despertam medo, mas sim a maneira como o indivíduo se relaciona com eles. O medo consiste na experiência de ameaça ao ser, retirando-o da confortável sensação de que tudo está em ordem e sob controle. O medo da perda de um objecto que tenha importância afectiva, por exemplo, pode significar uma ameaça à própria existência.

Quando minha mãe engravidou de mim, meu pai pediu-a para fazer um aborto. Ele não queria mais ter filhos, pois já era pai de duas meninas, e a probabilidade de ter uma terceira era maior. No entanto, minha mãe decidiu forçar e levar adiante a gestação, e assim nasci, uma menina. Meu pai esqueceu-se de sua posição anterior e celebrou o meu nascimento, orgulhoso por ser pai das “três irmãs”.

Na infância, eu era a melhor amiga do meu pai dentre as minhas irmãs, e ele o meu melhor amigo. Adorava ir ao futebol com ele e ficar sem camisa na varanda, mimetizando sua atitude. Sinto saudades do meu pai. Infelizmente, ele partiu, levando consigo o meu melhor amigo. No entanto, antes de partir, em seu estado de coma no hospital, ele ainda encontrou uma maneira de fazer-me chegar o que estava em seu coração. Na madrugada em que ele partiu, tive um sonho com ele, onde ele me disse: “Minha filha, estuda, a vida está difícil”, e mais nada disse. Ao acordar, tivemos a triste notícia de sua partida. Que descanse em paz!

Cresci e tornei-me mulher. Casei-me e, em determinado momento, fiquei grávida. Meu esposo estava eufórico pois seria pai pela primeira vez, e a expectativa dele era ter um menino. Isso criou em mim uma pressão psicológica e uma vontade de satisfazê-lo. Quando fiz a minha primeira ecografia para saber o sexo, a médica disse-me que parecia uma menina, mas não tinha certeza; que teríamos que esperar pela próxima ecografia. Após algum tempo, tivemos a certeza de que realmente carregava uma menina no meu ventre. Fiquei feliz, pois disse a mim mesma que teria uma “mini-eu”. Meu esposo, depois que ela nasceu, amou-a, talvez até mais do que eu, e continua a amá-la cada vez mais nos dias de hoje.

Com a minha própria experiência e outras que tenho acompanhado, percebi que na minha sociedade, ter um filho do sexo masculino é o que tem mais peso e mérito. Isso suscitou em mim a seguinte questão: até que ponto a sociedade moçambicana contribui para a discriminação e desigualdade de gênero?

A discriminação e desigualdade de gênero são questões profundamente enraizadas em muitas sociedades ao redor do mundo, incluindo a moçambicana. É vital que questionemos e desafiamos as normas estabelecidas, promovendo uma mentalidade mais igualitária, onde todos os filhos sejam valorizados e amados independentemente do sexo. A educação e a conscientização desempenham papéis fundamentais na mudança dessas percepções e na criação de uma sociedade mais justa e equitativa para todos.

Em certos pontos do meu país moçambique, muitas mulheres perdem seus lares por não poder conceber e em casos piores pelo facto de não conseguirem ter filhos do sexo masculino, são desprezadas e não tem valor nestas mesmas sociedades.

As dificuldades que as mulheres enfrentam em Moçambique devido à pressão para conceberem e terem filhos do sexo masculino são profundamente perturbadoras e refletem normas culturais arraigadas que perpetuam a desigualdade de gênero. É fundamental aumentar a conscientização sobre essas questões e promover a mudança nas atitudes sociais para garantir que todas as mulheres sejam valorizadas independentemente de sua capacidade reprodutiva.

Para combater esse tipo de discriminação e exclusão, é necessário um esforço coletivo que envolva a sensibilização pública, a promoção da igualdade de gênero e o fortalecimento das leis e políticas que protegem os direitos das mulheres. Além disso, é crucial oferecer apoio e recursos às mulheres que enfrentam essas dificuldades, garantindo que elas tenham acesso a cuidados de saúde adequados e apoio emocional.

Essa é uma questão profundamente enraizada na sociedade, mas com um esforço contínuo e a promoção de valores que valorizem todas as pessoas independentemente do sexo, é possível trabalhar para uma sociedade mais justa e inclusiva em Moçambique.

Sinto-me honrado por fazer parte da geração de moçambicanos que, com alguma audácia, vai construindo e narrando a nossa história. É gratificante saber que estamos percorrendo um caminho em que a nossa sapiência, como nação, está sendo registada por nós. É um exercício feito de forma institucional, no protótipo estatal, privado e por indivíduos que presumem ser parte complementar do registo dos factos da nossa nação. Porém – há sempre um «mas» – não estamos, internamente e com maior engajamento, a partilhar as fontes e a fazer circulá-las para que o circuito de lavra de conhecimento, registo e disseminação seja permanente e fecundo. Se a nossa herança material e imaterial serve de base para a construção do conhecimento histórico julgo ser importante e pertinente a liberalização e a partilha de fontes de informação. Sou persuadido a reconhecer que a matéria sobre a partilha de fontes é tão sensível por isso deve passar por parâmetros jurídicos e legais. E, sem rodeios, concordo em absoluto. Aceito que devemos ter parâmetros éticos para o manejo de fontes. Por isso, para ser mais específico deixo bem explicito que, neste artigo, falo de fontes socioculturais e, sem quisermos alargar mais a contestação, de fontes artísticas. [Sobre fontes bélicas e da legitimidade do primeiro tiro, deixo com os outros].

Na sociedade moçambicana, culturalmente, valorizamos os saberes escritos, os acervos e os registos vivos da tradição oral. Evidentemente, nem sempre são honrados de acordo com a sua importância. Muitos desses saberes ficam relegados, a maior parte do tempo, a uma condição de invisibilidade nos diversos subsistemas de partilha, réplica e divulgação de erudição. Assim é, pois são escondidos ou porque uma certa entidade (estatal, privada ou individual) crê que o mosaico que possui é de consumo exclusivo. Chegado a este obstáculo cabe questionar sobre os factores que fomentam essa condição: o quê faz uma entidade negar de partilhar fontes? Quais são as motivações para uma entidade ou uma pessoa com alguma notabilidade social negue de ser uma fonte? Sem nos apercebermos estamos a legitimar a catalogação negativa que sofremos ao longo dos séculos que engorda o seguinte pensamento: somos um povo, exclusivamente, oral e que não sabe ortografar a sua história. Sim, sem giros, estamos! Partilho para melhor percepção, acostando-me no ofício de editor, alguns contextos: individual e institucional. Embora, encarquilhados, servirão de exemplos.

No contexto individual parto da forma que me predispus a escrever/documentar, nos últimos anos, com uma logística insignificante e hiper-limitada, sobre o percurso de alguns cultores das nossas artes. Falo de dois tipos de autores: escritores e músicos, para ser mais específico. A primeira marcha, principal mas não única, para escrever sobre uma personalidade artística é aproximar-se dela e partilhar o anelo e utopia de escrever uma biografia, um ensaio, um artigo ou um outro documento que mesmo sendo da sua profissão artística irá, inevitavelmente, falar da sua vida privada. Sigo esse procedimento pois ajuda a construir um facto histórico sobre o autor a ser estudado e reforça as leituras circunscritas à volta dele.

Ouvir, directamente, o protagonista possibilita uma maior compreensão dos acontecimentos históricos. Do mesmo modo, permite-nos o acesso ao passado, o qual já não podemos vivenciar, nem alcançar directamente. Ou seja, o autor – sobretudo vivo – é a verdadeira fonte para o conhecimento da sua história. Posteriormente, podemos cruzar com outras fontes sejam elas escritas ou audiovisuais. Nessa busca tenho convidado alguns autores.

Porém, recebo respostas cómicas e que não merecem estar neste texto. As diversas respostas, agrupo-as em duas abordagens: i) autores que afirmam «não ter tempo» para facultar informação e, consequentemente, não aceitam ser fontes primárias do seu próprio labor artístico; [esta forma de dizer «não» tem sido um balde de trampa para alguns estudantes, mesmo credenciados, que desejam fazer uma tese de final de curso em assuntos de género; alguns autores ainda acreditam, infelizmente, no antropólogo muzungo e que a entrevista deve ser cedida com o tilintar do dólar ou euro]; e ii) artistas que, liminarmente, querem ser pagos antes de tudo. Óbvio que o artista deve viver do seu labor. É justo e legítimo que assim seja. Porém, mesmo com um plano e uma explicação editorial límpida o artista continua querendo ter Metical antes da obra feita.

É assim em outros quadrantes e é justo que assim seja. Sim, é. Porém, para nós essa realidade ainda é uma miragem por razões todos conhecem. Infelizmente, por estar a sonhar coadjuvado por uma logística insignificante e hiper-exígua, pois o assunto mecenato anda no plano sobrenatural, limito-me a estagnar a minha utopia nas garrafas de maçarico que outrora foram abrigo de azeitonas-pretas-oxidadas.

É neste enredo que passeamos ao ponto de não termos uma simples brochura e crónicas, para não dizer história, do pandza, do tufo, do rap moçambicano, do mapiko & Cia; não temos biografias de Eduardo White, Kapa Dêch, Pai Leão, Massukos, Amin Nordine, Mingas, Lília Momplé, Zena Bakar e outr@s que robustecem a música/literatura moçambicana.

Não aceitamos ser fontes e não liberamos as fontes de informação. Perante este cenário, como devem afigurar, não se faz nenhum registo, não se produz nenhum documento e continuamos na paz e na alegria do Olimpo até o dia que o nosso autor é chamado para ir ao terráqueo celestial. Quando isso acontece nos consolamos com frases como «foi embondeiro», «colosso das nossas artes», «decano da nossa moçambicanidade» e aquelas frases hipócritas de auto-consolação e homenagens póstumas. Resultado, ficamos sem registo porque a fonte essencial não foi acolhedora o suficiente para que o seu percurso e labor artístico fossem documentados. [Mais uma vez aceito ponderação: o artista deve viver, óbvio, do seu labor e não estou afirmando que ele deve dizer «sim» para tudo que lhe aparece. Mas, viver do «não» até para um movimento que serve de replica para o nosso labor artístico é um acto inconcebível. Enfim, não citarei nomes porque «a vitho i mpondo»].

No contexto institucional a coisa tem mais fetidez. A burocracia para ter acesso a uma informação em instituições, sobretudo estatais, um dia fará Ngungunhane ressuscitar. Mesmo com o cumprimento de todo o protocolo que passa por apresentar uma credencial, fazer um requerimento para ter a anuência da instituição que nos deve facultar a informação, ainda me deparo com respostas como: «teu pedido ainda não foi respondido», «o chefe que deve assinar este documento não está», «volta dia seguinte». De refutação em refutação, passam-se semanas sem ter uma resposta para aceder a uma informação como, por exemplo, «quantas editoras, quantas livros ou quantos discos foram registados, em 2022» ou «quantas casas de cultura existem no país».

Se uma instituição que zela pelas indústrias culturais e criativas leva meses para me facultar uma informação básica, não quero imaginar no dia que irei perguntar sobre o orçamento gasto para organizar um festival da cultura. É perturbador a sonegação de uma informação que devia ser de conhecimento nacional sem que ninguém fosse bater a porta do ministério. Cito, a título de exemplo, as enunciações culturais que foram proclamadas pela UNESCO património imaterial da humanidade: timbila (Novembro de 2005), nyau (2007) e, recentemente, o mapiko (2023). Adquirimos chancelas mundiais, todavia não temos acervo sobre essas expressões culturais. É atroz estar nessa condição. Os agentes submissores dessas propostas contentam-se, apenas, com a proclamação mundial. Não se comprometeram em fazer divulgação e partilha para que nós, outros – editores, jornalistas, académicos e demais interessados – sejamos replicadores dessa informação. Consequência: temos poucos livros, brochuras ou folhetos que falam das manifestações chanceladas pela UNESCO como património mundial. O que devia ser de domínio público tornou-se exclusivo.

Por isso, não tenhamos vergonha de assumir, que muitos moçambicanos – sobretudo em idade escolar – não tem noção que essas práticas artísticas são património imaterial. Portanto, vamos liberar as fontes para escaparmos do cerco que arroga espólio como, apenas, uma doutrina solene, de cariz política e de ratificação de bem cultural sem que não seja do domínio do cidadão. Liberemos as fontes, os arquivos para criarmos acervos pois de nada vale termos inúmeros patrimónios imateriais sem existência, mínima, de documentos de consulta (e.g., livros, folhetos, brochuras, documentários).

[O plangor vai para outras entidades: imprensa escrita e audiovisual (e.g., RM, TVM, Notícias); repartições públicas, entidades de investigação (estatais e privadas); fundações que se crê serem filantrópicas e museus (e.g., não se percebe como o curador de um museu saracoteia, durante meses, para dizer quantas mostras faz por ano e qual é a média de visitantes mensais). Sonegar informação devia ser crime pois não possibilita a criação de saber e de produção de acervos. As instituições devem se vincular a Lei n.º 34/2014, Lei do Direito à Informação. Mais do que vincular-se a lei, as instituições devem operacionaliza-la. Creio, embora seja professor da 4.ª classe e não jurista, estamos perante uma interrupção legal. Entendo que a lei mencionada tem o potencial de gerar uma mudança radical na forma como os moçambicanos passam a se relacionar com o acesso à informações de utilidade pública e para fins a que este artigo reclama. Por exemplo, instituições de ensino superior como Escola Superior de Jornalismo e Escola de Comunicação e Artes/Universidade Eduardo Mondlane formam profissionais de informação, nessa área específica, para fechar a lacuna de organização, divulgação e, sobretudo, promoção de informação. Óbvio que ter informação é ter um tipo de poder. Assim de viés e por respeito a lei alargo a reflexão – que será complementada por outros profissionais – com algumas questões: o que muda com a implantação desta lei; porque essa mudança tarda a observar-se; o que está faltando; quem ganha com isso; o que se perde; o que é maior entre o que se ganha e o que se perde? É certo que existem restrições de acesso à informação: segredo de estado, justiça, sigilo profissional […] como esclarece o art. 20, lei n.º 34/2014, lei do direito à informação. Porém, não percebo onde pode existir sigilo para dizer quantas editoras foram registadas, em 2023; ou o artista me facultar o número de músicas que gravou].

Trouxe exemplos artístico-culturais, convicto de que existem de outra natureza, para espelhar o quão é doloroso não ter informação para rabiscar um artigo, uma biografia ou um documento sobre uma determinada exteriorização artística que deve ser do conhecimento nacional. Portanto, enquanto continuarmos a sonegar informação continuaremos com uma república sem acervos – sim, estou a repetir, propositadamente, a palavra «acervos» – pois é urgente começarmos com essa marcha para não perpetuemos a falácia de que somos um povo que não sabe registar a sua história. Por estas e outras razões, para cessar este artigo, continuarei na linha da frente, a bater portas e a incomodar as instituições e alguns dos nossos cultores (músicos, escritores e gestores culturais) com o desígnio de fazer acervos e ser replicador do que existe de melhor e detestável da nossa sina artístico-cultural.
Bayete!

 

P.S.: aos que ofereceram suas jornadas artísticas para que eu fazer ensaios (Ghorwane, Paulina Chiziane, Pureza Wafino, João Cabral, João Ribeiro, Elcides Carlos, Aniano Tamele, Carlos Cardoso, Edson da Luz), bayete; uma vénia para instituições que documentam a vida cultural do país (ARPAC, Khuzula e Museu da Mafalala); e, todos participantes do primeiro volume do caderno de música moçambicana. Kanimambo!

Eduardo Mondlane completaria 104 anos se continuasse no nosso seio. A sua amada de sempre, Janet Rae Johnson Mondlane, caminha de forma robusta para os 89 anos. A meio da atmosfera da festa de todas as festas, recebi e li, com agrado, uma das cartas que Mondlane escreveu para o seu maior amor, Janet. O simbolismo destas cartas se encaixa num plano que se situava muito para além do simples amor, e fazia jus, contextualmente, à grandiosa epopeia que foi a luta de libertação e independência de Moçambique. Estas são as cartas que fizeram a nossa liberdade e o sonho de vivermos como moçambicanos e sem distinções.
Estas relíquias de um passado que se quer manter presente, revisitam o tempo de todos os tempos. Relembrar as intimidades do casal equivale a abrir uma janela para o passado, para vislumbrar o arco-íris da emancipação e apreciar como cada linha e cada página traçada são o elo que reconecta o presente que um dia foi passado para que todos tivéssemos um melhor futuro. Segue abaixo um trecho:

“… O mundo está à espera do momento em que o homem conhecerá os outros em termos do seu valor humano, e não, em termos de cor e de língua. As culturas estão a fundir-se lenta, mas, seguramente. Há uma comunicação cada vez mais rápida, tanto física como espiritual. … Tudo isto significa que tu e eu podemos ser cidadãos do mundo se, assim, o desejarmos… O mundo tem fome de pessoas que se atrevam a sair e a conhecer outros seres humanos. Não me interpretem mal, não quero dizer que uma cultura seja má ou inadequada. Mas, quero dizer que qualquer cultura pode ser inadequada se fizermos dela um ídolo. Embora, amemos a nossa própria cultura, não devemos esquecer que ela é uma parte e apenas uma parte de um mundo maior – a humanidade. Esta ideia é aceite por milhões de pessoas hoje em dia, mas é difícil encontrar alguém que se aventure a ir mais longe, excepto muito poucos. Sejamos, tu e eu, esses poucos. As gerações futuras vão agradecer-nos por termos começado, mesmo que os nossos nomes desapareçam na confusão do progresso.” Eduardo Mondlane para Janet Books.

Cartas Editadas. Ecos da Tua Voz 1920-1950.

Quem sabe poderemos ter, em 2024, a próxima edição do “Ecos da Tua Voz”.

Pela primeira vez na história da televisão moçambicana, uma novela completa dois anos de sessões ininterruptas. De segunda à sexta-feira, em horário nobre, os telespectadores viajam numa narrativa coroada de emoções intensas e revira-voltas de tirar o fôlego.

Não se pode falar da telenovela Maida sem mencionar os papéis dos protagonistas que dão vida a esta cativante narrativa, tornando-a num verdadeiro sucesso em Moçambique e além-fronteiras. Mauro Sitoe (Evan Muteto) e Maida (Tânia Tembe) são os personagens-âncora desta produção e responsáveis por nos conduzir durante as três fascinantes temporadas.

Foi precisamente a 17 de Janeiro de 2022 que tudo começou… uma data que jamais será esquecida por Evan Muteto e Tânia Tembe, dois jovens que se experimentam como actores numa produção de luxo, única no país, quando o assunto é ficção na televisão.

Desengane-se quem pensava que Tânia Tembe nunca se tinha imaginado como protagonista de uma telenovela. “Como toda a criança, quando eu assistia à TV me imaginava a fazer um papel principal”, conta a actriz, mas o que ela não previa é que esse sonho se tornaria uma realidade.

“Sinceramente, ‘a minha ficha demorou muito para cair’, para assimilar tudo, e mesmo quando eu recebi a proposta, eu não sabia qual seria a proporção, onde o projecto iria me levar; foi e continua sendo uma surpresa a cada dia, porque o trabalho tem sido levado além-fronteiras”, conta Tembe.

Para Muteto, 17 de Janeiro tem um grande significado, aliás, não só para ele como também para muitos moçambicanos. “Fazer parte desta história é uma coisa incrível e eu espero que este domínio continue por muito mais tempo porque temos muitos vários jovens neste país com capacidade para produzir telenovelas, seriados e outros conteúdos para televisão que seriam muito bons”, partilha o actor.

Muteto assume que continua incrédulo por ser um dos rostos principais da Telenovela Maida. E a razão é simples: o actor não é um filho das artes cénicas, foi uma recente descoberta que, de repente, deu vida a Mauro Sitoe, um dos protagonistas da novela.
“Deixa-me muito satisfeito fazer parte desta história, é um marco em minha vida e posso assumir que o Evan deixa o seu nome patente nesta história das telenovelas em Moçambique como um dos fazedores da novela e, por isso, é uma responsabilidade enorme”, refere.

É um trabalho que lhe acresce valor, assume, embora não consiga quantificar por serem vários e valiosos resultados. “É uma experiência não só social, mas também profissional que me tem alavancado a cada dia, tornando-me uma pessoa mais conhecida, o que permite ganhar influências em outros campos que também no futuro podem me levar além”, realça, acrescentando que um dos seus maiores sonhos é fazer novelas em outros países.

Diferentemente de Evan Muteto, Tânia Tembe soma ligeira experiência no cinema, tendo participado num seriado durante dois anos. Aliás, o seu convite à telenovela Maida surge com o desaire deste projecto que passou para a província de Nampula. É caso para dizer há males que vem para o bem: “foi aí que eu recebi esta proposta e sinceramente foi magnífico”, assume.

Para Tembe, a sua vida mudou completamente através desta telenovela. Por exemplo, conta a actriz que (já) não consegue sair à rua sem sentir o calor das pessoas. Ora, este resultado não é só no prisma emocional, refere a nossa entrevistada, o projecto está a ter impacto, também, na sua área financeira, porque “era muito difícil, em Moçambique, termos um projecto a longo prazo com um salário fixo, e nós já estamos há dois anos a trabalhar neste projecto”, justifica.

Dois anos depois, Muteto e Tembe celebram “Maida” com uma avaliação positiva, porque, como justificam, tem sido uma verdadeira escola. Sendo que os dois actores não carregam nenhuma formação, pelo menos formal, quer em teatro como em cinema, a experiência de cruzar cenários com figuras mais destacadas do universo audiovisual tem sido um grande alicerce para o crescimento dos dois jovens actores.

Refira-se que o aniversário da Telenovela Maida coincide com a do Maningue Magic, o primeiro canal que se dedica à promoção de conteúdos audiovisuais com alma local. “Cenas moçambicanas” tem espaço preferencial na DStv e GOtv e, durante 24 horas, entretenimento é que não falta.

…a gente até tenta, mas está difícil, Senhor Professor.

Escrever sobre livros e seus autores é uma tarefa inglória, como bem pontuou o Professor Nataniel Ngomane numa entrevista concedida a Cláudio Fortuna, publicada na Revista Angolana de Sociologia, em Abril de 2011, ao problematizar esta função nos seguintes termos: “quanto é que ganha um crítico por escrever um texto de crítica? Deixa de fazer as suas coisas, escreve um texto crítico… e não recebe nada por isso. Não será, este, um grande problema? Porque as restantes profissões são pagas para fazerem o que estão a fazer. Quem é que paga a crítica? Quem respeita a crítica? Quem dá valor à crítica? As pessoas pedem sempre para fazer um prefácio, uma apresentação dos seus livros. Quanto se ganha por isso? Imaginam quanto se despende para fazer isso?”
De facto, no quadro de “profissionais” que intervêm na cadeia de valor do livro, o crítico literário é o único que não recebe pelo que faz. Aliás, recebe, sim: pedras. Dos próprios autores; dos editores; dos convivas a quem o autor paga as sopas. São ossos do ofício: dir-se-á.

Tenho notado, com muito agrado, a emergência de vozes (pouquíssimas) que se dedicam a este exercício em vários canais de mídia, sobretudo a electrónica. Curiosamente, não são vozes oriundas das nossas “academias” de Jornalismo como se poderia esperar. São graduados de cursos de letras (filosofia, ensino de línguas, literatura moçambicana, linguística, sociologia e afins) que, tendo paixão pela literatura, alimentam as páginas dos jornais, blogs e revistas com um ar da sua graça, ainda que seja de forma irregular.

Este esforço para com a coisa literária é muito benéfico e positivo: movimenta o “sistema”, ainda que tal seja inglório para as suas receitas. Haveria justiça divina se assim fosse. É bíblico: “comerás do fruto do teu trabalho, serás feliz e próspero” (Salmos, 128: 2).

Ainda bem que, neste caso e cá na terra, a prosperidade é um valor relativo.

Esta militância que certamente será registada nos anais da história, remete-me a uma conversa tida com o Professor Francisco Noa, aquando da sexta edição do Festival Internacional de Poesia, organizado pela Associação Cultural Xitende, na cidade de Xai-Xai. Num painel reservado à reflexão sobre a crítica literária em Moçambique, Noa recordou-se de um episódio que tivera com Jeremias Langa. Este último pretendia conduzir uma pesquisa em torno do mesmo tópico e apontava para a ausência de critica literária no nosso meio. Note-se, então, que este não é um lugar-comum dos últimos cinco anos. É coisa dita há já algum tempo.

Noa referiu que sugeriu uma outra forma de observar o fenómeno, destacando que temos, sim, falta de crítica literária jornalística. A crítica literária (académica) está firme e a cada dia surgem ensaios, artigos científicos, monografias, dissertações e outros géneros académicos que têm como base de reflexão a literatura feita em Moçambique.

Lembro-me, também, de o mesmo ter dito que há uma tendência de se incorporar, nos jornais, alguma crítica, contudo esta ainda é de foro académico. José dos Remédios é, neste quesito, uma figura de destaque por não só ser das poucas vozes que se evidenciam no contexto do Jornalismo Cultural, como, também, cede espaço para que outras vozes se possam fazer ouvir. Pessoalmente, sou-lhe grato. Está para breve o dia em que lhe irei pagar um descafeinado.

Mesmo assim, nem tudo são rosas. De acordo com Noa, a crescente onda de jovens que se querem firmar neste exercício é, ainda, devedora de uma critica literária académica que melhor serve aos propósitos académicos que os efectivamente jornalísticos. É uma escrita pejada de citações, desde Todorov às Mendonças cá da terra.

Conforme referi no início deste texto, são vozes herdeiras de bases teórico-conceptuais dos Estudos Literários, da Filosofia, sobretudo, e de algumas bases da Linguística Textual. Mal nisso não há, contudo, se uma das premissas do exercício da crítica no contexto jornalístico é a informatividade, estará o nosso leitor preparado para tamanho linguajar tecnicista e, quiçá, opulento? Se neste exercício, furtamo-nos da necessidade de situar o leitor relativamente ao estágio e âmbito das abordagens sobre o tópico em causa, estaríamos a ser suficientemente honestos? Ou, se calhar e sem perceber, estejamos a enfrentar o dilema descrito por Schopenhauer no seu “a arte de escrever”?

Para este filósofo alemão, “quem lê muito e quase o dia todo, mas nos intervalos passa o tempo sem pensar nada, perde gradativamente a capacidade de pensar por si mesmo – como alguém que, de tanto cavalgar, acabasse desaprendendo a andar”, (p. 60).

Leio, com alguma regularidade, os nossos textos a respeito dos livros dos nossos confrades escritores ou da cena literária no seu todo e o que me ocorre é mesmo isto: a gente até tenta, mas está difícil, senhor Professor.

 

Contacto: elisiomiamboem@gmail.com

 

Há muito por se dizer da carreira deste senhor. Sinto-me minúsculo demais para rabiscar o que quer que seja sobre ele. Quem sabe, um dia ganhe coragem para tal. São muita histórias que ele partilhou desde que cedo abandonou Chiconela usando Oliveiras, cheio de sonhos e ilusões, na esperança de para lá retornar. A primeira música de Antoninho que eu ouvi era mesmo sobre a ideia de voltar a Choconela, ainda que tenha saído decepcionado, porque a filha de Caim lhe fez entregar tudo que tinha, para nada. Depois de entregar o gado para lobolo da moça, ela foi “pilar” noutra família. Pobre dos pais que são cantados por Antoninho. Eles aceitaram o espólio sabendo que a menina não era boa de palavra.

Ficou esperto, Antoninho. Para a segunda menina fez uma promessa. “Vou a Maputo e regresso com coisas boas e lindas. Vou pegar Nkondjane de Xitonhana e vou lutar pela vida”. A menina de Chiconela nunca via o Antoninho regressando com as prometidas coisas boas. Até os madjoni-djoni iam e vinham com saias, vestidos, lenços e mais benesses, mas o seu querido Marquitos, nada. Ensaiou a bela prometida de Antoninho uma ida a Maputo, para ver com os próprios olhos as moças que se alimentavam de saladas para manter os corpos fitness enquanto ela descia a baixa de Limpopo para ajeitar uma couve e depois beber água, como recomendou Eugênio Mucavele em Mali ya Phepa e secundado por aquele outro, para lembrar aos professores que estão de greve desde 1990. A moça sente-se enganada por Antoninho. seduzida e com promessas brilhantes, ela vive sofrimento e solidão. Avisa ao António Marcos que outros poderão achar graça a menina triste, suja e abandonada.

Quando isso acontecer, o corajoso que tirar a moça da sarjeta vai levantar a voz para defender a sua fêmea e não mais o Antoninho terá direito de dizer “voltei, amor”. Ra bonga duna.

O que a menina não sabe é que ele chegou a Maputo e teve que usar as luvas para lutar pela vida. António Marcos lamentou-se pelo facto da mãe não o ter levado à escola. Chegado a Maputo teve que carregar chapas de 12 pés para se sustentar. Não restava muito, nem mesmo para levar uma menina nas faras de Malhangalene. Só lhe restava aceitar para aguentar com a dureza da vida na capital.

A vida dele era mesmo um Tsatsaztsa em Mafalala, vendo meninas e rapazes dançando Msakazi. Adiava-se cada vez mais o regresso para encontrar a menina de Chiconela. Andou no boxe, andou na igreja até encontrar o conforto na música. A viola la mina la vula-vula. é com a viola que terá os valores que precisa para retornar a Chiconela. Até porque a maronga que o distraiu em Maputo é duma conduta duvidosa. Para ela há sempre cultos nocturnos na igreja. Precisa ser enquadrada tipo Garakunha (fémea de peru) que só entra na capoeira depois de umas boas pancadas.

Está difícil a trajectória deste senhor. Já não é um Antoninho. Saiu de casa e deixou a mãe com muitos filhos, um team de futebol, diga-se. Entretanto, ao regresso, todo Xikwata (Squad) desapareceu, só resta ele, tipo cria de uma rola que escapou dos predadores que atacam, o ninho.

Este é António Marcos Matusse, grande músico, grande dançarino e … uma voz sem igual. Ele não é enganador. Maputo é que foi duro para com ele. Pode até não parecer, porque as luvas estão tão limpas e branquinhas, mesmo depois de muitos combates.

No seu livro, as origens do totalitarismo, escreveu a filósofa Hannah Arendt, a tortura é mais agoniante quando ainda reside na vítima a esperança de ela escapar. Ou seja, enquanto sobrar na vítima a ideia de libertar-se, o medo de ela não resistir à dor física torna-se maior, agudizando, assim, a agonia. Por isso, como explicou Frantz Fanon, no livro Os condenados da terra, o torturador, antes de tudo, tinha de persuadir a vítima que lhe daria a liberdade, se cooperasse, sem essa condição, o torturado se entregava resignadamente à morte sem revelar o segredo. Deste modo, onde há esperança, as visitas da ansiedade são frequentes e, quando a esperança nasce duma promessa dada, a ilusão toma o controlo das decisões.

É em torno do último cenário “a ilusão” que o conto notícias do salário nos fala dos males de esperar pelo prometido. Baltazar é um personagem “vítima” da esperança gerada pela promessa de aumento do salário no seu sector laboral. Tal promessa fá-lo contrair dívidas para realização da festa de aniversário dos seus filhos gémeos sob o apoio da sua esposa Malmequer, tomando assim o aumento salarial como uma coisa garantida e o futuro como se fosse um tempo previsível e inabalável.

Entretanto, a infalibilidade e a certeza nunca foram propriedades intrínsecas do futuro. O futuro sempre foi duma natureza volátil e imprecisa, ainda que permita previsões que se devam entender como probabilidades, mas jamais certezas. A desilusão sofrida pelo casal Baltazar e Malmequer corrobora nesse sentido como uma prova loquaz. O aumento salarial esperado no final do mês não chegou a acontecer. E porque a esperança tem o poder de erguer um castelo de certezas na nossa mente, a sua ruína, amiúde, não é súbita e rápida perante o impacto duma realidade contraproducente. Muitas vezes, o esperançado leva algum tempo para cair na realidade. Foi preciso mais um mês para Baltazar finalmente conformar-se da falta do tão almejado aumento.

Com a falsa promessa do aumento salarial, o casal experimentou três estados de espírito engendrados pela esperança, tal como esquematizou Arthur Schopenhauer: primeiro o desejo, de seguida o tédio e, por fim, a angústia.

“O mês findou, a notícia de aumento não chegou a ser facto. Para Malmequer, foi como o fim do mundo. Ficou uma semana sem falar e com um olhar de quem estava (a) pensar em muitas coisas ao mesmo tempo. (Lineu, 2023: 53).

A esse descalabro, o casal chegou devido à cega esperança que o levou a tomar o futuro como garantido. Depois dessa experiência negativa, era suposto que o casal fosse mais cauteloso com os tentáculos da esperança. Porém, a doçura intensa da promessa muitas vezes faz da nossa memória curta. A empresa onde Baltazar é trabalhador voltou a prometer um aumento salarial por duas vezes, e nenhuma dessas vezes tal promessa se cumpriu.

Sendo assim, quando há uma falha contínua de promessas feitas, o que naturalmente acontece no coração de quem é prometido é uma conversão degenerativa da esperança em cepticismo. Do espírito ingénuo, Baltazar passa a guiar-se pelo espírito de dúvida um tanto radical na medida em que chega a influenciar não só o seu modus vivendi, mas as suas relações interpessoais.

“Ao ensinar (os) filhos, agia como se tivesse mais dúvidas do que os meninos. Quando eles falavam dos seus sonhos, aconselhava-os a se deixarem ser guiados pela vida, aí não se decepcionariam com nada. No trabalho, tornou-se mais escrupuloso, não pelo zelo, (mas) para ter a certeza de não ter surpresas indesejáveis. Várias vezes, acordou à noite, e deixou a esposa preocupada, por achar não ter dado conta de algum ofício” (LINEU, 2023: 55-56).

Desse excerto, pode-se presumir que o estado de espírito do Baltazar se mostrava menos sadio. Um cepticismo que nos proíbe de sonhar e tentar, obrigando-nos a estar num estado de alerta e desconfiança do mundo afigura-se um mal para realização da nossa existência. E, de facto, não há uma inovação substancial ou um acto extraordinário que se possa esperar dum espírito demasiado céptico.

Mediante o dilema entre guiar-se pela esperança ante um futuro que se mostra impenetrável e guiar-se pelo cepticismo num mundo que exige atitudes firmes, é possível uma sobressaída que não tenda nem para um polo nem para outro. Tal sobressaída configura-se o espírito de incerteza. Diferente da convicção que cega advinda da esperança e da desconfiança que tolhe os passos gerada pelo cepticismo, a incerteza é um estado livre de optimismo e pessimismo. A incerteza não significa obviamente certeza nem desconfiança, mas reunião de ambas possibilidades. Ou seja, a incerteza significa assumir na mesma proporção as hipóteses de que as coisas podem dar errado, assim como podem dar certo, e mesmo assim seguir adiante. Uma pessoa guiada por incerteza difere-se duma pessoa indecisa ou hesitante e, da mesma forma, se difere duma pessoa convicta. É uma pessoa sem esperança nem desespero. Parafraseando, uma pessoa de incerteza trata-se de uma pessoa sem certeza, mas que não se desespera por conta disso. Nisso, reside a sua sabedoria tal como declarou o filósofo Immanuel Kant: uma alma inteligente prova-se pelo número de incertezas que consegue suportar.

Apesar de o Baltazar ter adoptado o cepticismo exacerbado, em algum momento, passou a gozar duma relativa tranquilidade quando já não tinha esperança do aumento salarial, ajeitando-se desse modo com o que tinha. E foi quando menos esperava que se lhe deu uma feliz surpresa: o aumento salarial, finalmente, se tornou um facto. A família regozijou-se, desta vez, com algo concreto. Algo presente e não vindouro. Entretanto, porque na vida, nada dura para sempre, a alegria do Baltazar foi deveras fugaz, quando soube da esposa que o aumento do salário de nada valeu, pois, o custo de vida também havia paralelamente aumentado.

Mas o que dizer, definitivamente, da lição deste conto? Talvez que tudo na vida, muda num sopro. Nada está fadado a eternizar-se. E se nada se eterniza e tudo se altera constantemente, a melhor forma de mover-se pelo mundo é abster-se tanto da esperança e do cepticismo exagerados e aprender a conviver com a incerteza, pois ela não ilude nem aprisiona, torna-nos livres e abertos para lidar com qualquer situação que vier.

Hélder Tsemba
tsembah@gmail.com

A ambição do homo sapiens desde muito que mexe com o seu comportamento, e de forma consciente tem atropelado as boas maneiras de convivência com a natureza. Sim, agride constantemente a natureza. Como elenca Adriano Souza, a natureza desde sempre vem sendo atacada por nós seres humanos, destruímos nossa flora, poluímos nosso ar e nossas águas, envenenamos nosso solo, despejamos lixo em lugares inadequados construímos um lugar de concreto, impermeabilizando o solo, o efeito estufa cada vez mais presente, e assim o planeta começa a mandar a factura de nossa irresponsabilidade.

Estamos na verdade a destruir a nossa única e insubstituível casa chamada planeta. A fúria do planeta é bem visível nos dias de hoje. Chuvas excessivas, tsunamis e ciclones estão atormentando o homem. Secas e estiagens com períodos prolongados, temperaturas ao extremo, fenómenos atmosféricos em escalas, mostra a reacção do planeta face a nossa falta de carinho para com o ambiente. As estações do ano andam confusas, o Inverno já abraça calor, os termómetros em muitos pontos da terra, andam tontos por observar variações constantes de temperaturas nas quatro estações do ano. Estamos aqui a ser egoístas de mais, estamos a pensar em nós e esquecemos de organizar o planeta para as futuras gerações. Precisamos de mudar o nosso comportamento.

O nosso indico que tanto refresca a areia branquinha com as suas águas mornas, precisa da nossa atenção, dos nossos abraços para que continue oferecendo-nos a brisa e o sorriso em cada raiar do sol. O brilho do Rovuma precisa do nosso amor para que continue a nos dar alegria por muito tempo. A melodia da música fornecida em cada manhã pela nossa flora, precisa do somatório de esforços, para a sua manutenção e continuidade. Vamos dizer todos não ao consumo do plástico, não as queimadas descontroladas, não ao abate descriminado de árvores, não a caça furtiva, mas sim a conservação da natureza, através do consumo ecológico, protecção de espécies em via de extinção e viver responsável.

Precisamos higienizar as nossas mentes para que tenham um comportamento ecológico. O descarte dos resíduos provenientes do consumo não deve consistir no despejo desorganizado, mas sim, na sua reciclagem ou reaproveitamento. Temos que ter um consumo responsável, sermos consumidores verdes ou ecológicos, consumidores com comportamento ambientalmente desejável, sermos eco-activos (consumidores que preferem sempre produtos ecológicos. Estes superam as barreiras do preço, e a sua maior satisfação deriva da qualidade ecológica do produto ou serviço).

As empresas precisam de equilibrar a tríade: satisfazer as necessidades dos seus consumidores; atingir os objectivos da organização com margens de lucros satisfatórias e; realizar as actividades com processos que gerem o mínimo impacto negativo no ecossistema. Enquanto que nós como consumidores, precisamos de ter atributos de consumidores verdes, manifestando sempre a nossa preocupação com o meio ambiente no nosso comportamento de compra, ou seja, devemos buscar produtos que sejam percebidos como amigos do meio ambiente. Para sermos consumidores ecológicos, o qualificativo ecológico deve passar a ser um atributo valorativo do produto no nosso processo de decisão de compra. Os produtos ecológicos desfazem-se do uso do material poluente e nocivo para o ambiente. Os produtos amigos da natureza são fiéis a natureza e não se revestem em embalagens que agridem o ecossistema. Proteger o planeta e criar o futuro das gerações vindouras. Save the planet. He is your only home!

Caros Munícipes de Quelimane,

Hoje, nos encontramos aqui para celebrarmos 12 anos de uma jornada singular, uma década e dois anos de compromisso inabalável com a cidade que amamos. Há 12 anos, iniciamos juntos um pacto de transformar Quelimane em um farol da modernidade, inclusão, hospitalidade e sustentabilidade. Hoje, olhamos para trás com gratidão pelos desafios que superamos e para frente com a esperança renovada.

Esta jornada não foi fácil, mas foi moldada com zelo, rigor e dedicação de todos nós. A nossa administração sempre foi inclusiva, unindo vereadores e directores de diferentes partidos. Trabalhamos lado a lado com empresários e a sociedade civil, buscando sempre as melhores abordagens para elevar Quelimane de um estado de negligência a uma cidade que reflecte o orgulho de seus cidadãos.

Lembram-se de como, em 2011, a nossa cidade estava afundada em desafios? Vivíamos lado a lado com os ratos, em uma porquice jamais vista. Mas, com determinação, transformamos esse cenário. Unimos esforços para dirigir a conclusão das valas de drenagem, um passo decisivo para impedir que as águas submergissem na nossa cidade. Quelimane, está situada abaixo da linha das águas do mar, enfrentava o constante risco de inundações. Mas, com a conclusão dessas valas, testemunhamos uma mudança expressiva.

Foi o prenúncio de uma era de grandes transformações. Quelimane emergiu de suas águas turbulentas para abraçar uma nova realidade, uma era onde os munícipes não precisam mais temer as inundações que assolavam os nossos bairros. Essa conquista não apenas protegeu os nossos lares, mas também sinalizou o início de uma nova jornada para uma cidade mais resiliente, pronta para enfrentar os desafios do século XXI.

Ao longo desses 12 anos, construímos pontes – não apenas as de concreto, mas também aquelas que unem corações e mentes em prol do bem comum. Juntos, ultrapassamos fronteiras partidárias, trabalhando para o benefício de todos os quelimaneses. Essa colaboração é a força que impulsionou o nosso progresso e nos permitiu alcançar marcos importantes

Celebramos não apenas o tempo que passou, mas também o futuro que está à nossa frente. Continuaremos a trabalhar incansavelmente para moldar Quelimane em uma cidade que reflecte o melhor de nós – uma cidade onde cada cidadão é valorizado, onde a inovação prospera e onde a sustentabilidade guia as nossas acções.

Que os próximos anos sejam tão promissores quanto os que celebramos hoje. Juntos, moldaremos o destino de Quelimane e continuaremos a fazer história.

Neste momento de reflexão e celebração, gostaria de destacar as realizações que transformaram a nossa cidade ao longo destes anos, tornando-a um lugar mais próspero, seguro e vibrante para os seus cerca de 300 mil habitantes.

Semáforos:
Em 2011, a visão da nossa administração para uma Cidade mais organizada e segura levou à instalação de semáforos em pontos estratégicos da cidade, facilitando a mobilidade e reduzindo o congestionamento do tráfego bem como os acidentes de viação.

Sanitários Públicos:
A implementação de sanitários públicos em toda a cidade desde a avenida Samora Machel, passando pelos mercados e pontos de grande aglomerado populacional na urbe foi o primeiro sinal que demos no capítulo da melhoraria das condições de higiene, garantindo o bem-estar de todos os cidadãos.

Estradas Pavimentadas e Asfaltadas:
O investimento na infra-estrutura viária, com estradas pavimentadas e asfaltadas, começando pelos bairros mais pobres e negligenciados não só proporcionou maior acessibilidade, mas também impulsionou o crescimento económico e a conectividade entre os bairros. Quem não se lembra que para um turista entrar em Zalala de carro, tinha de vir ao centro da cidade para encontrar uma estrada asfaltada, hoje não precisa chegar no centro, de qualquer bairro, pode passar, porque lá também tem estrada asfaltada.

Mercados Municipais:
Criamos mercados municipais modernos e que fomentam o comércio local, promovendo a sustentabilidade económica e garantindo uma oferta diversificada de produtos aos munícipes. Um dos exemplos mais recentes é a actual requalificação do mercado central que terá até creche para as mamãs com filhos pequenos descansaram enquanto elas praticam a sua actividade comercial.

Carro Funerário e Ambulâncias:
A aquisição de um carro funerário e ambulâncias reforçou a capacidade de resposta em situações de emergência, garantindo cuidados médicos adequados e dignidade em momentos difíceis. Quem aqui nunca testemunhou pessoalmente a eficiência das ambulâncias municipais que conseguem embrenhar nos bairros para buscar os nossos concidadãos enfermos até aos hospitais?

Reabilitação da Catedral Velha:
Estivemos sempre na linha da frente para reabilitação da Catedral Velha e que hoje ostenta o nome de Centro Cultural “Bons Sinais”, não apenas preservamos o nosso património cultural, mas também proporcionamos um espaço revitalizado para actividades culturais e intelectuais.

Bombeiros Municipais:
A criação dos Bombeiros Municipais elevou o nível de segurança da cidade, hoje temos uma resposta rápida a situações de incêndio e emergências.

Praça da Juventude e Praça da Paz:
As Praças da Juventude e da Paz se tornaram locais de encontro, lazer e celebração, que reflectem o compromisso do nosso governo com a promoção da harmonia e da cultura entre os cidadãos.

Aumento de Postos Administrativos:
O aumento de 5 para 7 postos administrativos descentralizou os serviços públicos, aproximando a administração municipal dos cidadãos e agilizando os processos burocráticos.

Como se pode depreender, cada iniciativa reflecte o nosso compromisso inabalável com o bem-estar dos munícipes de Quelimane e mostra que, quando trabalhamos juntos, podemos alcançar grandes resultados.

A nossa jornada está longe de terminar, e com o Programa de Adaptação das Cidades Costeiras em parceria com a USAID fizemos avanços na protecção do Mangal, o Movimento Quelimane Cidade Limpa que envolveu a abertura de valas de drenagem secundárias e terciárias e que muitos de nós aqui presentes estivemos envolvidos retirou Quelimane na rota de uma cidade com doenças de origem hídrica, o Orçamento Participativo, onde decidimos e por votação popular as prioridades dos nossos bairros, permitiu a construção de diversas infra-estruturas e o PERPU que financiou diversas iniciativas empreendedoras, é um, testemunho disso que vos falo.
Lembremo-nos de outras iniciativas implementadas com sucesso:
1. Escola Comunitária construída de raiz no bairro Ivagalane
2. Estradas pavimentadas e asfaltadas
3. Bibliotecas em todos os postos administrativos
4. Centros de informática nos postos administrativos
5. Ciclovias
6. Passadeiras
7. Latrinas melhoradas em Icidua
8. Casa do Direito e do Cidadão
9. Casa do Bairro em Icidua
10. Casas resilientes em Icidua
11. Palestras
12. Carnaval de Quelimane
13. Feira de Livros
14. Festival Municipal de Cultura
15. Fontenários em Icidua
16. Aquisição de viaturas para as vereações
17. Aquisição de contentores de lixo e viaturas para Emusa
18. Ginásio ao ar livre em Quelimane
19. Dois Autocarros de transporte
20. Parques Infantis

Hoje, celebramos não apenas as realizações tangíveis, mas também a força da unidade e da visão compartilhada que nos impulsiona para um futuro ainda mais brilhante. Parabéns, Quelimane, pelos 12 anos de progresso e prosperidade!

Senhoras e Senhores,

Em 2014, a cidade de Quelimane ganhou o prestigioso “Drivers of Change Government Award”. Esse prémio não apenas reconheceu a excelência na administração municipal, mas também destacou a capacidade de Quelimane sob a nossa liderança para catalisar mudanças notáveis. Essa conquista não foi apenas um feito local, mas um testemunho do impacto global da nossa visão transformadora.

Ao longo dos anos, a nossa administração consolidou o seu lugar entre os líderes municipais de destaque em todo o mundo. Neste 2023, fomos nomeados como um dos nove finalistas para o cobiçado prémio mundial, World Mayor 2023, um testemunho inquestionável da nossa dedicação à inovação, sustentabilidade e equidade na governança municipal.

Recentemente, em Abril de 2023, a Universidade da Pensilvânia nos Estados Unidos reconheceu o nosso compromisso com o desenvolvimento sustentável e equitativo, concedendo-nos o Prémio de Liderança Urbana Lawrence C. Nussdorf. Um reconhecimento internacional da excelência na liderança municipal, que coloca Quelimane como um farol de boas práticas em todo o mundo.

Em 2022, a Organização das Nações Unidas também prestou homenagem a cidade de Quelimane, concedendo-lhe o Prémio Anual. O mecanismo de apoio à sociedade civil também elogiou a nossa administração, reconhecendo-a como transparente e inclusiva. Isso não é apenas uma conquista burocrática, mas um testemunho tangível da abordagem participativa e aberta que caracteriza a nossa governação.

Neste momento de celebração, devemos reconhecer não apenas os prémios conquistados, mas também os inúmeros benefícios que essas realizações trouxeram para os cidadãos de Quelimane. O desenvolvimento sustentável, a equidade e a transparência não são apenas palavras vazias, mas princípios fundamentais que guiaram cada decisão e acção da nossa administração .

Hoje, vamos erguer as nossas taças para brindar não apenas aos prémios conquistados, mas ao impacto duradouro que a nossa liderança teve na nossa amada cidade. Que os próximos anos sejam marcados por ainda mais realizações, inovação e prosperidade para Quelimane e seus cidadãos.

Reúno-me diante de vocês também com um coração pesado, mergulhado na tristeza e na indignação diante das perdas que enfrentamos como sociedade. Hoje, peço a todos que compartilhem um momento de reflexão, de solidariedade, e de silêncio, em homenagem a Max-Love e inúmeros outros jovens cujas vozes foram silenciadas, cujas vidas foram interrompidas brutalmente, e cujas famílias foram marcadas pela dor da perda, por este regime que nos sufoca.

Somos chamados a recordar não apenas o Max-Love, mas também os presos políticos que ao longo dos últimos doze anos sofreram injustiças deste regime ditatorial. Assim como Martin Luther King Jr. inspirou uma geração a lutar pela justiça e pelos direitos civis, hoje recordamos a sua mensagem de paz, igualdade e liberdade.

Assistimos a um período em que as vozes dissidentes foram caladas, onde a liberdade de expressão foi restringida e onde a justiça se tornou selectiva. Max-Love, foi uma vítima dessa realidade. Seu sacrifício não deve ser em vão.

Em homenagem a Max-Love e a todos os presos políticos, como o Raul Novite e Paulo Vahanle, que enfrentaram perseguição, e outros que enfrentam tortura e perda das suas vidas, peço a todos que observem um minuto de silêncio. Este momento não é apenas para lamentar, mas para fortalecer o nosso compromisso com os valores que nos tornam humanos: a dignidade, a liberdade e a justiça.

MINUTO DE SILÊNCIO

 

30 de Dezembro de 2023

 

 

Viver no “primeiro mundo” também significa testemunhar nutricionistas a transmitirem o que é natural e divino, como se fosse uma excentricidade.

Pregam que devamos comer animais que se tenham alimentado de capim. Reiteram “capim”, de forma quase que alarmante, dando a entender que os animais que andamos a comer, alimentam-se de outras coisas.

O sangue que vemos no frango, é claramente decorativo – só se vê um pouquinho na superfície (em frango cortado). Dá para questionar se se usam técnicas de sugação de sangue, antes do frango chegar às prateleiras.

Já o bife, esse pode ser produzido em laboratórios. Façam Google e aprenderão.

Penso que posso afirmar que não existem patas (frescas) de frango à venda, em Aberdeen (Escócia). Noutro dia comprei umas congeladas, importadas da China e, por ironia do destino (ou da partida), estavam “tocadas”. Dizer que entrei em depressão, is an understatement!

Há quem se mude para o “terceiro mundo” em busca de normalizar comer animais que comam capim. Existem vários testemunhos, em várias plataformas.

Sobre esta fraude toda que vivemos aqui no Ocidente, nenhum poderoso está preocupado. Qualquer dia não teremos uma vaca real sequer, para contar a História.

“Terceiro mundo”, salve o mundo! Cuidado com os avanços tecnológicos contra o que é divino.

Querem destruir o mundo campesino (destruindo não apenas a agricultura orgânica, como também o modo de vida campesino, ao tornarem todo o ambiente em ubano, onde o laboratório cuide da nossa dieta alimentar, ao pormenor), diminuir a utilidade do Homem de sangue verdadeiro…

O número de descontentes, dentre os cidadãos comuns que pensam, vai crescendo no Ocidente. Alguns até estão a criar verdadeiros enclaves no “terceiro mundo”, onde estão a criar animais que comem capim, para o consumo de tais enclaves. Estão também a estabelecer regras diferentes (que se aproximam ao mais orgânico/normal/divino) das que deixaram nos seus tão eficientes países. E não, este grupo de pessoas não é apenas composto por “hippies”.

Por favor, não imitem tudo o que o Ocidente faz. Estamos a viver como robôs aqui, sob o ponto de vista alimentar.

Com uma lágrima no canto do olho peço-vos para que saboreiem patas de frango e cabeça de cabrito (água e sal) por mim!

Meu Povo, festas felizes!

Agora que o ano está mesmo prestes a viajar de forma eterna, faz sentido, as pessoas orientadas por uma consciência social, estarem preocupadas em fazer análise ou balanço do seu primeiro e maior património: a personalidade. Apesar de o conceito de personalidade ser bastante amplo, ele aglutina termos como traços sociais, status, qualidade, atributos e outras variáveis que influenciam o comportamento humano, como estilo de vida, grupos sociais e outros.

É verdade que personalidade é um património da vida constituído por variáveis acima descrita, mas o património da personalidade é construído por cada indivíduo como ser social ao longo da sua vida, através de sentimentos e experiências interiorizadas, que depois se vão reflectir na maturidade psicológica do indivíduo. É verdade, também, que as pessoas nas épocas festivas do ano ficam mais preocupadas em fazer análise da composição do seu património (no sentido contabilístico) e pouco se importam em fazer o balanço do “património da personalidade”.

Uma das coisas interessantes que o balanço do “património da personalidade” tem é que ele tem menos riscos de ser viciado, isto porque é elaborado e analisado pelo próprio dono da personalidade e serve muito mais para reflexões, correcções e melhorias futuras da personalidade do indivíduo. O balanço poderá revelar aspectos do ser do indivíduo, indicar os caminhos que devem ser trilhados em certos sectores da vida, o que deve ser trabalhado no potencial latente do indivíduo, entre outros aspectos.

Por estarmos no campo que trata da personalidade humana, é importante percebermos os aspectos numerológicos que muitas vezes influenciam na formação da personalidade humana e no “património da personalidade”. A numerologia ensina-nos que as vibrações que acontecem no universo, no dia e momento do nascimento de um indivíduo, têm influência na formação da personalidade e do carácter do indivíduo. Os valores numerológicos como o dia do nascimento, ano de nascimento e hora do nascimento dum indivíduo, conforme sublinham os numerólogos, definem o caminho de destino da pessoa dentro do plano universal e este caminho é influenciado muitas vezes pela vibração terrestre no momento de nascimento da pessoa. Por isso, a diferença de segundos no momento do nascimento entre duas pessoas pode criar diferenças em certos aspectos na formação da personalidade desses indivíduos, isto por terem vindo ao mundo em momentos em que as vibrações terrestres eram diferentes, mesmo que a diferença seja ligeira.

As vibrações é que orientam a pessoa por toda vida e algumas vezes mostram definições de personalidades que coincidem nas pessoas que nascem no mesmo dia. Só para elucidar, os numerólogos apresentam as indicações de como as vibrações de cada dia do mês podem influenciar na personalidade do indivíduo. De forma propositada, podemos usar o dia 29 de cada mês como marco para percebermos o significado do nascer neste dia e como as vibrações influenciam na personalidade da pessoa. Os resultados dos numerólogos dizem que o dia 29 é um dia de vibrações intensas, em que nascem pessoas marcantes. Tem como características prováveis positivas e decisivas, que podem servir de exemplo de vida para os outros, são líderes, intuitivas e idealistas, generosas e gostam de ajudar os outros e são capazes de grandes realizações. Apresentam características negativas como: tensas e dramáticas, inclinados à melancolia e as suas emoções são muito instáveis.

A personalidade do indivíduo, pode ter influência no crescimento profissional do indivíduo, no sucesso político, na sabedoria dos filhos que dele brotam como ramo de oliveira. A personalidade influencia também a liderança com classe e sabedoria que um indivíduo exerce numa organização. Portanto, mais do que fazer o balanço que reflecte a nossa situação económica e financeira para termos a imagem do nosso património, é de extrema importância fazer o balanço da nossa personalidade para termos a imagem real do nosso Eu como seres criados a imagem de Deus. A nossa prosperidade no ano prestes a chegar pode depender das ilações extraídas no nosso balanço da personalidade.

A Kika esqueceu-se completamente de ser Eldevina. Neste sábado à noite, apresentou-se no palco da Sala Grande do Franco-Moçambicano, em Maputo, e, naturalmente, partilhou com o público o que há anos está bem enraizado no seu ADN. Com um ar alegre, a maestrina recebeu vários aplausos do público e lá reagiu com a aquela destreza de artista que sabe o que está a fazer.

Momentos antes, entretanto, Estevão Chissano tinha lá estado na função de maestro. Cumpriu o seu papel até quando o programa permitiu e ainda foi o protagonista de uma bela homenagem a Edilson da Conceição (antigo aluno do Xiquitsi), quando o Coro e a Orquestra Xiquitsi interpretou o tema “Tsama”. Mas como fazer ficar alguém que partiu, de forma prematura, para a eterna viagem?

Depois de “Tsama”, do ronga “senta” ou “fica” em português, Chissano deixou a batuta para aquela que há 10 anos fundou o projecto Xiquitsi.

Destemida, como sempre, até porque a música clássica faz parte da sua personalidade desde muito nova, Kika Materula assumiu a função de maestrina numa fresca noite de Dezembro, em que os astros conspiraram a favor da harmonia musical, entre o clássico e o popular. Há-de ser por isso que o Xiquitsi deu tanto sentido a “Liquirikita” e “Kinachukuro”, de Ali Faque, um músico de outra época, no entanto, ainda actual na memória desta geração…

Na composição de Ali Faque, o macua foi geralmente interpretado num sotaque ronga ou changanizado no Franco. Por isso mesmo, ao invés de “Kinachukuro”, só se ouvia “kina xkuro”, que, numa língua que não existe, quer dizer “dança e canta”.

Bem, a parte da dança não se viu lá grande coisa. Como se sabe, os artistas da música clássica trabalham mais o canto do que o movimento corporal. O mesmo se pode dizer de Ali Faque. O músico cantou e tocou a sua guitarra, mas, dançar que é bom, nada. Claro, nem se exigiu nada além disso. O que importa mesmo é que Ali Faque levou o auditório a uma viagem pelo tempo, em que muitos de nós tínhamos de ligar a televisão pública para podermos ver música de qualidade. Agora as coisas mudaram. Os megas levam-nos até onde não deviam. Mas isso não vem ao caso. Até porque vale a pena falar de Aniano Tamele.

O filho de Zeburani voltou a apresentar-se no Franco. Desta vez, à boleia do Xiquitsi. O músico apresentou-se no palco como que meio envergonhado. Alguns intérpretes são assim mesmo, aparentemente tímidos, quando são humanos, e absolutamente audazes, quando transcendem para dimensão artística. Foi o que se verificou com Aniano Tamele. No entanto, mal segurou o microfone, a delicadeza vocal ecoou aos quatro cantos da Sala Grande e, com isso, até quem não o conhecia, cantou “Nkosikaszi” e o afamado “Tsunela Papai”, uma homenagem ao mostro Zeburani e a todos os pais que têm algum juízo na cabeça.

Com Ali Faque e Aniano Tamele, a noite já estava resolvida. Mas havia muito mais, inclusive um KO que violou todas as regras protocolares. Antes disso, entretanto, o Xiquitsi interpretou o clássico “Dry your tears Africa” – John Williams, numa espécie de interlúdio para o que se seguiria. Na verdade, o assalto à batuta que derrubaria Kika Materula estava prestes a acontecer, sem que a oboísta pudesse prever.

Quando a interpretação do tema “Dry your tears Africa” terminou, Kika Materula apenas disse ao público: “Até já”. E lá foi ao backstage buscar Ubakka. Voltaram de mãos dadas. O cantor todo encabulado, quase sem saber como reagir àqueles bons tratos. Mas é fácil. No caso em que um cantor não sabe como reagir, dá-se um microfone e tudo resolve-se, como se viu.

Ubakka, agora com uns quilitos amais, relativamente ao ano que lançou o seu primeiro EP, lembrou que há uma música bonita nesse disco: “Khoma”, um hino ao amor e aos casais. De repente, na Sala Grande, os rapazes e as raparigas começaram a “khomar-se”, entre abraços e beijinhos. A música clássica, nessa mistura com a popular, estava a aproximar pessoas numa viagem que parecia não ter fim.

Foi então que, já na terceira apresentação musical, Ubakka cantou “Minha ostentação”. A maestrina, nessa altura, claro, era Kika Materula. No meio daquela emoção toda, Ubakka, que sem o Xiquitsi, provavelmente, nunca cantaria com coro e orquestra, viu diante de si uma grande oportunidade. Realizado o sonho de cantar com coro e orquestra, percebeu que a noite poderia ser ainda memorável. “ – E que tal se eu desse um KO na ministra, quer dizer, na maestrina do Xiquitsi?”.

Sem que ninguém percebesse qualquer intenção, Ubakka avançou para sua investida final. Para quem a ostentação era a mulher, os filhos e comida na mesa, exactamente naquele instante, passou a ser a batuta. Então o cantor aproximou-se sorrateiramente à maestrina. Sabendo que ela não iria resistir, tomou a batuta para si e ascendeu para o Olimpo. A partir daquele momento, os 70 membros do Coro e Orquestra Xiquitsi, bem como a banda convidada, passaram a ser comandados por Ubakka. Kika Materula foi destronada na derradeira noite da décima Temporada de Música Clássica. A oboísta nem sequer percebeu como aquilo aconteceu. Mas foi suficientemente ágil para decidir abandonar o palco onde se trava a luta de uma vida. Logo se viu, tinha sido despromovida para espectadora.

Com aquele KO dado a Kika Materula, o Xiquitsi ficou entregue à sorte.

– E agora, quem vai comandar o barco? – Perguntou uma espectadora.

– Esse é de igreja. Vai maestrar com engenharia! – Respondeu a outra.

– Maestrar?! Com engenharia?! – Perguntou um tipo com cara de mal disposto, que até aí tentava pedir o contacto telefónico a uma das míudas. Só que o ensaio foi muito mal feito e o pobre coitado ficou completamente ignorado, sem nenhum Plano B para voltar ao assalto.
“Quem não tem cão, caça com gato”. Diz o ditado. O problema é que o nosso amigo de gato não tem nada. Então, a reacção das meninas foi compreensível. Mas não se perca, caro leitor, que este texto não é sobre meninas e tentativas frustradas…

Voltando ao que interessa, Ubakka cumpriu bem a missão que se propôs. Colocou o coro a cantar “Minha ostentação”, quando convinha, e a orquestra a tocar, quando oportuno. O miúdo é bom e fez aquilo aparentemente de improviso. Tudo fácil. Tão fácil que, quando notou que liderar 70 pessoas no palco soava a pouco, voltou-se para o público. Aí, sim, a ostentação do cantor passou a ser colocar aquelas centenas de pessoas desafinadas a interpretar os coros.

A batuta não lhe pesou em nada. Pelo contrário, tirou tão bem a Kika de cena que a oboísta se habituou a bater palmas. Mas quem tem Ubakka conta com um moço educado. Quando o artista percebeu que tinha realizado o sonho de ser maestro do Xiquitsi e do público, devolveu a batuta a Kina Materula.

A oboísta recebeu o objecto sorrindo, como se dissesse “Agora deves ir até o fim”. Ubakka nem sequer quis interpretar o sorriso. Retirou-se alegre do palco. Sol de pouca dura. No instante seguinte, Kika Materula voltou a chamar o cantor para terminar com aquela coisa da ostentação. Ali Faque e Aniano Tamele seguiram o miúdo e, sempre que possível, todos improvisaram uns passos de dança. Nessa altura, já ninguém se lembrava daquele KO malandro que em muito ajudou a colorir a derradeira noite da décima Temporada de Música Clássica.

O livro faz o sentido e o sentido faz a vida.

In O prazer do texto, de Roland Barthes.

 

Ao longo destes anos que me dedico ao ensaio, tenho a felicidade de contar com a confiança da Fundação Fernando Leite Couto para apresentar livros e/ou moderar conversas com autores. Os nomes são vários, mas ficam aqui alguns exemplos: Luís Carlos Patraquim, Carlos Reis, Mia Couto, Álvaro Carmo Vaz e Virgília Ferrão. Para mim, que até antes de ontem nem sequer ousava sonhar com estes momentos tão envolventes, tem sido uma experiência agradável poder cruzar percepções e ainda deixar-me levar pelos universos infinitos proporcionados pelos artistas da palavra.

Apesar de reconhecer nos convites da Fundação um privilégio, entretanto, sinto que vêm sempre carregados de muita responsabilização, pois ser uma figura intermediária entre os autores e os leitores exige de nós o que, geralmente, não conseguimos dar na plenitude. E hoje, em particular, a minha missão é ainda complicada, porque o meu amigo Celso Muianga ligou-me há dias a “intimar-me” para apresentar O descalço [dos] murmúrios, de Gibson João, e Incêndios à margem do sono, de Óscar Fanheiro. Se apresentar um livro já é um assunto complexo, imaginem dois?

Em todo o caso, aceitei o desafio e quero agradecer à Fundação Fernando Leite Couto por estas possibilidades que me dá de estar e conviver com autores.

Ainda hoje, pela tarde, aconteceu-me uma coisa muito bonita. O Gibson João, que se estreia em livro, pela primeira vez, assinou um autógrafo. Quis o destino que eu fosse o escolhido neste contexto em que o poeta está a iniciar o seu percurso literário. Desde hoje, tanto faço parte da sua história quanto ele faz parte da minha. Talvez, por isso, o nosso poeta premiou-me com as seguintes palavras no autógrafo que me concedeu: “Para o José dos Remédios, com carinho, escute os meus murmúrios”.

A seguir, proponho-me partilhar convosco o que escutei…

***

O descalço [dos] murmúrios, de Gibson João, e Incêndios à margem do sono, de Óscar Fanheiro, são obras laureadas (ex-aequo) na quinta edição do Prémio Literário Fernando Leite Couto. Com muita satisfação, eu integrei o júri que, com muita naturalidade, decidiu premiar os dois originais. Não houve grandes dúvidas em relação a essa decisão porque, desde o princípio, sentimos que estávamos diante do que felizmente a literatura moçambicana nos pode proporcionar em termos de qualidade poética. Em relação aos outros livros, os “Murmúrios” e os “Incêndios” demarcaram-se com muita notoriedade. Conforme se lê na acta do júri, tal é a complementaridade que, alguns de nós, julgamos que eram originais do mesmo autor. Mas vamos por partes.

Em O prazer do texto, Roland Barthes afirma que “O livro faz o sentido e o sentido faz a vida”. Se concordarmos com esta afirmação, facilmente podemos deduzir que a cada leitura de um livro desenvolvemos uma forma diferente de pensar o mundo. E se o livro em causa for muito bom, como é o caso de O descalço [dos] murmúrios, o sentido é algo múltiplo e cheio de perspectivas interiores e exteriores. Quer dizer, nesta sua estreia, Gibson João dá-nos alguns pontos de fuga, os quais são decisivos para reflectirmos sobre a relevância dos efeitos visuais da palavra.

Em Gibson João, a construção do sentido, na verdade, é um evento árduo e contrastivo. Num momento, a poesia é a circunstância e, no outro, é imensidão. Nesse intervalo, flutuamos como um pêndulo à procura de direcção ou de dois pólos onde morar simultaneamente. E o melhor disso tudo é que podemos contrariar as leis da Física e ocuparmos, paralelamente, dois espaços no mesmo instante em que diferentes sentimentos nos ocorrem. Quer dizer, não somos a mesma vida quando lemos este livro que nos surpreende pela sua acutilância e autenticidade.

O descalço [dos] murmúrios é um exercício sobre o lugar que habitamos e que nos habita por associação. Nesse aspecto, facilmente identificamos uma relação intertextual com Os ângulos da casa, de Hirondina Joshua, ou com “Inventário de imóveis e jacentes”, de Luís Bernardo Honwana. Afinal, o espaço doméstico é o principal destino de uma partida iminente numa permanência constante. O poema “O bolor da casa”, que agora será bem lido pela Matilde Uelissene, quase imita a interpretação que estou a tentar expressar nesta apresentação:

 

a casa acorda no polo mais vertiginoso do meu sonho

com as suas ramelas obscuras

com os hematomas vivos do encéfalo e

com o bolbo alucinado pela vida

 

a casa sonha chuva que morre na cobertura

que silencia a sede dos campos herbívoros

como a mãe, pelo vácuo elementar das mudas

fruteiras da casa

 

a noite morreu, na calefacção negra da epiderme

da inocência. O resto, é medo e treva fria

por cima

como o sofá sombrio do pai

 

eu digo que a casa é um casulo de infortúnios –

um celeiro de gritos,

de monólogos degenerativos como o dos móveis

como o de enfermidades entre enfermidades

 

é com isso que:

– a dor argumenta lágrimas (p. 25).

 

Enquanto em Nós matamos o cão-tinhoso temos um “Inventário de imóveis e jacentes”, neste O descalço [dos] murmúrios, o inventário é de angústias. Pois, a casa simboliza um espaço crítico, tornando os sujeitos de enunciação elegíacos. Aliás, a elegia aproxima o tom poético de Gibson João a de autores como Luís Carlos Patraquim ou Sangare Okapi. É na elegia de Gibson João onde morre o silêncio, onde as vozes se rebelam contra os objectos, as emoções, os sentimentos e as definições previsivelmente felizes. A elegia corrói o âmago do sujeito e, nessa degeneração do corpo e da alma, a dor e o espanto se confrontam em prol de uma poesia incisiva.

Neste O descalço [dos] murmúrios, pouco importa a mancha gráfica dos poemas que perfazem 75 páginas, o desassossego, inclusivamente naquele carácter whiteano, atravessa todo o livro. A questão que se coloca é: porquê os sujeitos poéticos de Gibson João são desassossegados e angustiados?

À pergunta retórica aqui colocada, vou responder mais à frente. Por enquanto, convido-vos a segurarem este Incêndios à margem do sono sem temerem queimar.

Quando li o original de Óscar Fanheiro, ainda projecto, lembrei-me imediatamente d’O livro da dor, como sabem, da autoria de João Albasini, publicado a título póstumo em 1925. Quer isto dizer que o nosso poeta conseguiu, inconscientemente, fazer-me recuar 100 anos da nossa história para do séc. XX, digamos assim, resgatar uma das vozes importantes da cultura moçambicana. Particularmente, gosto quando os livros me permitem constatar diálogos com o tempo, com o espaço e com tantas outras dimensões da nossa existência colectiva. Isso torna a lembrança possível e daí a memória pode rejuvenescer com certa amabilidade.

Em primeiro lugar, lembrei-me do célebre O livro da dor devido ao monólogo como registo de proa nesta navegação pelo mar das letras. Do mesmo modo que naquele livro as cartas de Albasini são dirigidas a um amor confesso, porém não correspondido, um cenário igualzinho se verifica em Incêndios à margem do sono. No entanto, aqui o amor não é uma disputa de afectos, mas uma impossibilidade por causa da eterna partida… Sempre prematura.

Segundo me disse Óscar Fanheiro, quando conversamos mais cedo, este livro também é uma homenagem à sua irmã, que a perdeu para a morte de uma forma ingrata. A morte sempre é uma ingratidão e isso piora porque nunca aprendermos a lidar com esse estado final que nos atormenta. Então, como se pretendesse cruzar a fronteira de uma Missão impossível, superando até todos os recordes de Tom Cruise, Fanheiro escreve cartas em forma de poemas em verso e em prosa poética para as enviar ao além, onde todos nós temos ou teremos uma musa presa. No inferno ou numa cela de Zeus.

Dito de outro modo, Incêndios à margem do sono é uma tentativa de chegar ao infinito, de tocar o intangível e de buscar respostas onde apenas sobram perguntas. Num tom rebelde, amuado ou contrariado, os sujeitos do poema se exprimem como se a lógica das coisas dependesse da presença de quem está ausente. Consequentemente, a resignação, o inconformismo e a angústia (uma vez mais a angústia) formam uma espécie de tríade inabalável para a tempestade perfeita. E com isso se gera na atmosfera da poesia esse efeito monólogo evidente. Tomemos como exemplo o texto “Blackout”, na leitura de Matilde Uelissene:

 

São três da madrugada e preparas-te para mais um black-out,

mas antes visitas a cela de Zeus

o lençol em que as lágrimas se precipitam,

visto que já não se pode suportar a letargia das manhãs,

sobre os molares da alma.

 

E, mesmo assim, carregas contigo a raiva do mundo,

o desejo sanguinário de resolver a pau as coisas com Deus,

e, p’ra isso, tens no silêncio a tua secreta arma

– o poço fundo onde invocar a ruina interior desses verbos celestiais –

a eterna magia de colocar o medo a vigiar

a memória polvorenta dessas mãos agoniadas

e a casa onde os ventos conduzem os olhos

para o fim dos tempos, repito, para o fim dos tempos,

ou para o beco onde o caos de todos

os (corpos e) nomes se anuncia:

Agosto, Agosto, Agosto.

Que rufem as nuvens no inferno das nossas horas (p. 15).

 

Neste poema, podemos tomar “black-out” e “cela de Zeus” como expressões que incitam a revolta contra a morte e contra o abismo. São apenas dois exemplos do que faz do Incêndios à margem do sono um livro sobre a densidade do silêncio e da noite. Nesse aspecto, claro está, Óscar Fanheiro faz soar a velha constatação de Gérard Genette, quando firma que “A valorização poética da noite é quase sempre sentida como reacção, como contra valorização”.

Ao trabalhar a noite, com efeito, Óscar Fanheiro investe numa linguagem dura, descomprometida com a delicadeza. Sem medir os versos e o tamanho da sua prosa poética, os sujeitos textuais questionam, confrontam e inquietam-se sem muita moderação. Antes pelo contrário, são impulsivos e irreverentes porque, aparentemente, perderam mais do que ainda podem ganhar. Portanto, Incêndios à margem do sono é um longo poema dividido em partes. Cada parte é um suspiro, um choque e um drama que não cabe na singularidade semântica de uma língua. Logo, o que não se consegue expressar em português, as palavras inglesas aparecem num registo denso, mesmo à semelhança da poesia de Mbate Pedro e de Álvaro Fausto Taruma.

Resumindo, o que estou a tentar dizer é o seguinte: a beleza da escrita de Óscar Fanheiro encontra-se precisamente na liberdade da expressão poética, nessa imprevisibilidade malandra a ameaçar o caótico.  A questão que podemos colocar é: porquê os sujeitos poéticos de Óscar Fanheiro são desassossegados e angustiados?

Bem, na Crónica dos anos da peste I, Eugénio Lisboa sugere que José Craveirinha é um poeta das suas próprias circunstâncias. Quando penso nessa ideia, concluo que boa parte da resposta à pergunta sobre a razão do desassossego e da angústia em O descalço [dos] murmúrios e em Incêndios à margem do sono tem a ver com a impossibilidade de Gibson João e Óscar Fanheiro desligarem-se do seu mundo interior e da vida à volta. Os poetas absorveram, com a poesia, as instabilidades de ordem socioeconómica e política de Moçambique. Os autores sentem a nuvem carregada de trevas, não escapam às crises nacionais, desde o que se passa em Cabo Delgado à fome e à incerteza que se repete em tantas outras províncias.

Os sujeitos poéticos de O descalço [dos] murmúrios e em Incêndios à margem do sono são feitos de desassossego e angústias, igualmente, porque o país não está bem. Como pode estar, se há gente a morrer sem saber porquê e não ter o que comer? Como podem os poetas escreverem sobre flores e borboletas se a sua alma é afectada pelas suas dores e inerentes àqueles que morrem à busca da esperança?

A essa pergunta, não vou responder. Mas, antes de terminar, deixo cá ficar uma sugestão aos meus amigos Gibson e Óscar. Na verdade, a minha sugestão é apropriação de um verso da música “Não espero o sol”, da cantora brasileira Becca Perret: “Não esperem o sol para a felicidade acontecer”. Claro, vocês não têm nada que seguir esta minha sugestão, porque, a escreverem assim, a felicidade é uma certeza.

 

*Texto escrito de cor na sequência da apresentação dos livros O descalço [dos] murmúrios, de Gibson João, e Incêndios à margem do sono, de Óscar Fanheiro, no dia 30 de Agosto de 2023, na Fundação Fernando Leite Couto, Cidade de Maputo.

 

Torna-se inadiável fazer a discussão da ‘‘Eticidade’’ nos dias em que vivemos, onde o bem e a verdade são desprezados em cada canto do mundo. Pensar em afirmar princípios e valores no seio do cidadão que está em processo lento de construção deve ser o desafio das sociedades. Viabilizar a ideia de conservar a dignidade durante a temporada da vida, parece não estar a importar no seio de muitas sociedades. Parece que estarmos a viver num mundo em que o louco escondido em cada ser humano e superior ao lúcido, como firma a psicologia, “cada ser humano tem um louco escondido dentro de si”. Pensar na dimensão ética durante o nosso trajecto de vida já não faz parte do pensar de muitos viventes, porque a dimensão económica sobrepôs-se à dimensão ética. Articular a dimensão ética à dimensão económica ficou longe de ser do ser humano.

Hoje as sociedades pouco discutem o pensar no valor da ‘Eticidade’ para o desenvolvimento das sociedades. O pensar no valor da ética na competência profissional foi esquecido. A competência sem ética afasta o saber que reproduz a reflexividade dum sistema social. Esquecemos que a competência e habilidades técnicas podem não influenciar de forma positiva nos resultados esperados, quando a dimensão ética não estiver presente em todos momentos da manifestação da competência. O vigor profissional pode não ter um brilho quando, não for acompanhado pela ‘Eticidade’.

O ser consciente do cidadão em contribuir na formação duma sociedade ética foi consumido pela força superior do querer pôr a dimensão ética como a última de todas dimensões. O ethos social, fez desaparecer o olhar sensível, e deu lugar o olhar sarcástico ao próximo. Perdeu-se a arte de desenhar a vida com as letras do bem, da razão e da verdade. O mundo esqueceu que a mente humana ė a parte do intelecto infinito de Deus, como refere Spinoza. Muitos tem a narrativa de construir o mal, poucos pensam na fórmula que cria um equilíbrio social. A ausência da aplicação ética da nossa experiência de vida na construção de uma sociedade mais humana, vê-se na vontade que as pessoas têm de viver alheias ao sofrimento do outro. Poucos lançam a semente da sabedoria no coração pobre para não fortalecer a mente com o poder critico ou saber infinito. Vivemos em um mundo do egoísmo total, onde poucos doam o amor e afecto, mas muitos oferecem o sorriso de um bom lobo. Um mundo que sabe muito dividir decepções, mas que perdeu a aritmética de viver as vitórias e emoções com o próximo. Procurar viver com dignidade, deixou de ser interesse de muitos. Os valores morais vão desaparecendo rapidamente, sem que haja formação de correntes que evidenciem os princípios éticos da dignidade humana. Alicerçar a conduta moral na plena consciência responsável e fugir do vazio da ignorância do bem, como afirma Platão (1954) é fundamental para quem precisa de levar a vida com dignidade. Para Platão, as ideias existem apenas quando são percebidas pela razão e, o bem ė um imperativo moral. Conhecer a verdade ética torna o mundo melhor.

 

Por Alexander Surikov,
Embaixador da Federação da Rússia
na República de Moçambique

No dia 21 de Novembro na Ucrânia alguns ainda celebram o Dia da Dignidade e da Liberdade, mas com caras tristes. Após os acontecimentos iniciados nesta data em 2013, o país mergulhou numa tragédia histórica (com perda de ambos destes símbolos) para si e preocupação dos seus vizinhos, tragédia que continua estremecendo muitos outros povos do mundo. O que se passou então? – O Presidente ucraniano, Viktor Yanukovych, no seu último ano de mandato adiou a assinatura do acordo de associação com a EU, cujo preço foi considerado exorbitante para o país. A seguir, uma manifestação de protesto orquestrada por embaixadas dos países ocidentais na praça de Maidan em Kiev a favor da integração europeia se transformou num confronto prolongado e logo conduziu a uma profunda crise política, provocou uma cadeia de acontecimentos que até hoje estão a abalar a Europa e todo o mundo.

Três meses depois, num contexto de motins em massa na capital ucraniana, com disparos de provocadores que custaram a vida a várias dezenas de pessoas, surgiu uma chance de voltar à vida pacífica. O então Presidente e os líderes da oposição, com a mediação de representantes da União Europeia e da Rússia assinaram o acordo que previa a realização de eleições presidenciais antecipadas e a formação de um “governo de confiança nacional”, bem como a retirada das forças policiais do centro de Kiev, o fim da violência e a entrega de armas pela oposição. No entanto, esta chave para a resolução do grave conflito interno foi deitada fora – as disposições do documento tornaram-se apenas um papelzinho amossado pelos protestantes que em seguida ocuparam todos os órgãos de poder.

As primeiras acções e declarações das autoridades que chegaram a Kiev através do golpe de Estado, para o qual, de acordo com a Subsecretária de Estado Victoria Nuland, os Estados Unidos tinham atribuído 5 mil milhões de dólares, desde princípio reflectiram claramente os seus instintos russofóbicos e racistas. Quase de imediato, a língua russa foi privada do estatuto oficial. Depois, foi anunciada uma “marcha” para a Crimeia para expulsar todos os russos. O novo governo provou a sua total afinidade espiritual com o nazismo: elogiou os heróis que tinham colaborado com Hitler nos crimes de extermínio – o Holocausto e condenados no Tribunal de Nuremberga e declarou feriado as datas de criação de estruturas anti-humanas (“SS Galicia” e outras unidades do Reich de Hitler). De que “liberdade” gostam de falam os dirigentes ucranianos com qualquer oposição ao regime cortada de imediato pela raiz e os média independentes fechados…

Nem a Crimeia nem as regiões do leste da Ucrânia historicamente russas aceitaram tais mudanças radicais e recusaram-se a cumprir quaisquer instruções das novas autoridades anticonstitucionais. Como consequência, os golpistas no poder em Kiev desencadearam uma guerra contra as regiões “rebeldes”. A fim de parar uma verdadeira carnificina em 2015 foram assinados os acordos de Minsk, que previam outorgar a estes territórios o estatuto da autonomia etnolinguística dentro da Ucrânia. Mais uma vez surgiu uma chance para prevenir uma tragédia com consequências globais, mas foi sabotada propositadamente pelas autoridades de Kiev e os “garantes” ocidentais. O ex-chanceler alemã Ângela Merkel e o ex-presidente francês François Hollande (os que assinaram os acordos de Minsk) recentemente confessaram que havia um plano para ganhar tempo para que a Ucrânia preparasse melhor para um confronto com a Rússia. O país foi literalmente enchido com armas, conselheiros da NATO e suas instalações militares e medico-biológicas no interesse do Pentágono.

A máquina militar da Aliança do Atlântico do Norte como bulldozer aproximava-se das fronteiras da Rússia. No final de 2021, os Estados Unidos e a NATO rejeitaram categoricamente as propostas russas de acordo mútuo sobre garantias de segurança para todos numa base não-alinhada, o que significa uma recusa de “arrastar” a Ucrânia para a Aliança. Não foi a nossa exigência de surpresa, mas uma recordação da promessa dada há 30 anos de que a NATO não se moveria nem um centímetro para leste após a reunificação alemã. Durante o resto dos 30 anos, continuaram a mentir-nos que não tinham qualquer intenção de transformar a Aliança do Atlântico Norte num bloco agressivo. Tudo em vão: a NATO expandiu-se cinco vezes em direcção às fronteiras russas.

Assim, foram criadas ameaças militares directas à segurança da Rússia no território ucraniano. As regiões, que deveriam receber um estatuto especial como parte de uma Ucrânia unida (em primeiro lugar, o direito de usar a sua própria língua junto com o ucraniano), passaram a ser sujeitos a bombardeamentos repetidamente intensificados. Durante oito anos, cada dia dezenas de pessoas morriam: no total, mais de 14 mil, na sua maioria – civis. A posição dos “parceiros” ocidentais que fechavam os olhos ao extermínio dos russofalantes e preparações de um ataque ucraniano iminente definitivo contra Donbass (com a sorte de Palestina) não nos deixou outra alternativa senão lançar uma Operação militar especial. A finalidade é clara – proteger as pessoas inocentes das regiões historicamente russas. Não tínhamos o direito moral de atirar à mercê dos nazis aqueles que viviam nas terras onde durante séculos os antepassados do povo russo tinham construído cidades, estradas, portos, igrejas e desenvolvido esses territórios.

O objectivo da Rússia nunca foi de ameaçar a Ucrânia como Estado, nem os ucranianos como povo, nem muito menos os vizinhos europeus. São os “amigos” de Kiev que de facto estão a ajustar as contas nostálgicas com a Rússia por mãos e corpos dos ucranianos. Sob pretexto de garantir a soberania deste país, eles destroem os seus restantes. Hoje as capitais ocidentais já não escondem a gestão externa directa do regime fantoche de Kiev.

Usando a Ucrânia como estado-tampão foi desencadeada contra a Rússia uma guerra híbrida, na qual é dado um papel especial às medidas restritivas unilaterais ilegais – “sanções”. No que diz respeito à Rússia, a quantidade delas não tem precedentes e ultrapassou os dezassete mil! Os objectivos declarados – minar a economia russa e forçar a liderança política a abandonar a sua linha independente nos assuntos externos, e finalmente virar a população contra as autoridades.

No entanto, estes cálculos não se concretizaram. Sendo absolutamente contraditórias ao andamento económico global, as sanções exacerbaram os desequilíbrios económicos globais criados antes. São resultados de erros sistémicos na política macroeconómica dos países ocidentais durante o período de combate à pandemia da COVID-19 e da sua corrida irreflectida à “transição verde”.

Após o início da operação militar especial, os EUA e os seus seguidores ocidentais tentaram apresentar a crise energética mundial como se tivessem sido provocada pelas acções russas. Na verdade, a causa principal dos fenómenos negativos foi a imposição da agenda ecológica sem ter em conta falta de capacidades tecnológicas, peculiaridades e indicadores económicos básicos da maioria dos países do mundo. Nos seus esforços para impor as suas “regras do jogo” no domínio climático, os autores fazem descaradamente vista grossa às prioridades dos países em desenvolvimento. Exortam-nos a abandonar a produção de carvão e petróleo mais rentável e acessível, a deixar de estimular o desenvolvimento de depósitos de combustíveis fósseis e a reduzir os investimentos na produção de hidrocarbonetos. Em paralelo, romperam a cadeia logística e financeira da exportação dos hidrocarbonetos russos ao mercado.

A estes grosseiros erros de cálculo macroeconómicos juntam-se fenómenos como os ataques dos terroristas “desconhecidos” aos gasodutos “Nord Stream” no Mar Báltico, que enterraram as esperanças da Europa de voltar a receber o gás barato. Em vez disso, recebem o LNG americano – caro e com uma pegada de carbono bastante negativa. Nada de estranhar – é a sorte dos que se submeteram à hegemonia maligna.

À luz do conflicto na Ucrânia, a mídia mundial põe em realce o problema da segurança alimentar. Para o Ocidente é mais um pretexto para acusar a Rússia, desta vez, de “fome global”. Faz tudo para esconder que, logo no início da pandemia de COVID-19, os EUA, o Japão e a Europa imprimiram triliões de dinheiro não garantido, compraram todos os alimentos ao seu alcance, na expectativa de que a COVID-19 obrigasse todos a “fechar”, criando assim uma crise aguda no mercado global.

Neste contexto, não se pode deixar de recordar a situação do famoso “acordo dos cereais”, assinado em pacote. A primeira parte foi ucraniana e a segunda – russa. As obrigações perante a Ucrânia foram devidamente cumpridas. No entanto, apenas 3% dos alimentos fornecidos aos mercados mundiais destinaram-se para os países da lista do Programa Alimentar Mundial. A maioria foi para a Europa e outros mercados de países ricos. O facto de o Ocidente ter desencadeado uma campanha tão histérica quando nós suspendemos o Acordo, em que a parte russa do “pacote” nem sequer foi posta em prática, explica-se simplesmente: mais de um terço das terras férteis da Ucrânia pertencem às empresas americanas, que estão a ganhar lucro com isso. Com os obstáculos de fornecer os alimentos ucranianos aos mercados mundiais, estas companhia têm medo de perder as rendas…
Aliás, é impossível enganar o mundo para sempre. A política sem escrúpulos dos países que procuram reanimar o seu passado domínio colonial pelos meios actualizados já deu os seus “frutos”: “os senhores” transformaram-se numa minoria na cena internacional. A maioria do “Sul Global” está a ganhar força. Um número crescente de países soberanos resiste activamente às tentativas duma nova escravização. A utilização generalizada de moedas nacionais nas transacções internacionais tornou-se uma marca dos tempos, com um declínio gradual e constante da quota do dólar e do euro.

A insatisfação com a mítica preocupação com o bem-estar dos habitantes da Ucrânia é cada vez mais sentida nos próprios países europeus com o “crescimento” económico negativo. Uma escandalosa polarização política nos EUA já custou ao país uma descida do seu ranking de crédito.

A mesma Ucrânia que na época da URSS foi comparada com a Alemanha e França por seu potencial industrial e agrícola, agora vive graças ao financiamento directo dos EUA e EU e com uma população a diminuir devido à emigração em massa. Em dez anos “a Revolução de dignidade e liberdade” levou a Ucrânia à perda completa de ambas, à dependência quase colonial e ditadura militar dirigido de fora.

No pano do fundo da crise mundial e a divisão da comunidade internacional não é de estranhar que os nervos dum dos estados mais ressentidos não aguentaram. O povo que injustamente foi privado do seu próprio território agitou-se. Quem sabe, talvez, se em 2013 não tivessem começado os motins em Kiev que afinal não trouxeram nem dignidade, nem liberdade, hoje fosse possível achar uma saída pacífica para este conflito de longa data. E se uma parte da comunidade internacional não provocasse crises e golpes de estado, hoje não se deramaria sangue nem dos palestinianos, nem israelitas, nem ucranianos, nem russos…

Resta apelar aos autores e patrocinadores desta catástrofe de dez anos e suas consequências: entendem o que fizeram? Talvez, basta de sangue pago pela importação forçosa e custosa da ordem baseada em regras “made in…”?

É corriqueiro as eleições moçambicanas terminaram com focos de violência armada em algumas zonas da região centro de Moçambique. Parece que a história sempre se repete. De forma cíclica, depois das eleições o país passa por uma espiral de violência, onde pessoas indefesas são tiradas vidas e bens. Nisso, a pergunta vociferada nas reflexões pós-eleições é: por que realizamos eleições se os resultados eleitorais sempre empurram o país para a violência armada? Também, como blindar o povo da violência armada pós-eleitoral? Triste! Albert Einstein já dizia que Insanidade é fazer a mesma coisa várias vezes e esperar obter resultados diferentes. Os ataques e assaltos armados depois das eleições já estão a virar rotina. As motivações da violência armada depois das eleições precisam ser aprofundadas pela academia em estudos muito sérios. É importante entender que a guerra aumenta a nossa crise social e entope os bolsos de um punhado de gente particularista, egoísta e não comprometida com o desenvolvendo comum.

Não é justo que as contradições eleitorais transformem os filhos desta pátria em carne-de-canhão outra vez. Depois dos acordos gerais de paz assinados em 1992, o país teve as suas primeiras eleições na sua história como país multipartidário, e a nação viveu um pouco mais de 20 anos de paz, ou seja, o fantasma de guerra não se viu durante esse tempo. A pergunta é: qual foi a fórmula magica que o ex-presidente Joaquim Chissano utilizou para manter a paz por esses longos anos? Também, por que não pedir ao Presidente Chissano essa fórmula. Não queremos ser beefsteak de ninguém.

É altura de pensarmos num Moçambique melhor, um país sem vukuvuko, temos que pensar grande. Depois do primeiro acordo geral de paz, o país teve diversificados acordos para pôr o fim as armas que não chegaram a devolver a paz perpetua para o país. Quando é que o país terá acordos que tragam uma paz consistente? Os nossos acordos não podem ser precários como os acordos dos colombianos. O clima de tensão e agressividade que a Estrada Nacional Número 1 vive, somado a tensão dos insurgentes em cabo delgado, retrai investimentos, numa altura em que o país caiu alguns degraus no ranking do doing business, que é o relatório que indica os índices sobre a facilidade de fazer negócio em determinados países.

Os partidos que estão em cisão, que procurem unir-se, pois o exercício político democrático num mercado político justo é feito com partidos organizados. Por isso os ambulantes políticos que procurem definir-se, consolidarem-se e estabelecerem-se nos seus partidos, contribuindo com suas experiências e inteligência para a vida político-democrática dos seus partidos, pois o exercício democrático não é feito com armas em punho. É importante entender que nas zonas onde há violências armadas, já se nota a existência de deslocados, ou seja, a população está a abandonar o seu património para salvaguardar a sua vida, e essas deslocações provocam a perca do ano lectivo das crianças e o atraso do desenvolvimento socioeconómico. Basta de sermos carne de canhão, vamos proteger a vida!

I
John Mac Gavin, director da mina de ouro de “Stanford Mine” na periferia de Joanesburgo estava transtornado com os resultados de produção dos últimos meses que não justificavam os investimentos por ele solicitados as lideranças em Londres e na cidade de Luxemburgo.
A mina já existia há mais de vinte anos e grande parte dos mineiros eram provenientes do país vizinho, Moçambique.
Desesperado, o director decidiu marcar uma reunião com os mineiros para explicar a grave situação que enfrentavam e que corriam riscos de perderem os seus empregos.
Carlos Mulungo, um experimentado mineiro moçambicano, trabalhava na Stanford Mine há mais de dez anos, saiu da sua terra natal, Manhiça, no sul de Moçambique na companhia de seu amigo de infância António Cossa para o eldorado em busca de melhores condições para si e suas famílias, aliás ele, era a quinta geração de mineiros da família.
António perdera a vida num incidente no interior da mina, não resistiu aos ferimentos causados pela queda de uma rocha na sua cabeça, o seu corpo foi transladado para sua terra natal, passaram-se seis meses desde do fatal incidente.
No final da tarde de uma sexta-feira decorreu uma reunião no pátio do escritório, estavam todos apreensivos sobre a decisão que a direcção tomaria, pois era sabido pelos mineiros que muitas minas que não geravam lucros acabam encerradas.
Estavam todos capturados pela fala do director, que se lamentava pelo rumo que a mina tomava, que certamente acabaria no descalabro.
Mas ele tinha interesse em salvaguardar o interesse de todos, dele inclusive, por isso pediu maior empenho na prospecção.
– Sei qual é o problema que acontece na mina. – manifestou inesperadamente Carlos.
Uma estupefectação colectiva apreendeu a atenção de todos, olharam-se num misto de admiração e desconfiança.
O pretenso salvador levantou-se, suspirou e pausadamente iniciou a sua fala:
– Temos que levar o espírito de António para casa, – afirmou convicto – Ele tem que voltar para a terra. – reafirmou sereno.
Depois de sua firme afirmação, um silêncio envolvente habitou o local, durou o tempo suficiente para a memória do falecido revisitar a mente dos presentes.
Mac Gavin largou um sorriso sarcástico influenciado pela erudição que herdara dos ensinamentos dos seus anos na Universidade de Oxford.
A visão místico-espiritual do mineiro não se compactuava com a sua percepção intelectual.
– Não me deixo corromper por atitudes pagãs. – afirmou o director seguro de si.
Formaram-se pequenas assembleias onde se debatia a proposta de Carlos para solucionar o problema que enfrentavam.
John Mac Gavin não tinha uma contraproposta convincente, por isso decidiu por um sufrágio para acalentar o mal-estar que se tinha gerado. O resultado do sufrágio foi apoio para execução do ritual para levar o espírito de António para sua terra natal.
24h após a realização da votação e aceitação dos resultados, um mineiro da ala leste descobriu um filão de ouro.
O cepticismo do director foi suplantado pelo poder dos deuses.
Agora Carlos tinha por missão dar continuidade a cerimónia, precisava terminar o ritual na terra do falecido.
Todas as condições para efectuar a viagem foram criadas e ele partiu. No dia seguinte, chegou a Manhiça, não demorou, procurou os familiares do falecido para efectuar-se a cerimónia de entrega do espírito.
Depois do intróito de apresentação dos espíritos dos antepassados da família do falecido, iniciaram o ritual” com o “nyanga” a dirigir as cerimónias.
Inadvertidamente pelas cordas vocais do “nyanga” fez-se ouvir:
– Obrigado por me trazeres a casa – afirmou António pelas cordas vocais do “nyanga”, mas ao som da sua voz.
Os desavisados alarmaram-se pelo “Kufemba” exercida pelo “nyanga”, o próprio curandeiro há muito que não era visitado por esse poder.
O possesso ainda confessou uma última vontade do espírito e depois cessou a sua mediunidade.
II
Dois petizes, Mário o mais velho e Benedito órfãos de pais haviam abandonado a escola para se dedicar ao serviço de tratadores de campa, para que com os ganhos adquiridos ajudarem as suas mães e irmãos.
Honravam contratos verbais que tinham com os seus clientes de cuidar de campas dos familiares e amigos destes.
Um recente túmulo devidamente ornamentado que desconheciam os seus representantes chamou-lhes atenção.
Um reflexo luminoso advindo de um dos objectos que ficavam na sepultura chamou atenção de Mário, movido pela curiosidade convocou o companheiro para darem uma vista de olhos.
O que descobriram encheu os seus quatro olhos e aguçou-lhes a ganância, retiraram os 1000 rands que estavam depositados numa chávena, Mário como o mais velho, por ter descoberto ficou com a maior fasquia e o restante para o colega.
Empolgados com a sua aquisição rumaram apressadamente para a loja do “monhé” na sede da vila da Manhiça para procederem o câmbio para a moeda nacional. Ali mesmo fizeram as primeiras compras, arroz, açúcar, sabão entre outros produtos.
Cada um foi recebido nas suas casas como benfeitor, Mário foi quem mais compras fez, e na noite desse mesmo dia preparou-se um banquete.
Mário apareceu para o festim junto da sua família todo bem aprumado, usava tudo novo, uma camisa colorida, calças de caqui e sapatilhas que havia comprado na loja mais concorrida da vila.
O frenesim inicial extinguiu-se quando o patrocinador da banga se retirou para o seu quarto movido pelo embriaguez e cansaço. Logo que se descalçou atirou-se para a cama, não demorou para começar a ressonar, sua mãe e irmão ainda riram quando o ouviram.
Cântico dos xiricos que debicavam restos de comida do festim da noite passada, anunciavam a manhã que acabava de nascer.
Quando os raios solares adentravam pela janela, dona Ana, mãe de Mário, a muito custo despertou, saiu para varrer o quintal, os xiricos agora, num número considerável cantavam e debicavam a comida.
Fez-se silêncio, os pássaros calaram-se, o som do vento leve que sacudia a ramagem das árvores também cessou, instantes depois o mesmo gemido sofrido voltou a fazer-se ouvir.
O instinto materno de dona Ana fez com que ela corresse para o quarto de seu filho Mário, encontrou o corpo desmedido ocupando toda a extensão da cama, as roupas romperam-se, banhas de carne extravasavam a borda da cama. O corpo franzino estava completamente inchado.
Ela soltou um grito, depois lágrimas banharam-lhe o rosto, soluçava enquanto chorava. De repente pela boca do moribundo saiam larvas, não se aguentou, vomitou, vomitou incessantemente.
O filho mais novo ouviu os gritos da mãe e correu para acudir, quando deparou com os factos pôs-se logo a vomitar.
O inchaço de Mário incrementava-se rapidamente enquanto sua mãe e irmão continuavam a vomitar enchendo o chão de uma amalgama malcheiroso.
Pum, um estrondo fez-se ouvir, a barriga do moribundo abriu-se e as entranhas ficaram expostas, os intestinos mergulharam no vómito.
Dona Ana e o filho empreenderam uma correria desenfreada pelas ruas da vila, ora gritavam ora choravam.
A loja do “monhé” foi fustigada por uma praga de ratos e quase todos os produtos ficaram contaminados, sem dinheiro para um novo investimento acabou arruinado.
Benedito o comparsa de Mário amalucou.
Os residentes da vila e arredores sussurravam sobre o acontecimento e temiam despertar a ira do espírito de António.
A vila ficou submersa num temor colectivo, as manhãs dominicais não eram mais preenchidas pelas visitas ao cemitério, os vivos coibiram-se de tal missão. Os mortos sentiram-se ainda mais abandonados.
Os funerais eram realizados sob os auspícios de um curandeiro destacado para esse fim.

A vida é apenas a soma bruta das nossas escolhas.
in Sina de Aruanda, Virgília Ferrão

A dança, muitas vezes, é um exercício inefável. Por isso mesmo, só sentir as linguagens manifestadas pelo corpo, portanto, em silêncio, já constitui uma espécie de confronto à razão das coisas que forçamos explicar. Talvez, por isso, os movimentos do corpo, nesse sentido performativo, são geralmente anteriores ao verbo, porque antes dos predicados que as palavras imprimem na sua ressignificação, há um objecto humano que se configura na sua imensidão.

Na noite desta quarta-feira, durante a apresentação na Sala Grande do Franco-Moçambicano, o espectáculo de dança Bantu, de Victor Hugo Pontes, foi, aparentemente, mais ou menos esse vector gerador do inexplicável, o palco onde coabitam a tentativa e a acção com as devidas reticências.

Com 70 minutos de duração, o espectáculo “desvaloriza” a inteligibilidade do discurso oral, até porque o corpo é a base (mais) comum à humanidade. Embora os universais linguísticos afirmem que em todas as línguas do mundo o Homem encontra o que necessita para exprimir emoções, sentimentos e ideias, com o corpo do Bantu, entrelaçando sete bailarinos, parece que não nos sujeitamos a precisar de dicionários ou de traduções. Pelo contrário, o espectáculo é um desafio à capacidade de o espectador construir narrativas sem recorrer às prescrições gramaticais.

Logo no início da peça, a apresentação do suspense é um investimento que silencia o auditório. Entre os efeitos sonoros e cénicos, com efeito, as feições dos intérpretes/bailarinos levam-nos a adivinhar o que se projecta no horizonte das personagens por si interpretadas, simultaneamente expectantes, intrigadas e com receio de algo a aproximar-se. Com Dinis Abudo, Dinis Duarte, João Costa, José Jalane, Maria Emília Ferreira, Marta Cardoso, Osvaldo Passirivo, os olhares insinuam desconforto e os movimentos comprovam a tímida reacção ao desconhecido. Nesse registo, todos são humanos. No entanto, quase em câmara lenta, as figuras antropomórficas, no palco, vão-se transformando num pouco de tudo, inclusive nesse insecto gigante tão bem retratado em A metamorfose, de Kafka. Desse ponto de vista, Bantu é um texto sobre as diferentes formas que o corpo humano pode adoptar diante de situações adversas e complexas. Entretanto, ao contrário de Gregor Samsa, a metamorfose gerada neste espectáculo é voluntária e colectiva.

Bantu não é uma peça com muitos adereços no palco. Geralmente, o palco é um campo aberto, a sugerir um lugar recôndito no qual o contacto com o tempo faz sentido quando se olha o passado. Assim, os bailarinos podem correr, dar acrobacias e multiplicarem-se nos seus gestos sem comprometerem a coerência das interpretações possíveis e imaginadas. Ainda assim, os poucos adereços utilizados ficam reservados no backstage, aparecendo para quebrar alguns momentos de monotonia cénica.

No expectáculo, o que não se faz com os objectos, é preenchido com o jogo de luz. A iluminação muda a perspectiva sobre o espaço e a percepção sobre as personagens. Também por isso, questionamo-nos sobre o que somos e o que poderemos ser, enquanto espécie, sem a língua que nos pode separar e unir. Quer dizer, no plano real e da peça, a língua é um elemento fundamental. Evidentemente, não do ponto de vista fonético ou fonológico, mas do ponto de vista do significante. Logo, em várias partes da peça, os artistas exibem o máximo da elasticidade da língua que possuem. Com isso ou viram bichos ou pelo menos libertam o instinto selvagem que as convenções sociais ajudam a conter.

Finalmente, mais do que lembrar uma família de línguas faladas na África subsariana ou um mecanismo cultural, Bantu parece um reflexo do Homem despido de artefactos. Trata-se aqui de um ensaio sobre a lucidez da loucura, uma antítese, claro está, que nos retira do registo sensato da nossa personalidade para ousarmos ser alternativa à nossa própria humanidade. Só com uma dose de loucura e devaneio da direcção, produção, dos artistas, do espectador e etc., o espectáculo ganha linguagens particulares, capazes de impressionar o público sem que a interpretação lógica seja uma obrigatoriedade. É também disso o que precisamos para ultrapassar as fronteiras do nosso universo, afinal, conforme nos escreve Virgília Ferrão, “A vida é apenas a soma bruta das nossas escolhas”.

As pessoas perguntam-me, muitas vezes, Tony O. Elumelu como é que eu aprendo a liderança. Devo ir a um curso? Comprar um livro? Arranjar um mentor? Os líderes nascem líderes ou é possível tornar-se um líder?

Tal como digo em relação ao sucesso empresarial, a liderança tem muitas componentes – sorte, estar no sítio certo e à hora certa. Mas também acredito que os talentos e as disciplinas que traz consigo, criando uma visão e resiliência e concentração necessárias para concretizar essa visão, também podem forjar a  sua própria liderança pessoal.

Tive a sorte de trabalhar com o verdadeiro líder, no início da minha carreira. A minha filosofia de liderança foi construída ao trabalhar com ele. Tudo começou com o facto de o Chefe Banigo ter lido a minha carta de candidatura e ter-me dado uma oportunidade de provar o meu valor em 1988.

Quando os meus colegas me dizem hoje: “Tony, respondes muito depressa aos nossos e-mails”, rio-me porque aprendi com o próprio mestre – o Chefe Banigo. Quando eu lhe enviava memorandos, ele respondia no prazo de vinte e quatro horas; por isso, porque é que eu não hei-de responder ainda mais depressa nesta era da tecnologia?

Estes são alguns dos valores de liderança que aprendi com o Chefe Banigo e que pratico actualmente.

1. Os líderes devem exigir excelência
Só se formos mais longe e nos esforçarmos é que nos desenvolvemos e destacamos verdadeiramente. O trabalho árduo e a excelência fizeram com que os meus chefes Toyin Akin-Johnson e Ebitimi Banigo reparassem em mim e, subsequentemente, acreditassem em mim. Aos vinte e sete anos, passei de estagiário a chefe, quando fui nomeado gerente da Agência, o mais jovem gerente de Agência bancária na altura. Tudo o que aprendi anteriormente foi posto em prática, e continuei a aprender.

2. Os bons líderes descobrem nas pessoas aquilo que elas não sabiam que possuíam
Os líderes reconhecem o talento da sua equipa e depois esforçam-se por revelar esse talento. Quando trabalho, trabalho para atingir os meus objectivos, mas também trabalho para revelar as competências das minhas equipas. Sei que todas as pessoas com quem trabalho têm um enorme potencial – para mim, o meu sucesso também tem a ver com o sucesso dos outros, com crescimento e desenvolvimento do seu talento. Este foco no talento, nas equipas, na transformação pessoal, é a razão pela qual sou tão insistente na criação de instituições, culturas e caminhos, onde o capital humano pode prosperar. É por isso que sou um investidor em empresas, mas também em jovens empreendedores em toda a África.

3. Os líderes têm de ser coerentes com o que dizem
Um líder tem de ser coerente. As pessoas querem confiar num líder que acreditam ser íntegro. A liderança não consiste apenas em dizer às pessoas o que devem fazer, mas também em dar o exemplo. Um bom líder deve dar o exemplo e praticar o que prega, o que demonstra integridade, cria confiança e respeito.

4. Os líderes devem transmitir conhecimentos
Beneficiei-me da orientação do Chefe Banigo, ele ajudou-me a desenvolver o meu pensamento estratégico, os meus quadros de referência e a canalizar as minhas ideias para acções concretas, de modo a que, quando chegou o momento da oportunidade, aos trinta e quatro anos, eu tivesse a autoconfiança necessária para reunir um pequeno grupo e assumir o controlo e a recuperação de um banco em dificuldades – dar esse enorme passo, que ainda hoje está a moldar uma indústria e um continente.

Hoje, quando me deparo com uma situação impossível, pergunto a mim próprio: “O que é que o Chefe Banigo faria?” Trabalhei com o Chefe Banigo de 1988 a 1995 e, até hoje, é ele a quem recorro quando preciso de conselhos.

Tony O. Elumelu é filantropo, economista, investidor, presidente do principal grupo pan-africano de serviços financeiros, o United Bank for Africa (UBA), com presença global em 20 países africanos, nos EUA, Reino Unido, Paris e UAE. Ele preside à empresa de investimentos privada Heirs Holdings com serviços financeiros que abrangem bancos, seguros, bancos de investimento, gestão de activos e registo no mercado de capitais. Tony Elumelu foi incluído na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo pela Forbes, fundador da Tony Elumelu

Foundation, onde têm financiado o empreendedorismo jovem em toda a África no valor de 10 milhões de dólares americanos. Ele também é membro da Comunidade de PCA do Fórum Económico Mundial.

A primeira vez que vi um concerto de Bongeziwe Mabandla foi há um ano e meio, em Saint-Pierre, Ilha Reunião. Nessa altura, o músico sul-africano actuou num dos cinco palcos do Sakifo Music Festival e, como se não tivesse alternativa, deixou o público proveniente de diversas regiões do mundo impressionado com a sua sonoridade, difícil de encaixar num único género musical.

Esta sexta-feira, no seu regresso ao Centro Cultural Franco-Moçambicano, voltei a ver Bongeziwe Mabandla no seu registo particular, sempre acompanhado pelo multi-instrumentista moçambicano, Tiago Correia-Paulo, e, igualmente, pelo baixista Bruno.
O pretexto, desta vez, foi a apresentação das músicas do novo álbum, intitulado amaXesha. Trata-se de um exercício profundamente intimista, que nos convoca a uma espécie de meditação enquanto ouvimos a associação de ritmos e sons que, aparentemente, apenas têm sentido no desempenho vocal do sul-africano.

Na Sala Grande do Franco, a primeira música interpretada por Bongeziwe Mabandla foi “sisahleleleni (i), uma proposta musical com versos curtos, em que se retrata a tentativa de um sujeito buscar um lugar ideal. Numa espécie de monólogo, mas estabelecendo diálogos possíveis, Bongeziwe fez dos gestos e do tom musical uma possibilidade viável para ser compreendido pelo público moçambicano e sul-africano que esteve bem representado no concerto.

Na sua interpretação, Bongeziwe Mabandla teceu uma narrativa em partes, sendo que na primeira apresentou “sisahleleleni (i)”, “sisahleleleni (ii)” e “ukuthanda wena”. Este é um tema sobre o amor a uma ideia de musa a escapulir-se a todo o instante do campo visual de quem a quer. O sul-africano interpretou as três propostas eventualmente como foram compostas, num investimento poético musicado. Os que no Franco não entenderam nada da mensagem enunciada numas das  línguas bantu da África do Sul limitaram-se a sentir a sonoridade ou então a cantar os coros das músicas, que são bem mais fáceis.

Na segunda parte do seu repertório, Bongeziwe Mabandla cantou “noba bangathini” e “soze”. Aí levou lágrimas aos rostos do auditório, pois o som catártico, sofrido e melancólico foi expurgando as dores dos que permitiram tirar de dentro de si o que constitui excesso. Esse também é um tema sobre o amor, conforme ilustra a seguinte passagem: “noba bangathini (Não importa o que eles digam)/ Thina sadalelwa ukuba kunye (Nós nascemos para ficar juntos)// Ndincame konke ebendinako (Eu desisti de tudo o que eu tinha)/ Ndakhetha ukuba nawe (Eu escolhi estar consigo)/ Ngoba xa ndihleli nawe (Porque quando estou consigo)/ Liyama ilizwe lami (meu país está de pé).

Na terceira parte, Bongeziwe Mabandla interpretou “ndikhale” e a muito aplaudida “zange”. No enredo, como é habitual nos temas do sul-africano, há uma personagem que se revela na dor e na dificuldade. No entanto, diferente das músicas anteriores, essa é das que inspira um certo movimento coordenado do corpo, mesmo sem que se compreenda muito do que é dito.

Na apresentação do álbum amaXesha, houve ainda uma quarta parte, em que o músico interpretou “hlala”, outro som dançante; uma quinta, em que fez soar “Ndokhulandela”, “jikeleza”; e uma sexta, reservada a “isiphelo” e “ndiyakuthanda”.

Ao longo das suas actuações, Bongeziwe Mabandla foi alternando a sua liberdade versátil de cantar, sem receio, com um certo embaraço ao dirigir-se ao público. O artista e o sujeito existencial confundiram-se várias vezes, pois, para o sul-africano, cantar parece bem mais fácil do que falar em público.

Ainda assim, levando a mão várias vezes ao rosto, ora envergonhado, ora buscando palavras, confessou sentir-se satisfeito e estar a viver um momento muito especial no seu regresso a Maputo. Talvez por isso “Maputo, lets go” fosse das frases que mais pronunciou enquanto cantou no palco e, por duas vezes, no meio do público da Sala Grande.

Os espectadores aproveitaram a presença mais próxima do músico. Deixaram-se fotografar e filmar com o músico, através dos seus celulares, e, durante os 100 minutos que o concerto durou, no Franco, parece que ninguém se lembrou de que, horas antes, uma manifestação pôs em xeque uma cidade.

As eleições autárquicas, cujo desfecho definitivo só irá acontecer com as decisões do Conselho Constitucional, e enquanto não acontece, vão dando espaço, não só para o que é mais visível, que são as manifestações de repúdio ou de celebração, de uns e de outros, como de revelações sobre como elas foram realmente organizadas e decorreram, e também de ulteriores desenvolvimentos que vêm ocorrendo á volta e por causa das mesmas. Tudo isso abre, amplia e alimenta, o espaço para análises e comentários nas redes sociais, nos órgãos de comunicação social, públicos e privados, e em conversas a todos os níveis. Pode-se afirmar, sem grande margem de erro, que este é o assunto dominante da vida nacional, desde a família, célula base da sociedade, até ao espaço público mais amplo, de forma contínua e ininterrupta, desde o dia 11 de Outubro.

Por isso, quer se queira quer não, este é um assunto que não precisamos de o procurar, porque ele vem a nós, nos persegue, nos entra em casa, nos inquieta, interpela e questiona, não deixa ninguém indiferente. Obriga a preocuparmo-nos, a reflectir seriamente. Tanto que não é lícito presumir que o silêncio de quem quer que seja, só possa ter um significado, qual seja…de assentimento, concordância ou cumplicidade. Esse não é o único significado, longe disso. E não é por várias razões objectivas, já devidamente identificadas por quem se esforçou por analisar as razões de um silêncio que é institucional e organizado como componente essencial de um sistema de poder. A partir de certos partidos, que não careço de nomear, e, depois, na sociedade e no Estado. Portanto, além das vozes em silêncio, de que se tem falado, temos vozes silenciadas, inúmeras, e para ouvir estas vozes basta ter ouvidos de ouvir e curar em ouvi-las. Mas deixemos este intróito sobre o silêncio e vamos adiante ao que interessa, até porque, no que me diz respeito, trata-se, uma vez mais, de romper esse silêncio. Então vejamos:

Não obstante as questões que envolvem este processo eleitoral, e o tornam problemático, não sejam de todo novas, por causa das mesmas, vemo-nos de repente na emergência de um momento decisivo e de grande perigo sobre o nosso futuro colectivo, sobre o destino do nosso País, na pendência de decisão sobre essas questões.

Não pretendo abordar aqui as questões de ordem estritamente constitucional ou legal, de foro criminal, meramente policial, organizacional ou procedimental. Importantes que são, essas questões têm merecido muita atenção, abordagem e discussão, e esperemos que do Conselho Constitucional nos venha finalmente a mais elevada e profunda consideração, ponderação e decisão sobre as mesmas. E não apenas de um ponto de vista estritamente legal ou legalista, como veremos adiante.

O que pretendo aqui reter, e relevar, é a abordagem de um ponto de vista e de um ângulo que, salvo poucas excepções, não tem sido privilegiado, sendo no entanto, a meu ver, o que é de maior relevância, visto que deve preceder todo o processo, deve acompanhá-lo em todo o decurso, e deve ser preponderante e determinante em todas as decisões que se tomem, até ao seu desfecho. Refiro-me ao fundamental ponto de vista ético e moral.

Deste ponto de vista, quero reportar-me em primeiro lugar ao Comunicado da CEM, pela inquestionável respeitabilidade e credibilidade dessa instituição na sociedade moçambicana.

Antes de mais a Igreja Católica não se limitou ao papel de simples espectador do desenrolar do processo. Tal como em eleições anteriores, como faz questão de nos lembrar, a Igreja Católica fez parte do grupo de observadores eleitorais da Comissão de Justiça e Paz, que, por sua vez integra o Consórcio Eleitoral «Mais Integridade».

E é nessa condição que o Comunicado da CEM, além dos «ilícitos e irregularidades eleitorais, uns mais graves que outros, aqueles reportados oficiosamente e difundidos pelos Mídias sociais, e outros reportados pontualmente pelos observadores eleitorais», nesse contexto, acolheu relatos essencialmente sobre o seguinte:

– destruição de materiais de campanha, confrontos violentos, pessoas presas injustamente;
– actuação questionável dos que deveriam garantir a ordem e segurança das pessoas;
– diversidades de irregularidades na votação, contagem e justeza dos resultados pronunciados;
Neste cenário, constata, com muita preocupação, o crescimento dos níveis de incompreensão e de expressões de descontentamento no povo, sobretudo dos que se sentem trapaceados.

Face a esta situação, os Bispos Católicos de Moçambique fazem um veemente apelo «a todos os homens e mulheres de boa vontade para manter a PAZ, como valor supremo da nossa convivência e cidadania”, o que deve, segundo eles, compreender necessariamente:

1-Diálogo entre o Governo, os órgãos de gestão eleitoral, os Partidos políticos, a sociedade civil, o Conselho Constitucional, o Conselho de Estado;
2- Reposição da legalidade, sabendo que não há legalidade sem verdade, fazendo com que a força da lei seja a que dirima e ajude a superar toda a possível manipulação de resultados ou fraude eleitoral;
3-Busca da justiça, que é o maior caminho para a paz e para a convivência saudável e fraterna de todos os moçambicanos;
4-Respeito da razão e da ética para que se evite por todos os meios qualquer possibilidade de derramamento de sangue entre irmãos;
5- Oração, uns pelos outros, que nos une como criaturas do mesmo Deus nas diferentes religiões existentes no país;
6- Aos órgãos eleitorais, a reverem com responsabilidade e justiça todo o processo de apuramento dos resultados, garantindo que os resultados sejam o reflexo verdadeiro dos votos depositados nas urnas, e, portanto, da vontade do povo;
7- Às lideranças do partido beneficiário desta crise eleitoral que chamem à razão os seus membros e simpatizantes para aceitarem a contestação dos resultados como parte do jogo democrático, multipartidário e inclusivo, e colocarem a viabilidade política, social e económica do país acima dos interesses partidários de uma mera vitória eleitoral questionável;
8-Às lideranças dos partidos que protestam os resultados eleitorais, a que chamem à razão os seus membros e simpatizantes a fazerem-no de forma pacífica, seguindo os princípios consagrados na Constituição da República e os trâmites legais, sem violência;
9-As Forças de Segurança assumam o seu papel de protecção do cidadão, independentemente da sua filiação partidária e zelem pela manutenção da lei e ordem, sem extremismos, não intimidando nem favorecendo ninguém;
10-Que não falte a ninguém a coragem de fazer presente a justiça que conduza os moçambicanos à concórdia e convivência saudável como nação.

Transcrevi, no que julgo serem todos os seus pontos essenciais, este posicionamento dos Bispos Católicos, por duas razões: por um lado, a consciência que tenho de que nos encontramos a caminho do pico de uma crise, que não cessou de se agravar, num crescendo que agudiza a iminência de um perigo catastrófico sobre nós; por outro lado a consciência de que é justamente nesse posicionamento dos Bispos Católicos que está a chave para que o perigoso curso dos acontecimentos não se torne irreversível, e retomemos rapidamente o caminho conducente à normalidade e à paz.

Com efeito, a complexidade e os perigos desta crise não se compadecem com atitudes de surdez e cegueira, de obstinação, arrogância e soberba, hostis ao diálogo profícuo e necessário.

Ainda menos se compadecem com o refúgio em tecnicidades de ordem legal, ignorando ou violando o princípio de que a legalidade tem que assentar na verdade, e que não há legalidade sem a verdade. A legalidade que nos impede o caminho da verdade pode ser legalismo mas não é legalidade.
Assim como não haverá justiça sem a verdade. Donde, a paz só será paz verdadeira se for o fruto da justiça.

Todos sabemos que não existe senão uma ética, essa que tem na verdade o alicerce fundacional. Neste sentido a ética confunde-se com o Bem, e tudo o mais que não se identifica com ela, ou lhe é contrário, não é outra coisa senão o Mal, as forças do mal, as forças negativas, da destruição, contrárias à sociedade, ao homem, à Humanidade.

Ninguém está acima ou à margem da ética, como quem possa dispensar a luz do sol para ter como suficiente a luz da sua própria lanterna ou candeeiro.

No curso cego de uma continuação da guerra por todos os outros meios, perdemo-nos da razão e da ética que nos ditam que não há pior vitória do que aquela que se alcança, ou se arranca, contra o seu irmão ou compatriota. Porque ela só nos pode votar à desgraça da continuação da guerra.

Por isso este ponto de vista dos Bispos Católicos tem carácter ecuménico, e está virado para todos os cidadãos, independentemente da sua filiação religiosa, política ou partidária, da sua etnia ou nacionalidade.

Esta é a ética fundamental que vincula a Sociedade e o Estado, de tal sorte que é imperativo que todos, cidadãos, instituições, partidos e Estado, a tenham como ponto de partida para enfrentar e responder aos desafios que o presente processo eleitoral nos coloca.

«A César o que é de César, ao Povo o que é do Povo»

Chegados a este ponto, lancemos mão daquele ensinamento segundo o qual se deve «Dar a César o que é de César», significando isso que os cidadãos têm obrigações para com o Estado, cujo cumprimento é irrecusável. Os cidadãos pagam impostos, taxas e outras contribuições ao Estado. Porém esta não é uma relação unilateral mas contratual. É que, sendo eles cidadãos e não meros súbditos, o Estado tem em contrapartida obrigações incontornáveis para com eles. Donde que seja imperativo que «César dê ao povo o que é do povo». E entre o que «é do povo» avulta, em lugar cimeiro, respeitar e fazer respeitar a Constituição e fazer justiça aos cidadãos. E nisto se resume toda a ética, razão e justiça, e toda a lei.

Na situação com que nos confrontamos, a das eleições, isso significa garantir que prevaleça a vontade do povo expressa nas urnas, e não qualquer outra coisa, fruto de manipulações, de fraudes, ou de decisões tomadas por quem se refugie e enfie a cabeça nos labirintos, ou nos becos e impasses legalistas, criados para impedir ou dificultar o caminho da verdade. Com o fim de não se confrontar com a verdade da vontade expressa nas urnas, e assim passar por cima ou à margem da mesma.

Assumindo que «a vontade do povo é a vontade de Deus», é imperdoável agir ou interferir, a qualquer nível que seja, institucional ou pessoal, para a perverter! Ou não agir para a fazer prevalecer!

Assim, se César não der ao povo o que é do povo, César estará a provocar o tumulto e a revolta daqueles cidadãos, que não mais são súbditos, e que, eventualmente, em algum momento, podem reivindicar e chamar a si a soberania, de que são donos, para decidir sobre César, e para decidir sobre o seu próprio futuro. Portanto, ao fim do dia, terá sido César quem terá criado este estado de coisas, e não os cidadãos.

Alguns outros pronunciamentos

Apesar de o pronunciamento dos Bispos Católicos merecer a especial atenção que eu dei, não é o único a assinalar, deste ponto de vista ético. Com efeito, e deste ponto de vista, são para mim de destacar ainda os pronunciamentos que lemos ou ouvimos de Samora Machel Jr, de Mulweli Rebelo, e de Brazão Mazula. Qualquer deles pronuncia-se assente fundamentalmente no imperativo ético que é, essencialmente, o dos Bispos Católicos. Senão vejamos:
Samora Machel Jr, depois de reconhecer que «por todo Moçambique o clamor do povo é de desacordo perante os atropelos flagrantes à integridade das escolhas feitas pelos eleitores», e de declarar o seu «total desacordo e desdém aos actos antipatrióticos, profundamente antidemocráticos» que «…comprometem a paz que se deseja para todo o povo Moçambicano, independentemente das opções partidárias», e de lamentar que que «em momentos cruciais da nossa vida, como são as eleições, interesses pessoais e de grupo se sobreponham ao desiderato colectivo, pondo em causa o nome do Partido Frelimo e da nação que um dia ousamos edificar», conclui que: 1- porque aquelas «acções e comportamentos minam a confiança que os cidadãos depositam nas instituições «…é fundamental que se esclareça, antecedido de uma exaustiva investigação para identificar os responsáveis» e que «Sem excepções os culpados devem ser levados à barra da justiça..»; 2- que para «..o Partido Frelimo, é imperativo do momento a educação e qualificação de seus membros sobre a importância do respeito aos princípios democráticos, do estado de direito e a vontade do povo expressa nas urnas.»; 3-que «A nossa postura em relação aos futuros processos eleitorais deve ser guiada pela ética e integridade, em vez de sentimentos meramente partidários»; 4- que «Não podemos, nem devemos tolerar nas nossas fileiras, indivíduos que cometeram actos condenáveis, pois a nossa conduta não se coaduna com este tipo de postura»; 5-que «Devemos continuar a trabalhar incansavelmente para assegurar que a visão e os princípios fundamentais do partido sejam restaurados e protegidos».

Mulweli Rebelo, no mesmo espírito, diz-nos na sua carta: 1-«Estamos actualmente num processo de eleições, em que está claro que o partido está envolvido em actividades questionáveis, talvez por saber que está prestes a perder. Isto não é algo que pode ser ignorado ou justificado»; 2- «Pessoalmente, sinto vergonha por fazer parte de um grupo elitista que continua a apoiar cegamente um partido ignorante e arrogante, sem uma avaliação crítica das suas acções, mas pelos benefícios pessoais e vantagens…»; 3-«Não foi para isto que nossos pais lutaram»; 4- «Que legado queremos deixar para os nossos filhos? De lambebotismo? Covardia de pais que seguiram a direcção de corrupção e da bajulação em benefício próprio? Como jovens podemos questionar juntos e tomar acções que busquem mudanças, escolhas que estejam alinhadas com a justiça, a transparência e o bem-estar não apenas deste grupo»

Estes são dois exemplos dos jovens da geração seguinte à minha geração, a geração dos seus pais. Sem dúvida que eles se situam na continuação, e reivindicam a restauração e preservação, dos valores e princípios pelos quais os seus pais tanto lutaram e se sacrificaram. O seu posicionamento significa a sobrevivência e perenidade desses princípios e valores fundamentais e é à luz dos mesmos que analisam e avaliam a situação que vivemos. Construindo e argumentando com solidez e elevada consciência cívica e patriótica, com maturidade.

O ponto de convergência entre o pronunciamento dos Bispos Católicos, e agora também o do Conselho da Igreja Anglicana (que acabo de conhecer pelos resumos dos telejornais já depois de terminado este meu texto), e os pronunciamentos de Samora Machel Jr e Mulweli Rebelo, é justamente a razão e a ética que devem iluminar-nos e guiar-nos a todos, cidadãos, instituições, Estado, para fazer prevalecer a verdade da vontade expressa nas urnas, ou seja, a vontade do Povo.

Finalmente, e neste contexto, o posicionamento de Brazão Mazula é uma inestimável contribuição, em convergência com as que antecedem, na medida em que:1- dá-nos os instrumentos de análise que permitem compreender melhor como funciona todo o sistema, pois que se trata de um sistema e de uma engrenagem; 2- de como nada acontece acidentalmente, como se fossem actos isolados, por erro ou por iniciativa individual, mas de forma orientada, organizada, portanto premeditada.

Brazão Mazula, ao introduzir os conceitos de uma CNE formal e de uma CNE real, de um STAE formal e de um STAE real, ilustra como, na prática, funcionam os mecanismos daquilo que, no contexto da análise da separação dos poderes no nosso País (isto é, da ausência real da separação dos poderes e da não despartidarização do Estado), eu designei de «centralismo presidencialista absoluto».

E a grande vantagem de Brazão Mazula é que ele conhece bem estas instituições, esteve envolvido no momento da sua emergência, do seu problemático parto. Acompanhou depois, como nós, o seu crescimento, e constatou, também como nós outros, a forma como a cada passo, a cada alteração, seja da Constituição seja das leis pertinentes, essas instituições foram sendo ajustadas de forma útil ao sistema de «centralismo presidencialista absoluto». Para podermos entender melhor como o problema não está propriamente nelas, sem que isso signifique isentar quem quer que seja das suas responsabilidades pessoais e de cidadania.

Não encerrarei este texto que já vai longo para o que era minha intenção( infelizmente não tive tempo para ser mais breve), sem um apontamento crítico a algumas vozes que criticam Samora Machel Jr e Mulweli Rebelo, por falarem «fora das estruturas». Na realidade só por indesculpável distracção ou por declarada má-fé se pode fazer tal crítica. É que por um lado se fala de um «silêncio ensurdecedor» de dentro da Frelimo, mas por outro lado quando se fazem ouvir corajosamente estas vozes, que são bem de dentro da Frelimo, lançam-lhes essa crítica. Sejamos honestos…ou somos intelectuais, analistas, comentaristas, jornalistas, livres e independentes, ou então se é para exigir publicamente que os membros doa partidos não saiam da caixa e se mantenham no silêncio do «falar só nas estruturas», acho que se deviam candidatar a membros dos «grupos de choque» organizados nos partidos para manter essa «lei e ordem». E, para não me alongar mais, permito-me remeter esses críticos ao capítulo sobre o «Debate interrompido» do Volume I de «À sombra da Utopia», de José Luís Cabaço, e ao comentário que eu fiz sobre o mesmo em entrevista ao semanário Savana.

 

Teodato Hunguana
26.10.23

 

– Vai casa, menino.
A velha pronunciou “minino”, como falam por aqui os que têm por língua mãe a língua das suas mães.
– Vai.
Primeiro foram as vozes, distantes, e a poeira que subia por cima das copas das árvores, das casas, do entrelaçado de fios urbanos, de tudo…
– Vai, menino. É perigoso – disse “pirigoso”.
O chão estremecia. Era a multidão que dobrava a esquina, martelando decididamente os passos.
A multidão gritava. Com os gritos, um cão interrompeu a preguiça, levantou-se, recolheu a cauda entre as pernas e retirou-se. O chão estremecia e ratos assustados abandonaram o chassis duma camioneta avariada, chiaram de emergência para o esgoto. Nas árvores, das folhas sacudidas os pássaros debandaram.
– Vai menino – disse “minino”.
Do outro lado da avenida, um bloqueio. Eram homens e veículos que lembravam os filmes de guerra do tempo dos soviéticos.
– Vai.
A velha, imóvel como uma estátua vendedeira, estava sentada num banco improvisado. Tinha duas caixas de papelão à frente, onde expunha frutas e legumes devidamente amontoados. Voltou-se para mim:
– Hiii. Esse menino… é teimoso – disse “timoso”
A precaução já me tinha mandado arrumar a minha loja improvisada: os meus fios, os meus alicates, as minhas chaves de fenda, os minhas capas de celular, as minhas baterias velhas e outras coisas que garantem à minha banca charme de loja de reparação de telemóveis.
– Menino… não ouve?
O menino, com uma mão na cintura e outra à altura do ombro, segurando uma bacia de amendoins torrados à venda, prestava atenção aos gritos da multidão que se aproximava. Agora ouvia-se melhor e percebia-se: Povo no poder! Povo no poder! Povo no poder!…
– É repe vovó. Estão a cantar repe. Povo no poder…
incomodados, os dos filmes de guerra soviéticos agitavam-se. Começavam a ensaiar poses teatralmente intimidatórias.
– Vai, menino. Não fica aqui. Vai para casa. Esses vão lutar. Os polícias vão disparar.
– Vão lutar por quê, vovó.
– É por causa de eleicões – disse “ilessonje”.
– O que é eleições?
– Menino não vai entender. Menino não entende política – pronunciou “pulítica”
Eu, já arrumado, pronto para me entrincheirar na entrada traseira dum edifício por ali, parei. Se estivéssemos em outras paragens e em outros tempos, depois daquela frase, poderia jurar que aquela vovó era a velha Chica do Valdemar Bastos, a dizer “Xe minino não fala política”.
– Vai
Ouviu-se um estalido, aquela ameaça de quem quer avisar que tem a arma carregada.
– Vai, menino – disse “minino”
Uma pedra maior do que a mão que a lançou sobrevoou tudo, ricocheteou em algo, quase quebrou a vidraça duma montra, e veio-nos cair bem próximo. O miúdo assustou-se.
– Vai.
Um tiro fez pah!
– Vovó não vem? Vai ficar aí? É perigoso, vovó.
A Velha não respondeu. Ficou em silêncio. Aquele silêncio expressivo da velha Chica. A velha Chica do Valdemar Bastos. A multidão gritava “Povo no poder”. Ouvia-se mais tiros. Fugia-se. Via-se mais pedras. Havia fumaça. Respirava-se gás. Gás lacrimogéneo. Povo no poder. A vovó em silêncio. Aquele silêncio da Velha Chica do Valdemar Bastos.
– Vovó não tem medo? Vamos vovó.
Naquele silêncio, a resposta poderia ser aquela parte em que o Valdemar Bastos cantava que a velha Chica dizia: “Xe minino posso morrer…”
– Vai para casa, menino – pronunciou “mínino”, enquanto desabrochava o rosto num sorriso.

(inspirado numa velha lenda urbana da minha cidade)
A regularização de sua conta bancária era o último empecilho para que a direcção de finanças do seu emprego desembolsasse o seu primeiro e muito aguardado salário.
Para dar conta da resolução do estorvo para o seu recebimento salarial, Lucas Chitato pediu dispensa ao departamento dos recursos humanos para tratar do assunto.
Ficou, aguardou espetado na fila desde das primeiras horas da manhã no balcão de uma das maiores instituições bancárias do país, sucursal localizada na cidade de Quelimane.
Posicionou-se em diversas poses que a sua mente concebia, cansou-se, sentou-se, levantou-se, acedeu às diversas plataformas das redes sociais até o telemóvel ficar sem carga, antes de ser atendido, nas vésperas do fechamento, finalmente atenderam-no.
Na manhã seguinte, quinta-feira, apresentou o comprovativo da regularização da conta, e esperou que o salário caísse, os colegas já desfrutavam das benesses providas pelos niqueis do ordenado.
Lucas, jovem recém licenciado em economia, teve que pagar, aliás pagou-o o pai para conseguir obter uma vaga numa instituição pública da cidade. E nos dias que se sucederam ao pagamento da vaga o remanescente salarial do pai só deu para o básico, as iguarias mensais a que estavam habituados a degustar desaguou num riacho de saudades.
A ânsia pelo recebimento do seu primeiro vencimento governava as suas emoções, queria ter a sua desejada independência financeira, os pais haviam feito todo o sacrifício para que ele tivesse uma boa educação, e ele estava deveras grato, queria também constituir sua própria prole.
Sexta feira ao meio da tarde o seu telemóvel dançou sob o tampo da sua secretária, olhou para tela descobriu a mensagem de texto enviado pelo banco com alerta de creditação na sua conta com o valor do salário.
Dançou na cadeira animado pelo ritmo vibratório que a mensagem produziu na sua mente, tamborilou o tampo da sua mesa, sem se aperceber que perturbava os colegas, quando percebeu da anomalia que protagonizava, desculpou-se.
Olhava obcecado o relógio, o tempo parecia ter parado, colegas veteranos já se preparavam para sair, eram 14:50h.
Não queria precipitar-se para a saída como faziam muitos dos seus colegas, precisava ser um trabalhador exemplar, aliás a educação que recebera conspirava para tal.
Finalmente chegou a hora, saiu para a rua, foi logo engolido pelo alvoroço, parou um táxi bicicleta, correu para o balcão do banco que ainda estaria aberto.
Levantou todo o seu salário, usando o mesmo táxi bicicleta, pediu que o conduzisse para casa.
O crepúsculo vespertino ia engolindo a cidade, as pessoas regressavam as suas casas, um tráfego de táxi-bicicletas impunha-se desafiando os automobilistas que tinham que finta-los para não se colidirem.
Candeeiros espetados nas ruas e avenidas derramavam seu de feixe emprestando um brilho artificial a cidade e periferia.
Chegou a casa, encontrou os pais abrigados no velho sofá, embriagando-se com notícias destiladas por uma estação de TV local.
Instantes depois Lucas juntou-se aos pais, quebrou o vínculo que vinham tendo com a TV, ganhou completa atenção deles e de seguida entregou o envelope que continha o seu primeiro salário.
O pai pegou no valor e sem conferir dividiu de forma aleatória, entregou uma parte do valor a Lucas enquanto fazia um discurso retórico e a sua mãe meneava a cabeça em gesto de concordância.
Sentiu-se impelido a celebrar aquele momento ímpar da sua vida, aperaltou-se, passou uma loção na sua tez de tom de jambire e fez o pente desbravar o cabelo encarapinhado, viu-se no espelho, sentiu que ultrapassava os seus 1.79m, largou um sorriso correspondido prontamente pelo seu duplo.
Tomou emprestada a motorizada de seu pai, emitiu uma mensagem de texto e enviou para o seu melhor amigo.
A rua pavimentada do bairro continuava movimentada, principalmente pelos táxis bicicletas, as barracas clonadas onde se salientava as cores vermelho, amarelo e verde, hospedavam clientes que vociferavam competindo com o som dos alto-falantes cantantes.
Lucas encontrou o amigo já na companhia de uma garrafa de cerveja, conversaram animados pelos novos rumos de suas vidas, o tempo ia sendo confiscado pela noite. A dona da barraca anunciou que a qualquer momento fecharia, pois as autoridades reguladoras estavam atentas aos descumpridores das normas.
Etilicamente energizado Lucas depois de se despedir do amigo dirigiu-se para a discoteca mais propalada da cidade.
Os únicos dançarinos que ocupavam a pista era a luz cromática, alguns clientes apeados no balcão que bebericavam e trocavam conversa, a medida que o tempo passava os fregueses multiplicavam-se.
Quando Lucas segurou o seu copo para dar um gole, um feixe de luz atingiu o rosto maquiado de uma rapariga que se sentava num canto da sala e emanava uma áurea arrebatadora.
Olhou, enlaçado no seu charme, estabeleceu-se um canal encriptado onde os dois falavam uma língua que o ruído da sala não perturbava. Caminhou sereno na direcção dela, e sem nada dizer pediu para dançar, aliás estendeu a sua mão e logo rodopiaram na pista.
Ao compasso rítmico, dançavam, entraram para um redoma isolando-se dos demais, Lucas acariciava-a estimulado pela coragem que o álcool produzia na sua pessoa.
A mudança rítmica protagonizada pelo “disco Joker” rompeu abruptamente o elo que se  estabelecera, o casal soltou-se, trocaram sorrisos, e foram acomodar-se em pequenas poltronas na esplanada da discoteca.
Conversaram informalmente como um velho casal de namorados, falava mais Lucas e ela limitava-se a responder ao seu inquérito.
A luz eléctrica da cidade continuava intensa mas não desarmava a noite que se adensava.
– Nunca te vi por aqui? – afirmou Lucas.
– Raramente apareço – confessou serena.
Continuaram a conversar por mais duas horas, até finalmente decidirem ir-se embora, era já madrugada de sábado.
Levo-a na garupa da sua motorizada, o motor roncou, engrenou e partiram, a brisa fina da madrugada fê-la estremecer, largou um calafrio, abraçou-o mais intensamente, Lucas parou a motorizada, tirou o casaco que usava e entrego-a, reiniciaram a partida.
Deixou-a na porta de casa.
– Quando posso voltar a ver-te?
-Quando quiseres. – respondeu ela com um sorriso.
– Ligo-te amanhã. – disse Lucas.
– Estou sem telefone.
– Como faço então para te contactar? – questionou ele.
– Vem ter comigo a minha casa. – disse ela.
– Os teus pais?
– Eles são muito compreensivos. – afirmou ela convicta.
– Certo, então até amanhã, aliás até logo.
Na despedida, beijaram-se, ele ainda a viu entrar e instantes depois foi-se embora.
Lucas só despertou quando eram 9:30h da manhã de sábado, com uma desagradável “babalaza”.
Depois de um banho fresco, correu para a barraca da dona “mimi” onde tudo começou, socorreu-se de um petisco e bebeu umas duas cervejas bem geladas, recuperou o episódio da noite passada com ênfase na moça que conhecera e se apaixonara. Precisava, logo revê-la.
Abandonou a barraca, parou um táxi bicicleta e embarcou.
– Para onde patrão? – questionou o taxista.
– Torrone velho. – asseverou Lucas.
A pedalada iniciou, a velocidade aumentou e a distância encurtou-se, chegou ao destino.
Ensaiou a abordagem correcta que devia praticar consoante a pessoa que lhe atenderia, pensou em desistir, um ímpeto encorajou-o, bateu a porta, esperou um bom tempo, ninguém atendia, quando pensava em desistir assomou a porta uma adolescente com parecença irrefutável com a moça que conhecera e se apaixonara na noite passada.
Trocaram olhares antes de Lucas pronunciar-se.
– Sim! – disse a menina.
– Posso falar com Zubeida? – articulou por fim Lucas.
Ela ficou petrificada sem saber o que dizer, dilatou as pupilas de seus olhos grandes, suspirou, mudou de posição dos pés para se reequilibrar, dos olhos nasceram lágrimas que transitavam pelo rosto, deixando-a completamente pálida, carpiu estrondosamente.
– O que se passa, filha? – questionou a mãe com voz profunda.
A mãe juntou-se à filha, soube das pretensões de Lucas. Conteve-se antes de responder e corajosamente disse:
– Minha filha faleceu, faz exactamente hoje um ano. – conferiu a senhora para depois soltar lágrimas que logo inundaram-lhe o rosto.
“Só podia estar a haver algum equívoco” – cogitou Lucas, arrependido, por bater a porta naquela moradia.
– Lamento imenso, minha senhora, talvez enganei-me na casa. – disse.
Lucas lembrou-se de algo que podia dissipar qualquer equívoco. Socorreu-se do seu telefone, acedeu a galaria e exibiu a foto que tirara com Zubeida.
– É, é minha filha. – afirmou a senhora com a voz entrecortada. –  Quando a conheceu? – questionou serena.
– Estava com ela ontem à noite.
Mãe e filha prantearam copiosamente.
O senhor Matias chegou, foi adentrando quando deu-se conta do celeuma que decorria na sua casa, procurou inteirar-se do que estava a acontecer.
Convidou Lucas a entrar e sentar-se e então tratou de explicar que não era possível que a pessoa que estivera com ele fosse Zubeida pois ela falecera, e ele vinha buscar a mulher e a filha para irem visitar a campa da falecida em celebração de um ano desde que ela partira.
Lucas manteve-se incrédulo, e então o senhor Matias decidiu convida-lo a acompanha-los ao cemitério.
Não demoraram para alcançar o cemitério que ficava na periferia da cidade, foram adentrando em direcção a ala leste, depois seguiram por uma vereda entre campas até alcançarem a sepulcro que buscavam.
Incrustada na lápide vertical estava inscrito palavras de ternura, mas a que mais saltou a vista de Lucas foi o nome “Zubeida António Chipenda” e a foto da falecida. Um baque sacudiu-lhe o peito e o medo tomou conta de si. “Estaria a enlouquecer?”
Quando dona Marta mãe da falecida, agachou-se para iniciar a limpeza da campa, eis que se depara com algo aveludado sobre a laje. Tomou em suas mãos o estranho objecto.
Todos olharam para o casaco mas foi Lucas quem ficou completamente petrificado com a descoberta.
– Esse é o casaco que emprestei para a Zubeida esta madrugada.

Neste artigo, pretende-se demonstrar o Realismo (em duas vertentes) que, de acordo com Barthes (1973:60), por um lado, decifra o real (o que se demonstra, mas não se vê); por outro lado, diz respeito à realidade (o que se vê, mas não se demonstra), através do traço que concorre para a construção do universo realístico – a denúncia dos desequilíbrios sociais, determinados, principalmente, pelo tempo e espaço.

Com efeito, denota-se, a priori, que o título da obra nos reenvia a um tempo específico: 2020 e 2021 [Vinte (e) Vinte (Um)], período em que o mundo se viu em desalento, devido à Covid-19. Ademais, todas as histórias se desenrolam entre a urbe e o subúrbio. A obra é constituída por catorze cronicontos, dos quais onze serão objecto de análise demonstrativa dos desequilíbrios sociais do Homem contemporâneo, a quem Nhangumele soube bem dar voz. Assim, o confronto entre as personagens e o imaginário colectivo, o culto da aparência, os factores naturais (temperamento, raça e clima) e culturais (ambiente e educação), determinam o comportamento das personagens: desde o enfoque ao Homem da época, ao adultério, ao relacionamento ocasional e/ou efémero, aos problemas concretos, aos dramas cotidianos que estão ancorados no presente histórico – características que permearão a análise.

O confronto entre a personagem e o imaginário colectivo depreende-se, por exemplo, com a personagem Ginoca, que age de forma contrária ao que o meio esperava. À revelia do grupo, com a ideologia de que quando a mulher é violentada é briga de casal; paradoxalmente, Ginoca tareia o marido, enfrenta o colectivo, continuando a dar porrada a ele, ainda que o espanto se tenha manifestado na voz do chefe do quarterão.

Em «Ginoca Foi a Matalane, Sim!» evidencia-se, ainda, o culto da aparência, pois Ginoca se junta a Beny, baseando-se na aparência deste, todavia, a realidade ficcional da convivência entre ambos tratou de revelar o contraste entre a aparência e o comportamento. A escrita de Nhangumele decifra essa realidade: eventos que se demonstram, mas não se vêem; os motivos da violência de Beny, por exemplo, quando o narrador nos dá a conhecer o desabafo de Ginoca ao abandonar Beny, cansada do tormento a que estava condenada, depreende-se em: “Ah! Sempre me expulsavas, dizias que não tenho família, que nem a gravidez que tinha do Júnior sabias se era tua.” (Nhangumele, 2021:82) (Grifos nossos).

A escrita do realismo é revelada objectivamente pela elipse dos acasos e milagres do romantismo. As personagens aparecem condicionadas a factores naturais (temperamento, raça e clima) e culturais (ambiente e educação). A história de Khambula é uma decifração da realidade por parte do autor, a personagem encontra justificativa para a sua condição de infértil, supostamente devido à vacina contra a Covid-19.

No croniconto intitulado «Por Culpa da Covid-19», são convocados factores históricos e naturais, o fenómeno da pandemia, a sua percepção e prevenção, os possíveis efeitos colaterais (…) A influência educacional de Khambula reflecte-se nas suas escolhas em querer melhorar as suas condições de vida. No Realismo, a vida é feita de sacrifícios; a personagem, em idade concebida pelo meio de procriar, abriu mão de ter filhos em nome de uma vida melhor: organizar-se. Dito de outro modo, Khambula, professor universitário de profissão, arrepende-se de ter deixado de engravidar Telinha para ir fazer o Mestrado em Linguística Aplicada em Portugal. Eis que, depois da formação, se vivem tempos da Covid-19, onde teve de se prevenir, e a consequência, passados dez anos, fora dolorosa, tal como se pode inferir em: “(…) Sim. Eu não faço filhos. Não me caíram bem. A vacina evitou a minha morte por Covid-19, mas matou-me por dentro. Matou o meu futuro. Matou a minha descendência (…)” (Nhangumele, 2021:23).

Estes eventos não são justificados por acasos, milagres e magias, mas por razões lógicas da educação, do ambiente e do momento. Por exemplo, a pressão social vai demarcar-se relevante para o arrependimento de Khambula: “Agora me arrependo, méu! (…) A família está a pressionar, os meus pais, os dela. A sociedade, brô.” (Nhangumele, 2021:22) (Grifos nossos). Gamito vai atiçar-lhe a derramar lágrimas com a evocada citação de obrigação e de pressão, representado em Vozes Anoitecidas, de Mia Couto, e recuperado na obra em análise: “(…) homem pode ter barba, não-barba, mas um filho tem que tirar: um documento exigido pelos respeitos.” (Couto s/d, apud Nhangumele, 2021:22) (Grifos nossos), o que decifra que Khambula foi contra as origens, os princípios e, porque o meio é forte, contra o meio pelo qual sofre.

Entende-se ainda que a perspectiva continua na diegese do senhor Khetile, quando este faz uma conversa de desabafo e de lição de vida com Mataka, de arrependimento pelo tempo perdido, por não se ter relacionado com mulheres quando jovem: “Tive pouco tempo para brincar” (Nhangumele, 2021:54). Por causa da formação superior, esta personagem casa-se depois de procurar emprego e estabilizar-se financeiramente. À medida que era promovido no trabalho, para garantir o ritmo da sua prestação, bebia para se estimular, e nada fazia pela esposa, família, sem se aperceber que matava a sua máquina (metáfora do sistema reprodutor masculino), tal que foi o motivo do desprezo da parceira, razão dos seus fantasmas. Por detrás de um homem respeitado profissionalmente, existia um homem “deveras magoado e derrotado pela estrada da vida” (Nhangumele, 2021:56).

O realismo é o determinismo associado ao Lamarckismo do uso e desuso, que se observa no texto, denunciando a impotência de Khetile. Aliás, o outro intelectual cujo percurso também não compensou é Khambula, pois que ficou infértil. Confesso que não sei o que é mais grave: tornar-se impotente devido ao álcool ou a uma vacina tomada devido a uma pandemia que assolou o mundo após decidir fazer filhos, depois de estar financeiramente estável. Facto é que se denota um arrependimento profundo em ambos. Ora, já não são os iletrados, os Magaízas Mandevo, os Mampara Magaíza que logram escolhas sem sucesso; são, agora, intelectuais, académicos que alcançam respeito e estabilidade financeira, todavia sucumbem no imaginário e nas leis da natureza, da procriação e da erecção. Isto é o que Nhangumele e o seu Vinte (e) Vinte (Um) nos trazem, despindo as máscaras do que se vê, mas não se demonstra.

Sublinha-se ainda, na obra, uma acentuada preferência pelo enfoque ao adultério, pelo relacionamento ocasional e/ou efémero, despido de qualquer compromisso, pela aventura na simples satisfação de desejos carnais, factores que o realismo encara como os que causam destruição da família e da sociedade. Quem experimenta essa desestruturação é a personagem Marito que, vivendo maritalmente com Jéssica, decide sair, num fim-de-semana, para beber cerveja com Fidjó, na companhia de duas mulheres. Ao longo da bebedeira, atiçados por estas, cogitam saciar as vontades da carne e sem protecção (widas) nem remorso. Não tardou e, quatro meses depois, a esposa, que estava grávida, durante a pilha de exames de rotina, descobre que havia contraído HIV. Em decorrência disto, Marito também havia contraído a Sidinha, diminutivo do substantivo Sida (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida), cujo som e a grafia coincidem com o nome próprio mais humano, atribuindo-se, assim, o título ao texto e criando-se no leitor a ideia de que o texto fala de um perfil de uma mulher, todavia, lendo-o é que se percebe que Sidinha é, porém, uma doença.

Estes eventos marcam, deveras, o ano 2020 e 2021. O tempo e os seus efeitos fizeram-se determinar para a morte em «A Triste História de Pedrito», por exemplo. Pedrito, em tempos de Covid-19, convidou alguém que conheceu numa festa clandestina (uma vez que o Decreto Presidencial impedia que ocorressem), instado por substâncias para a demonstração da potência sexual (gonazololo). Para o seu azar, a parceira não consegue se fazer presente devido ao Recolher Obrigatório, tendo procurado por outras, já que são múltiplas. Ainda assim, os eventos do dia não lhe favoreceram. Pedrito foi levado ao hospital, onde viria a perder a vida.

Não muito distante do amor fisiológico, percebe-se, quando depois de catorze dias internado devido à Covid-19, foi declarado óbito o protagonista de «Beijei Covid-19», que se envolveu sexualmente com a namorada, que estaria infectada pela Covid-19.

O momento de caus pandémico propicia, por causa do isolamento, vontades. Então, isolar a Natureza da Biologia não é fácil. Ao longo da leitura, lê-se a história de Chiquinho, que conheceu Chelsea no Facebook e, dentro de 24 horas, consumara o que é próprio de casados: manter cópula. Após acompanhá-la a casa, ela pergunta-lhe o que afinal eram. Chiquinho respondeu que eram “Sensíveis Seres Humanos”, dando, assim, título ao texto. Título este que se encaixa perfeitamente no Realismo do que se vê mas não se demonstra.

Na escrita de Nhangumele não são apenas personagens jovens que se perdem. O pecado, no sentido de erro, gere consequências, pelo que a morte é a punição, consequência óbvia. Ninguém escapa nem por benevolência, misericórdia ou milagre. Por outro lado, o adultério deteriora a família. Razão: o amor fisiológico. Em «O Bom Filho Sempre Volta a Casa», pai de Ntavasi abandona um casamento de quarenta e cinco anos, devido a uma terceira esposa: jovem, de atributos jamais vistos que, quando este denotou estar doente, decidiu regressar a casa, debilitado e envergonhado. Consequência: não levou duas semanas, perdeu a vida.

A denúncia dos desequilíbrios sociais, os conflitos do Homem da época (2020 e 2021), os problemas concretos, os dramas cotidianos que estão ancorados no presente histórico, são evidenciados de maneira objectiva, própria do Realismo. O cúmulo desses dramas são retratados, por exemplo, em «Redes Sociais», onde Mathauzi, motorista de transporte público, se faz, cedo e junto do seu cobrador, ao parque dos transportes, onde se põem a carregar os passageiros. Neste ínterim, Mathauzi é surpreendido pela morte, enquanto embalava um sono profundo do qual não acordou mais. Facto curioso do tempo é a falta de humildade e empatia. O comportamento dos motoristas, passageiros e fiscais ao perceber que Mathauzi não dava sinal de vida não era de prestar primeiros socorros, mas, sim, registar com as câmaras fotográficas a situação, de forma a partilhar nas redes sociais, rematando, assim, a harmonia entre o texto e a epígrafe: “Rede social é ilusão, atrai quem está longe e distancia quem está perto”. Trata-se, portanto, da realidade que se demonstra e se vê.

Bibliografia:

Nhangumele, C. (2021). Vinte (e) Vinte (Um). Maputo: Bantus.
Barthes, R. (1987). O Prazer do Texto. Brasil: Editora Perspectiva.

Levei flores para ir votar. Votar tem de ser com sentimento, as escolhas têm de ser feitas com amor, o futuro precisa disso: amor!, por isso levei flores.
Acordei cedo, naquele dia, à hora dos que não têm licença para despertar depois do sol. No banho, sem a urgência dos dias em que tenho de ir trabalhar, dei por mim um tanto piegas, a assobiar, um assobio romântico, baixinho, quase surdo, sob o ruído molhado das bátegas frias do banho.
Era uma melodia antiga que me saía dos lábios, que só as pessoas da minha idade grisalha reconhecem. Um hino dos tempos em que se falava do povo com muito perfume e sentimento na voz. Daquelas melodias que em vez de dançar, apetece marchar. E marchei com brilho nos olhos, para a paragem dos chapas.

Pelo caminho, num quintal ajardinado, ajardinado como o futuro, com plantas que espreitavam curiosas para a rua, colhi flores, as mais belas flores, assobiando aquela música que fala do povo, indiferente ao cão que de dentro do quintal salivava e ladrava.

Reconheci o posto de votação à distância, pela longa fila à entrada. Endireitei as roupas e as pétalas amarrotadas na enchente do chapa em que ensardinhei, aprumando-me para o evento. Enquanto a fila fluía como uma serpente preguiçosa, eu assobiava aquela melodia e fechava os olhos ao aproximar o nariz àquelas flores, provando-lhes os perfumes.

Pousei as flores sobre o púlpito onde iria apoiar os cotovelos para preencher os boletins de voto. A solenidade do momento pedia-me para parar o assobio. Parei, mas a melodia da música que fala do povo ecoava na minha cabeça. Segurando o queixo, introspectivo, como se o pensamento me saísse pelas barbas, pus-me a pensar que aquele momento, pela importância, merecia mais pompa. O meu voto era com amor, não merecia estar a ser feito assim, friamente. Mais do que fechar os olhos e atirar moedas a um poço de desejos, o meu voto era uma delicada carta para o futuro.

Como no amor em que os corpos merecem os cuidados horizontais de uma cama, aquele momento merecia o conforto de uma escrivaninha, um banco adornado em que eu me sentasse, ao lado de uma janela com uma vista para o país, que me inspirasse para aquela carta: “Querido futuro…”.
Mas porque na falta, o amor inventa cama em qualquer lugar, votei assim mesmo. Com o peso da minha mão e caligrafia grave, fui sentenciando com um enorme X sobre os rostos dos políticos no boletim de voto, como quem desenha corações no canto perfumado de uma carta de amor.

Despedi-me “Atenciosamente…”. Dobrei-a pelos principais pontos cardeais como se dobrava nos tempos em que cartas e flores ainda não se enviava por correio electrónico. Introduzi-a no enorme envelope que a urna é e, como aquele velho carimbo sobre os selos, a tinta indelével manchou-me o dedo.

Mas não foi o indicador que meti no frasco de tinta indelével. Preferi um dedo mais comunicador, trabalhador, experiente esgravatador, garimpador incisivo, conhecedor de profundezas, das mais abissais vísceras, pois democracia é a liberdade de enfiar o dedo que eu quiser naquele frasco, consciente de que o meu voto é um leve manguito… indelével.
Depois de fechar os olhos e cheirá-las, deixei ficar as flores sobre a urna de votos. E caminhei lenta mas firmemente, para o futuro. Não me saía do assobio aquela melodia que fala do povo.

Logo à entrada da Sala Grande do Franco-Moçambicano, uma campa. O relógio marca 20:16 e, com pouca luz, mesmo para corresponder ao cenário montado, o palco toma a imagem de um cemitério.

Como que arrepiados pelo que vêem, os espectadores vão entranhando, com algum cepticismo denunciado nos passos e nas conversas. Uns perguntam aos outros o que ali vai acontecer. Mas a resposta só começa a ganhar sentido nove minutos depois, quando a performance Mhamba, de Leco Nkululeco, revela-se a coisa mais importante naquele centro cultural.

Essencialmente, Mhamba – o céu também se alimenta de estrelas é uma performance multidisciplinar, em que a declamação, a representação, a música e a dança combinam elementos na composição de uma história feita de tantas outras histórias marginais.

Por um lado, a performance de Leco Nkululeco coloca no palco actores cuja responsabilidade é fazer o público imergir num mundo místico e absolutamente imprevisível. Nisso, há um bebé que é entregue aos deuses como mhamba, ou seja, como sacrifício no que corresponde a uma prática cultural tradicional.

A lembrar “Quenguelequêze”, de Rui de Noronha, a cena inicial e tenebrosa da performance mescla numa só imagem o terror, a morte, o suspense e a expectativa. E, a partir daí, Mhamba apresenta-se como uma proposta capaz de prender a audiência enquanto a conduz a certas práticas culturais que também definem parte do Moçambique é na sua diversidade.

No que à representação diz respeito, é preciso destacar Mathusse (Paulo Inácio), Jéssica (Érica Chongole), Marta (Dalila Figueiredo) ou Laura (Clarice Matsinhe). Estas são algumas personagens que conduzem a história de uma viúva que, mesmo depois de enterrar o marido, não tem a paz necessária para continuar a viver com alguma alegria e sossego.

Na verdade, o marido de Laura, Mathusse, das profundezas da morte, consegue voltar ao convívio dos vivos, atormentando quem, farta do luto, quer ver na vida outras cores. Segundo uma curandeira, o que Mathusse realmente reivindica é voltar a casa e à sua esposa. É mais ou menos a essa altura que, a campa improvisada no palco justifica estar ali montada. Numa originalidade contagiante, quando, de facto, fica claro que o mundo dos mortos interfere no destino dos vivos, eis que Mathusse vence a morte, a fronteira da campa e aparece para se envaidecer na companhia da esposa Laura. Quer dizer, mesmo morto, Mathusse recusa-se a deixar Laura disponível, mas, mesmo assim, há sempre um homem que a desperta interesse.

A história de Laura e de Mathusse é contada de forma intercalada. A dança, zoré, por outro lado, materializada por bailarinas como Néusia Magaia, Glória Moiane e Lúcia Machavele, introduz no universo do enredo uma das formas de expressão das várias comunidades moçambicanas, que dançam quando estão felizes ou quando se encontram tristes.

Zoré atravessa a performance, mas o que realmente impressiona na obra de Leco Nkululeco é a vibração sonora de Helena Rosa. Cantando como se fosse a última vez, a cantora convence e adiciona a Mhamba algo que, sem ela, não poderia ser a mesma coisa. Claro, as contribuições de Jorge Domingos (guitarra), Mauro Steinway (piano), Makoneny (percussão) e Mole Mussoco (baixo) tornam ainda o conceito de Leco Nkululeco muito válido e apropriado para quem se interessa em viajar pelo plano desconhecido, dos sonhos, dos mistérios e do estranho.

Não obstante deixar-se acompanhar pela música, ora cedendo espaço para dança ou para representação, na performance Mhamba cabe a Leco Nkululeco conduzir a narrativa com a palavra poética e sugerida. Bem dito, o poeta e performer é o centro do universo, o lugar incomum de uma criatividade diferente e ousada.

Ninguém pôde prever o que é Mhamba e o que o seu autor quis apresentar na Sala Grande do Franco ao longo de 90 minutos. Talvez, por isso também, o público deixou-se levar pela espectativa, reagindo fervorosamente com palmas a cada vez que um número da performance terminava.

Ao mesmo tempo que o texto ganha sentido com as intervenções dos artistas, a componente audiovisual e cenografia destaca-se por garantir que o palco seja, de facto, um mundo por redescobrir. Para o efeito, Alfredo Semo (cenografia), Dadinha da Graça (caracterização), Bhaka Yafole (vídeo), Itar Cachimbo (luz) e os contrarregras (ágeis na inserção e retirada dos objectos do palco) definiram os caminhos para o sucesso de um sacrifício que tem seu mérito.

 

 

Pedro goiabeira é, no mínimo, um ser que se auto abomina, tudo a começar pelo espermatozóide que o concebeu. Não se conforma com o facto de o mesmo ter somente o proporcionado uma rasteira existência. Para além da mente, agora os ombros são outro atrofiamento, pois parece ter um macaco nas axilas que os levanta, numa infinita busca de mais algum centímetro. Dor original viver na respiração de poeiras da sola dos transeuntes! Pode esticar os ombros, mas por questões anatómicas, o nariz, esse, por mais empinado que se apresente, jamais se livrará do nível da poeira em que foi concebido. Um pária é sempre um pária. Pedro Goiabeira sofre essa dor e busca forçar alguma rivalidade com as alturas que se afiguram diante da rasteira existência original. É certo que os ares da cidade libertam, mas, na pressa de urbanizar o espírito agreste, acabou deveras encruado. O que entende como maneirismo de maputenses, buscando assimilar a todo o vapor, apenas o tornou um ser desprezível. Por onde busca consolidação de alguma amizade, talvez pela proximidade do intestino grosso ao cérebro, é de vómito fecalóide e ninguém lhe aguenta a proximidade. Pedro Goiabeira na verdade é vómito em si na gravidade do seu mundo, onde procura viver, auto-ampliando-se as faltas da inexistência. Não se concebe a liberdade de viver sem buscar rivalidade com seres superiores à sua minúscula existência, de textículos falhados. Se não serve como pau mandado para as alturas, sob a espora de outra meia polegada, toda se armando de rancores doentios, vive fugitivo de si próprio, forçando rivalidades para a elevação da rasteira existência. Meia polegada mais outra meia, uma insignificante polegada. Goiabeira, rivalidade requerer semelhança, ou, no mínimo, proximidade física ou intelectual, pois, de contrário, mera zelotipia, a raiz de todo o complexo de inferioridade de que Pedro Goiabeira se reinventa. E porque quem canta seus males espanta:

“Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Por: Aurélio Ginja

Ó música.
Em tuas profundezas
Depositamos nossos corações e almas.
Tu nos ensinaste a ver com os ouvidos
E a ouvir com os corações.
Khalil Gibran
In “A Voz do Mestre”

Há algo de divino na música, que a torna inseparável da voz sagrada da poesia! Por isso, Falso Poeta, vestindo a alma de Rudêncio Morais, cidadão mundano apaixonado pela música e Rudêncio Morais encarnado em Falso Poeta, lavrador da palavra, decidiram juntos e com identidades distintas, mas em comunhão fraternal, embarcar nesta aventura lírica em que a pena literária e a tecla musical de diversos autores se juntam, a beira da paisagem de letras e sons que este livro sugere. Assim, temos uma parte inicial onde o Falso Poeta em jeito de prelúdio, celebra poeticamente a sua existência no Reino Interior de Rudêncio Morais, e uma segunda parte onde Rudêncio Morais, ele próprio traz a lume os pensamentos que lhe afloram à pele da alma, quando se depara com certas melodias que lhe permitem entrar em comunhão espiritual com os seus compositores e/ou intérpretes!

Nas longas conversas estabelecidas com Rudêncio Morais, com a aparelhagem musical ligada como pano de fundo, foram frequentes as ocasiões em que a inacreditável beleza de uma cancão deixou-nos, subitamente, de lábios emudecidos, pontuando a nossa fala de etéreos pontos de exclamação ou místicas reticências.

A música tal como a concebe Rudêncio Morais é filha, mas também mãe do silêncio. Toda a palavra, depois de uma música sublime, é profanação, porque uma vez ouvidas, é no coração do silêncio, que as músicas mais sublimes desatam gentilmente os nós dos nossos mais secretos sentimentos. Neste sentido, uma vez que a música, incluindo a instrumental, muitas vezes anda de mãos dadas com a poesia, entrelaçando som e silêncio, confinantes e confidentes estas duas artes remendam a linguagem dos que se amam fazendo desabrochar segredos sem os revelar totalmente, enredando artistas, leitores e ouvintes, nas confidências secretas dos seus acordes, ou nas entrelinhas encantadas dos seus versos!

Por isso em algum momento: “Dei por mim pensando em nós, e no silêncio das lembranças que me remetiam a nós, decidi regressar, prender o tempo e roubar de nós uma foto, percorri no transpirar da alma as picadas sinuosas do nosso começo, amaciei a profundidade do nosso primeiro beijo, toquei-te quando ainda sonhava sugar-te a essência, balanças-te a minha estrutura e juntos sonhamos o amor, regressei ao luar das descobertas… “ Falso Poeta

Há algo de fortalecedor na música, que inspira as almas a fazer acrobacias sobre o abismo e a enfrentar com destemor os mais ingremes promontórios! Há algo de transcendente na música que liquefaz a alma em oceanos de ternura e as faz desaguar rios de perdão! Assim o revela o impacto de muitas das músicas e dos poemas alvos dos comentários emocionados do cidadão Rudêncio de Morais, tomando de empréstimo, as empreitadas literárias do Falso Poeta!

Assim , as analogias entre estas duas manifestações artísticas, poesia e música, fundem-se numa relação de intima conexão, porque ao fim e ao cabo o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e metros e rimas não passam de correspondências, ecos, da harmonia universal, como diria o genial poeta Octávio Paz.

Por isso, no nosso meio, em Eduardo White, por exemplo, o eu-lírico de Dormir com Deus e um navio na língua, ao reflectir metapoeticamente sobre o seu próprio percurso, embebido de sons e sonoridades que desabrocham da sua criação literária, proclama enfaticamente: «A música aprofunda-nos, eleva-nos para dentro, para os ilimites que somos e não nos apercebemos. Azul e quente, amarela e doce, verde e fresca. A música a arder toda como se vinda de tudo. Da língua na música e da música da língua.» (p. 27)

O Falso Poeta encarnado em Rudêncio Morais e vice-Versa, nos faz sair do nosso mundo confinado (para empregar um termo que a pandemia dos últimos tempos carimbou) para entrar num outro, que afinal, legitimamente, nos pertence, um mundo de beleza, formas e fronteiras fugazes, fugidias e expansivas: o mundo da música desfraldada pela alma de alguns dos nossos músicos mais significativos. Nesse outro mundo, tomando-nos pela mão e tendo como bússolas orientadoras as letras, ritmos e melodias de Twenty Fingers, Constâncio, Carlos Gove, Deltino Guerreiro, Assa Matusse, para dar uns exemplos apenas, nos libertar da pequenez do nosso quotidiano e experimentar, ainda que momentaneamente, uma felicidade sublime. O Falso Poeta fá-lo através de um percurso que transmite a essência do seu ser existencial, porque a música é parte do seu eu poético, ciente que para o conhecer e o amar, torna-se vital conhecer e amar as músicas que ama. Como canta Rui Veloso: não se ama alguém que não ouve a mesma canção. São músicas moçambicanas que nos marcaram e diante das quais ele nos convida a abeirarmo-nos do altar da beleza . Terminada a escuta das mesmas Rudêncio Morais, através dos seus textos evocativos, oferta-as novamente aos autores e aos ouvintes, emoldurando-as com a linguagem poética da sua inspiração. Por isso, diante deste Ecoar Musical da Gente, termino com uma oração, que aprendi de um frei amigo: Deus Todo-Poderoso, que nos destes a vida, os sons da natureza, o dom do ritmo, do compasso e da afinação das notas musicais, continua a conferir aos nossos músicos a graça de conseguir técnica aprimorada nas suas vozes, a fim de que os sons por eles emitidos continuem a manter a virtude de acalmar nossos irmãos perturbados, curar doentes e animar os deprimidos, que sejam brilhantes como as estrelas e suaves como o veludo. Permita, Senhor, que todo ser que ouvir o som dos nossos instrumentos, sinta-se bem e pressinta a vossa presença.

Parabéns, Rudêncio Morais, parabéns Falso Poeta, por esta aliança magistral em que a poesia e a música moçambicana se irmanam nesta obra e nos nossos corações, porque, tal como o diz Rudêncio Morais: “A música, por vezes, se nos é intemporal, e com ela, tecemos os lábios da voz na qual a língua ganha forma e expressão. Somos também isso, o mosaico cultural e multilingue, que se nos é apresentado de forma transcendental a cada número dos nossos músicos, buscando mensurar o tempo.”

Atenciosamente.

A descolagem do voo 29 09 23 CCFM foi marcada para 20 horas em ponto. No entanto, talvez por influência da companhia de bandeira, atrasou cerca 15 minutos. Nada grave. Enquanto os motores do Boeing EC SP respondiam à prova dos pilotos, os passageiros, alegres, lá ocuparam a Sala (Grande) de Embargue com boas conversas e muita expectativa.

Alguns passageiros, ainda comentaram sobre o último concerto do guitarrista, na Galeria do Porto de Maputo. Outros, por terem perdido esse concerto, também foram ao Centro Cultural Franco-Moçambicano, esta sexta-feira, para experimentar uma viagem anunciada ao ritmo do Sense of presence. Portanto, 15 minutos depois das 20 horas, Elcides Carlos e a sua banda apresentaram-se no local onde quiseram ser felizes.

Antes de tocar o que quer que fosse, o guitarrista, qual comandante prestativo, desejou aos seus passageiros e tripulantes uma boa viagem pelo concerto que designou Jazz Aboard.

Aí, sim, já com os motores aquecidos e com todas as verificações realizadas, o Boeing EC SP percorreu a pista numa velocidade constante de 250 km/h e, quando o avião pilotado por Elcides Carlos atingiu os 340 km/h, os passageiros sentiram qualquer coisa de diferente. Primeiro, o corpo inclinou-se vagarosamente para trás. De seguida, pelas pequenas janelas da aeronave, foram apreciando os tamanhos das pequenas coisas ao mínimo pormenor do som da música vibrante e contagiante.

Tudo começou com uma combinação de solos. Elcides Carlos (guitarra e vozes) e Sarmento (saxofones), já além das nuvens, lá questionaram aos passageiros “O que seria?”. Na verdade, esse é o título da quinta música do Sense of presence, que, entretanto, foi a escolhida para prenunciar o que seriam as duas horas de concerto.

– Ao vivo, “O que seria?” parece mais música do que no álbum. – Disse Amosse Mucavele, e Luísa, uma amiga brasileira do poeta, concordou, com gestos e movimentos. No palco ou, se preferir, no cockpit, Elcides Carlos não ouviu qualquer comentário em relação ao seu primeiro número. Pelo contrário, como se ensaiasse, absolutamente descontraído, foi conquistado os sorrisos e os aplausos daqueles que, aparentemente, não o conheciam muito bem em termos musicais.

Bastaram uns cinco minutos para o autor de Sense of presence prender atenção de todos mesmo sem precisar de recorrer à sua voz. Depois de “O que seria?”, os aplausos do público, esses passageiros do Boeing EC SP, superaram qualquer outro som. Com isso, o artista percebeu que o “mais difícil” estava garantido. Desde aquele instante, a viagem prosseguiria a uma velocidade cruzeiro e, certamente, ninguém diria Paragem, cobrador, que, a 11 mil pés, o voo não tem nem cobradores e tão-pouco paragem. E se algumas pessoas ousassem pegar num paraquedas para pular do avião abaixo, com certeza teriam ouvido o comandante do voo dizer “Salve-se quem puder”. Mais do que o comandante, entretanto, os passageiros ouviram Sheila Malijane, a corista que, repetidamente, cantou “Cada um por si e Deus por todos, e salve-se quem puder”, fazendo-nos entender que “Salve-se quem puder” é o título da quarta música do Sense of presence.

Gingona, dona de si e com uma confiança “terrível”, como se a tivessem dito que não existe uma corista que a supere, Sheila Malijane imprimiu o timbre particular da sua voz naquela e em tantas outras músicas, durante o concerto. É uma boa menina e com enorme potencial para evoluir e tornar-se algo que certamente ainda não atingiu de todo!

De facto, Sheila Malijane esteve bem e pode-se dizer o mesmo de Gilson. Ambos formaram uma dupla equilibrada, em muitos casos, fazendo esquecer intérpretes que, por um motivo qualquer, não puderam embarcar nessa viagem pelo ritmo jazz proposto pelo cicerone Elcides Carlos.

Ora, se, por um lado, os coristas souberam acompanhar o guitarrista, por outro, é preciso que se retenha e bem o nome Sarmento. Nos saxofones, fenomenal! Sarmento é um monstro num corpo pequeno, um talento puro e que deve possuir uns 10 pulmões. Só assim se justifica que sopre do jeito como fez durante o voo cruzeiro no Franco. Sopro limpo, envolvente e comovente, como se já tivesse passado por um filtro. Muito provavelmente, depois de Elcides Carlos, o grande destaque da noite foi Sarmento, que foi intercalando saxofones, mas mantendo sempre a flexibilidade de adicionar à música a sonoridade com a qual se faz a “Sedução” então cantada por Sheila Malijane e Gilson.

No concerto Jazz aboard, nem sempre as músicas do álbum Sense of presence foram interpretadas da mesma forma. Por exemplo, os temas “Halatha”, “Ha fana” e “Tivoneli” tiveram arranjos e prolongamentos diferentes e igualmente sugestivos, com a contribuição de Tony Paco (bateria), Nicolau Cauneque (teclado), Lelas (baixo) e Alcídio (percussão). Foram estes membros da banda que, ao fim de cinco temas, acompanharam a primeira convidada da noite. De repetente, houve uma paragem a 11 mil pés e, inexplicavelmente, Lalah Mahigo entrou no Boeing EC SP para alegrar a tripulação e os passageiros.

Radiante, Lalah Mahigo interpretou “Dza Nadzika”. Do ronga, qualquer coisa como “é agradável”. Deu gosto de ver e ouvir. Lalah esteve em forma e cantou como sabe, enchendo o palco com a presença em todo lado. Os pés descalços ajudaram-na nos movimentos, e, talvez por isso também, a cantora cantou como se não desejasse se retirar do palco.

Se Lalah Mahigo foi incrível interpretando a sua própria música, Bhaka Yafole não quis e nem ficou atrás. O “barbudo” foi ao Franco com “Dietas da moda”, sexto tema do Sense of presence. Certamente, com Bakha em palco teve-se um dos melhores momentos do concerto, com boa parte dos passageiros a armar-se em cantores quando de cantar só sabe desafinar.

– Bhaka Yafole é mau! – Interveio novamente Amosse Mucavele, quase no mesmo instante em que uma bela jovem vestida de vermelho virou-se para trás, cantando e anuindo o que o poeta disse em voz alta. Se além de escrever o poeta também fosse bom de dizer coisas bonitas ao ouvido de miúdas bonitas como aquela, talvez, tivesse reparado que ali poderia ter acontecido mais alguma coisa. Medroso ou prudente, continuou a curtir o concerto, com uma lata de cerveja na mão, e assim salvou o seu casamento. Claro que Elcides Carlos também não percebeu nada disso. Nem a iminência da sedução, nem o brinde pelo seu sucesso que Amosse Mucavele fez com o escritor Celso Cossa.

Seguiu-se a música “Mhango”, um tema que retrata um assunto grave. Essa foi uma das músicas em que Elcides Carlos emprestou a sua voz, penetrando ainda mais a alma dos que entendem ronga/changana.

Faltando uns 15 minutos para o voo aterrar, subiu ao palco aquele que contribuiu e muito para Elcides Carlos aperfeiçoar a habilidade de guitarrista: João Cabral. Os dois guitarristas tocaram “La cabralinas” e “Niwa makombo”.

O som dançante desse tema aproximou um casal como não se tinha visto até aí. Ela, busy em dançar, puxou o marido, um moço de uns 60 anitos. Ele, meio envergonhado, resistiu e conseguiu evitar lá apresentar-se à frente de todos, bem pertinho do palco. Ela, mesmo busy em dançar, olhou para os lados e viu o escritor Celso Cossa com uma garrafa verde na mão. Fazendo o uso das suas habilidades, deixou estar a garrafa, que já tinha perdido a importância, e segurou naquela beleza loira, olhos quase azuis, uns 47 anos de idade, e coloco-a a rebolar com todo respeito.

O parceiro daquela dançarina improvisada, pode ser envergonhado, mas de distraído até que não tem muito. Ele viu quando o escritor disse alguma coisa no ouvido da mulher. Ela sorriu com gosto e, de seguida, começou a apontar a direcção do marido. Ele, compreendendo o espírito cativante da arte, finalmente teve a coragem de descer as escadas sorrindo e lá foi, finalmente, ocupar o seu lugar diante da parceira. Enquanto se sentava, Celso Cossa ouvi um bêbado dizer:  – Ukinili ni mulungu, bay?! Não reagiu.

Foi mais ou menos nessa altura que, rematando, Elcides Carlos disse algo assim: – Conseguem ver este casal a divertir-se? E você aí, Utiva yini hi kuhanya wene?

Ao invés de qualquer resposta à pergunta, todos lembraram-se de desapertar os cintos de segurança. Dançaram durante o voo, animados, confirmando que o valor do bilhete estava mesmo a valer a pena. Ouviram então “Tivoneli” e, de seguida, “Hita vonana”, um tema com um carácter religioso apreciável. Mais uma vez nos coros, Sheila Malijane teve a oportunidade de gingar com a sua voz. Muito dedicada ao que fazia, não viu uma meia dúzia de rapazes a disputar sem sucesso a sua atenção.

Já a maior parte dos passageiros, lá iam acenando a mão em jeito de despedida, sentindo o Boeing EC SP a atravessar as nuvens em direcção à pista de aterragem. Poucos minutos depois, por volta das 22h30, o avião tocou o solo, percorreu a pista internacional com a recomendada velocidade decrescente até imobilizar-se. Do cockpit, o guitarrista espreitou a cabine dos passageiros e lá viu um letreiro com letras garrafais: – Wene kê, Elcides Carlos, Utiva yini hi kuhanya?

O artista sorriu. Todos outros passageiros imitaram o gesto e puseram-se fora do Boeing EC SP, porque, mesmo à entrada da Sala Grande, tinham de comprar Sense of presence, uma bela viagem pelo melhor do jazz que se tem feito em Moçambique.

 

*O que tu sabes de viver ou de se divertir?

Quando a amiga Zena Bacar do Eyuphuro, vitimada pelas armadilhas da vida, seguiu para o infinito das estrelas, para cantar nos palcos da consagração, quis dedicar algumas palavras de afecto que exaltasse o seu carisma. A sensualidade e beleza inigualável das jovens mulheres Emakuwa. Retomar ao colorido da capulana, a vaidade dos corpos franzinos, enfim, queria ter feito jus à profunda, melancólica e, quase sempre, soberba voz da Zena que roubou do Tufo. Exuberante e, poucas vezes, lacónica, Zena Bacar era vaidosa e esbanjava sorrisos que espalhavam a magia e o poder do feitiço dos seus gestos sensuais. Ela, na sua majestosa variação de tons musicais, viveu para atrapalhar os espíritos e equivocar corações.

Os jovens da minha geração, agora de cabelo grisalho, ficarão, eternamente, associados à sua Muara ya N´ rake (esposa do Senhor N´Rake). O icónico hino que atravessou tempos e espaços, do norte de Moçambique, dessa voluntariosa etnia Emakuwa, espalhada por África e pelo mundo. Nunca me perdoei por não ter feito esse elogio. Chorei, no silêncio da dor, a sua partida. Zena Bacar nem deve repousar. Continua activa e cantarola para os anjos. Completaria, neste Agosto, 74 anos. Procuro, ainda, explicações para esta manifesta omissão. Apenas as emoções poderiam ter paralisado os meus dedos e silenciado a minha consciência. Testemunhar o nosso tempo e revisitar a trajectória de uma voz que viveu para lá do seu tempo, e que permanece, incomparável, como uma das mais conhecidas intérpretes femininas do cancioneiro moçambicano.

Neste exercício de remissão e indulto reencontro esta janela entreaberta, para cruzar Zena Bacar e os iconoclastas Ghorwane. Eles, os bons rapazes de Samora Machel – agora, igualmente, celebrando os 90 anos do seu nascimento – coincidem com a celebração dos seus 40 anos. As bodas de esmeralda duma monumental carreira, do inimaginável impacto social, e da irrepreensível matriz que souberam gerar e preservar. Os Ghorwane são uma decorrência de um tempo revolucionário conturbado, de um período de afirmação e aporias, mas, e sobretudo, dessa inolvidável geração do 8 de Março que assegurou um país sonhado socialista e moldado capitalista.

Ghorwane e Zena Bacar ou Eyuphuro do Gimo Abdulremane foram os pioneiros moçambicanos do bem conhecido World Music. Para além deles, só o Conjunto RM ou Marrabenta Star e a CNCD alcançaram patamares tão visíveis no exterior.

Teríamos de revisitar o músico britânico Peter Gabriel, afortunado compositor, progressista e activista de diferentes causas sociais, para entender este percurso. Peter Gabriel foi, originalmente, vocalista dos Genesis. Em 1975 inicia uma carreia a solo, abandonando os Genesis. Vira activista em diferentes áreas sociais, incluindo políticas. Combate o apartheid sem tréguas. Abre um espaço privilegiado para promover ritmos e sons de outros países em desenvolvimento. Cria vários álbuns que são designados pela crítica como Eponymous. O último ficou conhecido como Jogos sem fronteiras. Pegou na luta de Steve Biko, líder do ANC, e deu voz à luta contra o regime racista. Impacta o mundo com uma postura que mostra maturidade e consciência política.

Esse apoio declarado a Steve Biko conta com a colaboração de Youssour N´Dour. Ambos lançam a última tentação de Cristo. Os artistas convidados são africanos. Peter Gabriel sempre advogou pelo princípio de aglutinar artistas da Ásia e América Latina. Vence o Grammy e outras distinções em 1992 e 1993 e se afirma, em definitivo, como o maior promotor musical e cuja tecnologia já superava a música da época. Terá sido nos CDs XPLORA e OVO que colocou os nossos compatriotas Zena Bacar e Ghorwane. Esta saga pela exposição dos artistas africanos ainda o levou a vencer um prémio especial da Amnistia Internacional e outras distinções honrosas.

Convenhamos que a World Music foi, então, responsável pela gravação de uma incontável e selecta nata de artistas africanos, incluindo o congolês Tabu Ley Rochereau, da famosa Kwassa Kwassa e esposo da Mbilia Bel, que tanto agitou as nossas ancas, e ainda o tanzaniano Remmy Ongala, Salif Keita do Mali, Toure Kunda, Papa Wemba. Um naipe inesgotável.

A World Music foi uma forma erudita e genuína de promover as interpretações dos africanos. Convenhamos, uma forma de escapulir das ortodoxas regras do mercado musical mundial. Todavia, não isento da armadilha de penetração num mercado que obrigava a esconder a linha da originalidade e identidade. Apesar de tudo, Peter Gabriel tem o mérito e o crédito de ter aberto essa frente de divulgação.

Os Ghorwane sucederam a Zena Bacar e Gimo Abdulremane. Majurugenta foi o cartão de visita. Voltaremos lá. Estas bodas de esmeralda do Ghorwane acontecem quando eles voltam a incendiar palcos e plateias, aquecem esses verões europeus, já de si com as temperaturas inconfortavelmente quentes. Não admira, pois, que neste libelo contra o meu próprio esquecimento, auxilie a reavivar algumas facetas. Ninguém tem o direto de se alhear destes bons rapazes, parte do património musical mundial.

Quando, em 1978, a decisão do governo de colocar jovens, de todo o país, para se formarem e preencherem as vagas deixadas pela debandada colonial, não poderíamos imaginar que a história musical, deste país, estaria sendo escrita com letras douradas. O projecto de unidade nacional dinamizou a música. De norte a sul de Moçambique, houve uma verdadeira explosão musical. Grupos e cantores como o eterno Alexandre Langa, Fanny Pfumu, e Orquestra Dambu, eram expressão exponencial. Pedro Ben e Wazimbo vinham do Chibuto para ferver as plateias musicais. Pelo centro e norte, a esquerda e direita, a música parecia andar na contramão da revolução. Era progressista e evolucionária.

Misturavam-se ritmos e cores. Era preciso cantar, como dizia o poeta Kalungano, o herói nacional Marcelino dos Santos. A minha geração ainda teve o ensejo de desfrutar de exímias bandas musicais. Com saudades me recordo da banda Primeiro de Maio (1º de Maio de Armindo Salato e Pedro Machado), de Quelimane, que tanto furor fez com verdes campos. A letra continua tão actual e vital para os dias que correm. Zambézia, aliás, foi terra de Lalarita e tantos outros. Nampula tinha Chico da Conceição e João Júlio Patinho no topo das preferências. Cantaram contra o que era imposto pelo sistema com linguagem camuflada. Aliás, Lázaro Vinho, de Tete, seguiu as suas pegadas.

Foram destaques, ainda, as vozes inimitáveis de David Mazembe, Madala e Romualdo, na região centro. O Eyuphuro de Gimo Abdulremane e Jaimito Matapa, na cidade de Nampula. O sul tinha outros pergaminhos. Desde o Alambique, de Hortêncio, Arão Litsure e João Cabaço, passando pelo Hokolokwe, os Galtons, José Mucavel, Guegue, Mingas, Willy e Aníbal, Fernando Luís, Bill Cuca, Chico António e Elsa Mangue – esses vencedores do prémio Rádio França Internacional – José Guimarães, Elsa Mangue, Filipe Nhassavele, Elvira Viegas e tantos outros, que gravaram na Rádio Moçambique (RM). A RM, diga-se de passagem, foi a catedral da produção e divulgação deste vasto património musical.

A RM foi o respaldo de tudo que aconteceu. Todavia, a música não desperdiçou outras oportunidades. Os estúdios da EME, de Eduardo Mondlane Júnior, irmão de Chud Mondlane – também ela, com voz dourada – emprestaram à música deste país uma tonalidade cativante. Deveria ser obrigatório a cidadãos como Eduardo Mondlane Júnior regressarem a música. Ajudar a recriar o talento juvenil. Stewart Sukuma fala, com saudade, do concurso da EME para a descoberta de talentos. A sua fornalha iniciou nesta época que, também, foi a base do Ghorwane. Mas existe, igualmente, mérito que deve ser estendido ao empresário e revolucionário Aurelio Lê Bon.

Privei com o Pedro Langa. Uma relação que me empurrou para a simpatia pelos Ghorwane. Pedro chegava do Chibuto, esse espaço musical incontornável. Filho de enfermeiros e de uma família musicada pelos irmãos mais velhos. Hortêncio Langa e Milagre Langa. Conceituados. No alto dos seus sapatos de tacão alto, calças boca de sino, cabelo a Jimmy Hendrix, chegava, por equívoco, para fazer professorado. Eu chegava pela mesma imposição. Também, de uma família de enfermeiros, mas sem músicos para embalar as noites de luar. Pedro tentou incutir a ideia de sermos todos músicos. Queria que todos os seus amigos tocassem violão.

A vida nos empurrou, depois, para desconfortantes situações. Rebuscávamos o sentido de missão. As tarefas revolucionárias eram irrecusáveis. Pedro não se ajustou e não escondeu ser avesso. Uma boa parte do nosso grupo aceitou, com reservas, e mesmo sem vocação ou motivação, seguiu a única carreira disponível.

Pedro não se alheou dos seus sonhos. Indomesticável, não cogitou, nunca, abandonar o seu violão. Qualquer sintoma de música incendiava o seu espírito musical. Cantava melodias conceituadas. Criava músicas em tudo que tocava. Cantamos algumas músicas que nunca foram gravadas. Essa força dos sonhos que nenhum tempo conseguiu afastar. Queria viver de uma forma diferente. O sonho da vocação que se opunha ao da revolução. O que o tipificou e fez dele melhor do que todos nós, foi mesmo a coragem. Enfrentou tudo e todos. Um sistema. Muitos dos colegas desertaram das fileiras e abandonaram o país. Os prosélitos não perdoaram. Outros sofreram as sevícias.

As revoluções se fazem de diferentes formas, episódios e epopeias. O nosso grupo aprendeu a fazer amizade com os compositores revolucionários. Calisto Mijico e Lindolondolo escreveram os hinos da revolução moçambicana. Aprenderam a compor na Coreia do Norte. Era a bandeira musical de tantos temas cantados na época. Aprendemos deles os ritmos ensaiados nos campos de Tunduru, Bagamoyo e Nachingwea. As canções que Eduardo Mondlane escutou, deixou-se encantar e cantou, tantas vezes, no clamor da sua revolução.

Toda a disciplina criou alguma saturação. Cansava a exigente disciplina e rigorosidade dos tempos iniciais. Isto fez com que se criassem focos de revolta. Próximo do corredor dos nossos quartos foram escritas, nas paredes, frases inimagináveis. Os serviços castrenses não toleraram. Condicionaram a expulsão de todos. Sem apelo e nem agravo. Perdíamos colegas e amigos cuja empatia não esmoreceu. O Pedro foi incorporado e foi cumprir o Serviço Militar Obrigatório. Para muitos de nós, pela primeiríssima vez, depois da independência, dialogávamos com um caminho da contra-revolução. Outros valores e exigências. Aprendemos que o pensar diferente era proibido. Não seguir a linha da ordem era proibido. Perigoso. Não se atentava contra a revolução. Não tardou e o centro do país voltou a escutar o ruído das balas e a ausência de paz. Não deu, sequer, para nos reconciliarmos como irmãos. Nem como irmãs. As notícias eram de ataques e destruição. A intransigência não encontrou antídoto que tivesse evitado a catástrofe.

Antes da sua expulsão, Pedro Langa, José Chambe e outros, ainda subiram por alguns palcos. Levava sons originais experimentados entre os colegas de curso. Sentíamo-nos representados. Eram, igualmente, os nossos sons. Apoiamos e preenchemos muitos dos lugares da plateia. Queríamos, também, saber como se comportaria o grande público. Muito aplausos, mas, também, desconfianças e alguma desaprovação.

Nelson Saúte escreve, no seu Planisfério Moçambicano, que a primeira apresentação pública de Pedro Langa, em 1979, no Teatro Scala e na companhia dos Hokolokwe, foi sofrida. Das duas canções originais que apresentou, nem por isso foi bem-sucedido. A plateia não queria, apenas, ritmos originais. Preferiam as músicas do estrangeiro. Sons mais quentes e que faziam as noites de festa. A despeito da adversidade, como refere Saúte, os verdadeiros criadores não são entendidos pelos seus contemporâneos. Todavia, eles estão muito a frente do seu próprio tempo. Parece que vivem em galáxias diferentes e funcionam como satélites fora do comum.

Anos mais tarde, soube que o Pedro Langa se juntara ao conjunto Mbila. Um grupo que tocava no edifício do Clube da Juventude, e que alegrava as mentes que procuravam entender a revolução sem desperdiçar a sua juventude. Nós deambulávamos um pouco por todo o país. As escolas caiam nas nossas mãos. Pedro Langa não chegou a entrar para nenhuma escola; porém, com agrado, sabia do paradeiro de todos. Vibrava com o empenho de todos. Nós retribuímos com cartas que ele nunca respondeu em detalhe.

Igualmente, soubemos que ele se aliara ao compositor e cantor Simão Mazuze. Simão, um músico de outras referências e valências, havia feito o serviço militar em Portugal, na força aérea, e já por lá, além-fronteiras, provara aos cidadãos portugueses a magia do seu talento. Simão Mazuze era irredutível, com toques de rebeldia no que fazia, cantava e dizia. Era igual a si próprio. Até de nome mudou e virou Salimo Mohammed.

O regime nunca o compreendeu. Foi enviado para Bilibiza, Cabo de Delgado. Longe de o silenciarem, ele regressou mais forte e mais convicto. Já não era apenas Mamana Maria a sua canção mais conhecida e forte, mas a sua famosa Bilibiza. Pedro e Simão Mazuze formam o Xigutsa Vuma. Um grupo e músicas de contestação, rebeldes e avessas ao que de pior o projecto de revolução oferecia ao país.

O Xigutsa Vuma, com Pedro Langa e Salimo Mohammed, ainda foi a tempo de conquistar o prémio de melhor composição nesses dificílimos anos 80. Eram os tempos da tenebrosa Operação Produção, que todos tentamos esquecer e perdoar, como moçambicanos, e os reflexos de uma política que correu com pouca feição e originou outros problemas transversais. Associadas à fome que começava a grassar um pouco pelo país, às arbitrariedades das guias de marcha e à guerra de desestabilização, existiam razões de sobra para escrever e cantar temas que marcariam os seguidores. Já conhecidos como controversos na abordagem das suas letras, o grupo tinha de tudo para singrar. Porém, terminou cedo e dois galos no mesmo poleiro não poderiam conviver por muito tempo.

Por volta de 1984, e fazendo eco nas memórias de Stewart Sukuma e do Roberto Chitsondzo, esse professor-músico, ou melhor, músico-professor de Educação Física, os concursos musicais de novos talentos lançados pela EME de Eduardo Mondlane Júnior, auxiliaram que os novos talentos surgissem pela praça.

Roberto Chitsondzo aproveitou a estadia em Inhambane para escrever alguns versos. Pouco depois, voltou a Maputo depois de ter sido transferido, por razões de saúde da sua filha primogénita, Neusa Chitsondzo, e ficou a leccionar na Escola Secundária Josina Machel. Nesse desiderato, Chitsondzo foi introduzir os Ghorwane para as gravações na RM, pois anteriormente haviam sido chumbados pela censura. Perdíamos um professor com habilidade desportiva, para um exímio tocador. Usava a destreza dos seus dedos para recriar sonhos e verdades escondidas. Da sua voz seriam extraídos ritmos assombrados. Palmilhou a cidade e se experimentou com vários músicos. Os Ghorwane, que estavam em banho maria, ganharam força. 1983 marcava, então, as pernas e o arcabouço para seguir pelo mundo dos sons que encantam e exaltam os céus. A música moçambicana agradeceu. O mundo também.

Um selectivo conjunto de músicos esteve associado aos Gorwhane, com realce para o saxofonista e vocalista Zeca Alage. Se o Pedro Langa era a alma, Zeca Alage era o espírito e a força que comandava o barco. Juntavam-se, também o baixista Lot, o baterista Hilário, e ainda o guitarrista Tchika. Para os sopros, Júlio Baza assumia as responsabilidades e garantia que os ritmos tinham um factor diferenciador. Ao grupo inicial juntaram-se David Macuácua, o Carlos Gove e o percussionista Dingo.

As letras e os conteúdos iniciais que estiveram a cargo de Pedro Langa e Zeca Alage eram de arromba. Para aqueles tempos eram mesmo de muita virulência. Cantavam o que o povo e os seus seguidores mais queriam escutar, a crítica social, o desacerto político, a guerra que dilacerava o país e o mercado negro que crescia a olhos vistos. Pedro Langa e, de alguma forma, Zeca Alage, conheciam muitos dos dissabores dessa oposição às políticas económicas e sociais do regime. Cantavam o que a alma os recomendava e faziam o delírio das plateias. O público apoiou e virou um aliado natural.

Roberto Chitsondzo toma a decisão, junta ao grupo e, a 23 de Junho de 1984, fazem o primeiro espectáculo, denominado Raízes e promovido pela EME, no cinema África, hoje tão descuidado e tão votado ao esquecimento. Hoje, os Ghorwane persistem e o cinema definha. Uma pena ter uma catedral musical tão voltada ao abandono.

Retorno ao Nelson Saúte, que tão bem os soube tipificar e glorificar num texto de homenagem escrito há cinco anos. Os Ghorwane, segundo ele, souberam transformar o sofrimento e a dor em alegria. E vai mais longe, não se limitavam a lamentar, como acontece tantos nos tempos actuais, e como muito se ouve do cancioneiro moçambicano, mas pautavam pela inovação e pela busca de ritmos tradicionais para os incorporar nas suas músicas e dar essa roupagem que fazia da sua música prístina, delicada e de uma agradável suavidade para os ouvidos dos seguidores. Mas, o mais importante, a meio de tanta agitação e ausência de consensos, era aproveitar o quadro da realidade social e fazer disso a moldura da tela para eternizar a natureza e beleza infindáveis das suas canções.

Era a profissão e a profecia de fé e de amor a um país e um povo, que eles tinham a missão de apoiar, entreter, educar e informar. Países com tantos problemas sociais precisam de um escape. Eram essas temáticas que invadiam a cabeça de qualquer compositor. Temática insubstituível. E se, desde o período da independência, a promessa da revolução eram a liberdade, a paz e o progresso, isso era, precisamente, aquilo que todos queriam cantar e escutar.

A crítica nunca é bem recebida por quem tem responsabilidades de governação. Na época, ainda, com os campos de reeducação vigentes, os serviçais do regime se assustaram com o desalento da classe. A crítica vinha de todos os lados. A guerra chegava às barbas da cidade e dos cidadãos. Não tardou que, para todos os espectáculos públicos, fossem enviados grupos de sequazes e seguranças à paisana, com o intuito, único, de captar os conteúdos, a apreciação do público e as mensagens. Uma espécie de avaliação do sucesso e uma medição do que tentava ser atirado para baixo do tapete e permanecia tão evidente como destapado. Foram tempos desafiadores. Cantar parecia ser a única forma de espantar os males. Moçambique, tão jovem, submetia-se aos pés da sua própria juventude e se assustava com uma faixa etária que sonhava, aspirava e queria outros rumos. Na realidade, queriam paz, desenvolvimento e liberdade. As promessas de um processo que não dependeria apenas de si e da sua conjuntura para prover estes meios todos às pessoas. Até o Presidente Samora Machel se assustou com a profundidade das músicas e versos dos Ghorwane. Presumimos, todos, que foram as informações deturpadas que foi recebendo e consumindo. O tempo ajudou. Escutou com a atenção do seu coração e sensibilidade. Depois, gerou a empatia, como a graciosidade que brincava com a sua própria alma. Virou adepto incondicional. Não tardou para que fossem convidados para os banquetes de Estado. Recebia as suas visitas no Polana e fazia do empenhado e rejuvenescido Ghorwane um aliado musical e um símbolo da própria moçambicanidade.

O presidente Samora Machel tatuou o grupo com a mecânica que a própria música criou. Queria continuar como um líder que se assumia como mestre. Nessa condição, entendeu que as obras sagradas dos seus jovens músicos representavam os valores de um povo que ele deveria liderar e saber escutar. Queria que os Ghorwane fossem a banda de referência e a realização da perfeição musical. Aliás, soube, nos últimos tempos, que o Presidente Machel ofereceu, igualmente, equipamento musical à Banda dos Massucos, lá do longínquo Niassa. Os Massucos nunca desapontaram. Transportam toda a mestria e a simbiose dos sons Yao, o ritmo cadenciado dos Nyanja, ambos adornados pela glória do Chioda e Nganda, as mais célebres danças do norte. O Mestre Santos, líder dos Massucos, ainda mantem esse violão presenteado e não se desfaz dele, em nenhum momento. Virou talismã.

A nossa alma é composta por harmonia, e a harmonia só pode ser gerada nos momentos em que as proporções do bem e do mal são desequilibradas pela própria vida e os seus sons. Os Ghorwane livraram-se da cerrada perseguição, sem que para o efeito tivessem de mudar a sua forma de cantar e vibrar. A música não deve ter outro nome que não seja a irmã da pintura. Assim, pelos ritmos e conteúdos dessa injustificada perseguição, passaram a ser apelidados por Bons Rapazes. Um nome improvável, mas apropriado e que quase assenta no original. Lagoa que nunca seca. A criatividade deu corpo à liberdade e algo bem mais supremo. Liberdade de criar. Com esta liberdade se criam as oportunidades para que as próprias liberdades individuais se corporizem e a sociedade se livre de amarras. Os direitos humanos entravam pela porta mais democrática da vida. O sentido que a humanidade sempre prezou. A dignidade que satisfaz o sentido mais digno.

Dois anos depois da criação da banda, Pedro Langa abandona os Ghorwane. Recordei aqui do temperamento do Pedro, mente brilhante, todavia, muito preso às suas convicções. Uma teimosia que era quase casmurrice. Não admira, por conseguinte que se tenham desentendido por alguma abordagem, ou pelo rumo, menos consentido, que a banda deveria seguir. Roberto Chitsondzo e Zeca Alage firmam-se como líderes substitutos. Ao grupo se junta David Macuácua. As canções continuaram impressivamente pungentes. Jamais deixaram de interpretar essa dor dos moçambicanos. Massotcha de Zeca Alage, o tema que dizia que a guerra não era solução e tinha custos demasiado elevados. Os investimentos, se ainda existissem, deveriam ser encaminhados para a aquisição de comida para a população. As armas, que eram caras, bem mais caras do que sacos de arroz, não serviam. Os Ghorwane mantinham a força do paradigma do quotidiano. Os recados eram para todos os envolvidos no conflito que fez milhares de mortes e milhões de deslocados.

O primeiro disco dos Ghorwane foi quase que uma encomenda da Real World. 1991. Majurugenta foi o nome do álbum de estreia. Com tantas outras canções, de inegável beleza e sempre com um substracto de mutimba, gravam este álbum na perspectiva de incluírem as músicas no World Music. Peter Gabriel está por detrás e tem a garantia que seria um sucesso. Pela segunda vez, Moçambique chegava ao topo da música internacional. Agora, eram dois os nomes mais sonantes. Eyuphuro e Ghorwane. O disco foi lançado em 1993.

Nem Pedro Langa e muito menos Zeca Alage estiveram presentes, em 1993, e levou algum tempo até que o disco tivesse sido finalizado, para testemunhar o sabor do seu sucesso, daquele que foi um muito celebrado e apetecido lançamento. É neste período que entra para o grupo João Schwalbach, para o lançamento do primeiro disco em Londres. Zeca Alage foi barbaramente assassinado. Foi, inexplicavelmente, retirada a vida de quem só tinha vida para dar e revelar. Com a sua partida desaparecia, na mesma proporção, toda a cor, beleza e magia dos sopros do seu indomável saxofone. Esse genial sopro metálico e que tanto ritmou dezenas de canções, surpreendeu os ouvidos mais exigentes e penetrou fundo no coração dos seguidores. Um sentimento de comoção tomou conta do país. A Televisão de Moçambique (TVM), estação de televisão pública, iniciou o serviço noticioso com o anúncio da sua partida. O triângulo que fez as fundações destes clássicos sofria um revés. Um furacão que parecia destinado a assombrar o que está escrito nas estrelas como parte dos sons deste Moçambique.

Ao longo dos anos, os Ghorwane continuaram a actuar para o público local e internacional com regularidade. Como qualquer banda no mundo, passam por períodos mais ou menos complexos e difíceis. A corajosa crítica social se manteve presente. As vicissitudes sugeriram mudanças. Entradas e saídas. Ainda assim, se reinventam. Pedro Langa partiu em 2001, igualmente, de forma misteriosa, ainda no calor de uma juventude que teria tudo para oferecer à música ligeira moçambicana. Mesmo não estando com o grupo, esta partida impacta. As honras lhe foram feitas em diferentes momentos. Depois, saiu do grupo David Macuácua, numa viagem para as Europas.

Roberto tem uma memória de elefante. Marcou a saída de Costa Neto do grupo. Uma digressão por Portugal e, simplesmente, não regressou ao país. Nada que estivesse nos planos, mas a conjuntura forçou e extremou estas posições. Carlitos Gove, Paíto e Jojo Moisés, também, em momentos separados. Marcou a saída de Jorge César. Mas as saídas, por vezes, se acompanham de reentradas. Chegou, também, sangue novo importante. Como o próprio Roberto coloca, o que ele mais gosta é chegar sem planos e fazer parte de um plano que estava traçado. Esses são os dois lados da mesma viagem. Tiveram músicos que chegaram para ficar e outros que partiram para nunca mais voltar.

As recordações não são cronológicas, muito menos por ordem de categorias e importância. Fez parte da banda a Tsala Tina Cândido. Eventualmente, a primeira mulher que emprestou a voz e trouxe uma forma diferente de estar. Nos anos 90, juntaram-se aos Ghorwane a Cindinha e a Betinha. Faziam coros e coreografias. Betinha seguiu para o infinito. Todavia, foi importante na performance. O bailado dela encantou Londres. Soberbas e memoráveis actuações.

Esse movimento de equilíbrios e reequilíbrios continua perenal e perpétuo. Por vezes, mais oportuno, e por outros momentos, com menos sabor e profundidade apresentados no conteúdo; todavia, marcadamente, na coloração dos efeitos especiais que as composições foram ganhando. Ao grupo se juntou Karen Boswell, uma artista que havia estudado música na infância e juventude.

Agradável surpresa também foi a Sheila, que integrou a banda e tocou flauta. Essa tonalidade que desperta todas as almas. Emigrou mais tarde para a Europa e por lá continuou os seus estudos. João “Joni” Schwalbach chega em 1993. Eram os primeiros 10 anos da banda. Trazia um som refinado pela tecnologia. Continua como coração da banda, com uma forma mais pausada de ser, a serenidade que sabe respeitar o caminho, mas que não se coíbe de impor um pouco da sua marca e do seu estilo. Assim o grupo se reergue. Faz da dor das partidas a forçaa da sua resiliência e do querer perpetuar um som que agrada diferentes gerações e prazeres.

40 anos de esmeralda e muito ouro à mistura. Ghorwane e os seus versáteis músicos e compositores podem não ser os mesmos, ou não manter a originalidade dos ritmos, mas continuam a não aceitar a resignação e a criticar de forma obstinada o exercício da cidadania. São 40 anos de uma música que revela a forma de viver e de estar dos moçambicanos. Uma prova contra a intolerância e a estupefacção. A manifestação mais viva de um povo que se libertou e que escolheu os seus caminhos. 40 anos e três álbuns que ficarão nos nossos corações – Majurugenta, Kudumba e Vana Va Ndota. São álbuns inesquecíveis e sublimes. Decénios de recriar o DNA, manter a fidelidade à poesia, ao ritmo e ao balanço. Essa caminhada que aborda as assimetrias sociais, das contradições do quotidiano, e a manutenção da fidelidade aos sons do nosso tempo. Dignidade e honra, num som espantosamente agradável e delirante. (X)

 

Por Lourenço Rosário
O papel de quem apresenta uma obra não é o de entrar no seu conteúdo e tentar desvendar a sua substância, antecipando-se aos leitores.  O papel de quem apresenta uma obra é sobretudo o de despertar o espírito de quem vai lê-la, de modo a estar alerta para eventuais curvas e contracurvas que nela pode encontrar. Quer isto dizer que apresentar uma obra é abrir os caminhos para que o leitor possa mais facilmente percorrê-la,  descobrindo os seus encantos e não antecipando-se a esta descoberta.
Contudo, o jovem escritor Jessemusse Cacinda criou-me uma hesitação de leitura que gostaria de abordar através do excerto V, do conjunto do seu trabalho, cujo título é “O avião que roubou sonhos” e que passo a citar.
“(….) Na esplanada do hotel, encontrou-se com Moreira Chonguiça.
_ O taxista, que me trouxe do aeroporto ao hotel, disse-me que tu fazes “kwashala”, um ritmo  que está quase morto. _ interrompeu Moreira.
_ Sim. E escuto muitos sons dos meus ídolos como Rei Costa, Norte Jazz, Manono Jazz, Murara Jazz, Rena, Charifo Victor Salimo …
_ Muitos deles têm o apelido de Jazz, porquê?
_ Os kwashaleiros de Cabo Delgado eram fãs de jazz e os de Nampula eram fãs de rumba.
-A música congolesa?
-Sim, mestre.
A conversa tomou vôo até Moreira prometer conseguir um contrato de gravação, em Maputo, do disco de Fred Khoropa. Assim, mobilizaria instrumentistas e produtores, fundindo diferentes ritmos: rumba, jazz, blues, raggae, tufo e kwashala. Fazendo ressurgir o kwashala, quinze anos depois  de Charifo Victor Salimo e trinta anos depois do Rei Costa mas, desta vez, em diálogo com o mundo. “( 54-55)
A minha perplexidade leva-me a pôr a seguinte questão:  A que propósito é que uma obra que praticamente apenas fala deste ritmo que dá o título ao texto a meio da obra, se casa com a temática principal que começa e fecha o livro: a morte?  Logo no primeiro texto, o título é a “Morte do meu pai”, e no último texto, “As gavetas de necrotério”. Aparentemente parece ser um casamento mórbido, ou talvez não, porque da conversa com Moreira Chonguiça deduzimos que as Kwashala estavam também a morrer nos subúrbios de Muahivire e Namicopo.
A segunda surpresa nesta obra será, do ponto de vista literário, a questão do género, se nesta circunstância adotarmos o consenso de que se trata de narrativas. De facto elas são narrativas curtas, ordenadas de tal forma que me escapam a adequada classificação com que a teoria literária clássica amarra este tipo de género
Os textos desta obra não são nem conto, nem novela, nem fábula, mas intuitivamente me parecem ser ao mesmo tempo tudo isto. Ao ler a obra, dei-me conta de que estava perante pequenos episódios teatrais da vida do dia a dia de cada um de nós: o conflito pai e filho, a luta pela vida de quem pelos seus próprios pés deve subir a escada da vida, a sobrevivência, o adultério, os conflitos conjugais. Com a morte, pairando em todos esses episódios. Toda essa movimentação passa por nós com um núcleo de personagens muito reduzido, configurando aquilo que mais facilmente se parece com crónicas. E esses episódios poderiam aparecer nos jornais, nas conversas do dia a dia ou em peças teatrais.
Desta forma, o autor surpreende-nos, porque colocando estas pequenas narrativas de uma forma contígua, mas ao mesmo tempo mantendo as mesmas personagens pelas diversas histórias, ele apresenta-nos, ao fim e ao cabo, um desenho de uma novela da vida. Por outras palavras, o autor, num jogo de simplicidade, cria uma obra de grande profundidade e reflexão sobre as incidências da vida.
Do ponto de vista estilístico, a simplicidade da abordagem das questões numa linguagem que poderia ser à volta da mesa do café, leva-nos a dois extremos da escrita. Por um lado, as cartas de leitores compiladas por José Capela na obra Moçambique Pelo Seu Povo, e alguns dos contos de Luís Bernardo Honwana, em Nós Matamos o Cão Tinhoso. Mas não é só isso. Há também um espreitar do estilo de crónicas de Juma Aiuba.  Além disso, do ponto de vista teatral, de dramatização, o texto leva-nos a cenários contíguos tão popularizados do teatro Gungu, de Gilberto Mendes, que tanto deliciou o público urbano de Maputo.
A temática da obra leva-nos a certos dramas da vida, mas que o autor descreve-os de uma forma dramaticamente naturalizada, pois a chave desta naturalização encontrámo-la nos dois últimos parágrafos da obra.
Amália, mulher desapontada no casamento e desapontada perante a burocracia das autoridades e da igreja, e desapontada pela impossibilidade de ser feliz com seu amado, dá um conselho sobre o segredo para ser feliz.
“__Passa por aceitar os percalços da vida como normais, a vida é uma viagem longa, durante o percurso podemos ter quem se senta ao nosso lado, podemos ter longas paragens ou várias, mas a única forma de chegar ao destino é continuar a viagem. “
Esta afirmação, do tipo pensamento do dia, transporta consigo uma filosofia de grande estoicismo de como jovens urbanos tentam lutar pela vida, e o último capítulo mostra a crueldade naturalizada no comportamento de uma mulher que não foi feliz, mas procura ser feliz dentro de um ambiente tétrico, um necrotério.
Parabéns, Jessemusse Cacinda, pela surpresa com que nos brinda nesta obra.
Maputo, 04 de Setembro de 2023

Uma vez li Saramago e, fiquei apaixonado pela subtilidade, realeza e profundidade da sua escrita.

Num dos seus escritos, escreveu: “Não se pode enxergar a ilha se não saímos da ilha. Não nos vemos se não saímos de nós”.

De forma analógica olhei para o nosso país, o belo e vasto Moçambique e baptizei-lhe de Ilha. Decerto, não me refiro a primeira capital do país (a majestosa e imponente Ilha de Moçambique), mas ao lugar que está entre os quatro pontos cardinais sobejamente conhecidos – O Rovuma, a Maputo, o Zumbo e o Índico.

Tenho estado a observar com certa minucia algumas tendências e alguns dos pronunciamentos e análises de alguns dos nossos antigos estadistas, governantes, gestores e servidores públicos sobre o estágio actual da nossa governação – sobre a ideia de governação no nosso país. Devo confessar que algumas das análises são de uma visão globalizante e de um alcance espantoso – primeiro pela coerência apresentada, e segundo pelo escalonamento lógico e alinhamento de ideias. Faz-se jus a máxima de Saramago, segundo a qual “não nos vemos se não saímos de nós”.

Muitos dos que hoje fazem estas belíssimas e apaixonantes análises sobre o nosso status como país, e como deveríamos caminhar enquanto nação que ambiciona abraçar o trilho desenvolvimentista, sair da linha pobreza e que quer afirmar-se como actor relevante na região e no mundo, foram titulares de pastas e cargos de tamanha relevância em algum período do seu percurso profissional.

Durante sua passagem pelos meandros formais do poder, ao abono da verdade devo aqui reconhecer, que muita coisa boa foi feita e muita coisa ficou por se fazer. Quer fosse pelo contexto inóspito e adverso, quer fosse pela falta de preparo adequado e experiência, que mais tarde abriram portas para interferência e ingerência externa. A institucionalização da prática da corrupção activa – um mal que grassa e empobrece o nosso país a cada ciclo governativo também pode ser apontado como uma fragilidade na governação dentro da ilha.

Da conquista da independência, passando pelo período da restruturação económica e, chegando aos dias de hoje, o país passou por vários ciclos de governação; Momentos estes caracterizados por vários processos complexos e desafiantes que obrigaram a uma engenharia governativa que envolveu riscos, muita critica e poucos aplausos. Foram na verdade processos típicos de um país em construção e em busca de uma orientação governativa que pudesse responder aos anseios do povo.

O país experimentou também as investidas das potencias coloniais mascaradas de ajuda externa e de pacotes de incentivo para a recuperação e as imposições vários actores da arena internacional.

Por aqui, encontramos talvez um possível tubo de escape para justificar algumas das decisões tomadas e erros que se cometeram nas últimas décadas de governação. Muitas dessas decisões parecem ter grande influência no actual estágio e andamento da máquina estatal hoje e condicionam as reformas que tanto almejamos.

O processo de substituição da máquina colonial pela máquina nacional, foi desafiante e acarretou seus custos. Entre erros e acertos, muita coisa ficou como lição aprendida, ou pelo menos deveria ter ficado para que não se repetissem certas coisas.

Estas mudanças transformacionais e estruturais não foram apanágio apenas de Moçambique. Outros países que alcançaram as suas independências na primavera dos anos 1960 um pouco por todo continente, e conquistaram o pretenso direito à autodeterminação estiveram expostos a eventos idênticos.

Entre o que foi feito, o que deveria ser feito e o que ficou por fazer, ficamos quase sempre pelas entrelinhas daquilo que poderia ter sido melhor. Ficamos também pelo argumento de falta mais tempo para concluir o que se iniciou. Isto porque as vezes perdemos de vista o tempo do mandato que nos foi dado e, com isto protelamos, esquecendo que há um horizonte temporal para nossas realizações.

O que se fala hoje é paradoxalmente oposto ao que se fez ontem – Até aqui, não parece haver alarme pois, os erros fazem parte de todo e qualquer percurso e, em matéria de governação é preciso sempre decidir – umas vezes acertamos e outras vezes erramos – importante mesmo é aprender com o passado e exercitar a saída da ilha para apreciá-la melhor.

A ideia de governação pressupõe antes de tudo a assunção de um compromisso tácito e responsabilidade. Enquanto que a prática governativa pressupõe antes de tudo liberdade, conhecimento, informação, recursos e capacidade decisão.

E entre a ideia e a prática encontro um ponto de interferência que muitas vezes desemboca em um erro que nos penaliza grandemente: a ausência de um plano globalizante que transcende a dimensão pessoal de governação. Parece não haver uma continuidade dos planos traçados e, a cada ciclo governativo temos uma nova ideia do país que queremos (des) construir.

Resgatando a velha máxima do Presidente Samora Machel, “O dever de cada um de nós é dar tudo ao povo, sermos os últimos quando se trata de benefícios, primeiros quando se trata de sacrifícios, Isso é que é servir o povo”. É preciso perceber que não somos eternos e os cargos também não o são – as pessoas vão e as instituições ficam. É preciso amar o país antes de tudo e, criar as bases para que as gerações vindouras possam ter melhores condições de nutrição, saúde, educação e mais esperança de vida.

Hoje, alguns dos antigos dirigentes, depois de abandonarem o tacho real (a Ilha da Governação) permitiram-se observá-la de fora e entender a sua dimensão, seus problemas e até prescrever soluções; Soluções estas que aquando da estadia na ilha não estavam visíveis. Em governação, às vezes, ou talvez sempre é importante ser povo e sentir o que o povo sente.

Quando dentro da ilha poucos viram sem sombras o que se passava nela. Uma vez fora da ilha quase todos recuperaram a visão, a lucidez, e veem os problemas e os defeitos de quem governa a ilha – as coisas tornam-se mais obvias e visíveis.
Será a ilha um monstro difícil de entender? Ou nós, enquanto dirigentes da ilha não dedicamos atenção para entendê-la e garantir que a nossa saída dela não deve alterar o seu funcionamento?

A reflexão que convido para se fazer é sobre a temporalidade e actualidade do nosso ser ilhéu. É também sobre a ausência de um plano continuo para que se possa governar e gerir a coisa pública de forma mais assertiva e menos danosa. É sobre saber pensar um Moçambique próspero, progressista e desenvolvido para os próximos 50 anos como fizeram países como a China, Ruanda, Malásia, Singapura, Emirados Árabes Unidos, Noruega e outros mais.

Não nos vemos se não saímos de nós!!!

O remetente chegou ao principal terminal de “Chapas” nas proximidades do mercado de Morrumbala. Eram por volta das 15h00, o alvoroço típico do lugar era intenso como todos os dias de semana, excepto ao domingo.

Procurou o cobrador do primeiro machimbombo que partiria de madrugada para a cidade de Quelimane, mostrou a mala que precisava enviar e este depois de um golpe de vista deduziu o preço que o expedidor devia pagar, este resmungou e entraram em negociações até finalmente acertarem.
A mala tinha 54 cm de cumprimento e 37 cm de largura, pesava 25 kg, era de madeira devidamente esculpida por um exímio artesão e estava devidamente polida, tinha um pequeno fecho no meio, da altura central, era de cor preta e estava amarrada no seu cumprimento e largura com uma corda de sisal.

Quando o cobrador segurou a mala para arrumar sentiu uma vibração emanada por esta, então firmou maior destreza no seu manuseamento, guardou-a para posteriormente arrumar, solicitou e registou os contactos do remetente e do recebedor e por sua vez o expedidor registou o número da matrícula e o contacto do cobrador.

O lusco-fusco vespertino emprestava uma temperatura agradável, os raios do sol cessante incidiam ali e acolá no pequeno vilarejo.
Os passageiros ou os seus enviados iam chegando e adquirindo bilhete, a bagagem avolumava-se. Uma hora depois, os lugares no pequeno autocarro já haviam esgotado, então o cobrador alertava aos passageiros que o autocarro partiria às 04h30 do dia seguinte. Os passageiros que vinham de lugares distantes iriam pernoitar no autocarro.

O cobrador dedicou-se a arrumar a bagagem no atrelado, os volumes maiores e pesados em baixo, os médios no nível intermédio e os mais pequenos em cima.

Coube a mala preta de madeira ficar por cima de uma pequena trouxa, posteriormente procedeu a cobertura do atrelado com uma lona.
A partida iniciou quando eram 04h45, os lugares estavam quase todos ocupados excepto dois reservados aos passageiros que embarcariam numa das paragens. O pequeno machimbombo evoluía na sua jornada e o som do motor propagava-se ao longo da via despertando ou alertando este e aquele animal. A luz dos pirilampos extinguia-se com o rompimento dos raios solares.

O autocarro sulcava nas ondas da estrada de terra batida, ora mergulhando nos buracos ora se elevando nas lombas, de repente o carro atinge uma lomba e o atrelado fica empinado com as duas rodas no ar.

A corda que prendia a lona soltou-se e alguma bagagem voou pelo ar e aterrou no solo. Gritos de pedido de paragem dos passageiros soaram quase que uníssono.

O veículo imobilizou-se abruptamente, o cobrador desembarcou para recolher a bagagem que havia caído; percebeu que a mala preta não estava no atrelado, procurou em lugares distintos, mas não a encontrou, reparou para uma pequena ravina e viu um pequeno feixe de luz, desceu e encontrou a mala.

Ficou completamente estupefacto com a posição que a mala se encontrava, olhou demoradamente para esta que estava assente numa dos vértices inferiores numa pedra e na parte superior apoiada num pequeno arbusto. Segurou a mala e levou-a para o atrelado, prende-a devidamente e retomam a viagem.

Uma hora depois o chapa alcançou o cruzamento de “zero”, entraram os dois passageiros e ocuparam os lugares vagos, a jornada continuou.
O machimbombo ziguezagueava para fintar os buracos que surgiam agora na estrada meio asfaltada, mas sempre esburacada.

Uma hora depois chegavam a sede do posto administrativo de Nicoadala, desembarcaram uns e embarcaram outros, a viagem continuou.
O pequeno veículo circulava agora velozmente na estrada de asfalto isenta de buracos em direcção a cidade de Quelimane.

Da planície densamente esverdeada via-se o arrozal que se extinguia para lá do horizonte. O som produzido pelos passageiros que conversavam entre si ou então falavam nos seus telemóveis combinado com o ressonar de uns e o ronco do motor do carro criava uma melodia que parecia balançar o coqueiral que se estendia a berma da estrada.

Tempos depois o “chapa” alcançava a principal terminal rodoviária da cidade de Quelimane, passageiros desembarcavam e recolhiam as suas bagagens e partiam para os seus destinos finais.

Quando o azafama finalmente cessou, um homem franzino e calvo aproximou-se do cobrador. – Bom dia, vim buscar a minha encomenda.

– Qual é a sua encomenda? – perguntou o cobrador.

– Uma mala preta. – respondeu prontamente o homem.

O cobrador, lembrou-se da mala pela sua peculiaridade e dispôs-se a buscá-la.

Depois de uma busca de mais de trinta minutos, o cobrador apareceu sem a mala.

– Não estou a encontrar! – disse apreensivo. – voltarei a procurar com mais calma, peço para voltar no final do dia. – propôs o cobrador.

O recebedor perambulou pelas artérias da cidade que há muito não visitava num compasso que fazia para resgatar a sua encomenda.

Quando o cobrador reviu o buscador, um baque sacudiu-lhe o peito deixando-o desconfortado.

– Não encontrei a sua mala, desculpa-me! – balbuciou entristecido.

– Não te preocupes. – afirmou serenamente o homem.

O produto surripiado descansava em cima de um comodo e o seu autor recuperava-se do cansaço da viagem na cama mirando gulosamente o troféu da sua acção.

Tinha a mente capturada pela vontade avassaladora de descobrir o conteúdo da mala, então soergueu-se da cama, encontrou uma faca e cortou as cordas. Agora precisava livrar-se do cadeado meio enferrujado que constituía o último empecilho antes de alcançar o que almejava, buscou um alicate e iniciou a operação de o quebrar, depois de mais de vinte minutos sem sucesso acabou por desistir, o cadeado continuava intacto.

Entretanto, do outro lado, o proprietário da mala, a cada vez que o larapio tentava cortar o cadeado a chave que guardava por trás da porta de seu quarto tilintavam. E então ele sorria, imaginando a tentativa frustrada do gatuno.

Não se sentido derrotado pelos empecilhos de abrir a mala, o jovem larápio infligiu uma machadada no tampo da mala, sem causar nenhum arranhão. Deu-se por vencido, talvez o cansaço causado pela viagem não lhe permitiam executar a operação com melhor discernimento.
Já passavam das 20h00, optou por recolher a cama e descansar, pela manhã veria como abrir a mala.

Não demorou a adormecer, duas horas depois acordava sobressaltado e aos gritos que ninguém ouvia, escutava uma voz indistinta, correu para o interruptor de luz, sem encontrar fugiu para fora, mas a voz prevalecia.

“Leva-me para o meu dono” – soava a voz gutural.

Distanciou-se quanto pode para escapar da voz sobrenatural, mas esta o seguia, tapou os ouvidos, mas a implacável voz continuava a ressoar.

Passou a noite no quintal da casa acompanhado pela voz da mala, a manhã nasceu depois de uma insuportável espera.

Armou-se de coragem e entrou para o quarto, a imponente mala continuava a sua fala.

Socorreu-se de um vizinho para ajudá-lo a compreender a aberração que o deixava inquieto.

– Estás a ouvir o que a mala está a dizer? – inquiriu atabalhoadamente.

– Não escuto nada. – disse, sem perceber a aflição do seu vizinho.” Talvez o rapaz estava a ser vítima de algum estupefaciente que ingerira”.

“Tinha que se livrar da mala” – cogitou.

Catapultado por uma energia desconhecida, aprontou-se, segurou a mala e foi caminhando estrada adentro até dar no terminal de chapas de Nicoadala. Eram já 6h00 da manhã.

Procurou embarcar num chapa que ia a Quelimane, quando segurou a mala para entrar esta não se desprendia do chão, forçou sem lograr o seu intento, procurou disfarçar a sua acção para não o acharem louco. Então decidiu abandonar a mala na paragem e continuar com a sua vida.

Quando se predispunha a caminhar, os seus passos estavam grudados no solo, encetou um outro disfarce para não chamar atenção dos transeuntes, passageiros e mujeiros que circulavam perto de si.

Nunca na sua vida, de afamado larapio, havia-lhe acontecido algo semelhante, o seu feiticeiro havia-o garantido sucesso absoluto nas suas empreitadas. Algo de muito estranho estava a acontecer.

Voltou a segurar a mala; levantou uma perna, a esquerda e esta obedeceu, levantou outra e iniciou a marcha, levava a mala consigo, foi caminhando sem saber para onde ia, completamente hipnotizado pela voz que comandava a mala.

Depois de calcorrear mais de cinco horas deu consigo completamente estafado; parou, socorreu-se da água de um riacho do afluente do rio domela, descansou por breves minutos e reiniciou a marcha.

Quando o sol já começava a pôr-se, alcançou o bairro de Manhaua na periferia da cidade de Quelimane.
Sons metalizados que advinham do portão de latão mesclado com uma voz de timbre débil de pedido de licença faziam-se ouvir, um homem franzino e calvo assomou ao portão, esboçou um sorriso, recebeu a mala e agradeceu o entregador.

Aquele vôo das Linhas Aéreas de Moçambique com destino à cidade de Pemba registava um atraso de quatro horas _ o que era comum.
Os candidatos a passageiros barafustavam, gesticulavam e pediam a decapitação dos pilotos, do chefe-de-escala ou de fosse quem fosse que criava tamanho embaraço. Aos balcões e na sala de embarque o pessoal de terra pedia tranquilidade e compreensão pelo inconveniente e aludia a avarias nos motores, que era contraproducente viajar nas condições mecânicas em que a nave se encontrava.
Estabilizados os ânimos e com a garantia de segurança dos engenheiros foi autorizado o embarque dos passageiros. Alguns daqueles haviam abandonado o projecto de viagem, argumentando diversos pretextos.
_ Não arrisco voar naquela sucata_ uns diziam.
_ Pode dar-se o caso de termos de regressar à proveniência com outra ameaça de avaria. Boa viagem, meus senhores… _ sinal de profunda desconfiança doutros.
Uma assistente de bordo recebia os passageiros conformados à porta de entrada da nave com sorrisos abertos que aliviavam o desconforto da longa espera e das incertezas da jornada iminente. Do alto da escadaria de acesso assiste à subida dos mesmos com um olhar atento e profissional. A experiência de carreira de quase dez anos conferia-lhe atributos que transmitiam tranquilidade aos utentes dos serviços da Companhia.
Aquele passageiro passou por ela e correspondeu à saudação de boas-vindas com uma vénia pronunciada e um sorriso que a cativou. Não era todos os dias que recebia cavalheiros corteses e compreensivos uns, outros revestidos de lustros de “very important persons” cheios de petulância e exigentes de serviços quase em regime de exclusividade. Aquele saudara-a com as mesuras de um passageiro simples, descontraído e até arredio ao contacto com os olhos dela.
Ele ocupou o seu lugar no assento número 13-A, junto à janela. Arrumou o sac-à-dou no compartimento sobre o assento e ajustou o cinto de segurança, conforme recomendação já tradicional em todos os vôos. A seu lado o lugar encontra-se desocupado, o que lhe confere movimentos livres e conforto no espaço que ocupa.
A assistente de bordo que o saudara à entrada entra em atribulações de memória. Tem uma sensação de, remotamente, ter-se cruzado com aquela personagem. Onde e quando? Em alguma celebração de algum matrimónio ou aniversário, de algum baptizado, só poderia ser. Os modos são-lhe familiares. Busca alguma pista na memória; todavia, as recordações evadem-se na penumbra do passado.
No momento de demonstração dos procedimentos de segurança aquela hospedeira fá-lo no corredor, exactamente na fila dos assentos número 13. Desvia olhares esguelhados à figura daquele homem, fá-lo repetidamente, como se algum magnetismo emanasse daquela figura e a distraísse. Findo o ritual, solicita que corrija o aperto do cinto de segurança, dobra-se sobre ele e, ela própria, ajuda-o a fazê-lo. Dele aspira a fragrância de um perfume familiar, uma água de colónia francesa de marca Poison que acentuou as suas angústias. Seria uma nova paixão ou algum arrebatamento do espírito que vinha reacender os sobressaltos da viuvez? Porque ela o era, completava sete anos, depois do acidente de viação em que o esposo pereceu, naquela viagem fatal de regresso de uma missão de serviço na Estrada Nacional Número 1. Ele era um cavalheiro jovial, ambicioso em fazer uma carreira de jornalismo com brilho e marca, atento às trepidações de uma sociedade em transformação, acérrimo crítico dos desvios dos políticos e às estratificações da sociedade onde a marginalização dos pobres era óbvia e obscena. Aquele homem tinha algo de comum com o defunto esposo. Tamanha semelhança física e nos procedimentos seria demasiada coincidência. Mas ele morreu, e os defuntos não ressuscitam.
Ela regressou ao sector privado das hospedeiras, esbaforida, cheia de palpitações. Bagos de suor suspendiam-se na testa, outras escorriam pelo pescoço abaixo e balbuciou:
_ É ele…é ele…_ as palavras encalham na garganta. Toma assento e, com uma salva de gorgolejos, prossegue_ É ele…é ele!…só pode ser ele!…
_ Suzi, de que estás falar? De quem estás a falar?_ espanto das colegas assistentes de bordo pela súbita transformação que testemunham. Tratar-se-ia de alguma alucinação que se operava na mente da colega Suzi? Esta agita-se com desconforto, um tremor sacode-lhe o corpo e continua a prelecção. Os olhos rolam nas órbitas, como se enxergassem algo sobrenatural.
_ Tragam água com açúcar, urgente! _ comandou a chefe da equipa. Aquela era uma solução de efeitos assegurados para o alívio de emoções fortes. A Suzi tomou o xarope com sofreguidão. Os lábios tremiam no auge dos murmúrios.
_ De quem está a falar, Suzi? _ barragem de perguntas que vinham das bocas das colegas.
_ É o passageiro do assento número 13-A _ a Suzi conseguiu articular.
_ O que tem ele de especial?_ pergunta que se calava na boca da assistente-chefe Mila, veterana na Companhia e conhecedora de personalidades atormentas. Também já o fora e era-o a seu modo.
_ É ele sim, o meu marido! _ disse a Suzi, a soletrar as palavras.
_ Suzi, o teu marido faleceu há muitos anos. Os mortos não ressuscitam _ consternação da senhora Mila. Envolve a Suzi com um abraço e sopra-lhe ao ouvido palavras de conforto e conformação a um passado que já ia longínquo. Crê que a colega Suzi sofre de algum episódio de uma súbita histeria ou de alguma alucinação visual._ Deixa-me confirmar o seu nome.
A senhora Mila deslocou-se ao assento número 13-A. Com um sorriso protocolar e rosto iluminado solicitou ao passageiro o cartão de embarque. Sem hesitações aquele retirou o mesmo da carteira e entregou-o à hospedeira-chefe. Esta leu-o mentalmente e devolveu-o ao passageiro.
_ Suzi, aquele passageiro chama-se S. Ruben e embarcou no Maputo. O seu destino é o Aeroporto da Beira. Podes crer que não é o teu marido. Há muita gente parecida uma à outra e isso, muitas vezes, causa transtornos e muita confusão. Podes estar tranquila. Descansa porque a tua indisposição não tem razão de ser.
A viagem continuou sem sobressaltos. Todavia, a Suzi conjecturava possibilidades de o defunto esposo ter tido um irmão gémeo ou algum parente consanguíneo com o mesmo, que o defundo não tivesse conhecido ou revelado a sua existência.
A aterragem no Aeroporto da Beira foi algo acidentada. Os motores rugiam com muito estrondo, des-sincronisados e fumarentos. Alguns passageiros arrependiam-se pela aventura de viajar naquela aeronave. Outros transpiravam profusamente, fluxos de adrenalina fluiam nos corpos pela incerteza de segurança no acto de aterragem que, finalmente se consumou sem incidentes de maior.
Tal como os demais, aquele passageiro do assento número 13-A, aprontou-se para o desembarque. Passou pela hospedeira Suzi e sorriu para ela. Agradeceu a hospitalidade e ofereceu-lhe um sorriso aberto que, em definitivo a derrubou.
_ Oh, esse diastema, meu Deus! É ele!…É ele!…Só pode ser ele!_ novo abalo no fingido sossego da mente da Suzi. Aquele diastema na linha dos dentes superiores era uma marca hereditária na família do defunto esposo. E ele transmitira o sinal à filha Nelly.
Durante o troço do vôo entre as cidades da Beira e de Pemba a Suzi conferiu a lista de nomes dos passageiros embarcados no Aeroporto de Maputo. Seguiu com os dedos trêmulos, linha a linha, os nomes registados. A ansiedade comandava o acto. Chegou ao fim da mesma e não identificou o nome de um passageiro com o nome de S. Ruben.

*
* *
Na manhã seguinte àqueles assombros durante o vôo a Suzi dirigiu-se ao cemitério de Lhanguene para apurar dos eventos relacionados com a identidade daquele passageiro e da eventualidade de o esposo encontrar-se vivo.
Identificou a campa onde o esposo fora sepultado. Não se equivocou, embora nas últimas temporadas não fosse tão assídua nas visitas à mesma, por circunstância várias. Era a campa número 3771 T.
A princípio ficou atarantada com a localização do sepulcro. Rondou o lugar com espanto. A placa de identificação encontrava-se meio derrubada, espetada sobre um montículo de terra fresca. Deduz que alguém violara o lugar, a pedra do epitáfio jaz derrubada na cabeceira. Dir-se-ia que houvera uma violação, o estado do lugar assim o sugeria.
A Suzi sobressalta-se. Apressadamente dirige-se aos escritórios do cemitério para indagar e colher esclarecimentos sobre o que presenciara.
_ A campa do meu marido foi violada!_ disse ao oficial em serviço, o senhor Marcos Matimele, com as palavras atabalhoadas e emoção na voz.
_ Qual é o número da campa?
_ 3771 T _ ela soletrou.
O senhor Matimele ergueu-se do assento e dirigiu-se aos arquivos para verificar a situação oficial daquele lugar de enterro. Volveu-se para a queixosa e disse:
_ A campa não foi violada. Exumámos o corpo do seu ocupante, de nome Silvano Dias Tembe para acomodarmos a urna da esposa. Como é protocolar, e esse foi o pedido dos familiares, o corpo da esposa deve ser enterrado na mesma sepultura que o seu marido _ disse o oficial a mudar a posição do palito com que escarafunchava os dentes.
Ela experimenta uma sensação de lividez na pele do rosto, o coração batuca estrondos no peito, uma vertigem rodopia e inverte o sentido de rotação do seu equilíbrio.
_ Quer dizer que a esposa do defunto morreu? Como ela se chamava?_ gaguejo no quesito.
_ O nome da defunta é Suzana de Castro Tembe. Não sei se a senhora soube, mas ela foi uma das vítimas daquele acidente de aviação que aconteceu a semana passada no Aeroporto de Pemba. Infelizmente, no mesmo não houve sobreviventes e a senhora Suzana de Castro Tembe foi uma das vítimas. Agora temos lá um pedreiro a reconstruir a campa com as urnas do casal. A senhora como se chama?
_ O meu nome é Suzana de Castro Tembe_ gorgolejo na surdina do pronunciamento do nome.
O oficial Matimele reergue-se da cadeira giratória e dirige-se para a saída do escritório. Aí reencontra-se com o vício de fumar. Em quinze minutos consumira dois cigarros para readquirir alento e admitir aquela realidade óbvia e inacreditável que se lhe revelava à vista: a de uma alma que ainda peregrina no universo dos vivos, inconformada com a condição de defunta. Regressa ao escritório. Lá não encontrou a senhora Suzana de Castro Tembe. E conjecturou:
_ Quem sabe?!… Porventura, ela regressou ao recolhimento da sua nova morada: a campa número 3771 T!

*

In “O Livro dos Mortos”, inédito.

 

‘Vasudhaiva Kutumbakam’ – estas duas palavras captam uma filosofia profunda. Significa “o mundo é uma família”. Trata-se de uma perspetiva abrangente que nos encoraja a progredir como uma família universal, transcendendo fronteiras, línguas e ideologias. Durante a presidência indiana do G20, esta perspetiva traduziu-se num apelo ao progresso centrado no ser humano. Como Uma Terra, estamos a unir-nos para cuidar do nosso planeta. Como Uma Família, apoiamo-nos mutuamente na busca do crescimento. E avançamos juntos em direção a um futuro partilhado – Um Futuro – que é uma verdade inegável nestes tempos interligados.

A ordem mundial pós-pandémica é muito diferente do mundo anterior. Há três mudanças importantes, entre outras.

Em primeiro lugar, existe uma consciência crescente de que é necessário passar de uma visão do mundo centrada no PIB para uma visão centrada no ser humano.

Em segundo lugar, o mundo está a reconhecer a importância da resiliência e da fiabilidade nas cadeias de abastecimento globais.

Em terceiro lugar, existe um apelo coletivo no sentido de reforçar o multilateralismo através da reforma das instituições mundiais.

A nossa Presidência do G20 desempenhou o papel de catalisador nestas mudanças.

Em Dezembro de 2022, quando assumimos a Presidência da Indonésia, eu havia escrito que o G20 deveria catalisar uma mudança de mentalidade. Tal era especialmente necessário no contexto da integração das aspirações marginalizadas dos países em desenvolvimento, do Sul Global e de África.

A Cimeira Voz do Sul Global, que contou com a participação de 125 países, foi uma das iniciativas mais importantes da nossa Presidência. Tratou-se de um exercício importante para recolher contributos e ideias do Sul Global. Além disso, a nossa Presidência não só registou a maior participação de sempre de países africanos, como também promoveu a inclusão da União Africana como membro permanente do G20.

Um mundo interligado significa que os nossos desafios em todos os domínios estão interligados. Estamos a meio do ano da Agenda 2030 e muitos notam com grande preocupação que os progressos em matéria de SDGs estão fora do caminho. O Plano de Ação do G20 2023 para Acelerar o Progresso dos SDGs irá liderar a futura direção do G20 para a implementação dos SDGs.

Na Índia, viver em harmonia com a natureza tem sido uma norma desde os tempos antigos e temos contribuído com a nossa parte para a ação climática mesmo nos tempos modernos.

Muitos países do Sul Global encontram-se em várias fases de desenvolvimento e a acção climática deve ser complementar. As ambições em matéria de acção climática devem ser acompanhadas de acções de financiamento do clima e de transferência de tecnologia.

Acreditamos que é necessário passar de uma atitude puramente restritiva do que não deve ser feito para uma atitude mais construtiva, centrada no que pode ser feito para combater as alterações climáticas.

Os princípios fundamentais de Chennai para uma economia azul sustentável e resiliente centram-se na manutenção da saúde dos nossos oceanos.

Da nossa presidência emergirá um ecossistema global para o hidrogénio limpo e verde, juntamente com um Centro de Inovação para o Hidrogénio Verde.

Em 2015, lançámos a Aliança Solar Internacional. Agora, através da Aliança Global para os Biocombustíveis, apoiaremos o mundo a permitir transições energéticas em sintonia com os benefícios de uma economia circular.

Democratizar a acção climática é a melhor forma de dar ímpeto ao movimento. Tal como os indivíduos tomam decisões diárias com base na sua saúde a longo prazo, podem tomar decisões sobre o seu estilo de vida com base no impacto na saúde do planeta a longo prazo. Tal como o ioga se tornou um movimento global de massas para o bem-estar, também nós demos um empurrãozinho ao mundo com os Estilos de Vida para um Ambiente Sustentável (LiFE).

Devido ao impacto das alterações climáticas, será crucial garantir a segurança alimentar e nutricional. A mexoeira, ou Shree Anna, pode contribuir para este objectivo, ao mesmo tempo que promove uma agricultura inteligente em termos climáticos. No Ano Internacional do Mexoeira, levámos o mexoeira aos paladares mundiais. Os Princípios de Alto Nível de Décano sobre Segurança Alimentar e Nutrição também são úteis nesta direção.

A tecnologia é transformadora, mas também precisa de se tornar inclusiva. No passado, os benefícios dos avanços tecnológicos não beneficiaram igualmente todos os sectores da sociedade. A Índia, nos últimos anos, demonstrou como a tecnologia pode ser utilizada para reduzir as desigualdades, em vez de as aumentar.

Por exemplo, os milhares de milhões de pessoas em todo o mundo que permanecem sem conta bancária ou que não possuem identidades digitais podem ser incluídas financeiramente através de infra-estruturas públicas digitais (DPI). As soluções que criámos utilizando a nossa DPI são agora reconhecidas a nível mundial. Agora, através do G20, vamos ajudar os países em desenvolvimento a adaptar, construir e escalar a DPI para desbloquear o poder do crescimento inclusivo.

O facto de a Índia ser a grande economia com o crescimento mais rápido não é por acaso. As nossas soluções simples, escaláveis e sustentáveis permitiram que os vulneráveis e os marginalizados liderassem a nossa história de desenvolvimento. Do espaço ao desporto, da economia ao empreendedorismo, as mulheres indianas assumiram a liderança em vários sectores. Mudaram a narrativa do desenvolvimento das mulheres para o desenvolvimento liderado por mulheres. A nossa Presidência do G20 está a trabalhar no sentido de colmatar o fosso digital entre os sexos, reduzir as lacunas na participação da força de trabalho e permitir que as mulheres desempenhem um papel mais importante na liderança e na tomada de decisões.

Para a Índia, a Presidência do G20 não é apenas um esforço diplomático de alto nível. Como Mãe da Democracia e modelo de diversidade, abrimos as portas desta experiência ao mundo.

Actualmente, realizar coisas em grande escala é uma qualidade que está associada à Índia. A Presidência do G20 não é exceção. Tornou-se um movimento orientado para as pessoas. Mais de 200 reuniões terão sido organizadas em 60 cidades indianas em toda a extensão da nossa nação, recebendo quase 100.000 delegados de 125 países até ao final do nosso mandato. Nunca nenhuma Presidência abrangeu uma extensão geográfica tão vasta e diversificada.

Uma coisa é ouvir falar da demografia, da democracia, da diversidade e do desenvolvimento da Índia por outra pessoa. É totalmente diferente vivenciá-los em primeira mão. Tenho a certeza de que os nossos delegados do G20 o confirmariam.

A nossa Presidência do G20 esforça-se por colmatar divisões, desmantelar barreiras e lançar sementes de colaboração que alimentem um mundo onde a unidade prevaleça sobre a discórdia, onde o destino partilhado eclipsa o isolamento. Enquanto Presidente do G20, comprometemo-nos a alargar a mesa global, garantindo que todas as vozes são ouvidas e que todos os países contribuem. Tenho a certeza de que cumprimos o nosso compromisso com acções e resultados.

 

Narendra Modi, Primeiro-Ministro da Índia

Por qualquer motivo, que não me ocorre agora, envolvi-me numa disputa com a minha irmã Raquel. Foi um finca-pé daqueles. Amuados, cada um partiu para fazer-se mudo num canto da casa. Três dias passaram e não trocávamos palavra. Minha mãe, dona Clementina, sempre de olhar vigilante ao comportamento dos filhos, não tardou intervir de um modo que me transmitiu uma lição que carrego até hoje.

Quando  publiquei o romance Saga d’Ouro, um crustáceo literário daqueles que crescem puxando os outros para o fundo, entrincheirou-se e incorporou coro à sua voz para retirar o meu livro da lista das obras candidatas ao Prémio de literatura BCI/AEMO. Nessa altura, o caranguejo camuflou a bílis que o caracteriza, na alegação de ser eu colaborador da AEMO (mas dois anos antes, um Secretário-geral da AEMO havia ganho o mesmo galardão e ninguém levantou tais alegações de probidade). Como os meus livros não se valem pelos prémios literários, solicitei ao júri a retirada da minha obra do rol das candidatas. Todavia, isso não é o que importa agora, tirando o facto de tal episódio ter ocasionado um debate entre José dos Remédios e mim.  Por quase duas semanas andamos às turras no jornal O País, cada um a esgrimir argumentos e causticidades. Algo curioso nisso é que dos Remédios trabalhava ou trabalha no jornal que acolhia o debate. Aliás, foi a partir desse caloroso debate que a minha admiração por ele ganhou motivos para apreciá-lo muito mais do que antes. Ainda no decurso do debate trocávamos chamadas telefónicas. Assim que terminava um texto, em resposta a qualquer que ele tivesse publicado, eu lho ligava:
– Companheiro, enviei-lhe um texto por Email!
– Já vi. Vou publicar. – respondia dos Remédios antes de advertir-me – Mas, vou responder!

De facto, em um dos dias seguintes dos Remédios ripostava com toda a carga verbal que pode. Assim seguimos com o debate até ao ponto em que o mesmo morreu de morte natural, sem mágoas nem rancores. Lembro-me de uma vez encontrarmo-nos num evento literário e aí entabularmos uma conversa. Um indivíduo cujo nome não merece registo, vendo os risos que trocávamos, curioso, acercou-se para certificar-se do que via: “Pensei que vocês dois já não se falassem!” Olhei para ele e não encontrei palavra para respondê-lo, senão hoje: Sim ainda falo com o dos Remédios!

Não será também por acaso que hoje trago essas duas memórias. As últimas eleições da AEMO abriram chagas para algumas almas despreparadas para o jogo democrático. Nelas, como houvesse duas listas concorrentes, naturalmente, cada membro tomou partido. No final da eleição ganhou a lista que melhor estratégia traçou. Nisso, tais almas escolheram como reacção a minha pessoa para culpar pelo desaire eleitoral obtido e deixaram de falar comigo, sob inconfessáveis pretextos. Até aí, nada me aflige, água encima de pato.

Espero que o leitor desta ainda não se tenha esquecido da estória que contei sobre a intervenção da minha mãe na disputa que tive na infância com a minha irmã Raquel. Depois de três dias sem nos falarmos, a dona clementina interveio:
– Manuel, por que não falas com a tua irmã?
Não respondi e dona Clementina torceu o pescoço, de modo a virar-se, assim, para a minha irmã, e colocar a mesma questão:
– Manuel me provocou! – respondeu ela.
– E nós outros, o que temos a ver com isso? – retorquiu a minha mãe – Vocês dois estão a criar um mau ambiente aqui em casa.

Estou certo de que cada um vem da sua casa, sua cidade ou província, cada um com a sua própria matriz. Nesse dia a minha saudosa mãe seguiu explicando que vivia-se um grande constrangimento  no seio dos restantes membros da família. Pois, sentados a mesa, por exemplo, não sabiam para que lado pender entre os dois bringuentos e eram forçados a evitar conversar à vontade ou rir-se caso fossem interpelados por mim ou pela minha irmã. Pois, não queriam ser confundidos com quem tomava partido na contenda alheia. Minha mãe asseverou ainda que não tínhamos esse direito constranger. Hoje cresci e não me outorgo em memória desse ensinamento materno. Tentei há dias praticar a licção com dois indivíduos que escolheram viver sem me dirigir palavra. Parece que confundiram as estações. Pessoalmente, esse blackout em si não incomoda. Sou muito superior a isso. Mas, também penso no colectivo e entendo que não devo fazer parte desse circo constrangedor aos demais. É feio. Desrespeitoso para quem está a mesa e é obrigado a viver esse clima de tensão. Nos territórios sociais que frequentamos no dia-a-dia, cada um partilha com os demais a educação que tem. Não é por fraqueza que escolho manter diálogo. Falo abertamente porque não sou fofoqueiro e nunca procuro assassinar o carácter dos outros. Se interpelei alguem para sairmos desse blackout foi pelos demais que devo respeito. Não é fraqueza. É por educação que não deve ser confundida com arrependimento que leve a um pedido de desculpas. Não pedi desculas a ninguém, e quem assim espalha tende apenas a entumescer o seu proóprio ego.

Em 2013, Paulo Alexandre editou, pela Porto Editora, Photar Moçambique. Esse é o título de um belíssimo livro de fotografias, no qual o autor expõe parte do que a sua câmara fotográfica captou ao longo de todas as províncias moçambicanas.

Como se tivesse apreciado o incrível trabalho de Paulo Alexandre, quase a rasar a perfeição, o grupo TP50 também se propôs explorar a paisagem humana, geográfica, artística e cultural do país. No caso, através do concerto Olhar Moçambique, realizado esta sexta-feira, no Centro Cultural Franco-Moçambicano, na Cidade de Maputo.

Numa noite fresca, com os termómetros a registarem 27º C, 54 artistas juntaram-se para contar as diferentes histórias que caracterizam o território nacional. Com efeito, ao contrário de Photar Moçambique, de Paulo Alexandre, cujas paisagens moçambicanas são percorridas do Sul ao Norte, em Olhar Moçambique, de TP50, o movimento é inverso. Todavia, com a mesma particularidade de revelar a riqueza que poucas vezes se expressa em palavras. Só pela originalidade do projecto, de facto, as duas horas de concerto valeram a pena, pois, através da arte, o público foi apreciando o que o país possui no seu melhor e na sua diversidade. Esse foi, seguramente, um dos principais propósitos de Olhar Moçambique, aparentemente um work in progress didáctico, entre a fruição e o patriotismo, no sentido mais positivo do termo.

A história do espectáculo começa com uma turista italiana (Joana Mbalango) a photar Moçambique. Para a personagem, há à sua frente uma espécie de admirável mundo novo. Por isso mesmo, a cada passo que dá, acredita ter de registar na sua câmara fotográfica o que considera necessário. Até que vai parar a um palco onde um concerto está a instantes de iniciar. A estrangeira logo percebe que tem de parar de fotografar porque um homem (Samuel Nhamatate) a informa sobre o lugar onde se encontra. No princípio, a propósito, ela nem sequer sabe em que país está, concretamente, pois, na sua visão Ocidental, em África tudo é a mesma coisa. Entre erros e acertos, entretanto, a personagem, nesse engraçado registo teatral, precipita-se a perguntar, quando fica a saber que se encontra na Pérola do Índico: Moçambique não é aquele país de África, sempre em guerra, de miséria e onde as pessoas são tristes?

Ferido pela postura preconceituosa da turista, o homem moçambicano convida a italiana a percorrer o país do Rovuma ao Maputo, não só para provar que a media Ocidental é deveras redutora, quando se refere a Moçambique, mas também para revelar que Moçambique é, com certeza, maningue nice!

Sem nada a perder, a estrangeira aceita a proposta e, assim, começa uma intensa viagem de chapa (bem ao estilo do que se passa no romance Museu da Revolução, de João Paulo Borges Coelho), ora apreciando, ora surpreendendo-se com o que Moçambique é muito além dos estereótipos.

Na globalidade do espectáculo, a parte teatral é de longe a melhor de Olhar Moçambique. Se preferirmos, Joana Mbalango e Samuel Nhamatate suportam e conduzem a narrativa do espectáculo com uma autenticidade inigualável. Nos seus diálogos, as personagens dos actores retratam assuntos sérios do país real. Por exemplo, os temas turismo, caça furtiva ou a gestão e promoção do património histórico e cultural são discutidos com critério.

Na verdade, as duas personagens da história são complementares, pois uma representa a visão nacional e outra estrageira sobre o mesmo território nacional. Portanto, nessa viagem que percorre o Norte, o Centro e o Sul, Joana Mbalango e Samuel Nhamatate foram capazes de manter o espectáculo de TP50 mais sugestivo  do que poderia ter sido sem eles. Joana e Samuel foram os motores do espectáculo e, já agora, Anabela Adrianopoulos foi a materialização da sedução no que deve continuar a significar ler um texto com dicção e encanto.

Em Olhar Moçambique, Joana e Samuel não fingiram, encarnaram as personagens da peça como se não soubessem fazer mais nada com tanta assertividade. Do público, consequentemente, o retorno foi sempre positivo, com sorrisos e reacções oportunas. Quer dizer, os dois actores esmeraram-se tanto que, em várias ocasiões, teria sido melhor não haver música. Melhor dizendo, se, por um lado, a parte teatral convenceu, por outro, com a música nem sempre foi assim. Em três ou quatro ocasiões, as escolhas vocais não foram acertadas. Por mais belas que sejam as vozes de Nádia Cosme, Mário Mate ou Letícia Deozina, não pareceu estarem à altura do que cantaram, o que, obviamente, não quer dizer que cantam mal.

Paralelamente a esse registo menos positivo sobre o concerto, a escolha de músicas de algumas províncias também não convenceu muito, e isso notou-se, por exemplo, nos casos de Niassa, Nampula, Zambézia e Manica. No sentido inverso, quando se tocou “Urombo”, de David Mazembe, e “Xiripo”, de Madala, definitivamente, venceu-se a monotonia musical que até aí se destacava na Sala Grande. Consequentemente, pela primeira vez, ao fim de quase uma hora de espectáculo, viu-se o público a improvisar passos de dança como se dissessem: Sim, isto é nosso. Aliás, nesse momento, até a turista estrangeira saiu do chapa para dançar.

Resumindo, a selecção musical e a escolha dos intérpretes poderia ter sido mais adequada, de modo que não se sentisse um desequilíbrio entre as notáveis actuações de Déscio Vembane, Xixel Langa (que até nem esteve no seu melhor) e o monstruoso Cheny Wa Gune em relação aos que estiveram menos bem. A cantar e a tocar timbila, Cheny foi naturalmente o mais destacado da noite na categoria de canto.

Ainda sobre os aspectos menos positivos da noite, quando a história começa em Cabo Delgado, atravessa de seguida Niassa e chega a Nampula, ao invés de continuar pela Zambézia, a narração, digamos assim, salta para Tete. Sendo uma viagem de chapa, isso faz confusão porque entre Nampula e Tete não há ligação por terra. Ou seja, parece razoável que a turista italiana e o homem moçambicano deveriam ter saído de Nampula para Zambézia, e, seguidamente, para Tete, Manica, Sofala, Inhambane, Gaza e Maputo. Ou na ficção vale tudo?

Em todo o caso, Olhar Moçambique é uma proposta sugestiva e que nos lembra que há um país incrível por descobrir e por promover. Ao nível técnico, há ainda a realçar os bons efeitos de luz, a afinação do som, a encenação, a coreografia da Associação Cultural Hodi, principalmente em relação ao Xigubo, a agilidade dos contrarregras na colocação ou retirada de objectos no palco ou então o xithokozelo de Tchaka Waka Bantu.

Concluindo, Olhar Moçambique não é (ainda) dos melhores espectáculos de TP50 (já vimos melhor). Ainda assim, é o que pela sua dimensão simbólica, tal como o grupo pretende, deve urgentemente ser apresentado em outras províncias moçambicanas.

 

 

 

Não quero mais esta dor

Novamente na mão

A medir

O aroma do silêncio.

In Vestígios do silêncio, Amosse Mucavele

 

Caros amigos, inicio esta intervenção, como tem sido habitual neste tipo de ocasiões, em primeiro lugar, agradecendo ao Camões, pela recepção e generosidade, e à Alcance, por mais uma vez investir na divulgação da literatura moçambicana. É sempre bom, para os autores, escreverem sabendo que terão como publicar os seus textos.

Em segundo lugar, quero, sobretudo, felicitar ao Amosse pela coragem de lançar o seu terceiro livro, escrito entre Moçambique e Portugal. Sem dúvidas, este Vestígios do silêncio é a prova de que as residências literárias funcionam e, inclusivamente, são determinantes para a criatividade dos autores.

À parte os agradecimentos, se me permitem, partilho convosco o que, nos bastidores, contribuiu para que cá viesse cumprir esta tarefa de apresentar o livro do Amosse.

Na verdade, recebi o convite para apresentar Vestígios do silêncio há 10 dias desta sessão. Na ocasião, encontrava-me a escrever “O silêncio como estética na obra de Languana”, um ensaio a uma belíssima exposição individual que esteve patente no Núcleo d’Arte.

Mal recebi o convite, o que me ocorreu foi o seguinte: O Amosse deve ter convidado alguém que, por um motivo qualquer, desistiu de apresentar o livro. Então, com certeza, deve estar a fazer-me de bombeiro. Logo eu, que de apagar incêndios não entendo absolutamente nada.

Tendo pensado dessa maneira, o meu primeiro instinto foi o seguinte: Não, não vou apresentar esse livro. 10 dias de antecedência é pouca coisa e eu tenho tantos outros assuntos por resolver.

Sinceramente, essa pareceu-me uma saída fácil e acertada, até porque tinha argumentos a meu favor para recusar a apresentação. Mas achei muito curioso receber o convite para apresentar Vestígios do silêncio numa altura em que analisava a exposição Conversando com o silêncio, de Aldino Languana. Além disso, pode não parecer, mas tive um peso de consciência. O Amosse é meu amigo há tantos anos e pressenti que tinha de me sentir privilegiado por me ter escolhido para apresentar o seu novo título, ainda que na condição desse bombeiro que não sabe nadar ou que tem medo de fogo.

Não prolonguei mais a hesitação. Em menos de dois minutos respondi ao nosso poeta por SMS, dizendo-lhe que aceitava apresentar o livro desde que me entregasse um exemplar no dia seguinte. Foi uma forma dura de pressionar o homem, porque o conheço muito bem. Quantas vezes já combinei coisas com o Amosse e fiquei a ver navios? Várias. Então tinha de o encostar à parede e, conforme a minha previsão, comprometeu-se e garantiu que no dia seguinte eu teria o livro. Coitado de mim! Há nove, oito e sete dias do evento, nenhum sinal do Sr. Amosse Mucavele. Nada de nada. Faltando seis dias, garanti aos meus botões: Não apresento mais nenhum Vestígios do silêncio. Entretanto, parece que os meus botões não conseguem guardar segredos, e puseram-se logo a informar ao Camões sobre a minha decisão. Consequentemente, no dia seguinte, faltando cinco dias para esta cerimónia, vejo o cartaz no Facebook, no qual, inevitavelmente, constava o meu nome.

Tenho de vos dizer que aí fiquei encurralado. A partir do momento em que o nosso nome aparece num cartaz, parece que assinamos algum compromisso com o público em geral. No entanto, o nosso poeta continuava sereno e desaparecido. Reapareceu há quatro dias. Ligou-me com aquele sorry lá de quem diz Fique calmo. Não há aqui problema nenhum. Disse-me assim: Remédios, não te batas. O Nick vai-te passar o livro.

E graças ao meu amigo Nick do Rosário, presente nesta cerimónia, recebi o livro e cá estou eu para partilhar convosco algumas leituras. Amosse, espero que te tenha deixado muito mal na fita.

***

Eu intitulei esta minha intervenção da seguinte maneira: A poesia do espaço, do silêncio e da memória, porque, conforme observa Nuno Júdice, na nota de apresentação, constato que “Este é um livro em que o silêncio se converte em imagens nascidas da memória histórica dos lugares e da sua impressão no olhar do poeta” (p. 5).  

De facto, desde o seu primeiro livro, Geografia do olhar, incluído o segundo, A pedagogia da ausência, o tema da cidade, em Amosse Mucavele, é algo constante e premeditado. Por isso mesmo, num artigo que intitulei “Amosse Mucavele: o poeta urbano”, desenvolvo essa ideia de afirmação poética por via da relação com um lugar de pertença, o lugar das luzes, do betão armado e do efémero.

Maputo é assumidamente o berço do Amosse, todavia, na sua conexão com a cidade de Lisboa. É como se tivéssemos, já a partir de Geografia do olhar, uma espécie de premunição. Quer dizer, há uns anos Amosse estreia-se em livro com a versificação do espaço urbano pertencente às capitais moçambicana e portuguesa e, hoje, volta a lançar um título fruto de uma residência literária em Portugal. Coincidência ou não, Vestígios do silêncio fortalece essa predisposição para aproximar o que os mares ou as fronteiras separam. Aqui, nestes jogos semióticos sobre a imagem e a sugestão, o nosso poeta, que não cumpriu o compromisso de me entregar um exemplar do seu livro a tempo, pelo menos revela-se comprometido com o lado invisível e simbólico das coisas.

Em outras palavras, estou a querer dizer que a reivindicação poética pelo território urbano, em Amosse Mucavele, quer no seu primeiro livro, quer neste, não é algo fechado. Pelo contrário, a atmosfera da cidade resume essa tendência para os sujeitos textuais servirem de elementos de união entre países, paisagens distantes, épocas distintas e memórias históricas que se vão diluindo pela profunda e casmurra amnésia colectiva.

Aliás, quem também observa a orientação estética conexa ao território, nestes Vestígios do silêncio, é Carmen Lucia Tindó Secco. No seu prefácio, a ensaísta brasileira diz o seguinte: “É constante, na poesia de Amosse, uma inquietação em relação ao espaço, aos prédios de Maputo, muitos dos quais envoltos em sombras e esquecimentos, mesmo os arquitectados com arte” (p. 7).

Entre os vários poemas resultantes do olhar comprometido do nosso poeta urbano, destaca-se, neste seu terceiro livro, “Karel Pott”, na página 22. Leio a partir da segunda estrofe à última:

Permanece

O sopro do miserável ícone

Mudo por estes dias

A anunciar o fuzilamento da história

 

Estes

São os habitantes sem secto

Aqueles que com a inércia abrem

As portas da dor irreparável

 

Há no prédio Karel Pott

Murmúrios soterrados

Escritos em letras vazias

Envelhecidas entornam “O Brado Africano”

 

Uma longa ruína

Pedaço de um coração enferrujado

A inundar a avenida

De longe habitamo-la na morte

Como uma espada soterrada

Quando rasga o ódio

 

E no silêncio, indiferente abalroam as lágrimas

Quando a vontade de cantar o presságio

Se inclina na floração do tempo (p. 22)

 

Julgo que, sem muito esforço, facilmente captamos nuances projectas pelo texto de Amosse Mucavele. Afinal, partindo de uma construção, a poesia projecta-nos para o passado, do qual sempre necessitamos de aprender a definir significados como património, História, cultura e, claro está, memória.

“Karel Pott” é uma desculpa para lembrarmos Karel Pott e relermos as páginas d’O Brado Africano. Mas como lembrar e reler o que esta sociedade ignora ou finge não fazer sentido? Se preferirmos colocar a questão nos seguintes termos, de que somos feitos, quando atropelamos elementos históricos e identitários?

Neste Vestígios do silêncio, além de títulos de poemas, “Karel Pott”, “Pancho Guedes”, “Cinema Império” e “Cinema Olímpia” são referências à uma cidade que, conforme se pretende, se deve permitir o direito de se desenvolver com as suas gentes e acções. Há-de ser por isso que em Amosse Mucavele temos o centro e a periferia. E a periferia é tão importante que atrai uma estrela da Hollywood, segundo revela a segunda estrofe da página 25:

Já velho, Clint Eastwood faz compras no Xipamanine

Como um maestro abandonado pela orquestra

Desatento passa no guião por ele escrito

 

Há sempre um mistério por destras de cada comprador

 

Aqui, podemos pensar que o subúrbio maputense é o espaço de confluências interculturais e sociais, onde nacionais e estrangeiros rodam filmes reais da Humanidade. Pena que nesse meu Xipamanine, onde cresci, facilmente se transformam centros de arte e cultura em lojas. Primeiro, foi o Ntsindya. Há uns anos, alguém se lembrou que fazia sentido o sacrilégio de matar a História dos moçambicanos por causa de um “Rei do Chinelo”. Agora, o Cinema Olímpia, sagrado para muitos de nós, é um supermercado. E nem me vou referir ao Matchedje. Nesta onda consumista, qualquer dia abriremos matadouros nos museus, nos teatros e nas galerias de arte.

Talvez por ser uma excepção, numa sociedade que vive o agora com a mesma dedicação com que nunca pensa nas questões essências do passado, generalizo, Amosse Mucavele faz da sua poesia um vector da resistência, porque o que vivemos noutra vida continuará a importar.

Na sua fixação pela cidade, entendo que Amosse Mucavele faz na poesia o que a obra de Aldino Muianga encerra na ficção. Ou seja, quando nos referimos aos autores que melhor configuram o espaço físico e social de Maputo, Aldino Muianga é um nome obrigatório. No caso da poesia, penso que Amosse está a colocar-se na vanguarda nesse sentido. E eu diria mais. Do mesmo jeito que, por exemplo, a Ilha de Moçambique é um lugar místico e/ou fascinante para Sónia Sultuane, em O lugar das ilhas, ou para Luís Carlos Patraquim, em O cão na margem, em Amosse Mucavele a fascinação resume-se à Cidade de Maputo, pois, tal como em Muhipiti, das ruinas da capital moçambicana se vê o mundo.

Concluindo, no artigo “A comparação poética: ensaio de sistemática”, Jean Cohen afirma que “A unidade mística da natureza, da mulher e do tempo é captada pela intuição do poeta”.

Bem, nos três livros de Amosse Mucavele, a natureza, no sentido paisagístico do termo, com flores e odores, não é um registo característico. Quanto à mulher, embora a capa do seu segundo livro tenha uma sugestão erótica, a conduzir-nos para os contornos femininos, definitivamente, também não é o elemento condutor do poema. Amosse não é o poeta dos sujeitos líricos que sofrem ou enaltecem o amor às musas. No lugar da mulher e da natureza nos sentidos aqui referenciados, o poeta escolhe a unidade mística do tempo e das suas representações na totalidade dos objectos visualizados.

Enfim, mesmo para terminar, e considerando toda a nossa indiferença em relação ao património, à História e à memória, a vocês e ao Amosse, deixo-vos a seguinte pergunta: “Quanto custa o silêncio?”.

 

 

*Texto escrito na sequência da apresentação do livro Vestígios do silêncio, de Amosse Mucavele, lançado a 4 de Julho de 2023, no Camões – Centro Cultural Português em Maputo.

Vou tentar escrever muito pouco. Primeiro, quero dizer que acho que, num Estado normal, ninguém deve falar do Presidente da República como Doppaz tem o hábito de o fazer. Destaque-se: num Estado normal! Ainda não disse o que penso do nosso; na verdade, não direi, vou levantar pontos para pensarmos.

Por que razão ninguém deve fazer isso? É que o Presidente da República representa um dos cinco órgãos de soberania deste país. E quem é o Presidente da República neste país? É o chefe de tudo e de todos. É quem representa o país em tudo, é quem zela, principalmente, pelo cumprimento do princípio da legalidade e protege os mais fracos (ou, pelo menos, devia).

Se o Presidente fizer o que retroexpusemos, o Presidente da República recebe, em troca, o respeito, a dignidade e o prestígio do “Pai da Nação”. Pense numa família em que o pai faz tudo pelo bem de todos nela. O que acontece quando um dos irmãos o ofende? Todos os outros o repreendem, não é verdade?

Nós, os moçambicanos, quando alguém ofende o órgão de soberania, no caso o Presidente da República, fazemos duas coisas: ou aplaudimos a pessoa ou não nos importamos. Para mim, isso é culpa do próprio Estado, que é dirigido pelo Governo, o mesmo que, actualmente, é chefiado por aquele que Doppaz ofendeu: o Presidente da República. Portanto, o ofendido criou bases para que isso acontecesse. A actuação do Governo cria, nas pessoas, duas, não mais, sensações: apatia ou revolta em relação ao Estado.

Os apáticos não vêem nenhum problema em ter “um Doppaz” a falar como quer de um órgão de soberania. Isto é causado pelo facto de estes não se identificarem em nada com o Estado. É como um filho que só vive na mesma casa que o pai, mas não se interessa em nada pelo que acontece nela, já que entende que nenhuma decisão tomada pelo “papá” é pensando nele.

Os revoltados estão zangados. Estes sentem que o Estado está a fazer justamente o contrário do que devia fazer. Isso causa revolta. Estes não podem falar como Doppaz fez, porque conhecem o poder coercivo do Estado e sabem que, nisso, ele pode ser intransigente. Então, quando um “corajoso”, com um toque, até, de ingenuidade, aparece a falar naqueles moldes, é como se estivesse a carregar nas costas o pensamento de todos.

Há um terceiro grupo, mas este não é resultado da actuação do Estado, é mais pelo estômago. Nesse, encontramos pessoas que se sentem ofendidas no lugar do verdadeiro ofendido como forma de mostrar lealdade ao mesmo.

Há algum tempo que se diz que Doppaz é um doente, isso por conta da forma como ele fala dos assuntos, sem nenhum travão moral. Deploro isso! Mas, se ele continuou, é porque nós, ou não víamos problema, ou nos revíamos. Isso só porque chegámos aonde chegámos.

Não imagino que alguém de nós estaria com coragem de dizer “Free Doppaz” se ele tivesse ofendido alguém das nossas famílias. Bem, se tivesse sido isso, a PGR não o teria detido. Enfim, só estava a pensar alto. 

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