O País – A verdade como notícia

ARTIGOS DE OPINIÃO

Os títulos, pouco parece, são laboriosos de se formarem, às vezes. Trabalha-se a gestação, e dá-se vida a um texto, e, depois, atrapalho-me no apelido. “Há festa de marrabenta” é um título com alguma história na cultura. Antes de partir desse mundo dos vivos, atestou Ndjindji que já há festa de marrabenta em Moçambique, e que poderia morrer.

É nesse estado anímico em que empresto essas palavras para apelidar o texto na qual irei falar do concerto ‘Noite de marrabenta’ com a banda Unsse, que teve lugar no dia 3 de Agosto de 2024, no Centro Cultural Municipal Ntsindya, em Xipamanine.

Como bons moçambicanos que somos, a direcção do concerto não se desfez, por horas, do traço ‘+ moçambicano’, no que se refere a atrasos. A festa demorou cerca de 45 minutos, quase uma hora, para dar partida. Isso já está tão enraizado no moçambicano que, de forma que não me surpreendeu, a sala começou a ser ocupada por almas, e não mais por mosquitos e moscas, depois do evento ter iniciado.

Ainda no rescaldo do Dia Internacional da Música (1/10), o Centro Cultural Municipal Ntsindya brindou-nos com mais uma noite de muita Marrabenta. Agora, espero que o meu título faça sentido, essas noites de marrabenta são recorrentes no Centro Cultural Municipal Ntsindya, dando um espaço, talvez fixo, para que fazedores e apreciadores desse ritmo tenham um lugar onde festejar o que são. Essa data, parece-me, foi meticulosamente escolhida para fazer ponte entre dois dias festivos: um mundial e outro nacional, que é o proeminente dia 4 de Outubro, o dia em que se assinaram os Acordo Geral de Paz, em Roma.
O evento deu partida com a actuação dos alunos do próprio Centro Cultural Municipal Ntsindya, saudando-nos e mostrando que, até para próximas gerações, a marrabenta ainda será festejada entre palcos desse belo Moçambique. Por ainda serem alunos, fizeram warm up (aquecimento) do palco e do dia, preparando-nos para o que estava ainda por vir, com uma miscelânea harmoniosa (contradição pensada) da velha guarda, e actuais vanguardas dessa arte, a Marrabenta.

Dentre eles, ouvimos a interpretação da música de Humberto Luís, intitulada “Pfumela”, ouvimos a interpretação da música “Elisa”, de Mingas, celebrou-se Mr. Bow e outros como Nordino Chambal, com a música “Mamana”, lembrando-nos, com essa, a honrar ainda mais as figuras maternas. Assim homenageavam-se todas as mães que cuidaram/cuidam dos filhos com muito amor. Desde já, talvez endereçar um obrigado por todos e todas as mães do mundo que, em condições adversas que caracterizam Moçambique, ergueram homens e mulheres. Com isso, joga-se uma nota de recordação, todo dia, é o dia da mãe.
Depois foi a vez da banda Unsse. Há quem disse que Unsse é festa, contudo ignoro se esse é a tradução de Unsse em português (nem sei qual é a língua de partida) ou se Unsse acabou tendo uma extensão semântica e passou a significar festa por conta do tipo de música que essa banda toca. Entre um ou outro, só uma certeza cresceu dentro de mim: houve festa de Marrabenta.

Além do arranque em falso do evento, quando a banda quis entrar e alegrar os que lá estavam, houve também (des)arranjos no momento da actuação. A maquinaria estava desafinada, cabos não conectados e outros inconvenientes que, infelizmente, sucedem.

Veio a música que tanto se esperava. A primeira nota musical da banda obriga-nos a pensar sobre a dualidade erro-perdão. “Nambi dzi hoxile, nambi ndzinga hoxanga” (mesmo se tivesse errado, ou não) alguma coisa que se parece com tolerância era cantada. No final, talvez seja isso uma coisa que poderíamos pegar e tentar repaginar o nosso dia 4 de Outubro. Sem tolerância para os pecados de outrem, não há paz que se aguente. A tolerância talvez seja um dos alicerces de um homem ético. Aqui ética, senhores, não é sinónimo de moral, apesar de se ter feito, por muito tempo, andar de mãos dadas e grudadas. A moral é mais ou menos algo de proibições e obrigações, enquanto a ética, segundo o professor brasileiro Clóvis de Barro Filho, é “a arte da convivência”. Talvez, também, a nossa sociedade necessite de mais tolerância de uns para com os outros, e também para connosco mesmo.

A segunda nota musical o Eu lírico argumenta que a “A lizandzo hi xilondza” (Trad. lit. Amor é uma ferida). Essa música retrata a dor que pode ser o amor, e todos os seus eventos que fazem sofrer quem o porta. Nessa canção, o Eu lírico narra uma história sofrida de amor, em que o seu amado/a fugiu para um lugar incerto. Ouvindo essa música, de longe, ouvia na minha mente o polonês Zigmunt Bauman, quando fala da modernidade líquida, amores líquidos que caracterizam nossos tempos. Umas das suas frases icónicas é a de “tempos são líquidos porque, assim como a água, tudo muda muito rapidamente. Na sociedade contemporânea, nada é feito para durar” nem mesmo os relacionamentos. Principalmente estes, em que depois de passar a satisfação que trazia no período inicial, procura-se por uma outra relação que traga ainda mais satisfação.

Nessa sociedade líquida, hoje está-se numa relação e amanhã acorda-se com outro. Não estou cá a fazer apologias ao casamento forçado que caracterizou a idade média (na Europa) e a tradição moçambicana retratado, por exemplo, por Dany Wambire em “A mulher sobressalente”, em que as mulheres não possuem volição. Também não estou a retirar a liberdade que as pessoas têm de se separar e se juntar com quem quiserem. Só que as juras de amor são tão efémeras como pó que se dissipa com a ameaça do arejar.

As notas são riquíssimas de mensagens que refletem um tanto a realidade moçambicana, que é de precariedade generalizada. A quarta nota fala da condição da pobreza e pobres (Xisiwana). Primeiro que essa condição de pobreza é notada quando o Eu lírico diz que “a Nina papai, a nina mamana” (não tenho pai, nem mãe). Para os mais atentos percebem que os moçambicanos são, essencialmente, metafóricos. Acho que Lakoff e Johnson (em Metaphors we live by), se tivessem estudado as línguas bantu teriam provado facilmente a sua posição de que a metáfora (figuras de linguagem) não é um recurso restritivamente poético e extraordinário, mas que é de uso quotidiano e ordinário. O “não tenho pai, nem mãe” pode não significar que alguém seja órfão de pai e mãe, mas que essa pessoa é tão pobre que não tem para onde reclamar da sua condição precária porque os seus familiares também são pobres. Essa construção iguala-se a “a Nina munu, novha Xisiwana” (não tenho ninguém, sou um pobre). Não significa necessariamente que essa pessoa é/está sozinha no mundo, mas que, num mundo materialista e capitalista, não tem um parente com capital.

A canção ainda dá nota que um pobre “não reclama”, tem o que lhe ofertam, bom ou ruim, muitas das vezes péssimo, e agradece. Aliás, onde é que irá o pobre queixar? Essa nota musical também levanta questões pertinentes da nossa sociedade moçambicana, onde os pobres sentem-se abandonados, deixados à sua sorte para tantas injustiças que lhes acontecem no dia-a-dia. Não raro se ouve que a justiça (o sistema judicial) não está para os pobres, esses sem pais e mães. A ideia de sem pai e mãe reflecte perfeitamente o sentimento de abandono generalizado entre os pobres, principalmente numa colisão entre ricos e pobres.
Houve festa de marrabenta em Ntsindya. Os batuques, a bateria, as violas criavam ritmos dançantes, em que pessoas saíram das suas cadeiras e requebravam no festejo da música moçambicana. Reflectimos. Pensamos. Mesmo abandonados, tínhamos o sentimento de acolhimento. Além dos inconvenientes, como se diz por aí, foi a cena (agradou).

Queixam se muitos de pouco dinheiro, outros de pouca fortuna,
alguns de pouca memória, e nenhum de pouco juizo

Marques de Marica

 

Empreendedorismo e empregabilidade são, sem dúvida, temas bastante actuais na sociedade moçambicana, com muitos jovens enfrentando desafios no mercado de emprego e empresarial. Hélio Agostinho Mate é um jovem empreendedor especialista em Marketing digital e desenvolvimento Web, que escreveu o livro que tem como titulo “Maputo, o terror dos preguiçosos, o paraíso dos hustlers”, lançado em Agosto de 2024.

O trecho do título do livro “Maputo, o terror dos preguiçosos” possui uma dualidade de interpretações: A ideia de que em Maputo quem for preguiçoso viverá um terror, ou dificuldades para crescer e prosperar, o que é real e motiva os jovens para acção.

Por outro lado, existe uma visão antagónica que também é real. Em Maputo existem cidadãos que despertam ao alvorecer diário, e vão trabalhar. Alguns são operários, funcionários privados, etc., que não são preguiçosos, mas enfrentam terrores como salários atrasados, descontos injustos, terror do transporte, ou seja, existem outros factores que condicionam o crescimento económico do cidadão trabalhador fora a preguiça.

No trecho, “O paraiso dos hustlers”, a pergunta-chave seria: O que é um hustler? A palavra “hustler” é usada desde o título do livro até às últimas páginas do mesmo, porém, o autor não apresentou o seu conceito de hustler, que facilitaria o enquadramento do leitor.

Hustler é uma palavra inglesa, que possui significados distintos. Pode significar um vendedor massivo, pode significar alguém que faz negócios ilícitos. Por outro lado, também pode significar prostituta.
Dentro do contexto e música Hip Hop, hustler tem outro significado: Alguém que trabalha duro para obter dinheiro ou ser bem sucedido.

Julgando por ser o livro sobre empreendedorismo, o autor adopta o último conceito quando diz hustler. A dedicatória do livro é pertinente, uma vez que o autor o dedica a obra a todo jovem com fome de vencer, quer dizer que a juventude é o seu grupo alvo.

O autor emprega uma linguagem simples e próxima a dos jovens, para melhor aproximar as suas ideias à classe, daí a existência de termos como hustler, nhonga, nhonguista, termos do quotidiano juvenil.
Hélio Mate foi assertivo, ao citar que a maior guerra do mundo ocorre na nossa mente, pois é um campo autêntico de batalhas, entre a razão e emoção, o bem e o mal, daí atenta para a necessidade de se nutrir os pensamentos com fé e determinação para posteriormente agir positivamente.

Segundo (Martins, 2017), um pensamento gera uma emoção, uma emoção gera uma acção ou estagnação, para dizer que pensamento bom, origina acções boas e vice-versa.

O autor possui um subtítulo: “A ovelha negra da família”, no qual aborda uma realidade comum nos jovens desempregados: A falta de apoio, o desânimo, descrença em relação às suas ideias, o facto de serem ignorados e menosprezados por todos. Neste trecho, Mate cria empatia com os jovens e alerta-os para usarem isso como motor, de modo a concentrarem-se nos seus objectivos, eliminando distracções e as famosas más companhias.

Mate propõe-nos cinco soluções para mudança de paradigma rumo a uma mentalidade de sucesso: a autoconfiança, a quebra do medo de errar em público, não se importar com o que as pessoas falam, fazer o que tem que ser feito na hora que tem de ser feito e saber atrair o que deseja.

Mate detalha a importância de cada um destes elementos, que figuram no livro como um convite à redifinição da personalidade, à adopção de novas crenças e hábitos, com uma dose repleta de motivação à mistura, para que os hustlers (lutadores) não desistam.

Uma frase bastante cirúrgica, que pode resumir a mensagem do livro, é: Nada se pode negar ao Homem que tem fome de vencer. Esta é uma frase poderosa, que pode acender o nosso desejo e atitude para alcançar algo que parece impossível.

Hélio Mate investe no discurso de auto responsabilização, e auto conhecimento como um caminho que cada jovem deve percorrer para segurar as rédeas do próprio destino. Neste livro, o autor propõe elementos como foco nos objectivos, próposito, disciplina, sacrificio pessoal como virtudes para se tornar um hustler (bem sucedido).

O livro é introspectivo, conciliando o diálogo intelectual interno com desafios externos abordados pelo autor na pessoa do jovem nhonguista, do empreendedor iniciante ou trabalhador.

O livro serve como uma bussola capaz de iluminar na tomada de decisões empresariais e profissionais, possui também uma perspectiva didáctico-filosófica, capaz de dotar o jovem de novas aptidões, pensamentos, emoções e atitudes transformadoras no mundo do empreendedorismo.

O livro apresenta um número considerável de erros ortográficos e de semântica que carecem de melhoria. É importante clarificar neste tipo de abordagens que o perfil empreendedor não cabe a todo o jovem, outros podem ser bem sucedidos como técnicos, gestores e etc..

Ler este livro é uma experiência oportuna, que vale a pena.

Hélio Agostinho Mate é fundador da Mattilo, uma agência de marketing digital e fornecimento de material de visibilidade. Nasceu aos 26 de Abril de 1992, no Bairro Polana Caniço, em Maputo.

Espero que a minha saudação chegue à sua excelência como dose de brasa, para quebrar o gelo e o nervosismo que, com certeza, flui neste momento. Tens razão, presidente, o ambiente é de muita tensão após 45 dias da campanha eleitoral. As mentes não dormem e os corações não param de bater a ritmos anormais, afinal de contas, o país e o mundo estão ansiosos para saber se o senhor irá subir ao governo ou se será um dos seus oponentes.

Alô… Alô, senhor Presidente…

Ouço-lhe com alguns cortes, deixa procurar um sítio com melhor qualidade de rede, tenho muito que lhe falar antes que chegue à Ponta Vermelha. Diriam os jovens da minha idade, “são maningue cenas, presidente”. Então peço um pouco da sua atenção, excelência, creio que o “dejinha” que recareguei é suficiente para o que tenho a dizer.

Presidente…. Ouvi e li atentamente o seu manifesto como se de uma bíblia se tratasse e confesso que não há tanta diferença com o que os seus concorrentes directos foram dizendo no périplo pelo o país. As vossas promessas espelham o sonho de mudanças que os nacionais demandam desde que se conhece como independente, mas algo me inquieta, presidente.

A pobreza é moda em vários países africanos e não só, e a estratégia adotada para a sua irradiação passa por promover melhores políticas de estímulo à economia. Neste pacote, o senhor promete criar postos de emprego, dentre outras coisas. Ouvi as suas promessas por onde passou, e ficou claro que o seu plano para a melhoria da vida dos moçambicanos passa por melhorar a qualidade na educação, saúde, saneamento, ordem e tranquilidade, etc., mas nada ficou claro sobre a devolução da paz em Cabo Delgado.

Presidente, consegue me ouvir?

Sei muito sobre o senhor, mas juro não conhecer o seu partido. Talvez, seja este o momento ideal para pedir desculpas por esta minha repulsa. Mas, garanto ter ouvido atentamente as suas mensagens durante o período da campanha, talvez de forma similar que fiz com os seus opositores, afinal de contas havia necessidade de medir a qualidade nos planos de governação que espalharam pelos distritos do país.

Sobre poucas ideias que propõem, como plano para o combate ao terrorismo, em Cabo Delgado, muitas delas me soam como uma música vazia ou talvez um poema sem rimas. Dizer “caso seja eleito presidente, no dia 9 de Outubro, vou acabar com o terrorismo”, sem explicar de que forma e em quanto tempo pretende efectivar esse objetivo, é mesma coisa dizer que a criança que acaba de nascer vai crescer, sendo um facto lógico.

Alô, senhor Presidente…

Vejo que o senhor é paciente demais e obrigado por me ouvir. Espero que assim seja com o seu povo, que há anos vive desgovernado e com sinais de abandono feito filhos com pai ausente. Continua assim, quando chegar ao poder. Excelências, tem mais um minuto? creio que o meu “dejinha” ainda permite dizer mais alguma coisinha sobre o que o povo espera de si.

Excelência, vê lá o que faz assim que chegar à Ponta Vermelha. Seja executivo e que a indiferença com o sofrimento dos seus governados lhe seja incómodo. Proactividade na busca de soluções dos problemas da nação lhe faria diferente e revolucionário, excelência.

Falo de peito tremido. O povo carece de um líder. Não se viu mais nenhum desde o acidente fatídico, há um sentimento de revolta pelo abandono das políticas públicas, ninguém se responsabiliza pela má gestão das instituições públicas. O seu povo está com medo de perder a única coisa que lhe resta, a soberania, excelência.

Alô, Presidente, sei que o senhor precisa ir. Quarta-feira é dia de votação. Mas escuta aqui, excelência, tenta implementar, no mínimo, uma parcela das suas promessas, e verá com seus próprios olhos que este país lhe será um patrão e o senhor empregado de luxo.

 

“Um homem que foi traído pela vida perde para sempre o dom de sonhar”
In O bebedor de horizontes, Mia Couto.

Peregrinação, do latim, per agros, isto é, pelos campos, é uma jornada realizada por um devoto de uma dada religião a um lugar considerado sagrado por essa mesma religião.

De acordo com “Fides Et Ratio” [fé e razão], carta do papa João Paulo II, o termo “Peregrino” aparece na primeira metade do século XIII, para denominar os cristãos que viajavam a Roma ou à Terra Santa [onde actualmente se encontra o Estado de Israel e os Territórios Palestinos], para visitar os lugares sagrados. Desses peregrinos surgiria mais tarde a ideia das Cruzadas, enviadas para “reconquistar” os lugares que os cristãos consideravam sagrados e que estavam em poder de povos de outras religiões.

Para peregrinar há que ter em conta que não se trata apenas do acto de caminhar ou executar um trajecto com um determinado número de quilómetros; é reconhecido que peregrinar carece de se caminhar motivado “por” ou “para algo”. Refere o documento acima citado no seu número 62. A peregrinação tem, assim, um sentido e um valor acrescentado que é necessário descobrir a cada pessoa que a executa.

Para o caso em análise, “Os peregrinos da sobrevivência” é um romance de estreia do escritor Francisco Panguana Jr., distinguido com o Prémio Literário Fernando Leite Couto, para o ano de 2024.

O romance é dividido em três partes. Para quem gosta de novelas pode emprestar a designação “capítulos”, o que permite uma leitura prazerosa não só pela dimensão das páginas, mas, igualmente, pelo equilíbrio de páginas, ou seja, os “horários” de leitura são milimetricamente iguais, dependendo, seguramente, das estratégias de leitura que cada um adopta para si.

Afinal, quem são os Peregrinos da Sobrevivência ou peregrinos da desgraça?

O a gente narrativa apresenta-nos uma estória de um professor que decide abandonar a vila de Mutaratu e a sua categoria de funcionário de Estado para tentar a sorte em uma outra região. O professor reclama da estagnação na carreira, perseguição dos colegas que impedem a sua filha de ingressar no ensino primário, falta de reconhecimento dos políticos. Entretanto, entre a expectativa e a realidade, Francisco Panguana Jr. desafia o leitor para um passeio de 192 páginas de conversa, nas quais o ciúme e o conflito armado são cartões de visita para rumar neste passeio proposto pelo autor em um campo narrativo, onde a esperança cumpre o seu dever de ser a última a morrer, enquanto o sonho de Chico Albuquerque palpita nas veias de Mutaratu.

A imagem da capa do livro faz um resumo básico dos envolvidos no universo diegético da narração. Temos o Pai, a mãe e a filha caminhando de mãos dadas, segurando a sua riqueza, três malinhas cheias de nada, resultado dos rendimentos de tantos anos como Professor se resumem nestas malinhas que levam consigo.
Quantos professores em Moçambique não se escondem dentro desta malinha miserável? Esta colocação me faz recordar de um texto que li quando frequentava a sexta classe, não recordo do nome do autor, mas, sei que o texto tem como título “Do giz ao marcador: uma aposentadoria chamada tuberculose”, onde o autor narra uma história sofrida de um cidadão que toda a sua vida trabalhou como professor e na aposentadoria não tinha carro, casa, nem dinheiro de reforma, a sua única riqueza seria a tuberculose resultado do pó de giz que foi inalando ao longo dos 45 anos de trabalho.

O autor suspeitamente conhecedor da mecânica ou da arquitectura quântica do género narrativo mobiliza todos os recursos que prendem e soltam o leitor para divagações e preenchimento lacunar com a realidade do dia após dia, quer do que se vive, quer do que os órgãos de comunicação social e oral transmitem. Não é curioso que a História é contada por uma criança, Khensile, que não foi à escola, que não sabe ler nem escrever. O autor, de forma genial, revela e releva o Poder da Oratura na produção literária. Khensile, que literalmente significa agradecer no Passado, dá jus ao nome pelo papel que ela desempenha na família, sobretudo em momentos de aflição.
Mais do que teias de processos narrativos (prolepses, analepses, encaixes), o autor faz uma mescla lírica que se comprova em alguns excertos.

Trata-se de um romance típico que faz a radiografia e DNA de uma sociedade onde as conflitualidades e tensões situam -se em todos os níveis e extractos sociais. O eixo central da narrativa é uma personagem feminina, menor de idade e sem escolaridade (não conseguiu a vaga porque sendo de Outubro, a lei não permite que fosse matriculada antes de completar os 6 anos, porém, quando a mãe foi à escola no ano seguinte para a inscrição, os agentes da secretaria assumem-na com 7 anos, portanto, com 1 ano amais), mas com um Poder de memória contemplativa e reflexiva, sobretudo quanto acontece primeiro narrando as conversas que os pais têm em casa, as posições, as hierarquias destas conversas com uma masculinidade fazendo o domínio.

O eu dela confunde -se com narrador omnisciente que tem um domínio das outras personagens, quer do seu passado, quer do seu presente e ainda das suas angústias, alegrias e sonhos. A falta de escola permite à personagem a inobservância da moralidade. A personagem fala das suas aventuras sexuais, de forma livre, sem censura. A escola muitas vezes coloca freios em relação aquilo que se deve dizer.

Os dramas das longas filas às sextas-feiras, nas lojas dos que professam a religião islâmica, e aos campos de concentração dos deslocados de guerra, vítimas do terrorismo, as conflitualidades entre o dito tradicional e o modernismo, as práticas de curandeirismo, a religiosidade. O drama da avó Khanyisa, que, sendo cega, continua alimentando o seu filho juntamente com a sua esposa e neta que abandonara o emprego do magistério. Mais tarde é acometida por uma doença rara que a faz pendularmente entrar na medicina moderna, tradicional e caindo na religião sem sucesso. Os parcos recursos da família, fruto do trabalho infantil, incluindo a aceitação para a prostituição na pousada do ilustre Deputado Foraz, que é amigo do Pai (camaradas do mesmo Partido) da Khansile, são gastos na tentativa de recuperação da saúde de quem já não consegue andar a pedir esmola.

Como o azar tem perseguição, a Khensile acaba adquirindo doença do século à semelhança das outras garotas que trabalhavam na Pousada. Felizmente, ela aceita ficar internada no Hospital e mais tarde toma os medicamentos apropriados apesar de algumas amigas suas terem sucumbido e morrido devido à doença”.
A narradora nos convida a viajar para o passado apesar de estar a documentar algo que vê no seu dia a dia. Quando fala das grandes tensões nas filas sextas-feiras obriga, convida o leitor para aquelas longas filas de busca de pão, nas cooperativas de consumo e não de produção da primeira República de Moçambique, registado em “La Famba Bicha”, música do saudoso Jeremias Nguenha.

“La famba bicha? Vateca bicha? Ina, vateca kosse phambeni vanga kona”
[Sim, a bicha anda, mas somente lá à frente onde eles estão].
É que quer nestas filas das sextas ou filas de distribuição de alimentos para os deslocados de guerra também a bicha não anda, ou seja, só lá a frente onde estão os sofridos mais influentes. Nas bichas de acampamento dos deslocados de Cabo Delgado, há um duplo conflito, há aqueles que conseguem perfurar as filas, outros arrancam comida dos que conseguem.

O sentimento do pai da Khensile em ter de partir não é diferente do que se relata na música “Sala”, de Jeff Maluleke. Narrando todas as vicissitudes de um povo sofrido que muitas vezes passa por dificuldades da vida que obrigam a abandonar a sua família para ir a busca do pão em uma terra distante. Mas, diferente da estória cantada pelo Jeff Maluleke, o pai da Khensile pelo menos tinha emprego só que quis coisas a mais na Terra Prometida que só viu miséria, atrás de miséria para além da guerra. Aliás, viu sua mãe acometida por doença rara, viu sua única filha infectada por doença do século, viu seus parcos suínos entregues numa igreja na tentativa de salvar a sua mãe. Estas e outras peripécias são encontradas na obra “Os peregrinos da sobrevivência”.

Em suma, “Os Peregrinos da sobrevivência” é uma obra literária única e simbólica. Ela traz uma imagem forte de resiliência, jornada e superação de desafios, o que pode ser uma óptima metáfora para nos apoiarmos uns aos outros em situações de crise e para que possamos superar as dificuldades burocráticas e legais impostas pelas instituições e circunstâncias da vida.

 

Conheci Mélio Tinga por volta de 2010, quando estudava na Escola Secundária Kisse Mavota, arredores da cidade de Maputo, onde com um grupo de colegas criou uma associação de escritores e poetas. Anos antes, aquela escola fora conhecida pelo fenómeno dos desmaios. Estes que, curiosamente, ocorriam somente com as meninas, dividindo opiniões quanto às suas causas.

A versão popular _ fazendo jus ao nome da escola _ dizia que os desmaios resultavam do “beijo” dos espíritos. Aquilo era maquinação das almas dos zimpetos, os primeiros ocupantes do lugar, ofendidos com a implantação da escola no seu antigo khokholo (fortaleza) sem prévio pedido de licença. Não se sabe ao certo como se ultrapassou o imbróglio, que acordo se fez com os espíritos insurrectos. A verdade é que estes recolherem às sombras, e aquilo parou com a vida na escola voltando ao normal.

Tempos depois, Mélio me ligou. Convidava-me para padrinho da sua associação de escritores e poetas. Abracei a causa com todo o gosto. O entusiasmo daqueles jovens era do tamanho do Monte Binga, mas Mélio terá sido dos poucos, senão o único, a sobreviver àquela euforia. E em algum momento o seu caminho mostrou-se maduro. E como recomendam alguns dos personagens das suas obras, inspirando-se nas crenças que vem dos mais velhos, ele seguiu sem “olhar para trás”.

Pelo dito atrás, para quem partilhou o espaço com os duendes na Kisse Mavota, não admira que o fantástico seja o lado mais saliente da sua escrita, a qual inclui títulos como O voo dos fantasmas (2018), A engenharia da morte (2020), Marizza (2021), Objecto oblíquo (2022), Atravessar a pele (2022), Como sombras e cavalos a levitar (2023) e Névoa na sala (2024).

Mesmo reconhecendo que boa parte destas obras, duma ou doutra forma, já mereceu a atenção da crítica, em razão da cumplicidade com o autor antes aflorada, nos obrigamos a deixar registadas para o público leitor as nossas impressões.

O voo dos fantasmas, seu primeiro livro, inicia em Nélida e prossegue com os contos A casa dos fantasmas, Os gatos de Mhum, O pobre e os seus amores, O fantasma Baskeville, Fora dos trilhos, Chuva, A morte de Kheisho, Milagre e O hambúrguer que matou Jorge. A sua leitura ajuda a aflorar as características mais significantes na escrita de Tinga.

“Nélida era peluda como um cão”. Logo na frase inicial a força da hipérbole, esta que, aliada à prosa fantasiosa, será pedra angular no estilo do autor. As frases são elípticas, breves e dizem as coisas de forma crua. São cunhadas de modo a perdurar na mente do leitor.

Nélida serve de denúncia à criminalidade que grassa nos nossos bairros. A protagonista _ ”contracena” com aquele que parece ser o alter ego do autor _ que dá título ao conto tem um fim trágico: assaltada e violada na casa onde aparentemente vivia sozinha, morre no hospital.

O conto seguinte, A casa dos fantasmas destaca a capacidade de criar e manter uma atmosfera convincente, com o retrato das emoções duma família em luto após a morte do pai do narrador da estória. Este, a mãe e a avó _ à irmãnzinha de cinco anos a inocência parece isentar da dor _ vivem o momento com mágoa e resignação. Esta morte expõe a decadência da casa, “assombrada por maus espíritos”, a decadência que parece estender-se ao resto da comunidade (sociedade) e, quiçá, da nação à volta.

Em Os gatos de Mhum está-se perante uma escrita ágil, geradora duma atmosfera penumbrosa, onde os olhos dos gatos brilham intensamente. O ataque fatal dos animais, supostos serem de estimação, ao dono Mhum e seu parceiro do projecto de filme, não tem explicação. O sócio de Mhum e narrador desta estória ainda teve tempo de ligar à polícia, para que esta, sabe-se lá, fosse prender os homicidas, mas como em tudo que mete gatos, o conto acaba em mistério.

O pobre e os seus amores retoma o tema clássico em que o amor esbarra nas diferenças de classe social. Um rapaz de nome Bismeu, apaixonado por uma rapariga chamada Dimera, arranja uma forma de se aproximar dela: pede trabalho ao seu pai, um deputado, do qual “ninguém sabia como arranjara tanta riqueza, em tão pouco tempo, em terras pobres.” O tema do amor serve como pretexto para dar azo à denúncia do enriquecimento ilícito.

Em O fantasma Baskeville um homem é encontrado morto numa canoa. O morto que todos parecem desconhecer. E a quem as autoridades negam um enterro condigno, permanecerá balançando ao sabor das ondas. Este é o exemplo de como muitas das estórias de MT têm fim aberto.

Em Fora dos trilhos, um jovem repórter vai ao local dum acidente ferroviário. Após registar e publicar a notícia do trágico acontecimento, vem a saber que afinal tinha uma ligação de primeira ordem com uma das vítimas. Como diz ele: “Soubera momentos depois de minha mãe que o maquinista era meu pai.” Ora, isto roça a distopia _ fenómeno em que os factos se opõem ao que era suposto ser (ou não ser) _ uma característica também comum em Mélio Tinga.

No conto Chuva, um homem e uma mulher com dois filhos menores tentam escapar ao dilúvio. No fim só o homem sobrevive à calamidade. O desabafo que segue dá-nos a dimensão do seu trauma: “Tinha vontade de ser terra para comer a puta da chuva”.

Em A morte de Kheisho, a morte torna-se banal e matar, numa ciência com método. O conto lembra-nos um outro, Os Assassinos, do escritor norte-americano Ernest Heminguay. Naquele o alvo escapa por capricho do destino ao não se encontrar no lugar esperado. Kheisho não teve a mesma sorte. De manhã vestiu-se a contento, foi à igreja, falou animadamente com o padre, visitou um casal amigo e foi jantar ao restaurante, onde, à saída, foi baleado. Nada que pudesse ser feito para alterar esse desfecho brutal.

Milagre tem como protagonistas os habitantes duma certa aldeia que aguardam à beira-mar.

Diz o narrador: “Precisavam acreditar em algo. Escolheram deus.” E ali, ansiosos, aguardam pela visita de Deus que, supostamente, virá de barco. Ao fim de tanto tempo, um ser maltrapilho cruza a areia da praia. Aos olhos dos populares, esta criatura faz a vez a Deus. Ou melhor, é Deus. O conto procura ilustrar a ideia de quão o ser humano é incompleto e inseguro no seu âmago, carente de crenças e por isso desejoso de se agarrar a algo, sendo que a divindade não passa de uma utópica invenção dos Homens.

Em O hambúrguer que matou Jorge se retrata a crueldade sem explicação. Jorge vai ao lugar onde sempre come um hambúrguer. Em algum momento vai à casa de banho, onde sofre um ataque, ao que parece, à facada. Não se expõe no conto o momento do ataque, a não ser a referência a indivíduos de aparência duvidosa sentados na mesa atrás de Jorge, ficando a irónica conclusão de que foi o hambúrguer envenenado a matá-lo.

O livro A Engenharia da Morte é também de contos. No prefácio à edição brasileira, Ubiratã Souza fala de “uma recusa à narrativa linear” para se privilegiar “um intenso experimentalismo na fatura dos contos, o que revela a busca por uma prosa pessoal”. E que “em vários contos, o entrecho está desmontado como se fosse um móbile de ações desarticuladas e rearranjadas em ordens imprevisíveis”.

Este experimentalismo, intenso porque ancora-se na profusão do verbo, vem a ser transversal a toda a obra do autor. Na sua estreia no romance com Marizza, a transfiguração discursiva vai mais longe e chega a reflectir-se na imprecisão (deliberada) de como se refere o sujeito ou a coisa adjectivada. Tem-se como exemplo, a seguinte passagem:

“Estava pálido, neve branca e opaca, resistente, incapaz de estilhaçar-se na queda, o vapor frio a subir como um animal para o espaço vazio do cosmo”.

Observa-se também no mesmo romance a sobreposição dos sujeitos sujeito(s) da acção e do(s) agente(s) da narração, obrigando o leitor a passar do simples exercício de leitura a uma rearrumação do sentido, como se vê a seguir:

“A mulher falava e recuava. Eu em tropeços contínuos, a voz em colisões inesperadas, a voz à maneira de um cão velho a latir mais ou menos inconsistente. A mão muito húmida, o celular ao ouvido, a queimar com impaciência, a queimar rumo a uma inesperada explosão”.

A escrita de Marizza é cosmopolita (espaço e personagens podem pertencer a qualquer lugar do planeta), os símbolos evocados são universais. Pouco comum em autores moçambicanos de gerações anteriores é a forma bastante arrojada com que se aborda cenas íntimas, como se vê no exemplo que segue:

“Beijei-a no peito, e a cada instante o coração se movia para uma parte diferente, parecia. Perseguia-o com a língua molhada; do abdómen atravessei para umbigo e depois o cálice. A sensação de remorso perseguia-me incessante. Quando afastei a cabeça, ela segurou–me com força, pela nuca. Acariciou-me o sexo. Falou coisas obscenas ao ouvido.”

Ou, ainda em Marizza, temas sociais sensíveis, como no caso da religião. A partir duma citação de Osho, pode ler-se:

“Os animais não precisam de Deus e são perfeitamente felizes _ não vejo que Deus lhes faça falta. Nem um só animal, nem uma só árvore, sente a falta de Deus. Todos eles gozam a vida na mais completa beleza e simplicidade, sem qualquer medo do inferno nem qualquer avidez pelo Céu.”

O romance Como cavalos e sombras a levitar, assemelha-se na sua elaboração a Marizza. A estratégia narrativa usada em ambos privilegia a construção de personagens irreverentes, envolvidos em actos desconcertantes, com as metáforas usadas no texto buscando causar estranheza e produzir imagens surpreendentes. – Também se nota e o despudor nas falas, talvez para revelar a situação de desespero em que vivem os personagens.

Atravessar a pele tem a particularidade de ser um livro de entrevistas aos escritores (mais velhos) co-organizado com David Bene. Embora comum no meio literário, parece-nos uma ideia com algo de sublime: usando o método da pesquisa académica, Tinga e Bene procuram com este trabalho fazer com que os entrevistados, ao contrário do que aconteceria num bate papo normal, se abram, baixem a guarda e falem de forma “generosa”. Então, aí é possível, aos entrevistadores assim como aos leitores, “beber” das ideias e experiências daqueles. Trata-se dum frutuoso diálogo entre gerações.

Névoa na Sala, o último livro de Tinga, constitui uma proposta ainda mais arrojada. Sua estrutura algo fragmentada, obriga o leitor a ter de juntar os cacos dum conteúdo algo marginal, como também o é o escopo dos personagens. Estes, dois homens e uma mulher, estão num hospital para doentes mentais. Os homens, para cura do stress pós-traumático da guerra da qual participaram. E ela, também do stress, após o cancro que lhe devorou o útero e o filho que estava em gestação.

António Cabrita, na apresentação deste romance, caracterizou-o da seguinte forma: “É um livro às vezes duro, rude, que não se isenta de descrições violentas. E que não oferece soluções, não aponta saídas, modos salvíficos. E neste sentido seria um livro falho, contaminado em si mesmo por uma negatividade peculiar… isto, se a sua escrita não fosse o contrário do que relata, sumarenta, numa torrente lírica que divaga, em contínua centrifugação, e buscando nexos e ligações entre os corpos e a natureza, novas ressoantes formas de diálogo e de intimidade; a escrita faz suceder nesta novela um fluxo que torna visível como a natureza se conduz numa espécie de pulsão incessante, em contínuas metamorfoses, e onde o que se gera é mais poderoso do que aquilo que destrói”.

Ao parecer de Cabrita, pode-se acrescentar que neste romance o absurdo constitui nota dominante, sobretudo, na pungente inocência dos personagens quando falam da morte, do amor e do sexo. Nisso ficando próximos a alguns dos personagens do escritor mexicano Juan Rulfo, no seu livro O Planalto em Chamas, quanto à desarmante inocência perante a gravidade dos actos que cometeram. O leitor os iliba. Pois, os seus excessos são justificados pela atmosfera que o autor soube criar, e com a qual estão em conformidade.

Esta peça termina com Ubiratã Souza; quando diz que “é particularmente significativo observar em Mélio Tinga indícios de que ele está a lutar com palavras, vezes ganhando e vezes perdendo”. Sim. Ou melhor: pode ser que sim. Pois, na busca de caminho fresco, no lugar de lutar simplesmente com as palavras, Tinga, como acontece à semente na terra, lança-as obsessivamente no espaço branco da página, consciente ele próprio de que nem todas darão em rebentos. Isto porque o seu ideal literário parece implicado com o perpétuo garimpo dos signos no afã de trazer ao mesmo armário todos os sinais do mundo.

Num breve soslaio, o velho escultor reparou na mancha que se desvelava ao longe e escurecia o chão. Estranhou, mas não deu importância. Poderia ser a sombra furtiva de uma nuvem distraída. Prosseguiu com a aula:

– A arte é feminina – disse ao neto, seu pupilo, enquanto esculpia –, por isso deve ser tratada com a mesma delicadeza que as mulheres: duras, mas frágeis e preciosas – acariciou o tronco áspero.

De cócoras, sobre o poeirento chão maconde, os músculos contraiam-se e saltavam ao ritmo das marteladas. Falava e respirava no mesmo compasso, como se as esculpidas comandassem a cadência do seu fôlego.

– Fazer escultura, meu neto, é como desvendar mistérios de uma mulher – continuou limpando com as costas da mão, no rosto suado, salpicos de madeira. Voltou a olhar para o horizonte e percebeu que a mancha escura estava maior, sinal inquietante de que estava a mover-se na sua direcção. Mas voltou à aula:

– A madeira, antes de despi-la tens de mimá-la até amolecer – acariciou novamente o tronco áspero –, depois segura com firmeza o cinzel e, sem magoá-la… – completou a frase com uma martelada seca. Lascas soltaram-se e caíram, como peças de roupa feminina, despidas à pressa.

– A escultura maconde é exigente. Ela tem de te aceitar – fez outra pausa em respeito ao vento que, com um remoinho inofensivo, acariciava as lascas caídas.

– Assim como as mulheres, tens de seduzi-la. Quando estiveres a esculpir fala com a madeira – acariciou-lhe novamente a superfície áspera.

– Mas fala na nossa língua, maconde, não em línguas importadas, para que ela te perceba. Faz-lhe promessas e conta-lhe as histórias ao ouvido. Então ela vai sorrindo e essas histórias vão ganhando vida, dando forma à escultura.

Parou de falar quando percebeu que o miúdo não prestava atenção. Olhava, com o sobrolho franzido, para mancha que escurecia o chão. O velho pestanejou e voltou o olhar desfocado para o fenómeno, alarmantemente mais próxima. O neto, com as lentes da visão melhor calibradas percebeu, pelo revérbero subtil, que aquilo era humidade.

– O chão está molhado, avô.

O velho calou-se, como a experiência ensina que se deve fazer diante do desconhecido. A mancha era escura. O escuro e o desconhecido despertam temores inexplicáveis. As sombras estão cheias de fantasmas. Levantou-se, por precaução, porque o instinto ensina que a ter de enfrentar ou fugir, que seja de pé.

– São cheias? São cheias, avô?
– Não! – respondeu sem tirar os olhos da humidade.
– Este rio – virou a cabeça para o rio Rovuma – não é como os rios do sul. Quando se zanga, não enche. Seca.

De tão perto já se percebia o chão molhado a borbotar e no ar um cheiro forte, metálico:

– Sangue! É sangue avô! O chão esta a sangrar.

O velho viu, para além do sangue e areia, pedras reluzentes e gotas de óleo negro. Começou a desconfiar que os mitos contados ao redor da fogueira sobre as pedras e os óleos daquele solo fossem verdadeiros, e temeu que por esses óleos e pedras tivessem ferido a terra até fazê-la sangrar, como dizem as lendas.

– A escultura maconde carrega a nossa história, sonhos e esperanças. Não pode molhar. Vamos!

O velho levou a escultura, com o cuidado e ternura que se leva um filho ao colo. Assim ao colo, o neto percebeu que a escultura tinha forma delicada de uma pomba. Recolheu as ferramentas e correu para alcançar os passos trêmulos, mas largos, do avô.

– Corre!

Com o coração acelerado, fugindo do desconhecido com a escultura ao colo, o velho ofegava. Os calcanhares batiam na secura do chão maconde e ressoavam como um tambor aflito. À medida que as pernas impotentes falhavam, sentia aquela humidade a alcançá-lo: o chão frio e pastoso, os dedos a atolarem. Escorregou.

– Corre avô.

Caído, o avô esbracejava como um nadador desesperado. Os braços debatiam num esforço inútil. O chão de sangue e areia o engolia como areia movediça.

– Não a deixes morrer – gritava agoniado o velho, apontando para a escultura.

Entre a necessidade de se salvar e a impotência para salvar o avô, o miúdo abraçou a escultura e correu. Os pés afundavam no chão lamacento. A cada rápido olhar para trás via o avô cada vez mais distante, agonizando últimas braçadas contra o chão viscoso. Chorava. Soluços desesperados misturavam-se ao cheiro metálico do sangue e ao eco dos seus passos empapados. Parou de chorar, para não inundar ainda mais o chão com as suas lágrimas.

Quando o cansaço e a força da lama já limitavam os seus passos, olhou para trás pela última vez, já não viu o avô. Era só chão e sangue. Olhou para a escultura que lhe escorregava dos braços e teve a impressão que a vida era uma escultura maconde inacabada.

– Voa! – gritou em vão, para a pomba esculpida, quando começou a sentir-se envolvido num abraço frio, sombrio. Era a terra húmida de sangue, que o engolia lentamente.

“A arma mais poderosa nas mãos do opressor é a mente do oprimido”
in Steve Biko, Pretória, 12 de Setembro de 1977.

 

Na contabilidade, o termo protesto é uma expressão usada para formalidade legal que ocorre quando uma dívida não é paga. Nesse processo, o credor leva um título de crédito, como um cheque ou uma nota promissória, a um cartório, que registra a inadimplência. Após esse registo, uma intimação é enviada ao devedor, alertando sobre a dívida. Se o devedor não quitar o valor devido, este acto, pode afectar a sua reputação financeira e dificultar a obtenção de crédito. É importante conhecer os seus direitos, pois é possível contestar ou negociar a dívida antes que se torne um protesto formal. O protesto muitas vezes está relacionado com desentendimento entre duas partes, resulta da falha do contrato, escrito ou verbal.

É do contrato social e formalidade que, na filosofia, Thomas Hobbes propõe “o contrato social”. Para Hobbes, “os homens precisavam de um Estado forte que os proteja, a ausência de um poder superior resultava na guerra. O ser humano, que é egoísta, se submetia a um poder maior, somente para que pudesse viver em paz e também ter condição de prosperar”. No entanto, ao longo da História da Humanidade, sempre que a sociedade se sente injustiçada ou lesada recorre ao “protesto” para junto do Governo revindicar os seus direitos, mas, para o caso de Moçambique, a lei do direito à greve carece de revisão. Pois não se define ao certo a fronteira entre o protesto/manifestação e vandalismo, bem como os limites da carga policial em casos de restabelecimento da ordem pública.

Como rever uma lei cuja aplicação incomoda alguns?

A Lei do direito à manifestação foi aprovada em 1991, ou seja, antes da assinatura do Acordo Geral de Paz e logo após a revisão da Constituição de 1990, que introduziu profundas transformações no panorama político nacional, incluindo um novo pacote de direitos, liberdades e garantias fundamentais.

É, sem dúvidas, uma lei inovadora e progressista para o tempo em que foi aprovada, desde o seu âmbito de aplicação, com limitações objectivas, até às garantias dos cidadãos, incluindo o acesso aos tribunais para impugnar proibições ilegais. Infelizmente, a evolução da mentalidade política regrediu nos últimos tempos, o que evidencia através da amputação do espaço cívico e a consequente proibição ilegal do exercício de manifestações que visem exprimir insatisfação ou discordância com o status quo.

(Direito à liberdade de reunião e de manifestação) “Todos os cidadãos têm direito à liberdade de reunião, protesto e manifestação nos termos da lei”. ARTIGO 52 (Liberdade de associação).
Por sua vez, o sociólogo e professor catedrático, Elísio Macamo, entende que, protesto, também chamado de manifestação, é uma reacção solitária ou em grupo, de carácter público, contra ou a favor de um determinado evento ou pensamento.

É na tentativa de representar em arte esta reacção de carácter público que as artes, em forma de teatro, reflectem sobre os problemas dos resultados eleitorais. O problema é de natureza político, mas a melhor forma de descrever as emoções é através da representação [teatro] onde, acena central está à volta da captura do sentimento de revolta, por isso a peça teatral é intitulada “o protesto”.

A peça teatral “O protesto”, dirigida por Maholele, está inserida nas actividades da Fundação Fernando Leite Couto, (FFLC), e foi apresentada no dia 18 de Setembro, pelas 18h, em um espectáculo realizado fora de casa, no espaço recreativo, Makhal´Artes, localizado no Bairro Polana Caniço B.

Inspirada pelas manifestações ocorridas em Maputo, no ano passado, devido à indignação face aos resultados eleitorais autárquicas, o encenador da obra utiliza o corpo como instrumento de resistência, visto que, na sociedade moçambicana, as vozes dos cidadãos são frequentemente silenciadas.

Nesse sentido, a peça explora o conflito entre o poder colectivo e o sistema (governo), bem como a luta por direitos e as emoções que surgem em momentos de protesto. Além disso, o espectáculo constrói sua narrativa sem o uso de uma linguagem verbal, apostando em elementos visuais, sonoros e corporais para transmitir a sua mensagem.

A peça teatral é caracterizada pelo cenário minimalista [uso de poucos objectos no palco], recria o ambiente urbano onde ocorrem as manifestações. Assim, as folhas espalhadas pelo chão do palco ajudam a caracterizar o espaço como um local de protesto, representando a volatilidade e imprevisibilidade desse tipo de evento. Ademais, a iluminação contribui de forma significativa para a atmosfera da peça, uma vez que utiliza cores quentes, como vermelho e laranja, para reflectir o estado emocional dos personagens.

Diferente do habitual, nesta peça teatral, a cor vermelha não representa o amor, mas, sim, é símbolo de dor e raiva. Ao longo do espectáculo, é possível perceber que a cor vermelha é um símbolo categórico do fogo e de sangue.

A cor laranja significa alegria, vitalidade, prosperidade e sucesso. É uma cor quente resultado da mistura das cores primárias vermelho e amarelo. Está associada à criatividade, pois o seu uso desperta a mente e auxilia no processo de assimilação de novas ideias. Também está associada à amizade, energia e confiança. O laranja também é uma cor intensa, porém menos agressiva que o vermelho e mais agradável aos olhos.
Dessa forma, ao longo do espectáculo, a luz acompanha os movimentos dos actores, ajustando-se tanto aos momentos de calmaria quanto aos de maior intensidade.

Por outro lado, a trilha sonora desempenha um papel fundamental na construção da narrativa, cria o ritmo das manifestações e conecta o público ao contexto sociopolítico retratado. Onde as batidas fortes suscitam a ideia de perseguição, os gritos revelam o momento de caos, dor nos olhos devido à irritação na pupila causada por monóxido de carbono [substância altamente venenosa contida em gás lacrimogéneo, que é frequentemente usada pela polícia em situações de greve ou manifestações]. Do mesmo modo, o figurino contribui para a caracterização das personagens, o tecido farpado, gasto sem cor e com vários furos representa trabalhadores cansados e frustrados com o sistema. Assim, o vestuário complementa o cenário e a trilha sonora, ajudando a criar uma harmonia entre os diversos elementos da peça.

Além disso, a coreografia é outro aspecto essencial para a construção da narrativa, visto que, simboliza a força do colectivo. As batidas fortes e simultâneo no chão remetem a uma ideia de marcha militar, como quem está decidido a lutar pelos seus direitos e defender a pátria que muitas vezes é lesada. Desse modo, os movimentos dos actores, que mesclam caos e ordem, reflectem a dinâmica imprevisível de um protesto. Por fim, as personagens trazem à tona diferentes facetas da sociedade, já que cada um simboliza uma posição dentro do movimento social retratado. Consequentemente, a diversidade de perspectivas enriquece a narrativa e contribui para o envolvimento do público com a obra.

Em suma, “O Protesto” é uma peça teatral que, por meio de uma combinação harmoniosa de cenário, iluminação, trilha sonora, figurino, coreografia e personagens, oferece uma experiência sensorial e imersiva. Assim, o espectáculo consegue transmitir, de maneira impactante, as complexidades e emoções que envolvem uma manifestação popular, convidando o público a reflectir sobre questões sociais e políticas.

Homem não chora!!!

Diziam as minhas avós, Carolina e Penina, que já gozam de sono profundo há alguns anos. Serenas e convictas, típico de quem detinha todo ensinamento para a vida, as velhas repetiam o mesmo discurso sempre que me ouviam a choramingar, impelido pelas chatices da infância.

“Lágrimas de um homem são e devem ser escassas, não devem ser vistas por qualquer um.” Costuravam com dizeres como estes, discurso convincente sobre a necessidade de um homem ter que evitar derramar lágrimas por qualquer motivo à vista de todos.

Almocei e jantei esta doutrina por longo período, e realmente a minha geração foi crescendo menos chorão até na extremidade da dor. Fomos moldados a viver como feras insensíveis a qualquer situação da vida. Fomos doutrinados a mantermo-nos firmes sem bambolear até na pior das hipóteses. Não choramos pela falta de pão, não lacrimejamos após perda de lutas na infância, não fomos vistos em prantos até na morte dos nossos mais próximos. E assim crescemos.

Enfim, como dizem, quem não chora de forma normal, de algum modo alivia a sua angústia e daí a grande questão. De que forma os homens aliviam a dor se não podem chorar ou se querem gritar em momentos tensos e típicos, uma vez que não devem ser vistos em prantos?

Cresci faz algumas décadas, e no meu exercício de vasculhar cidades e campos à procura da vida, fui vendo que há locais para tudo nesta vida. Há lugares definidos para fumantes em quase todas instituições públicas e privadas, grandes e pequenas. Há salas predefinidas para orações de todas as religiões. Não faltam casas de câmbio para venda e compra de moedas nacionais e estrangeiras. Há sítios próprios para leituras nas suas diversas facetas como também existem lugares propensos para a prática de sexo esporádico em cada quarteirão, mas juro que nunca vi nenhum banquinho ajeitado e encostado a um sinal de aviso, anunciando local próprio para quem tiver vontade de chorar.

E se os homens chorassem?

Questiona a minha mente, estupefata e assustada com tamanha brutalidade cometida pelos homens nos dias que correm. Homens grandes e pequenos estão cada vez mais terroristas nos seus aposentos. Enquanto alguns tiram a vida das suas cônjuges de formas mais brutal possível, outros inovam, jogam-se nas pontes e rios, só para não se falar dos que se banham com combustíveis para depois enxugar com as chamas.
Há muito homem a chorar e nenhum ouvido, muito menos socorrido na sociedade. A busca das melhores formas de se aliviar de dores sem lacrimejar, tem sido um factor que aniquila os “machos” que seguem mortos vivos no seu anagrama.

Hoje choram sem lágrimas, lhes foi vedado o ensinamento de controlo da dor. Com certeza se gabam as mulheres que em uma sessão de fofoca desanuviam e buscam forças para encarar os desafios da vida. Os homens deviam ser mulheres e passarem pelos encontros entre tias e sobrinhas só para aprender a chorar.

Afinal de contas, que importância têm os ritos de iniciação masculina se os seus intervenientes saem sem tácticas para fazer face a algumas tempestades deste mundo.

Os templos perdem sentido em manter-se conservadoras até para atender questões sociais como educação sentimental do homem. Os homens continuam chorando de formas mais desabridas possíveis, enquanto que os ginásios das esquinas continuam a moldar músculos e não mentes para suportar o peso das adversidades.

E se os homens chorassem?

Dest Arte é o nome do musical concebido e dirigido pelo músico Zé Pires, que eternizou a trajectória da justiça em Moçambique até aos 30 anos da Ordem dos Advogados.

A cerimónia decorreu no Centro Cultural Moçambique-China, no passado dia 19 de Setembro. A cerimónia, que esteve concorrida desde o inicio, registou um número ímpar de advogados e estágiários que se fizeram presentes em traje de gala, conforme requeria o seu protocolo.

Logo à entrada do Centro Cultural, perfilavam, no local, ternos e gravatas, e vestidos exuberantes que incitavam à vaidade feminina ao evento.

A sala era espaçosa e, logo de início, deram-se boas-vindas ao Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. Carlos Martins, que, de seguida, deixou ficar o seu discurso, onde exaltou o exercício de advogacia em Moçambique, citou as dificuldades que o País teve e tem para ter um sistema de justiça compatível com a demanda. E, por fim, sublinhou que o dever número um dos advogados é efectivamente trazer justiça ao povo, acima de quaisquer interesses monetários.

De seguida, iniciou o musical de Zé Pires com um misto de musica clássica e contemporanêa, milimetricamente coreografada por bailarinos jovens, que passaram a sua classe ao evento. Minutos depois, foi a vez de entrarem em cena algumas das principais atracções do evento, tratava-se dos actores: Mário Mabjaia, Isabel Jorge, Horácio Guiamba e Dénio Pelembe.

Estes experientes actores tinham a missão de retratar a história da justiça em Moçambique, desde o período pós-colonial até aos 30 anos da Ordem dos Advogados, com recurso à encenação. Na encenação, o grupo de actores era uma família em que Mário Mabjaia era Pai, Isabel Jorge e Horácio Guiamba Filhos, e Daniel Pelembe o neto, em diferentes momentos do musical a família se debruçava sobre o estado da justiça em Moçambique.

Uma das figuras imortalizadas no primeiro momento da encenação foi o senhor Domingos António Mascarenhas Arouca. Domingos Arouca concluiu a Faculdade de Direito na Universidade de Lisboa, em 1960, tornando-se, assim, no primeiro advogado negro em Moçambique. Em 1965, foi eleito Presidente do Centro Associativo dos Negros em Moçambique.
Teve a oportunidade de exercer a advogacia, no período monopartidário, mas recusou-se por discordar com algumas práticas sociais. Foi crítico ao modelo de governação autoritário da época, devido ao desrespeito dos direitos humanos. Mas voltando ao show…

Onésia Muholove deu o pontapé de saída ao reluzir a sua jovem e bela voz, interpretando temas relacionados à ocasião, como Mbava Juiz,” de Lourena Nhate, que abrilhantou o show não só com o seu canto, mas também com o seu figurino misterioso. Para quem duvidava da grandeza e alegria da música moçambicana, ficou boquiaberto, e com algum cuidado não deixou nenhum insecto entrar. A música moçambicana esteve em destaque total, o elenco era assombroso: Zé Pires comandante do teclado, a orquestra juvenil melodiava os saxofones, Ebenezer Sengo na artilharia solo da guitarra, e Luís Gonzaga na infantaria da guitarra baixo.

O som era potente, e os instrumentos namoravam as notas musicais entre si produzindo um som bombástico e refinado.

No palco fez-se presente mais uma atracção do evento, a cantora Juliana de Sousa, que interpretou Didácia com o tema “Ndhaneta”, enchendo a sala de alegria e nostalgia, o público vibrou e maravilhou-se da sua música.

No Palco os actores estrategicamente assaltavam algo raro à classe dos advogados: Os seus sorrisos encarceirados no exercício de suas profissões. Nesta etapa, a família de actores debruçou-se sobre o período pós-independência, em que Moçambique possuia tribunais comunitários, tendo evoluido depois para SNJ (Serviço Nacional de Apoio Jurídico) até ao momento em que efectivamente criou-se a constituição, em 1990, para garantir os direitos e as liberdades fundamentais do Homem.

Após uma dose de suspense, o musical ganhou um contorno transcendente e metafísico. Era ela, a cantora das vestes angelicais quem segurava o microfone, as vestes eram angelicais porque em seu corpo a faziam parecer um anjo. Os executores então deixaram o depoimento dos instrumentos ressoar e eclodir, como se a música estivesse a ser inventada pela primeira vez.

E já não era apenas música moçambicana, já não era Jazz, Onésia ergueu o seu canto a um tom celestial, os rapazes da orquestra a acompanhavam com coros magistrais, como se do céu projectassem a sua voz, a sensação era de estar diante do criador em suprema paz.

Mais uma surpresa surgiu no evento, o carismático Salimo Mohamed entrou em palco, sim, era ele, era Salimo, sim, encarnado no corpo e voz de Pauleta Muholove. Trazia o seu chapéu característico, o seu estilo meio aéreo, e a sua voz bass motora. Foi com o tema “Gungula Nyautomi”, que choveram nostalgias do tio Salimo no público. Pauleta arrepiou o público, com a exploração do palco, voz e movimentos à moda Salimo. A ausência de luzes no público não denunciou quem se marejou. Salimo foi homenageado e lembrado com carinho e estima.

De seguida, entrou em palco Ivânia, ou simplesmente Dama do Bling, com o tema “Desabafo do recluso”, ao seu estilo característico rimou, acompanhada por um elenco especial: As reclusas trajadas a rigor, a fazer os backing vocals da música. Este tema serve como um auto exame de consciência e socialização do recluso, o público foi surpreendido de emoção e acarinhou a vibrante actuação que a Dama do Bling levou à noite da Ordem dos Advogados.

O elenco de actores destacou o papel do IPAJ na facilitação do acesso jurídico a pessoas arentes, e a criação da ordem dos advogados para intervir em caso de irregularidades e ilícitos eleitorais.

Foram lembradas e homenageadas várias figuras que contribuiram para a história da Ordem, da democracia e do Conselho Constitucional como Rui Baltazar, Carlos Alberto, Gilberto Correia,Tomás Timbane, Alice Mabota, Albano Silva, Maximo Dias e vários outros.

Yolanda Kakana, com o tema “Mufolhe”, encerrou a cerimónia com chave de ouro.

Começar por saudar o inconformismo e perseverança dos dois autores que, mesmo que colocados na periferia de quase tudo – talvez, muitos não tenham a devida dimensão do que significa existir e procurar afirmar-se fora de Maputo – muito têm feito, não só enquanto poetas e ficcionistas, mas muito particularmente através do seu activismo cultural e intelectual, na Associação Xitende.
“Ars Poetica” é um dos poemas mais conhecidos do poeta norte-americano, Archibald MaCleish que termina com dois dos versos mais invocados na literatura moderna:
A poem should not mean
But be
À medida que lia a obra Metamiserismo, Uma nova escola literária foram os versos acima que me vieram à mente, e curiosamente, por uma parte significativa dos arremedos poéticos de Deusa d’África e D. Midó das Dores caminhar no sentido contrário do que nos é proposto no poema de MacLeish. Isto é, o que o exercício de escrita da obra que temos agora nas mãos mais faz é procurar mostrar, significar, interpelar como se de um texto-manifesto se tratasse, à imagem dos manifestos futuristas das primeiras décadas do século XX.
A ideia de manifesto é, aliás, reforçada com a afirmação categórica, talvez provocadora, de que estamos, com esta obra, a inaugurar uma nova escola literária que significa, na óptica dos autores, que a “arte metamiserista se constitui como algo que deve ir para além da diversão e da informação, devendo ser um acto de atormentamento  das verdades falsas que a sociedade foi criando ou aceitando” (Prólogo, p. 12).
Só a leitura da obra e das que, eventualmente, lhe seguirão nos permitirá aferir até ponto esta pretensão é válida e efectiva. O que realmente a obra propõe, em termos estéticos, estruturais e semióticos, para se considerar o que o subtítulo, por exemplo, reivindica: uma nova escola literária? E a questão que fica subentendida é que existe uma velha escola. O que não se consegue discernir é: o que a caracteriza?
Metamiserismo, uma nova escola literária é uma obra de dupla autoria, porém traduzindo duas sensibilidades e duas formulações estéticas distintas, mas que convergem na intencionalidade de mostrar, dizer e significar. Ou não será, ressignificar? Se o primeiro, Dom Midó se atém a uma escrita dominantemente provocativa, a segunda, Deusa de África, sem deixar de ser interpelativa e aguerrida, esteia o seu verbo num assumido investimento formal e estético, como podemos observar num poema como, por exemplo, “Poesia é fechadura”:
Poesia é fechadura
com a autenticidade da chave
de dentro para fora (p. 58),
Ou, em “Texto”
À mesa serve-se em bandejas o quente e
olente texto
delicioso manjar com diversidade de iguarias
verbais (p. 62).
Sintomaticamente, percebemos que existe, aqui, uma indisfarçável consciência do labor da escrita enquanto compromisso essencial com a linguagem que se faz poesia. Mas é no compromisso com a vida vivida todos os dias que a poesia dos dois não só converge como se reveste de uma espécie de missão, como nos revela Dom Midó das Dores, em “A propósito do meu aniversário”:
mas eu já disse, não quero morrer
não quero ser o vento que passa como se
não passasse
gostava de ser o dinossauro deste e doutro
milénio
e a minha pegada continuasse firme e forte
na luta contra os tempos (p. 26)
Aliás, à partida, temos esse indicador antecipatório que a leitura de qualquer obra nos reserva: o título. Como podemos verificar, o título desta obra resulta da união programática, por um lado, do prefixo de origem grega, meta, que significa mudança, algo posterior ou transcendente, e uma palavra emprestada do espanhol, miserismo, que significa miséria. Criativamente, do antigo se formou um neologismo.
Podemos perceber aqui a centelha vanguardista desta poesia, portadora de um estandarte identificado com uma ou várias causas, entre outras, combater a miséria, a inércia, a insensibilidade, o conformismo, a degradação moral, social e política. Causas que, como sabemos, não são novidade na nossa literatura, e que desfilam aos olhos do leitor, em que assumidamente o sentido de missão se conecta com um intenso apelo da realidade envolvente. Isto é, nesse pendor, ela não faz mais do que vincar aquela que é uma das maiores vocações da arte africana: o seu profundo e estruturante diálogo com o meio de onde ela emerge. Exemplos:
é a rua parada na vida
é a estátua ferida
no poema de gás de Pande
movendo a miséria que se expande. (p. 36) (D. Midó, “A vida”)
… para que se reconheça a sua tenacidade
não se luta pelo trono como se de lixo se tra-
tasse na lixeira de Hulene vitimando um povo
que mata a sede a lágrimas de sangue. (Deusa d’África, “Fechadura”)
E naquilo que aos dois os irmana poeticamente, não se trata de deformar artisticamente a realidade, mas sim de procurar, nessa mesma realidade o que ela tem de perverso e inaceitável e, sem filtros, deixá-lo a mercê do universo de recepção dos leitores, como reiteradamente encontramos nas referências às prostitutas. Estamos, pois, diante de uma percepção utilitária e instrumental da arte, da poesia, neste caso.
Não interessa o que ela é, como defende MacLeish, mas o que ela faz ou pode fazer. Isto é, a legitimação da poesia decorre de uma função na qual ela é deliberadamente investida. Neste caso, alinhada com uma determinada ideia ou causa, de combater os vícios da sociedade, o que, de uma ou de outra forma, esteve sempre presente na literatura, seja ela nacional, africana ou universal. E, como sabemos, são variadas as funções que a arte pode assumir, incluindo uma função política. Só que, como nos ensina o filósofo alemão, Walter Benjamin, uma obra de arte só é politicamente se for esteticamente correcta.
Não é nenhuma novidade, na literatura, o recurso e a reiteração da obscenidade, da linguagem desbocada e indecorosa, como estratégias de afirmação, de irreverência ou de questionamento de uma determinada ordem instituída. O que, talvez, seja questionável, do nosso ponto de vista, é se a ênfase, a recorrência e o excesso, nesse sentido, são garantia de qualquer eficácia do que se pretende atingir. Sobretudo, em termos estéticos.
A estética do feio, segundo Umberto Eco, ou a carnavalização do grotesco, do mal, do imoral, do obsceno, do decadente, da indecência, nunca deverão eximir-se do serviço que prestam à própria poesia. Afinal, o que é a poesia, a literatura? Esta é uma questão que atravessa a história multissecular da literatura. No nosso modesto e redutor entendimento, trata-se simplesmente de um recurso da linguagem, de expressão e de comunicação, que nos permite dizer e nomear o que só desse modo podemos nomear, exprimir e comunicar. Sem banalizações nem reducionismos, cruzando sensibilidade, razão e emoção. E sobretudo uma ânsia inesgotável de transcendência dos nossos limites pessoais.
Este tem sido, aliás, um dos grandes desafios da história da arte: como tornar estético, espaço de fruição e de sublimação o que é imoral, horrível, feio, trágico e monstruoso? O que faz, por exemplo, da “Guernica”, de Pablo Picasso, uma obra sublime? O que faz de Babalaze das Hienas, de José Craveirinha, uma das maiores realizações poéticas da nossa literatura? Ou o aterrador “Saturno devorando seu filho” do também espanhol, Francisco de Goya?
Até que ponto o excesso da causa não pode concorrer para a escassez do verbo, do estético? Craveirinha, nos longínquos anos 60, em “Uma cantiga em 3 tempos” deixara já o mote: “A dificuldade / da verdadeira poesia não são as ideias. São as palavras”.
Se com o poema “A propósito do meu aniversário”, Dom Midó das Dores percebe o quanto esta sugestão do Poeta da Mafalala se institui como lei fundamental do fazer poético, Deusa de África mostra já uma apreciável destreza  e maturidade na forma como  a sua escrita se impõe em poemas como “Poesia é fechadura”, “Ai”, “Quantas vezes morremos, meu amor”, “Coro na Catedral”, “Céu nublado”, “Vinho na Toalha de Mesa” ou “Nada”.
Afinal, o dizer da poesia não é, por mais bem-intencionada que ela seja, a interpelação directa, é sem dúvida a sugestão, como muito bem nos mostra Deusa d’África”, em “Coro na Catedral”. Seria interessante explorar, nesta autora, a sua relação poderosamente ambígua com a religião, entre uma espécie de fascínio, por um lado, e a dessacralização, por outro, dos símbolos e dos rituais do cristianismo. É, pois, muito respaldados na arte da sugestão que encontramos:
pulsa dolorosamente o coração do que se
perde
ganha-se a desgraça humana no mundo
imundo
ardente a canção que ecoa a dor incendiada
pelo infortúnio
parte sem destino a moção ardente de um
país em alto mar… (Deusa, “Coro na Catedral”, p. 63)
A poesia, afinal, é muito mais do que a arrumação de palavras numa determinada disposição e com uma intencionalidade que a trespassa. Ela é uma disponibilidade interior sem limites. Que nos preenche e que nos faz invadir os espaços dos que estão distantes de nós, isto é, os que nos vão ler. Ela é, afinal, o reino infinito do espírito, como explicava Hegel.
Talvez eu seja alguém petrificado no tempo, prisioneiro, ainda, de uma percepção eventualmente ultrapassada, anacrónica e bolorenta da literatura, por ainda acreditar, idealisticamente, que a arte, a literatura, em particular, é um espaço de elevação, de edificação intelectual, de sofisticação da linguagem que se faz ambiguidade, sugestão, e que, em última instância, desafia a sensibilidade e a inteligência do leitor. Mesmo, ou sobretudo, quando há um combate em curso, cada vez mais incontornável, de corrigir as enfermidades da sociedade, de melhorar a condição humana e de transformar o mundo.
Termino, felicitando os dois autores re-irmanados em Metamiserismo, uma nova escola literária e incentivando-os a que não desarmem quer no sacerdócio da poesia quer nas causas que os movem. O país, a poesia, a literatura e a arte agradecem.
Maputo, 8 Agosto 2024

Já há festa de Marrabenta. Estou feliz. Posso morrer.
Dilon Ndjindji (2023)

 

Vai o homem e fica a obra. Todo mundo, nessa vida, cai, mas outros caem de pé, sustentados pelas suas obras. A voz do mestre da Marrabenta afinava-se aos poucos e bocados, enquanto combatia a doença que o internou no Hospital Central de Maputo (HCM), e agora se cala de vez.

Dilon Ndjindji, nascido em 1927, antes mesmo de se sonhar com a independência nacional, escreveu a sua história com as notas de violas. Na verdade, a sua história confunde-se com a história da Marrabenta.
Como se diz nesses lados de África, uma pessoa não morre, mas dorme na esteira da eternidade. Não resistiu ao sono eterno o auto-intitulado rei da Marrabenta. Dorme a escassos dias para se festejar os que combatem (Dia das Forças Armadas), um indivíduo singular que se entregou à Marrabenta e aos seus desafios, cujas lutas sempre combateu com afinco.

1927-2024, ver-se-á esses números na sua lápide, mas, entre um e o outro ano, há rastos de marcos e feitos para a cultura moçambicana. Uma história sem igual, que nos obriga a abaixar a nossa cabeça de rendição e vénia, mais do que de qualquer outra coisa.

Aos 12 anos de idade, Ndjindji começava a rebentar as suas guitarras de lata, ensaiando uma vida que se dedicaria, toda ela, à música na sua terra natal, Marracuene. Essa parte do mundo sempre fez parte do seu coração, imagino que a cada batimento seu lá ouvia-se uma sílaba de Marracuene. Parou o coração de bombear sangue a sabor de ngoma (música), e silencia-se Marracuene, com choros. Mas não só Marracuene, pois foi um homem de Moçambique inteiro e África, também, com entrevista até na Music Time in Africa (MTIA), em 2019.

Nos arredores de 1960, com a banda Estrelas de Marracuene, Ndjindji trouxe outra dinâmica com a sua energia contagiante. Com essa mesma banda cantou e encantou em muitos cantos desse Moçambique, e fez até tours pela Europa, cantando em sua língua. Presenteou-nos com vários clássicos e álbuns que marcam tanto a sua vida musical como a própria vida da Marrabenta. Estreou-se com “Xiguindlana”, lançou também outros álbuns intitulados “Dilon”, “O rei da Marrabenta”, etc.

É no álbum “O rei da Marrabenta” em que alcança o seu auge como artista. Esse álbum conta com vinte composições diferentes, mas com um único denominador comum: a guitarra acompanhado de xi-ronga (sua língua nativa). As músicas que mudam entre melodias calmas e agitadas, mostra muito do Dilon Waka Ndjindji, e suas simbologias desse seu lado energético e aconselhador, paternal e confiante.
É nesse grande álbum que se autointitula “Hosi ya Marrabenta” (Rei da Marrabenta), dando esse título a uma música. É esse mesmo título que empresta o nome ao álbum. Depois mergulhamos na composição “Yinguelana” (Escutem), onde ele, “Diloni Waka Ndjindji”, se apresenta.

Nas suas composições nunca faltou a temática morte. Na música “Utafa usiya ulombi” (Lit. Morrerás e deixarás açúcar), fala do partir de uma outra forma, pois a morte sempre requer uma forma para ser falada e acontecer. De forma pragmática e típica, apenas repete as mesmas palavras deixando as interpretações em aberto, até onde conseguimos divagar? Quando nos canta que iremos morrer e deixar açúcar, que açúcar? Pela sua natureza doce, ocorre-nos na cabeça que esteja a trocar papéis com sua metáfora.

Porque a metáfora nos ajuda a compreender um conceito em detrimento do outro, como sugere Lakoff e Johnson, Dilon Ndjindji explica o prazer, a libido Freudiana, por meio do açúcar. Apesar de mencionar nomes de mulheres na canção, o que nos leva a pensar em prazer sexual (para Freud se trata de maior manifestação da líbido), sente-se que fala também de outros prazeres que as pessoas têm. Essa música é uma lembrança de que todos os prazeres serão cá deixados, na terra. Uma lembrança, como quem diria, difícil num país caracterizado por cristianismo, pelo menos na zona Sul. Afirmando que morrerá e deixará para trás todos os prazeres, choca um pouco com o conhecimento cristão asceta, em que preza uma vida de sacrifício, uma vida de luta contra os desejos do corpo, como diria Nietzsche, uma negação da vida.

Ainda sim, lembramos com essa canção que não devemos esquecer de aproveitar o nosso presente, e pararmos, por segundos, de sonhar com uma felicidade transcendental. Nessa canção, o sujeito lírico confunde-se com o autor da própria canção. Aliás, para Dilon, a linha que separa essas duas entidades é muito ténue, parecendo até não haver.

Na música Marracuene, uma das mais céleres do artista a par de “Podina”, que também consta desse álbum, diz que Dilon se vai, e Marracuene chora a sua morte. A verdade disso é que nos chega, sim, a sua já há anos anunciada morte, e também banha-se de lágrimas Marracuene.

Na canção em alusão, também avisa o sujeito lírico, dizendo “Mu ta ti Vhonela”, ou seja, estaremos por conta própria. Entende-se que iria partir, na altura, com alguma dor no coração porque ninguém se interessava com a música tradicional moçambicana, em particular a sua Marrabenta. Se ele estava na vanguarda da cultura moçambicana, com quem iremos ficar com a sua partida? Era essa a questão que colocava há duas décadas.

Naquela que foi, quiçá, a sua última entrevista, em 2023, no dia em que vários artistas e amigos fizeram a homenagem, depois de ter recebido a alta hospitalar, disse: “Já tem festa de Marrabenta, estou feliz. Posso morrer”.

Dorme na cama dos reis, Dilon. Parte com um sentimento de dever cumprido na luta para a valorização da música e ritmos moçambicanos, também de toda a cultura moçambicana. Ndjindji é uma referência, um ícone para todos. Nesse Moçambique que é sufocado pela globalização, remou contra as ondas e venceu. Andávamos globalizados quando Dilon estava bem localizado. Diga-se, é no fim que se fazem as contas. Agora só nos resta uma vénia e um adeus ao mestre da Marrabenta…

Ao F. Noa,

pela visão

 

Estive na Ilha. Na Ilha de Moçambique, esse paraíso histórico,  espaço de pedra que tem encantado Poetas, estudiosos e turistas. Estive lá há uns meses, Junho precisamente, com os Professores de Literatura, o decano Lourenço de Rosário, encantando e decantando Camões,  afirmando, no alto da sua merecida cátedra,  que a ilha dos amores nos Lusíadas é a nossa ilha de Moçambique, e o incontornável Professor Francisco Noa, ex-reitor da UniLúrio, escalpelizando Poetas que aportaram, física e imaginariamente, a Ilha de Próspero, titulo de um dos mais belos livros do nosso grande Poeta Rui Knopfli, de quem retiro, com o devido respeito, o poema Muipiti:

“Ilha, velha ilha, metal remanchado,/ minha paixão  adolescente, / que doloridas lembranças   do/ tempo/ em que, do alto do minarete, / Alah -grande sacana! – sorria/ aos tímidos  versos bem/ comportados/ que eu te fazia./  Eis-te, cartaz, convertida  em puta/ histórica,/ minha pachacha pseudo-oriental/ a rescender a canela e açafrão,/ maquilhada de espesso m’siro/ e a mimar, pró turismo labrego, /trejeitos torpes de cortesã/ decrépita. /  Meu Sitting Bull de carapinha e/  cofió,/têm-te de cócoras na sopa/ melancólica/ de uma arena limosa e marinha,/ gaivota tonta a adejar  inutilmente/ ao lume  de água contra  a amarra/ que te cinge  para sempre/ ao bojo ventrudo do continente. /  De teu, cultivam-te a vénia e a/submissão/ solícitas, trazidas nos pangaios/ lá  do distante Katiavar, / expondo-te  apenas  no que tens de / vil,/ razão talvez para que ao longe, de/ troça,/ piquem  mortiças  as luzes  do/ Mossuril / ou sangre no meu peito esta/ mágoa incurável./ Mas retorno devagarinho as tuas/ ruas vagarosas,/ caminhos  sempre abertos para o/ mar,/ brancos e amarelos filigranados/ de tempo e sal, uma lentura / brâmane (ou mussulmana?)/ durando  no ar,/ no sangue, ou no modo oblíquo/ como o sol/   tomba sobre as coisas ferindo-as/ de mansinho/ com a luz da eternidade./   Primeiro a ternura da mão  que/ modelou/ esta parede emprestando-lhe  a/ curva hesitante/ de uma carícia  tosca mas/ porfiada,/ logo o cheiro a sândalo, o/ madeiramento/ corroído da porta  súbito/ entreaberta,/ o refulgir da prata na sombra  mais/ densa:assim descubro, subtil e cúmplice,/ que a dura linha do teu perfil/  autêntico/ te vai, aos poucos, fissurando a/ máscara.”

A Ilha nunca fora,  desde a minha iniciação literária, lá  vão  trinta e tal anos, preocupação  maior. Dito de outra forma: nunca me preocupei, como muitos, em conhece-la com estrepitosa ansiedade. Sempre soube que a ilha não  soçobraria, não se perderia, tal como a mítica Atlântida, nas profundezas do Índico, em resultado, nos hodiernos tempos, das mudanças climáticas. Sabia que quando a visitasse as pedras estariam lá, falando com outros personagens, desafiando outros tempos históricos,  mesmo que a encontrasse no estado que Rui Knopfli descreveu no poema Padrão: “ Uma humidade escura e pegajosa/ alastrará  de novo/ sobre o teu dorso de brancos e/ amarelos, desenhando/ nele estranhos, esquálidos/ arquipélagos fantásticos. / A gangrena e a lepra do tempo/ minarão/ encarniçadamente o teu/ arcaboiço  atarracado,/ modelando-se à  imagem e/semelhança do bizarro/ solo osteoporoso em que-/ memória  cristalizada/-repousas entorpecida de mar e ausência,/ esmerilado e exato monumento/ à  vã  cobiça,/ aos erros graves e à grandeza/ desmedida que os gerou./ Sob a metálica indiferença de um/ céu anil,/porto de olvido  na rota perdida/ das Índias, / volverás  assim um ressentimento de areia,/ soluço de pedra ao sabor da/ monção.”

A minha preocupação  esteve num outro Moçambique, o Moçambique  profundo. Sabia que lá  não  encontraria as pedras que carregam a memória  dos tempos, mas um espaço volátil  ao tempo e a memória  presente. Sabia que precisava beber essa multiplicidade de vozes e culturas que se entrelaçam no espaço nação. E deixei-me, simultaneamente, deslumbrar e assombrar com o culto nyau, da longínqua Angónia, com a graciosidade da dança Nganda, executada pelos nyanjas, em vistosas vestes brancas, lembrando marinheiros de outros tempos, cortando as águas do grandioso lago Niassa; deixei-me levar pelo encanto do tufo, maravilhosamente  executado pelas sensuais macuas, vestidas  com o rigor que a capulana exige perante a ocasião, e o atemorizante mapiko dos macondes, executado com energia e elegância. E, mais a sul, nas vastas planuras de Gaza,  assisti o vigor do xigubo, dança guerreira, lembrando os áureos tempos do Mfecane – a diáspora nguni, movimento guerreiro que redefiniu o mapa geográfico e politico da África austral no primeiro quartel do século XIX. E depois a culinária, os sabores de Inhambane com a sua característica matapa, a xima branca dos senas, acompanhada do  thépwé (camarão  miúdo), o cabrito de tete, nobremente   chamado, num dos  seus singulares pratos, de khongué, a internacional galinha à zambeziana, e outros sabores como a xiguinha, preparado à  base de mandioca ou batata doce, e a mboa, à base das folhas de abóbora, meu caril predilecto. Interessei-me por este Moçambique, por estes valores, e pelo modo de estar  e ser do makonde, ajaua, lomué, nhungué,  matsua,  chope e ronga, entre outros  grupos etnolinguísticos. De longe ouvia falar da ilha, do dinheiro doado à sua conservação, da elevação a património mundial da Unesco, em 1991, do delírio de estrangeiros e nacionais que a visitavam, e do espanto de todos quando eu dizia, com certa ironia, que nunca a visitara. Senti, com certa desolação, na infundada incredulidade dos que me questionavam, que o Moçambique real, o território profundo, pouco os preocupava, pois preferiam ater-se ao património edificado, ao legado colonial, às seculares pedras, à parte visível, à superfície facilmente tragável, olvidando o que de significativo existe à identidade nacional. Tal perspetiva teve o respaldo da UNESCO, quando, em 1972, adoptou a Convenção do Património Mundial, Cultural e Natural – o património  edificado. As grandes políticas de conservação centraram-se no património  edificado. De 1978 até  aos tempos de hoje, várias somas de dinheiro foram drenadas para a conservação do património edificado da Ilha de Moçambique. Os cultores de Direito têm uma expressão  traduzida do latim que diz: “se é  lícito o mais, será lícito o menos.” O menos que é o mais na nossa realidade cultural foi obliterado.

E só em 2003, a 17 de Outubro, é que a UNESCO aprovou a convenção para a salvaguarda do Património Cultural Imaterial, entendido como “práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões, bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhe estão associados.”

É o que o continente africano sempre precisou: a salvaguarda do imenso património cultural imaterial. Foi esse património que me impeliu (impulso mais emotivo que consciente, pois esta, a consciência, foi emergindo paulatinamente) a afastar-me das pedras que falam e a  imergir  no Moçambique profundo, procurando conhecer e assumir a diversidade cultural deste vasto país.

E só neste ano de 2024, e a propósito dos 500 anos de nascimento do poeta  Camões, Luiz Vaz, de nome, aceitei visitar a Ilha. Sabia que nada abalaria as minhas raízes, alicerçadas no vasto património imaterial, ao me confrontar com as seculares vozes  árabes, indianas e cristãs, impregnadas nas  pedras  e muros e frontarias e pórticos corroídos pelo tempo. Daí não  me ter  espantado com a  sonolenta beleza da ilha, e muito menos com o distanciamento dos naturais da mesma, em relação ao  património  de pedra, pois estes mantêm-se, há  séculos, no seu makuti (casas maticadas – hoje muitas delas cimentadas -, com cobertura de folhas de palmeira), em bairros circundantes aos edifícios de pedra. Ao passear por esses populosos bairros, apinhados de crianças  carentes, choros inquietantes, rostos expectantes, veio-me à  mente  o incontornável poema de Knopfli:  Canção de Ariel – “ esquálidos  vultos aracnídeos,/ escorre-lhes a condoída  mágoa / ao longo dos magros ombros./ Assim imóveis e mudos, cravados/nos muros, nas pedras, na paisagem/ dão costas  à Terra Firme,/ cujo rumor, surdos, ignoram./ Perde-se-lhes no longo do mar,/ entre irisados reflexos e sugestões da areia,/ o melancólico resignado olhar./ Que oculto fascínio, secreto ópio,/ da baixa  coralina os atrai?/ Que vozes entorpecentes surdidas/ do abismo estarão  ouvindo?/ O tumulto que sobe do continente/ não os inquieta ou contagia,/ em seus rostos não há  sinal,/ centelha ou fulgor do incêndio / que, no horizonte próximo, lavra./ Imóveis  e antigos, fitam o mar./ Não são  estes os filhos de Caliban.” E na verdade não são, pois a canção de Ariel não os faz sonhar porque distantes da realidade de pedra, das “vozes entorpecentes surdidas/ do abismo.” Preocupam-se com as carências  do dia a dia, com as ilusões difundidas da distante capital desconhecida. Mas por outro lado, na outra face da moeda, senti na ilha que visitei, a assumpção de outra  vibração, outra pulsação, às canções  de Ariel, surdindo, como diz o Poeta, das profundezas do mar.

Com a criação  da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, em 2017, durante o consulado de Francisco Noa, como Reitor da Universidade de lúrio, a ilha começou  a mudar de paradigma. Hoje, por toda a ilha, estudantes universitários dão  outra vida ao espaço.  É impressionante a dinâmica  que se entranha  na zona de pedra. O nível de literacia tende a crescer.

E foi com agradável surpresa que depois de um sarau cultural no museu de S. Paulo, já  noite adentro, e meio perdidos no emaranhado de ruelas, um jovem indicou-nos as verdadeiras quelhas e travessas do nosso destino. E por entre a conversa sobre o dia cultural promovido pela Faculdade, perguntamos ao jovem estudante de 16 anos, de nome Esmel – fazendo lembrar esse fulgurante parágrafo inicial de Moby Dick, romance de Herman Melville: Call me Ishmael (suponhamos que me chamo Ismael)-, sobre perspectivas de futuro. E este, com uma serenidade desarmante, disse-nos:

– Quero ser Poeta!

– Poeta?, interrogamo-nos em silêncio.

– Sim, Poeta!

Entreolhamo-nos. Sabia que  por entre o silencioso sorriso no olhar esguio do antigo Reitor, estava  a certeza que a semente  lançada  na ilha  desabrochava: os filhos de Caliban estão  povoando a ilha.  Sonham com coisas belas, querem outra  geometria no traçado das travessas da Ilha. E o sinal da mudança reside tão somente naquilo que não queremos investir: educação.

A ilha quer outra perspectiva do poder Político. Senti, em muitos,  a ânsia de verem o edifício da Fortaleza de S. Sebastião a transformar-se num  espaço académico  e de lazer, onde os estudantes substituam o capim da incultura por livros e flores que indiciem um futuro que saiba reconciliar-se, sem mágoas, com o passado. Senti que os ilhéus  querem ser sujeitos e não objectos da sua História. E que  Ariel,  personagem da famosa peça de Shakespeare, a Tempestade, ganhe a verdadeira dimensão metafórica no memorável poema do grande e esquecido Rui Knopfli, Poeta que cantou, mais do que ninguém,  a Ilha de  Moçambique.

E de sabores, permitam-me que termine assim o texto, ficou-me o siri siri, prato típico da Ilha que rivaliza com os melhores da nossa rica culinária.

Maputo, 2024.

 

 

 

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara!
in Ensaio sobre a cegueira, José Saramago.

 

Quanto mais me aproximava, mais tudo ao redor se desvanecia. Era como se só nós dois existíssemos, presos em diálogo silencioso e misterioso. Senti uma presença que me puxava, uma força invisível que me mantinha atenta como se quisesse me contar algo. Eu não sabia o que estava prestes a descobrir, Eu não sabia o que aquele momento traria. O que eu sabia, porém, é que aquilo exigia meu olhar.
“Eu não sabia”! Este é o título da obra que agora ocupa a minha mente, desafiando-me a descobrir o que, afinal, eu ainda não sei!
Ao primeiro aspecto, o quadro de Titos Mucavele exibe uma verticalidade notável, em que as figuras dominam o espaço central e a composição parece compacta, como se a própria textura do quadro pressionasse as figuras para dentro de si.

Afinal, o que elas “não sabiam”? Talvez não soubessem o peso de carregar o desconhecido ou a falta de compreensão sobre as forças que moldam suas vidas.

Mucavele faz uso de uma paleta que combina tons terrosos e metálicos, entrelaçados com rosas pálidas e vermelhas, que surgem nos corpos das figuras. Esses tons rosados, que predominam nos corpos, suscitam uma sensação de fragilidade, como se a pele das personagens estivesse exposta ou ferida. É uma cor que remete à carne viva, ao sangue sob a pele, à própria essência da vida que pulsa por baixo da superfície. Por outro lado, a textura áspera do fundo da obra, de tons cinzas, sombreados e verdes sujos que envolvem as figuras formam um cenário quase sufocante, como se o ambiente ao redor delas estivesse comprimido, sem luz ou ar, enfatizando uma ideia de peso emocional. Por conseguinte, a oposição entre essas cores, isto é, rosa que sugere vida e cinza que sugere desgaste, gera uma tensão cromática que reflecte o estado emocional das imagens.

O pintor trabalha com um estilo muito expressionista, com uma tendência à deformação das figuras, não para afastar o espectador da humanidade das personagens, mas, sim, para intensificar a força emotiva.

Esse uso da deformação, com cabeças alongadas, pescoços finos e corpos estendidos, gera uma dissonância visual que nos faz perceber as personagens como figuras que carregam um fardo existencial pesado.

Ora, o vaso presente nas mãos de uma das figuras é outro aspecto com forte conotação. Na história da arte, vasos são frequentemente associados a símbolos femininos de nutrição, fertilidade e preservação.

Aqui, o vaso pode ser interpretado como um recipiente de memórias, segredos ou responsabilidades que a mulher carrega consigo, sem plena consciência de seu conteúdo.

No entanto, o gesto das mãos das duas figuras é suave, mas também possui uma firmeza inquieta. As mãos se tocam de forma que não se sabe ao certo se é um gesto de apoio ou de controlo. Será que uma das figuras tenta evitar que a outra derrame os segredos contidos no jarro?
Ou será que, ao contrário, a figura que segura o jarro é quem precisa de apoio para carregar esse fardo?

Esse gesto ambíguo entre as duas personagens nos faz questionar a natureza dos seus laços e o que realmente significa não saber, talvez ambas não saibam, mas a sensação de ignorância compartilhada cria uma dependência mútua, onde uma apoia a outra nesse estado de desconhecimento.

Adicionalmente, os cabelos dessas figuras não são apenas um adorno, mas revelam um diálogo oculto. O formato quase espinhoso, com pontas erectas e angulosas, pode simbolizar a rigidez ou a adaptação necessária para sobreviver em um ambiente hostil.

Os olhos semicerrados, que quase se fecham, parecem indicar uma rejeição ao que está diante delas, ou uma aceitação relutante do que não se pode mudar. Esses corpos “não sabem” porque não podem ou não querem ver o que as rodeia, ou seja, a sua alienação é tanto uma defesa quanto uma prisão. A maneira como os corpos se fundem em apoio sugere um vínculo inquebrável entre elas.

O uso da luz e da sombra é subtil, porém eficaz. As imagens emergem de um fundo sombrio e indefinido, como se fossem reveladas à medida que a luz as toca. A iluminação, não naturalista, mas simbólica, parece emanar de dentro, especialmente nos rostos, sugerindo uma energia em processo de manifestação.

Essa luz interna é um reflexo da complexa realidade do posto administrativo de Namanhumbir, no distrito de Montepuez, Sul de Cabo Delgado, onde a exploração de rubis deveria iluminar o caminho para o desenvolvimento comunitário. No entanto, o brilho prometido não se concretiza, pois os 2.75% das receitas destinadas aos projectos de desenvolvimento permanecem ausentes.

Assim, a promessa de progresso, que deveria ascender das sombras da exploração mineral, revela um panorama de optimismo não realizado, onde a luz inspiradora parece falhar em alcançar a verdadeira transformação esperada pela comunidade.

Eu não sabia que com óleo sobre tela, de 40×60 cm (2021), era possível transmitir tanta informação em um só quadro.

O trabalho de Titos Mucavele, que integra a exposição colectiva intitulada “Horizontes partilhados e múltiplos olhares”, na Fundação Fernando Leite Couto, até 4 de Outubro, exemplifica como a arte pode revelar dimensões significativas e provocar reflexão social.

Juntamente com obras dos artistas plásticos Famós, Júlio Xirinda, Markos P’Fuka, Pekiwa e Saranga, este quadro não só enriquece a nossa compreensão sobre a condição humana, mas também destaca a diversidade e a envergadura das perspectivas artísticas contemporâneas. Portanto, o impacto do quadro, e da exposição como um todo, é a capacidade de convidar o espectador a explorar novas formas de percepção e a reconhecer a arte como um meio vital para a comunicação e o diálogo. Com efeito, se retém que uma única obra pode oferecer um espelho para os níveis de vivência humana e expandir nossa visão.
Eu não sabia! E agora eu sei!

 

 

 

 

 

Joburg, Braamfontein, 16 de Setembro de 2024

Diz-se que os mortos pertencem a uma dimensão superior à nossa. Nós, os que ainda estamos à espera da morte, não passamos de vermes erectos, parasitas relativamente evoluídos. A civilização não é se não a expressão do nosso desejo de transcender a mesquinhez da existência mundana. Morrer não é apenas o nosso fatal destino, mas também o nosso mais ardente desejo. Todo Homem deseja a sua morte desde o dia que nasce. Uma morte gloriosa é o que andamos todos à procura.

Há uma semana, certas circunstâncias da vida levaram-me ao exílio voluntário, que vivo pela primeira vez na cidade de Joanesburgo, em Braamfontein. E ontem decidi transcender os recifes, ir para além das muralhas invisíveis que separam o centro da cidade à periferia, decidi atravessar a ponte aérea, o viaduto que liga Braamfontein à New Town. Do outro lado da cidade a realidade é mais dura, o comércio informal, a indigência e a violência formam a paisagem. Finalmente senti-me em casa.

Na rua, logo na entrada de New Town sou surpreendido com um concerto, dois jovens fazem uma dupla musical, um faz de DJ e de corista, o outro, o mais janota, vestido rigorosamente a la Michael Jackson de microfone na mão protagonizam um dos mais bonitos momentos artísticos que já testemunhei na minha vida. Joburg é uma aparição.

Regresso ao outro lado da cidade de cigarro na boca e a pensar. Maputo fica a cinco horas do futuro. Pelo caminho, de novo na ponte, encontro-me com um grupo de mendigos a fazer à cama, dou-lhes cigarros, como em Maputo, dois deles são moçambicanos, ambos mestiços, são simpáticos, oferecem-me tudo que têm, amo os mendigos de todos os lugares, neles a essência da liberdade e o verdadeiro rosto da nossa hipocrisia como sociedade.

Numa tarde chuvosa na cidade de Maputo, o sol ocultou o seu brilho, dando passagem a nuvens cinzentas que se espalharam pelo céu. As gotas de chuva inundaram as ruas, disfarçando os buracos que, normalmente, são visíveis quando a força das águas não encobre o solo. As pessoas apressavam-se a procurar abrigo, enquanto o som da chuva batia suavemente nas janelas, criando uma atmosfera melancólica, mas ao mesmo tempo reconfortante. 

A cidade, envolta num manto de águas, parecia ter entrado numa pausa, onde o tempo se arrastava lentamente, convidando à reflexão e ao abrigo. Foi nesta tarde que Josefina e Adolfo decidiram sair para comprar alguns materiais para a sua nova casa. A caminho da loja, Josefina conduzia o carro com normalidade, no entanto, não conseguiu prever a localização exata dos buracos daquela estrada. 

Foi quando, próximos a um centro comercial, um dos pneus do carro entrou num pequeno buraco criando congestionamento porque o carro terá ficado preso um alguns minutos… Todos à volta, esquecendo-se da chuva, começaram a dirigir palavras ofensivas a Josefina e ao seu marido.

 “Sai do volante, não vês que és mulher? Deixa o homem conduzir!” 

“Conduz lá, camarada, estamos a perder tempo aqui! Tira essa senhora daí”

“Se estás a ensinar-a a conduzir, faz isso noutro lugar, não aqui! Nós estamos com pressa.” 

Todas essas palavras dirigidas a Josefina e Adolfo eram motivadas pelo facto de ser Josefina a conduzir o carro e não Adolfo. Era inconcebível para aquelas pessoas que ela estivesse ao volante em detrimento do marido, subestimando as suas capacidades e a sua autonomia.

 

SÓ PELO FACTO DELA SER MULHER! 

Mas Adolfo não via problema algum em ser Josefina no volante, para ele até era melhor que ela conduzisse porque ela conduz melhor do que ele…! 

O caso de Josefina e Adolfo não é um grito isolado, mas uma chamada à reflexão profunda sobre a violência de género que permeia as nossas vidas. 

Recentemente, uma amiga partilhou comigo uma experiência que ecoa essa realidade dolorosa. Ela vivia com o marido e os filhos e, num dia que prometia ser especial, ele reuniu os amigos para assistir a um jogo de futebol na televisão. A minha amiga sempre foi apaixonada pelo desporto; conhecia os nomes dos jogadores, discutia as táticas com fervor e ansiava por sentir a emoção colectiva daquele momento. No entanto, ao perceber a expectativa dela de se juntar a eles, o olhar do marido transformou-se. Em vez de a acolher, ele afastou-a com um gesto brusco, sentenciando que “não ficaria bem” para ela assistir ao jogo com os homens. 

Ele condenou-a ao papel de mera servente, ordenando que permanecesse na cozinha, a improvisar petiscos enquanto eles vibravam na sala. Para ele, a ideia de que a sua esposa, mulher e mãe, poderia partilhar o mesmo entusiasmo que os homens parecia insuportável. Era uma prisão invisível, marcada por regras cruéis que desumanizavam a sua paixão. 

A mensagem era clara: ela não tinha permissão para ser quem realmente era. E assim, num dia que poderia ter sido de celebração, a paixão da minha amiga foi silenciada, como tantas outras vozes à volta do mundo. A cozinha tornou-se a sua cela e ela, uma espectadora da sua própria vida, enquanto o futebol, um símbolo de sonho e empolgação, se transformava num lembrete doloroso da liberdade que lhe foi negada. 

Esta história não é apenas uma anedota; é um eco da luta silenciosa de muitas mulheres que, assim como ela, se veem aprisionadas por normas e expectativas que as relegam ao segundo plano, sufocando as suas aspirações mais genuínas. 

Ainda outro relato é o de uma jovem que, ao perder uma oportunidade de promoção no trabalho, se deparou com a dura realidade da discriminação de género. O seu supervisor, avaliando-a apenas pela sua condição de mulher e pela sua juventude, afirmou que não era necessário que ela recebesse um aumento, uma vez que o provedor da família seria o marido e não ela. 

Este estigma não só desconsiderava o talento e a dedicação da jovem, como também perpetuava a ideia arcaica de que o lugar da mulher é, essencialmente, em segundo plano.

O director da empresa, reconhecendo o esforço e a competência dela, decidiu intervir e conversar com o supervisor sobre a sua promoção e um possível aumento salarial. No entanto, em vez de apoiar a jovem e facilitar o processo, foi o próprio supervisor quem bloqueou essa oportunidade, impedindo que ela obtivesse o reconhecimento que tanto merecia. 

Essa situação retrata um ciclo vicioso de injustiça que muitas mulheres enfrentam diariamente, onde as suas capacidades são subestimadas por questões de género. 

A frustração e a indignação que esta jovem sentiu são ecos de uma luta que ainda persiste em muitas esferas da sociedade, um lembrete de que a igualdade de oportunidades continua a ser uma batalha a ser travada.

No nosso dia a dia, frequentemente deparamo-nos com situações que nos desafiam a refletir sobre o quanto os estereótipos ainda permeiam as interações humanas. 

A história de Josefina e Adolfo, onde um simples acto de conduzir um carro se transforma num campo de batalha contra estereótipos de género, é apenas um exemplo de uma realidade que muitos enfrentam. 

Esta narrativa não é isolada; é o espelho de uma sociedade que, apesar dos avanços, ainda luta contra as correntes da violência baseada em género. Parar para refletir sobre a raiz da violência é um passo vital na luta por uma sociedade mais justa e equitativa. 

O que leva algumas pessoas a subestimar a capacidade de outra com base no seu género? Por que razão muitos ainda acreditam que papéis definidos são imutáveis e devem ser seguidos rigidamente? Estes questionamentos são essenciais para compreender que o preconceito, em suas mais diversas formas – seja por género ou raça– é um entrave à convivência pacífica.

Promover mudanças significativas exige coragem, disposição para aprender e a vontade de desconstruir ideias preconcebidas. Ao levantar a voz contra injustiças, ao educar outros sobre a importância da equidade e ao praticar a escuta activa, plantamos sementes de mudança. 

O apoio mútuo entre os géneros feminino e masculino, e o não olhar para a cor, raça e origens é um poderoso catalisador que pode transformar as nossas comunidades. É importante lembrar que a luta pela erradicação da violência, em suas várias formas, está intrinsecamente ligada à luta contra os estereótipos. 

Uma sociedade que respeita as suas diferenças e valoriza a dignidade de cada ser humano torna-se uma sociedade mais forte e resiliente. Vamos juntos desafiar as normas que perpetuam a violência e a discriminação, e construir um futuro onde todos possam viver em segurança, liberdade e respeito. 

Neste momento de reflexão, convido-vos a perguntar-se: Como posso contribuir para a construção de um mundo sem Bias? Que pequenas mudanças posso implementar na minha vida quotidiana para promover a equidade?

Eu, por outro lado, penso de forma diferente. Desde a infância, o nosso pai educou-nos de maneira equitativa, enfatizando que todos nós deveríamos estudar e ter a educação como prioridade. O facto de ele nos incentivar de igual forma a mim e aos meus irmãos incutiu, de forma indirecta, a ideia de que não devem existir diferenças no tratamento entre homens e mulheres, especialmente no que diz respeito às oportunidades que surgem na vida. Acredito firmemente que não devemos privar as mulheres de oportunidades e do respeito que merecem apenas pelo simples facto de serem mulheres.

É fundamental que aprendamos, desde já, a apoiar-nos mutuamente, independentemente do género, da cor ou da origem. Devemos despir-nos dos estereótipos que, em tantas ocasiões, nos impedem de enxergar o potencial dos outros e, acima de tudo, cultivar um olhar empático e solidário. 

A verdadeira mudança começa quando começamos a valorizar cada pessoa pelo que é, quando abraçamos a pluralidade das experiências humanas e reconhecemos que, juntos, podemos construir um mundo mais justo. Afinal, o crescimento e o sucesso de cada indivíduo enriquecem não apenas a si mesmo, mas também toda a sociedade.

Vivemos num planisfério com políticas brilhantes de acesso à educação. A educação é consagrada como direito fundamental do cidadão quase em todas sociedades do globo. Porém, o acesso a uma educação de qualidade, muitas vezes é condicionado pela pertença da classe social do indivíduo. O receio de igualdade na aquisição de conhecimento, faz com que as sociedades tenham dois tipos de educação: Uma educação aprimorada, que preocupa-se em adoptar o indivíduo com conhecimento (habilidades técnicas, competências e o saber fazer com excelência) que o faz competir sem receio em qualquer mercado da vida; e a outra educação é aquela em que não há interesse em apetrechar o indivíduo com ferramentas educativas que o blindem para enfrentar e resistir às adversidades do mercado concorrencial.

É verdade que uma educação de qualidade melhora os índices de cidadania, e isso, pode ser visto como uma ameaça para alta sociedade. A oferta de uma educação classificada é dividida entre os membros da classe social qualificada, enquanto que os membros da periferia são submetidos a migalhas de educação que só servem para melhorar as estatísticas da política de educação formal.

É verdade que as condições sociais ainda determinam a qualidade de educação ofertada. A alta sociedade ainda continua com privilégio exclusivo em frequentar nos melhores ensinos do mundo, e a exclusão educativa de qualidade (falta de profissionais de educação especializados, ausência de bibliotecas e laboratórios, ambiente educativo desfavorável) ainda atinge os que já vem ao mundo com desvantagem económica. A educação devia ser uma luz que brilha as consciências de todas sociedades, independentemente da sua condição ou realidade social.

A condição de vida das sociedades que vivem na periferia é caracterizada por dificuldades imensas, resumidas em insuficiência de recursos que o torna frágil na competição social com os ditos da classe média ou alta. A oferta de uma educação com fraca qualidade, fragiliza de certa forma as sociedades periféricas. A realidade social, tem tanta influência na construção duma sociedade comum.

A educação desprezível fornecida as periferias não cria condições para a preparação do indivíduo que queira se integrar nos vários nichos do mercado competitivo, por ser uma educação “flatus Vocis” (voz vazia). Fornecer uma educação de excelência para todas as classes, e adoptar políticas que permitem modernizar a periferia, pode ser um caminho perfeito para diminuir a marginalidade social que sai da periferia para a alta sociedade ou metrópole, por conseguinte, aumenta as perspectivas para diminuição da pobreza de conhecimento e pobreza económica.
As classes subalternas precisam de estar representadas nos órgãos de tomada de decisão, mas para tal, a escolarização qualificada dessas classes é condição sine qua non. Não se torna competitivo sem conhecimento classificado suficiente. É sabido que o grosso da população em várias sociedades pertence à classe baixa, sendo os da periferia maioritária e menos escolarizados ou com uma educação frágil, o que acaba influenciando de forma significativa na construção ou manutenção do subdesenvolvimento das nações. Freitas (2018) elenca que “A educação baseada na formação e no desenvolvimento humano, que inclui a formação da personalidade cidadã: um antidoto ao comportamento corrupto e criminoso que impede o desenvolvimento socioeconómico, cultural e político das nações”.

A educação tem maior peso no desenvolvimento das nações. A actual realidade socioeducacional é discriminatória. As sociedades para serem justas e alcançarem o desenvolvimento socioeconómico, político e cultural, precisam de ter uma educação que atinge com o mesmo grau de excelência as várias classes sociais. “O conhecimento é indispensável para alcançar o sucesso. Mas vamos deixar claro o verdadeiro conhecimento, não, o falso”, conforme Julio Novoa Cisneros.

Quando a propaganda nazista usou os Media recém-criados, na primeira metade do século XX, para mobilizar a população alemã no apoio à sua guerra, serviu-se da arte (música, teatro, filmes, livros, pintura) para difundir inverdade com forte carga ideológica. Discursos elogiosos sobre si e cartazes com caricaturas que ridicularizavam os seus principais alvos (judeus) garantiam que a mensagem nazista chegasse às massas com sucesso para gerar lealdade política. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os Media centram-se a questões comerciais para promover e vender bens culturais.

Parece-nos fazer sentido que alguns teóricos da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer, ao fundarem a teoria da Indústria Cultural, concebam a sua visão crítica sobre a arte que se estava a tornar cada vez mais enxuta, por conta da sua reprodução massiva e seriada, para acomodar interesses capitalistas dos agentes económicos da época. Foram precisamente dois anos após o término da Segunda Guerra que Adorno e Horkheimer publicaram a “Dialética do Esclarecimento”, onde afirmaram que a sociedade estava sendo manipulada através da popularização da arte e bens culturais por meio dos grandes Media, tendo em vista o lucro. E qual seria então o ponto crítico da produção acelerada de bens artísticos em larga escala? Tem que ver com o facto de serem produzidos somente para o entretenimento, sem possibilidade de gerarem reflexões ao consumidor. Esta foi uma visão celebrada por artistas renomados no planeta como é o caso de Nina Simone ao referir que “o papel do artista é reflectir o tempo em que vive” e a arte enxuta, infelizmente, não abre essa possibilidade.

Se a ascensão da rádio e televisão “pauperizou” a arte, então a Internet veio extinguir a ideia do milagre da unicidade e exclusividade na produção artística. Isso pressupõe que a padronização e a produção em série da arte tornaram-se realidades irreversíveis, o que significa que a Indústria Cultural veio para ficar, cabendo a cada nação como lidar com as suas manhas. Em outros quadrantes fora de África, por inerência da evolução, as abordagens sobre a Indústria Cultural já transcenderam o estágio de críticas ao conceito. A preocupação actual é com a robustez e hegemonia industrial. No caso particular de Moçambique, qualquer discussão que nos pareça fazer sentido seria sobre como o Estado concebe a Indústria Cultural a par de como o mundo a concebe centrando-se na competitividade.

Se concordamos que os bens culturais exógenos se revestem de um padrão universal sedutor que apreciamos, e por isso consumimos, parece-nos racional pensarmos em organizarmo-nos para ombrear com esses centros de produção de tais bens culturais e temos a prerrogativa de promover bens culturais exportáveis não enxutos, dada a larga diversidade cultural de Moçambique. Promover bens culturais exportáveis implica antes ter a capacidade de produzir para alimentar o ambiente interno, o que não é possível com políticas que colidem com a realidade local. Não se pode pensar a industrialização do livro enquanto este continuar menos acessível, sobretudo num contexto em que emergem cada vez mais autores e cada vez menos leitores. É uma contradição ao que prevê a política do livro. Significa que ainda não conseguimos estar próximos dos que seriam os piores exemplos da Europa, como é o caso de Portugal que está entre os países da União Europeia que apresenta baixos níveis de leitura, no entanto a edição anual de livros supera de muito longe as de Moçambique, agravado por baixas tiragens que revelam uma Indústria Gráfica local incipiente.

Não nos parece coerente pensar uma indústria de música moçambicana exportável em grande escala se não formos capazes de nos alimentarmos da própria música, a semelhança da África do Sul e Nigéria. Seria de todo estranho vender ao outro o que não consumimos. É mau sinal quando o tráfego congestiona e o Hotel Gloria fica abarrotado porque a Ana Joyce vai cantar e mesmo não ocorre quando um artista local se apresenta ao mesmo lugar. Isso impõe que a nossa política deve ser proteccionista à arte local. Depois de a Timbila ter sido proclamada Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, o que lhe garante grande destaque internacional e um crescente interesse sobre as suas origens, a preocupação de Moçambique não deve terminar em celebrações dessa façanha. Deve ser a de pensar como tirar proveito dessa conquista no mundo no âmbito da Indústria cultural. Não seria este o caminho para uma produção de Timbila em escala industrial para alimentação local e para exportação? Por outro lado, se a música nacional deve ser tomada como business, então a cadeia de produção e de valores deve ser repensada a partir do sistema nacional de educação. Privar crianças de educação artística e musical em particular, através do currículo do ensino público reducionista, para além de revelar a ausência do estado e incitar a não inclusão, elitiza a música e não promove a emergência artística musical que estaria em harmonia com a ideia de industrialização cultural. E a industrialização musical vai muito além do fazer música, compreende desenvolver uma capacidade de dependência interna de fabrico de instrumentos locais em grande escala para alimentar a escala maior. Tenhamos em conta que as sociedades são produto ideológico. Se a nossa noção de arte se centra no entendimento que coloca o ocidente como modelo de estética, significa que o ocidente foi suficientemente forte ao difundir sua carga ideológica. Cabe a nós invertermos a pirâmide para não estarmos na condição de subalternidade ao reproduzirmos a forma ocidental de arte – o que reduziria as chances de podermos ombrear com este no mercado global por não termos um diferencial a oferecer.

Não seria racional, por exemplo, contar com uma Indústria Gastronómica enquanto a visão de culinária se circunscrever a feiras, seminários públicos e não em criar “KFCs” e “McDonalds” tipicamente locais com visão expansionista internacional. Não é coerente pensar e materializar uma indústria do teatro e do cinema, com salas convertidas em templos, e o cinema visto como entretenimento e não como instrumento de mediação de valores moçambicanos capazes de seduzir o país e o mundo. Se o EUA exibe a sua pujança militar através do cinema, então nós podemos exibir os atractivos turísticos e outras potencialidades que geram receitas significativas ao estado. É, sobretudo, importante que haja muita clareza sobre como queremos nos posicionar enquanto Indústria Cultural com ascensão da Inteligência Artificial, atendendo os desafios muito básicos que temos com relação à internet.

Uma Indústria Cultural que se queira sólida num mercado global gera símbolos culturais através da sua arte. Se não somos capazes de firmar tais símbolos, pelo menos a nível da região, então a linha que separa o discurso da realidade ainda não é ténue. Se o que designamos indústria cultural ainda não escalou estágio de mercado consumidor de bens culturais, com altos níveis de consumo interno, e não gera receitas ao Estado, então estamos ao nível de discurso triunfalista e não de Indústria Cultural moçambicana.

“Nós não temos absolutamente nenhuma intenção de nos deixarmos guiar por qualquer que seja ideologia, nós temos a nossa própria ideologia, uma ideologia forte e nobre, que é a afirmação da personalidade” – Patrice Lumumba.

Armando Emílio Guebuza é uma figura de destaque, tanto na política, quer nos meandros literários. A sua obra literária, “Os Tambores Cantam”, reflecte uma profunda conexão com o seu passado e dos demais moçambicanos, em tempos de opressão colonial, sobretudo a partir de 1963 a 1974, anos que eternizaram as dores do seu povo através de um papel e uma caneta, igualmente fazendo um presságio de como será o país nos próximos anos se o continente pautar pela união para objectivos comuns: luta pela independência e liberdades.

Na verdade, “Os Tambores Cantam” trata-se de uma obra que testemunha a capacidade que a literatura tem de inspirar, educar, moldar o Homem e chamar a consciência das massas, com atitudes para galvanizar sua independência.

O título “Os Tambores Cantam” pode inicialmente sugerir um tom festivo, mas a profundidade dos poemas revela uma realidade dolorosa e angustiante. Ao explorar o conteúdo da obra, o leitor se depara com expressões de sofrimento, opressão e revolta contra a brutalidade colonial. Guebuza utiliza as suas poesias para denunciar as atrocidades cometidas pelos colonizadores portugueses e para evocar a memória dolorosa do povo moçambicano.

As poesias guebuzianas expõem, de forma evidente, cenários abomináveis de qualquer acção macabra. Em cada verso, o “poeta de combate” situa o leitor numa viagem em que se (re)vive as tremendas barbaridades perpetradas pelos portugueses em tempos de opressão, descrevendo, de forma minuciosa, cada episódio dos africanos entregues às mãos de bárbaros colonos.
Guebuza privilegia uma linguagem acessível, aliás, simples e directa para atingir todas classes sociais, retratando ao pormenor as memórias, os traumas, as sequelas enfrentadas pelos moçambicanos no passado.

O poeta não só expõe e descreve a dor do seu povo como também anuncia um movimento revolucionário urgente, ou seja, convida a todos os moçambicanos e africanos, em geral, a irem à luta em prol da sua independência, quer financeira e económica, quer cultural e política. Nos seus poemas, Guebuza ganha coragem e exterioriza-se “intimamente” com o mundo, exibindo todas suas feridas marcadas por aquele período opressor.

A escrita de Armando Guebuza, apesar de tamanha dor e desabafos, é também repleta de sonhos: conduzir Moçambique livre das amarras coloniais, e com a preservação das liberdades.
Para se alcançar a liberdade é imperios, recuar ao passado, tomar como inspiração algumas figuras que foram preponderantes na história de libertação de Moçambique, que, dentre vários, destacam-se “Maguiguana”, “Nwamatibjana”, “Ntumbuluku” e “Macombe”.

Em “Falavam Português”, por exemplo, o Poeta de combate descreve com evidências a estupidez dos colonos, que, por qualquer motivo, partiam para violência impiedosa, com a utilização de adjectivos pejorativos como “sacana, burro, selvagem”. A violência era tão tremenda que, por vezes, os escravizados perdiam voz, por conta de chicotes que rasgavam a pele e regava os solos com o sangue que jorrava.
Por conta desta realidade, em “As Tuas Dores”, o autor invoca a junção das forças quase que acabadas e quer as tornar sólidas para “estrangular a opressão”, por conta das dores que sentem. Por isso, foi “pegando em armas” que se venceu o “imperialismo”. Por outro lado, o sangue que outrora regava os solos, com a união, regou a “vitória” dos moçambicanos.

Embora “Os Tambores Cantam” concentre-se nas experiências da colonização, a obra também se relaciona com os desafios contemporâneos de Moçambique. A obra de Guebuza permite, através do passado colonial, iluminar questões actuais, como a instabilidade em Cabo Delgado e a dependência económica de ajuda externa. Esta conexão entre passado e presente reforça a necessidade de um movimento contínuo em direcção à verdadeira independência e auto-suficiência.

Por estes factos, Guebuza critica a dependência contínua de Moçambique e de outros países africanos em relação à ajuda externa. O poeta entende que essa dependência pode ser um meio de perpetuar o controlo sobre os recursos africanos, disfarçada de altruísmo. A sua preocupação, com a “ajuda” externa, é um convite à reflexão sobre as reais motivações por trás dessa assistência e os impactos duradouros sobre a autonomia africana.

Por outro lado, o Ocidente e outros continentes optam pela ajuda humanitária, nome de amizade e cooperação bilateral, para além de empréstimos financeiros como forma de “manipular” os africanos e, consequentemente, empobrecê-los, segundo conta em “Vi-te em sonhos como és” (p. 95).

No livro, o tambor referido, de modo geral, entende-se como um instrumento importante cuja finalidade é convidar diferentes actores sociais a manifestarem-se de acordo com a representação simbólica. Para alguns, é usado para fins rituais e religiosos. Para os outros, como forma de celebrar vários momentos de felicidade, que a vida oferece (festejos, diversões). Porém, o escritor usa a metáfora do tambor como um instrumento de luta e resistência, em vez de celebração.

“Os Tambores Cantam” é mais do que um relato da dor colonial; é um poderoso apelo à acção e à reflexão.

Armando Guebuza não apenas retrata as injustiças do passado, mas também convoca os africanos a persistirem na luta pela verdadeira independência e liberdade. Através de uma narrativa carregada de memória histórica e crítica social, a obra de Guebuza oferece um retrato inspirador da contínua luta pela justiça e autonomia.

Por: Domingos Mucambe

“Por tão amplamente que eu meneie a bandeira branca, por tanto que eu suplique um cessar-fogo, o quarto cavaleiro não me vem salvar” – Dulcineia das máculas (In Sem título 1, Done-se / revista literArte, 2024)

A existência, usando das mentes de Lakoff e Johnson, é um campo metafórico. Portanto, em mares que não expressam solubilidade, mas uma (in)certa volubilidade de metáforas, estagna-se, em concordâncias significantes, com a ideia de que nela, a existência, tudo é entrópico. Pego em empréstimo esse termo da física quântica, que é uma medida da desordem ou aleatoriedade em um sistema. Parece-me um tanto poético e científico, em simultâneo. E ela é, no final, isso: tudo, parece, tende ao incessante caos.

É um estado anímico de caos, turbulência ou motim, com pinceladas carregadas de fatalidade, que cresce em mim, quando ponho os olhos no quadro de Marcos P’fuka, intitulado “A pomba não pousou”. O óleo sobre tela, nas suas dimensões 100 x 75 cm, traz, em nós, esse discurso em cores de violência e destruição: esperança estilhaçada, desespero espalhado, e, acima de tudo, um sentido de paz que está em fragmentos pelos ares, e esvaece ainda no casamento com o terno firmamento.

Vermelho e preto: o prelúdio da ruína. O pano de fundo da imagem aliado ao vermelho vão além de cores convencionais. Esse além é o recesso dos artistas, onde, com o seu pincel, carrega-nos acima das convenções ordinárias, quando nos coloca o fundo preto como simbolização de incertezas, destruição e falta de perspectiva ou horizontes. O vermelho, aqui sinónimo de preto no simbolizar do cessar da crença num futuro cada vez mais sombrio, lembra-nos a violência, morte e sofrimento, ou tudo num sentimento profundo e confundido.

O quadro brilha pelo contraste. Um serviço mínimo, quanto às cores. Apenas preto, vermelho, branco, azul e dourado, que nos oferecem uma simbologia profunda sobre a actual condição humana, ou do moçambicano, em particular, que vive em um contexto de instabilidade mental, financeira, cultural e até política, em uma palavra, um caos existencial.

O branco é mesmo sugestivo, e aliado a penas distribuídas pela pintura, só lhe resta ter ares de paz. O que me ocorre, é que não se trata de distribuição das penas, mas de um estilhaçar violento e sangrento delas. “A pomba não pousou”, o que, na verdade, significa a paz [é que] não pousou, aliás chegou. Fala-nos da paz, mas não nos apresenta um pombo, apenas estilhaços e fragmentos do mesmo, penas e sangue, jorrando, gota à gota, até o findar da ave anunciadora de paz. Também nos retrata a paz como algo ainda por chegar, ou algo oferecido por algo ou alguém, talvez, se tenha a paz como algo sobrenatural, em que é consequência de forças que estão além do poderio humano.

Os desvarios, que nascem nas várias variáveis incontroláveis do existir, minam o florescimento e a manutenção da paz, então a humanidade revisita-se nesse quadro quando se coloca patente, não a paz, mas os seus estilhaços em formas de penas. Essa imagem só nos retrata e lembra confusão, no geral, de tudo e sobre o mundo. Fica nas nossas memórias um cenário tumultuoso, consequência de um estrondo, um conflito, ou um acidente violento, um descarrilar da vida que coloca todos os sentidos atrapalhados, tudo de pernas para o ar, e um cenário “terrorístico” inefável, que só uma paleta de cores, pincel e imaginação podem expressar.

Esses desvarios impossibilitaram, como bem o sabem, o pouso do quarto cavaleiro. Pelo contrário, ele foi estilhaçado ainda no ar, ainda sonhando com o poso, ainda sendo um promessa de um futuro banhado de serenidade e beatitude. Talvez, esse fragmentar da pomba signifique que a paz é sempre uma eterna promessa futurísticas, mas, como diz um personagem em “Mar me quer”, de Mia Couto, “o futuro é um tempo que, existindo, nunca chega a haver”. Por aqui toda paciência que nos “mingua” desvanece em pingos desengonçados nesse paradoxo abismal e tão actual. Contudo, com essa paleta de cores que cheira à destruição, caos e violência, esse presente, infelizmente, não nos “suficienta”, pelo contrário, desfola-nos (expressão usada pela minha mãe quando se refere a tirar pele duma galinha, no lugar de depenar, um processo violento) por dentro.

Além disso, talvez sussurra-nos bem baixinho o que seria um tormento para o Homem: ela é como felicidade, qualquer coisa intimida-lhe a sua meiga coragem. Copiando do mestre, a paz talvez seja algo que, existindo, nunca chega de haver. Sempre algo a adoece e aborrece. Ela esboroa-se como pedaços de fumos que desaparecem na atmosfera.

Na parte inferior esquerda do quadro, P’fuka pendura um objecto ambivalente com uma coloração dourada. Numa primeira vista se parece um crucifixo incompleto. Mas, prestando mais atenção vê-se uma outra coisa, uma espada longa, que atravessa as penas, o ponto central do caos. Talvez seja esse o desvario, o conflito desse enredo que nos contam sem nenhuma palavra dita ou escrita. Com olhos ainda atentos, vê-se sangue deslizando da espada, e um pouco por trás dela. O que a espada representa?

Por muitos anos, a espada foi um instrumento de luta e guerra. Talvez, esteja a falar-nos da guerra, que adia o pouso da pomba. Um apelo à paz que já vai tarde em Cabo Delgado, por ora, é o que me passa pela cabeça. Um cenário de destruição, violência, sangrento e de morte.

O artista funde esses dois objectos simbólicos, tanto na história humana como na ideologia, valores e crenças moçambicanas. Por um lado, a espada, e, por outro, a cruz. Seria a cruz a representação da prevalência da fé como um elemento que explica ainda a permanência do moçambicano no meio de um lugar desprovido de ordem e tranquilidade? Quiçá ela represente que os moçambicanos agarram-se à fé para ainda sonhar com o eterno porvir da paz, e sobreviver num mundo em ruínas, que cai em (des)pedaços.

A obra comunica-se com cada um de formas particular e subjectiva. Qual Moçambique? Essas cores são muito mais íntimas que ressoam dentro da alma. Um mundo interior em destruição, tudo caindo nas mãos do abismo, ou pombas de paz caindo em buracos negros, uma região da existência em que nada, nem mesmo o luzir da esperança, escapa. Mergulhamos dentro da obra, evocando fortes emoções porque, até ao nível psicológico, parece que tudo tende a ir para a anarquia, o que nos leva, de forma generalizada, a dizer que “são maning cenas”. Expressão essa que explica, resumidamente, o desespero, o desabamento, o cabisbaixar, a depressão, a desordem, descarrilo da vida, caos de tudo. Parece que ninguém, nessa geração, tem nada no controle. Como Hernâni da Silva mencionou em “Pressure” (2021), estamos todos a viver essa depressão.

Essa pintura é de 2022, um ano em que se intensificaram os apertos do terrorismo. Também propagou-se a campanha que iniciou em 2020, com a frase “Cabo Delgado também é Moçambique”. É uma mostra da exposição colectiva “Horizontes partilhados e Múltiplos olhares”, na Fundação Fernando Leite Couto, inaugurada no dia 4 de Setembro, com duração de um mês.

Marcos P’fuka, um experiente artista plástico, com várias exposições e premiações, propõe-nos nessa obra cheia de significados profundos a penosa condição do mundo, de Moçambique, em particular, e seus de indivíduos. Um mundo de conflito, onde a existência gira na batalha entre guerra (também internas) e paz, esperança e a falta dela. Tudo abeira-se a um colapso.

Antes, felicitar o autor, por mais esta obra. Gostaria de dividir a minha apresentação em 4 tópicos, sem necessariamente fechar outras possibilidades interpretativas que ela oferece. Afinal, a função de um apresentador é de despertar o interesse dos outros leitores e não de inviabilizá-lo como muitas vezes acontece. Espero, muito honestamente, que este não seja o caso.

O primeiro tópico: para que serve uma biografia ou, neste caso concreto, uma autobiografia?
O segundo tópico é sobre a autoria: quem é o autor desta obra? Musumbuluku Nhuvu? Narciso Matos? Ou Cisito? (Devido à sua profunda e incontornável interligação, alguns dos aspectos que afloro nesta apresentação incluem também elementos retirados da obra anterior Ndangu Wa Txindi na Musumbuluku (2022));
O terceiro tópico incide sobre algumas daquelas que considero as grandes questões levantadas por Mishu;
Finalmente, o quarto tópico: a quem esta narrativa é dirigida?

1) Para que serve uma biografia ou, neste caso concreto, uma autobiografia?
A biografia, à partida, é um espaço de ambiguidade, em termos de género e de pertença: é ou não literatura? Apesar de ser uma narrativa, até que ponto pode ser assumida como ficção? Nos casos em que temos biografias ficcionalizadas, hoje fala-se muito em autoficção, e onde a imaginação do autor prevalece, fica, aparentemente, tudo mais fácil. Por outro lado, toda a biografia, ou autobiografia, levanta, de uma ou de outra forma, suspeição: devemos assumir como verdade tudo o que ali nos é revelado? Onde reside, afinal, a especificidade deste género? E o que o faz oscilar entre o fascínio, por um lado, e a desconfiança, por outro, que provoca em diferentes pessoas?
Freud não hesitou, por exemplo, em afirmar que “Para ser biógrafo é preciso enredar-se em mentiras, dissimulações, hipocrisias”, (carta a Arnold Zweig, em 1936). Por sua vez, o renomado escritor norte-americano, George Orwell, autor das emblemáticas obras-primas, Animal Farm (O Triunfo dos Porcos) e 1984, observou, um dia, referindo-se à autobiografia, que “só se pode confiar nela quando revela algo vergonhoso”. Não tendo, pelo menos na minha leitura, achado nada de indecoroso em Mishu de Musumbuluku, podemos, ou não, confiar nesta autobiografia, seguindo o entendimento provocador de Orwell?
Uma das razões que justifica esta suspeição, diria mesmo retracção, em relação aos escritos biográficos, mais concretamente à autobiografia, é o facto de esta, em particular, ter como principal suporte a memória do autor, portanto, a sua própria subjectividade. E o grande mérito de Mishu reside, para mim, na forma inteligente como o autor (questão que irei abordar adiante), não só ter recorrido ao pseudónimo, melhor, ao seu nome tradicional – como sabemos estes nomes foram negados pelo sistema colonial -, mas também ter evitado, ao longo da obra, cair no fácil apelo à emoção. Além do mais, foi também extremamente cauteloso na revelação de qualquer forma de intimidade, facto que é sublinhado pelas precauções tomadas no distanciamento calculado do narrador em relação ao protagonista, no fundo, ele próprio. E, de imediato, nos interrogamos: qual o efeito sobre o leitor desta afectividade controlada, deste intimismo mitigado?
E, regresso, à questão de fundo: afinal, para que serve uma autobiografia? Muitas são as respostas possíveis:
a) preservação de uma determinada memória individual e colectiva;
b) função pedagógica: deixar uma lição de vida a partir da história contada;
c) necessidade de legitimação de um passado ou de um percurso;
d) reivindicação de um legado pessoal, familiar, sociocultural, histórico;
e) partilha, de forma despretensiosa, de uma história que lavra dentro de cada um de nós e que nos pede para sair;
f) preocupações apologéticas, em relação a um ideal ou a si próprio (casos cada mais comuns de puro pedantismo ou auto-exibicionismo);
g) partilha de inquietações existenciais: afinal, quem sou eu e de onde venho?
h) uma função desmistificadora: um dos grandes exemplos é Conversations with myself (2010), um texto intimista de Nelson Mandela, em que ele próprio confessa que escreveu aquelas memórias para mostrar que era um ser humano como qualquer outro, e não um santo, como muitos o tentavam apresentar.

2) Quem é o autor desta obra?
Já nos referimos ao facto de, em Mishu, estarmos diante de um caso desafiador em termos de autoria. O autor empírico (o de carne e osso que está aqui connosco e que todos conhecemos como Narciso Matos) recorre ao seu alter ego (neste caso, que é mais do que um pseudónimo), seu nome tradicional, que assume, nesta obra, um triplo papel: primeiro, o de autor textual, portanto, que dá o nome à autoria da obra, bem expressa na capa; segundo, o de narrador: quantas vezes ao longo do texto se refere a si próprio como o narrador; e finalmente, o de protagonista. Protagonista que, nas primeiras páginas, é apenas tratado por “menino”, até que, na entrevista para iniciar as aulas no ensino oficial, na escola pública, em pleno período colonial, ao lhe ser perguntado o nome, o menino responde, sendo obrigado a repetir perante a perplexidade dos professores: Musumbukuku Nhuvu.
Como sabemos, vivemos tempos extremamente conturbados e desconcertantes, em que assistimos, um pouco por todo o lado, ao desfile interminável de egos inflamados (há quem fale na hipertrofia do ego), tal é a desmesurada exposição do nome e da própria imagem, numa compulsiva e despudorada demonstração de soberba e de pretensa autoconsagração. Contrariando esta tendência, ocorrem-me duas experiências bem contemporâneas: uma, a de Banksy, artista de rua e o mais famoso grafitista britânico; outra, a da escritora italiana Elena Ferrante, autora de A Amiga Genial, recentemente considerado, pelo New York Times, o melhor romance do século XXI. Ninguém sabe quem eles são efectivamente, isto é, qual a verdadeira identidade de Banksy e de Ferrante. A ideia do pseudónimo, aqui, como cobertura do nome e da real identidade dos autores, adquire com estes dois casos, uma dimensão verdadeiramente edificante e transcendente.
Entretanto, no caso particular de Musumbuluku Nhuvu, a questão adquire outra complexidade, pois estamos assumidamente diante de uma busca, de uma aparente tentativa de recuperação de uma identidade transviada, ou roubada. Numa altura em que tanto se fala de reparações dos danos coloniais, Musumbuluku, através do nome que assume e deste exercício memorialista, mais não faz, e de forma honesta, modesta e simbólica, do que procurar reaver o que lhe foi negado. Daí outra hipótese de título: Musumbuluku Nhuvu: em busca da identidade usurpada.

3) Algumas das grandes questões levantadas por esta obra
Já vimos que uma das principais questões levantadas por Mishu e a obra que a antecede passa pela questão da autoria, que se prende com o problema moderno do sujeito. Ou não deveríamos dizer, o problema do sujeito moderno. Afinal, quem somos nós, enquanto sujeitos produtos da colonização? Na p. 11, encontramos esta passagem elucidativa:
Os filhos e filhas de moçambicanos aderiam a esta acção civilizadora. Viam que os seus filhos, feitos catequistas enfermeiros nas missões, ou intérpretes nas administrações coloniais ascendiam, de facto, a um estatuto mais elevado. Calçavam sapatos, vestiam fatos e usavam chapéus ocidentalizados, diziam-se afastados das crenças e costumes (embora os praticassem no segredo por todos conhecido), construíam casas melhoradas, plantavam árvores de fruta, construíam moageiras e furos de água, enfim, assemelhavam-se, passo a passo, mais aos colonizadores do que aos seus. A sua vida melhorava. Eram a prova viva de que a educação e a fé (do colonizador) eram a escada da vida.

Esta é uma discussão incandescente num campo de estudos, hoje em voga, mas de uma riqueza teórica inquestionável: os post-colonial studies, onde se procura, entre outros aspectos, perceber os sujeitos problemáticos, complexos e contraditórios emergentes da longa noite colonial, enquanto produtos de dois ou mais mundos. A propósito, o tunisino Albert Memmi escreveria um dia: um homem a cavalo sobre duas culturas, raramente estará bem montado.
Associada à questão do sujeito, temos a da própria memória: privada e colectiva, em contraponto às inquietantes e cada vez mais frequentes manifestações de amnésia, de descaso com o passado ou, mesmo da sua manipulação, de que o nosso tempo é tão fértil. Destacando-se, cada vez mais, como uma sociedade do esquecimento, percebe-se porque é tão precário e tão volátil o quadro de referências que nos guia, e de um modo ostensivamente imoral. São muitas as evidências de que está a ser promovida no país, há já vários anos, de forma deliberada e sistemática, uma cultura do esquecimento. Para todos os efeitos, a memória é a suprema ordenadora das nossas consciências, sejam elas privadas, sejam elas colectivas. Daí que o “dever de memória” como o antropólogo francês, Marc Augé, um dia definiu, nunca se tornou tão imperativo como agora, num contexto em que a amnésia colectiva e uma espécie de demissão em relação a essa mesma memória se tornaram tão pronunciados.
Muito a propósito, socorro-me de um provérbio africano que reza: Trate bem a terra. Ela não lhe foi doada por seus pais. Ela foi-lhe emprestada pelos seus filhos. E a pergunta que assoma: afinal, que terra, dada a forma como todos dias pontapeamos a memória, vamos, pois, devolver aos nossos filhos? Não resisto, aqui, a invocar o que se passou no Chile, em que milhares de pessoas foram encarceradas, torturadas e mortas, e para que perdurasse na memória de todos a trágica experiência da ditadura de Pinochet, decidiram colocar uma faixa no Estádio Nacional, em Santiago, que se mantém até hoje e onde se lê: um povo sem memória é um povo sem futuro.
Parece inegável que a memória é, eventualmente, o tema transversal, das duas obras de Musumbuluku (Ndangu Wa Txindi Na Musumbuluku e Mishu), sem que se percam de vista os seus fundamentos: as distantes origens familiares, a infância, as vivências (urbanas e suburbanas; o campo é residual), os choques culturais, a questão linguística, os processos assimilatórios, a arquitectura das alianças das famílias do sul de Moçambique, sobretudo, nos subúrbios e arredores de Lourenço Marques. Neste particular, pode ser um exercício interessante cruzar as duas obras com outras obras, como, por exemplo, Memórias (1989) de Raul Bernardo Honwana; Zedequias Manganhela, (org. Teresa Cruz e Silva); Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade (2018), de Nely Nyaka; A Cadeira de Caniço, Daniel Gabriel Tembe, Geração da Transição, de Iolanda Macamo (2023), entre outras.
Alinhada com a questão do sujeito e da memória, temos igualmente, o próprio título, Mishu, que quer dizer manhã, alvorada, em ronga, que nos remete para a ideia do despertar, neste caso, de uma consciência colectiva, sobretudo entre os jovens assimilados, que o pós-25 de Abril iria provocar (pp. 87, 88):

As campanhas de alfabetização e educação de adultos nos bairros suburbanos de Lourenço Marques revelaram a Musumbuluku e a muitos outros jovens universitários e estudantes de escolas secundárias […] a face nua da exclusão e das carências económicas e sociais criadas pelo colonialismo. Fê-los ver, de perto, com olhos novos e em primeira mão…Viram a pobreza e o abandono em que viviam milhares de crianças….Viram os índices elevadíssimos de analfabetismo nos subúrbios….Viram a quase ausência de postos e de cuidados de saúde primários….Viram as casas de caniço cobertas de zinco, e os seus maus serviços sanitários e incerto abastecimento de água…

Esta é uma passagem que nos prova que o colonialismo, com todos os seus mecanismos ao serviço da conquista e da submissão, tinha conseguido normalizar o que não deveria ser normalizável, ao conduzir os próprios africanos, sobretudo os jovens, a um estado de alienação e cegueira estrutural em relação à precariedade do seu próprio quotidiano e da realidade circundante, como se se tratasse da ordem natural das coisas. Temos, a propósito, que prestar atenção à incidência na visão, traduzida na repetição do pretérito do verbo ver: viram.
Daí, esta ideia de despertar, talvez mesmo de renascimento, que a revolução iria perseguir. Por outro lado, podemos, a partir daqui, registar o importante facto de como as biografias, mesmo privilegiando o percurso de um indivíduo, ou de uma família, nos permitem retratos amplos de uma época, com parte significativa das suas dinâmicas sociais, políticas, económicas e culturais.

Quem são os destinatários desta narrativa, isto é, o leitor ideal de Mishu?
Tendo em conta o que atrás dissemos, em relação àquelas que consideramos as questões-charneira desta autobiografia (autoria, memória, despertar da consciência colectiva), podemos afirmar que são vários os possíveis destinatários desta obra:
Contemporâneos do autor/narrador/protagonista: como se a obra nos dissesse: não vamos esquecer o tempo que passou. Como muitos de nós estamos lembrados, esta era uma das canções preferidas do Presidente Samora Machel. Hoje, percebemos não só porque insistia tanto com esta canção, como também a quem ele a direccionava;
Os jovens de hoje e os de amanhã: afinal, eles sabem de onde vieram? Alguém lhes tem explicado isso? Existe um passado histórico, antropológico e social que nos continua a interpelar e que está ancorado, por mais que o neguemos, nos nossos destinos individuais e colectivos. Repito: Um povo sem memória é um povo sem futuro. Para que isso faça algum sentido, tentemos socorrer-nos de experiências de países um pouco por esse mundo fora, como, por outro lado, e a título privado, tentar conduzir uma viatura sem nenhum espelho retrovisor. É muito provável que cheguemos ao nosso destino incólumes, mas o exercício será simplesmente devastador. Para nós e para os outros.
Termino saudando, uma vez mais o autor, este doublé de Narciso e Musumbuluku, que mostra, nesta segunda obra, um assinalável salto qualitativo, ao mesmo tempo auspicioso, e como promessa não declarada de que a próxima obra poderá ser a confirmação de uma veia que o próprio deveria desconhecer.

Maputo, 6 de Agosto de 2024

Na imensidão do cosmos, onde cada estrela carrega um segredo e cada constelação desenha um caminho, as mãos humanas actuam como pincéis, unindo essas partículas em um conjunto harmônico.

Às vezes, o pincel vai além da beleza visível, transformando-se em uma ferramenta que desvela os mistérios mais íntimos da existência. Nessas manifestações artísticas, somos convidados a explorar as profundezas do inconsciente colectivo e a emergir revitalizados.
Foi sob este signo de revelação e transformação que um encontro singular aconteceu, no sábado último (31/08/2024), na Casa do Professor, na Matola, onde vozes de diversas esferas do saber e da criação se uniram em torno de uma visão comum: desenhar novas narrativas para Moçambique.

Neste ambiente, onde o diálogo entre a palavra e a imagem se faz tão natural quanto a respiração, destacou-se a obra de Marcos Mpfuka, um artista cuja visão atravessa o visível para tocar o intangível, revelando verdades universais por meio de cores e formas enigmáticas.

Neste contexto, a obra exposta por Mpfuka não se limita a ser contemplada, com efeito, se oferece como uma chave para decifrar o presente, para reinterpretar os símbolos e os mitos que moldam o espírito de uma nação. Assim, ao examinarmos as subtilezas das cores e das texturas, somos chamados a refletir sobre a intersecção entre arte e realidade, e a questionar: Como podemos, através da arte, tecer os fios do futuro de Moçambique?

Logo à primeira vista, a obra cativa pela vivacidade de suas cores e pela riqueza de suas texturas, oferecendo uma imersão sensorial que demanda uma apreciação prolongada.

A composição do quadro é dominada por formas abstratas, que evocam tanto o movimento quanto a tensão. As linhas que se mesclam e se dobram parecem representar caminhos ou jornadas que, apesar de tortuosas, encontram um ponto de convergência. Este traço sugere uma analogia potente sobre a necessidade de encontrar unidade na diversidade, de reconectar peças dispersas em uma narrativa coerente para o país.

O vermelho e o preto dominam a paleta de cores, destacando uma oposição que pode ser interpretada de várias maneiras. Ora, o vermelho, por um lado, pode ser visto como uma cor de vitalidade, paixão e até de sacrifício, ou seja, aspectos que são centrais na história e cultura moçambicana.

Por outro lado, o preto adiciona uma potência que parece puxar o espectador para dentro do quadro, sugerindo tanto o mistério quanto o luto. Esse jogo de cores pode ser lido como uma representação do passado doloroso do país, mas também como um impulso vital para superar essas sombras e criar novas narrativas.

A textura da pintura é sólida e refinada, quase palpável, o que confere à obra uma tridimensionalidade que chama a atenção.

No entanto, a maneira como a tinta foi aplicada, em camadas espessas, por vezes com traços que parecem rasgos, evidentemente, reforça a ideia de um tecido desgastado, que precisa ser remendado. Isso pode ser interpretado como uma crítica às feridas ainda abertas na sociedade moçambicana, que requerem cura e atenção para que se possa avançar.

Ademais, bem no centro da obra, há uma sugestão de formas que podem ser decifradas como mãos ou figuras envoltas em movimento. Esta ambiguidade é, na verdade, uma força do quadro, pois permite múltiplas interpretações. As mãos, que são frequentemente sinais de trabalho e criação, poderiam representar o esforço colectivo necessário para construir novas narrativas para Moçambique.

Ao mesmo tempo, essas formas em movimento podem simbolizar a fluidez e a incerteza dos tempos actuais, um lembrete de que o futuro é moldado pela acção no presente, “em nome dos povos hoje nós gritamos, liberdade”, como ressoa na música da Iveth Mafundza & Hot Blaze, intitulada “Leave no one behind”.

Dessa forma, o Sarau na Casa do Professor revelou a arte como um meio de transformação impactante. E a obra de Marcos Mpfuka, com suas cores intensas e texturas marcantes, não se limita a uma simples exibição, mas serve como uma ponte para novas interpretações e reflexões sobre o futuro de Moçambique. Como bem observa a escritora Virgília Ferrão, “O facto de poder partilhar a escrita com o leitor é motivador”, efectivamente, este sentimento se aplica igualmente à arte. Portanto, compartilhar a visão artística de Mpfuka com o público é como lançar sementes em solo fértil, que podem germinar em novas ideias e inspirações. O evento demonstrou que a arte tem o poder de envolver e desafiar, incentivando todos a tornarem-se co-autores de uma nova narrativa para o país.

“Eu vos digo que o não sentir os poetas é uma das maneiras mais baixas de ser pobre”
in: Giovanni Papini

 

A poesia se estrutura através da fragmentação da vida, espaços, pedaços, estilhaços. O poeta, para construir a sua realidade, precisa eliminar a realidade que o antecede, destruir e reconstruir. Entretanto, Léo Cote, ao invés de destruir a realidade que o antecede, prefere agregar, incorporar, e, com isso, cria camadas de percepções que fazem de cada poema um universo misterioso e encantador.

Na sua obra literária, instalação do corpo, lançada no Camões, em Maputo, o olhar de vários poetas mencionados no livro percorrem caminhos não lineares onde as partes e o todo se reencontram na poesia.

Em anatomia, um corpo é o conjunto das várias partes que compõem um animal. A palavra, instalação é, frequentemente, usada nas ciências exactas, construção civil, refere a uma das primeiras providências tomadas para que uma obra [casa ou edifício], possa iniciar, como a demarcação do canteiro de trabalho ou a construção do depósito, por exemplo: abrange o conjunto das instalações eléctricas, hidráulicas, de gás ou de ar condicionado.

Segundo Priberam, dicionário online de língua portuguesa, a palavra instalação é junção de duas palavras, instalar + acção, é um substantivo feminino, que, no sentido literal, quer dizer “Acção de instalar, se estabelecer algo ou alguém em determinado lugar”. Assim sendo, este livro propõe uma reflexão profunda sobre a existência, o amor, a poesia e um lugar chamado “Ilha”.

Como diria Mia Couto, em “Venenos de Deus, Remédios do Diabo”, “Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.”

Na presente obra, em diferentes poemas, é possível sentir esta vontade do poeta de devolver o riso, recuperar o mundo sobretudo no poema da página 11: “comer pulgas é um divertimento inteligente. Uma bolha de inteligência que migra”.

Ora, quem come pulgas? Se por ventura alguém comesse, este acto seria inteligente? Afinal, a que pulgas o poeta se refere?

Tudo, aqui, conspira na busca incessante de uma reflexão sobre o dia-a-dia, situações aparentemente antagónicas. Relatando alguns poemas de passado, mas com uma mensagem actual. Ademais, o passado, para Cote, é a ferramenta que projecta o futuro. Por isso, a sua escrita abraça e acaricia todos poetas, entre os vivos e mortos.

Cote escreve o mundo e concilia a clareza modernista com a atenção e ironia típica das artes e suas derivações definem a escrita contemporânea. Pela generosidade, humildade e clareza no processo criativo dos seus textos, versos e estrofes, “ no livro”, o poeta, ressuscita vozes emblemáticas na literatura, poesia moçambicana, como Virgílio de Lemos; Rui Knopfli; Luís Carlos Patraquim, Sangare Okapi. Desta forma, torna-se referência obrigatória no cenário poético de Moçambique.

O poeta explora o corpo como um espaço de experiências e emoções, uma instalação, uma obra de arte. Transformando-o num ponto de partida para reflexões sobre a condição humana, como demonstra nos cadernos “Mitografia” e “A Geografia do Afecto”.

“Instalação do corpo” é uma obra misteriosa e mágica que revela o que temos de mais belo e encantador em Moçambique: a capacidade de amar e sonhar. Por isso, engana-se quem pensa que o gás, o carvão, rubins, a madeira são as maiores riquezas desta terra.

A poesia moçambicana, ao longo dos anos, reverberou a complexa existência humana. Em nome dessa tradição, silenciosamente, Léo Cote e um pequeno grupo de escritores permaneceram fiel à sua própria história, consciente da fundamental importância da prática de espalhar o quotidiano na poesia.

É possível verificar esta vontade incessante de espelhar o quotidiano na seguinte passagem: “Bargalha para três e moelas para dois como um poema pós-moderno…”. In: Poema “vocábulo das chaves”, p. 12.

A escrita de Cote ilumina toda uma geração de poetas e define o futuro da nossa literatura. Na poesia, Léo e Álvaro Taruma são, hoje, ícones do nosso tempo e do território. Reencontrá-lo é sempre um reencontro com o que temos de melhor. Como se pode ver na capa, a obra “Instalação do corpo” é um farol e a sua luz ilumina a noite e silencia o dia.

Agora, na vertente semiológica, temos primeridade e secundidade. Na imagem em análise, a Primeridade é o título do texto, visto que, em tamanho, está mais destacado quando comparado com os demais elementos da capa.

Como secundidade, nesta temos a cor azul claro, a lua, quatro sombras e ondas do mar que anunciam a tentativa de um poeta, Léo Cote, instalar a poesia no corpo humano.

A capa apresenta uma imagem mista, que é junção da linguagem verbal e não verbal.

Desfigurando a linguagem verbal, aquela que é feita de forma oral e também de forma escrita, na capa pode-se encontrar os seguintes elementos: Léo Cote; Instalação do corpo; Gala-gala edições.

Para o primeiro ponto, “Léo Cote”, é possível perceber que se trata de nome do autor da obra, é uma forma de informar do imediato ao leitor, apreciador sobre o autor do livro. Por isso fica no topo e centralizado.

A segunda descrição “Instalação do corpo”, serve para preparar o leitor sobre o conteúdo a ser abordado. Também, através do título, é possível perceber que é um livro de poesia.

De seguida, está patente uma linguagem não verbal, aquela que é feita por meio de sinais e gestos. E, na capa, pode-se ver a lua, o mar, e quatro sombras de pessoas carregando e segurando alguns objectos. A lua entre as nuvens, surge como um sinal de esperança, uma possível vontade de clarear a vida e despertar o amor no leitor. Às sombras dos quatro homens à beira-mar transmite uma ideia de tristeza.

Também é possível buscar compreender o próprio significado das corres que predominam na imagem [a cor de fundo da capa] azul claro e azul escuro, onde podemos entender que o azul claro vem junto com a espiritualidade de tranquilidade e harmonia e nos remete a um futuro de esperança, enquanto que o azul escuro faz-nos perceber sobre as dificuldades que habitam nos nossos corações.

Na vertente semiótica, quanto ao tipo de linguagem, vamos ver que ela trás consigo uma linguagem figurada porque nem todos têm o mesmo entendimento sobre a mesma coisa [imagem, capa do livro].

Apesar do grande crescimento dos adeptos à leitura em dispositivos digitais, ainda existem muitas pessoas que não dispensam o prazer de pegar no livro impresso, sentir o cheirinho do papel e folhear as páginas. Por isso, é preciso ter em mente que o tipo de papel usado para impressão, nas tiragens, ganhou muito mais importância nos últimos anos.

É preciso levar em conta que, se a apresentação do livro não for bem-feita, com acabamentos e papéis de boa qualidade, o leitor de hoje tem a opção de comprar a versão digital. O que o leva a comprar a versão impressa é o capricho que a torna especial.

O mais importante para impressão do miolo de um livro é a sua gramatura, já que dela dependerá a facilidade do manuseio. No livro “instalação do corpo” foi usado papel “creamy bulk de 70 gramas”, foi bem acertada, por ser um tipo de papel que não recebe ácido para seu branqueamento. Por isso, não reflecte a luz, o que torna a leitura muito mais confortável e o leitor dificilmente vai sentir a sensação de coceira nos olhos durante a leitura.

Agora, escrevo com reservas porque não sei ao certo a quem coube a função da escolha do tipo de papel para o livro, mas, o cheiro do papel é convidativo e tem um aroma agradável e doce de se sentir.

“Instalação do corpo” tem cerca de 100 páginas e é composto por três cadernos: Mitografia; O Ciclo da Ilha e A Geografia do Afecto. Mitografia contém 14 poemas, ciclo da Ilha 15 e A geografia do afecto 35.

 

 

Entre o silêncio das paredes e o som das memórias,
a arte revela o entrelaço do passado e do presente.

 

Ao cruzar o limiar da Galeria Kulungwana da Estação Central dos Caminhos de Ferro de Moçambique, este espaço, tradicionalmente dedicado ao movimento incessante dos passageiros, transforma-se em um palco onde as obras se tornam compassos de uma sinfonia visual e funcionam como trilhos para uma jornada sensorial, em que o passado e o presente se encontram e a arte se torna um veículo para explorar novas dimensões da experiência humana.

A exposição “Nanquim Preto sobre Fundo Branco”, curadoria de Natxo Checa (Portugal) e Alda Costa (Moçambique), é uma retrospectiva que destaca a relevância histórica e artística do pintor no contexto do modernismo em Moçambique.

João Ayres, com seu domínio sobre o traço e o uso deliberado da monocromia, nos convida a uma reflexão sobre a condição humana e os cenários socioeconómicos.

Como diria Jean-Paul Sartre, “a existência precede a essência”. De facto, as obras revelam como a existência com suas lutas e experiências molda a essência da identidade e do ser, criando uma narrativa que desafia a simplicidade visual para revelar as nuances da condição humana.

Através de suas pinturas, propõe-nos um diálogo com as correntes intercontinentais vigentes na época, como o neorrealismo, concretismo e expressionismo.

Ao observar as quatro obras, somos apresentados uma paisagem que transita entre o movimento colectivo e a introspecção individual. A escolha do preto sobre o fundo branco traça um contraste que acentua a dualidade entre a luz e sombra, presença e ausência, vida e vazio.
Em termos técnicos, a preferência do nanquim sobre fundo branco é particularmente significativa. Diante desse cenário, a austeridade e a pureza do fundo branco discrepam de forma evidente com as linhas escuras do nanquim, enfatizando as emoções e as tensões presentes nas figuras retratadas.

Essa técnica minimalista, mas ao mesmo tempo dominante, retém a essência dos temas abordados por Ayres: o esforço humano, a opressão e a busca por identidade num mundo em constante transformação.

Naturalmente, a primeira imagem, acima, à esquerda, sugere uma procissão ou uma marcha, em que a massa de figuras parece avançar para além dos limites do quadro. Este movimento colectivo pode ser interpretado como uma alusão à história de resistência e às jornadas de luta que marcam o povo moçambicano.

Há uma sensação de anonimato entre as figuras, que, apesar de estarem unidas, mantêm suas individualidades ocultas pelo jogo de luz e sombra, algo que mostra as dificuldades das interacções sociais em contextos de servidão e aspiração.

Sob outro ângulo, o quadro acima, à direita, desvia-se substancialmente dos outros, ao apresentar um cenário mais vazio, possivelmente uma paisagem ou um espaço natural desprovido de figuras humanas.

Este espaço, que parece ser um momento de pausa ou reflexão, rompe com a concentração das outras obras e nos convida a contemplar a vastidão e o silêncio. Este vazio pode ser visto como uma metáfora para os momentos de solidão ou perda, ou talvez a vastidão de possibilidades e incertezas que permeiam a vida.

Surpreendentemente, as duas imagens, no quadro, em baixo, voltam a introduzir figuras humanas, mas em contextos que sugerem cenas de vida cotidiana.

Na imagem à esquerda, em baixo, as figuras parecem estar envolvidas em algum tipo de actividade comunitária, talvez um mercado ou uma reunião social, onde os corpos se cruzam e se conectam, criando um dinamismo que contrasta com o isolamento da obra em cima, à direita.

A luz desses factos, na imagem à direita, em cima, a intimidade entre as figuras sugere uma cena de cuidado ou ensinamento, onde a transmissão de saberes ou afectos é central. Aqui, o pintor comentava sobre a importância dos laços familiares e comunitários na construção da identidade e na resistência cultural.

O traço de Ayres, solto e expressivo, suporta um peso emocional que transcende a simples representação visual.

Há uma crueza e uma urgência em suas pinceladas, que dialogam com a história de Moçambique, marcada por lutas de libertação e processos de reconstrução nacional.

As obras não documentam apenas, também questionam e subvertem as narrativas dominantes, oferecendo uma visão que é ao mesmo tempo universal e consideravelmente enraizada no moçambicano.

Além disso, a exposição resgata séries de pinturas e desenhos neo-expressionistas dos anos 50, criados para serem exibidos em importantes instituições de arte, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo e a galeria do Ministério de Educação e Cultura do Rio de Janeiro.

O resgate proporciona ao público de Maputo a oportunidade de redescobrir uma obra que, por muitos anos, esteve esquecida e distanciada de sua terra de origem.

A apresentação das obras, apesar de cuidadosa, pode deixar a desejar em termos de contextualização histórica. Algumas peças carecem de explicações mais detalhadas que ajudem o público a compreender melhor o contexto em que foram criadas e como se relacionam com o momento social e político de Moçambique à época.

Contudo, o carácter de “regresso a casa” desta exposição é, portanto, um marco essencial na preservação do património artístico moçambicano, demonstrando o poder da arte em suscitar autoanálises e críticas sobre nossa identidade colectiva.

Como Vladimir Maiakovski observou, “A arte não é um espelho para reflectir o mundo, mas um martelo para moldá-lo.” Esta mostra, aberta ao público na galeria de artes Kulungwana, até o dia 27 de Setembro, oferece uma oportunidade única para explorar o legado singular de um dos grandes precursores do modernismo em Moçambique, revelando, como disse Albert Camus, “A resposta ao absurdo da condição humana.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Hoje olho para trás, vejo a fila de milhares de homens que passaram pelas minhas camas, e daria a alma para ter ficado com um, mesmo que fosse o pior”
in Memórias de minhas putas tristes, Gabriel Garcia Márquez.

 

Hoje, decidi reflectir sobre a música mais bonita, emotiva, profunda e dolorida que a História de Moçambique já registou: a música de Mingas, intitulada “Mamana”.
A letra foi composta por Zeca Tcheco, o grande baterista da Banda RM, o pai do cantor Denny OG. O baterista compôs a música e ofereceu a Mingas, que a interpretou.
A música tem duas personagens, a mãe e a sua filha. Não se sabe ao certo como tudo começa [a conversa], mas o certo é: a música inicia com a filha chorando.

Quanto ao andamento, a música tem um compasso quaternário, Andante-moderado, rock-solo, mas não muito agitada. A tonalidade está na escala de Fá. Escutando a música, é possível perceber que, para a produção do instrumental, usou-se bateria, piano e duas guitarras.

Na música, o piano serve como um instrumento de base. Para além de criar harmonia entre os instrumentos, também auxilia a bateria na marcação do compasso, o rufar das baquetas sobre a caixa de Ré, um dos instrumentos que compõem a bateria, em diferentes momentos na música, serve para enfatizar o sentido da mensagem cantada, bem como gerar pausas melódicas, a fim de proporcionar um bom “Groove”.

A primeira guitarra faz solo. A que tem som mais agudo e a outra toca baixo, som mais grave, e juntas produzem uma melodia muito rica, que serve de base para a voz principal. A guitarra baixo também cria contratempos na instrumental, gerando um ritmo mais rico sob ponto de vista acústico.

O que é incrível, nesta música, na história da música moçambicana, todas as canções que falam sobre a mãe [mamana] tecem rasgados elogios às mães, que o diga Pedro Bene na música “mamana”, que o diga também o João Cabaço na música “mamana wanga”. São músicas muito bonitas e profundas, que falam sobre as mães, desde já recomendo que escutem.

As músicas acima mencionadas tecem elogios as mães, hora, nesta música, a Mingas faz o contrário. Trata-se de uma música que não é para tecer elogios à mãe, mas, sim, é para afrontar a mãe, encostar a mãe à parede. é isto que é incrível nesta canção.

“Por mais que eu veja alguém que me encante, alegre meu coração, o coração bate forte só de lembrar a ti, mamã”. Portanto, trata-se de uma experiência amarga do passado. Uma experiência muito dolorosa. Dá uma impressão de que, no passado, terá ocorrido uma situação de a jovem se envolver com alguém e a mãe tomar uma posição no sentido de afastar a filha do seu parceiro ou pretendente.

A certa altura, a filha afirma: “Lava hinkwavo valanguiwike hi mbilu yanga Akwaku ava lunganga mamana”, isto é, “todos aqueles que foram eleitos pelo meu coração, para ti, não prestam, e lá está o grito: “Oh hiyo io io io io”.

Num dos momentos, na música, talvez o momento mais alto, sobe de tom para questionar: “o que você quer de mim, mamã? Essa maneira de empurrar-me como se de um plástico eu me tratasse, essa maneira de entregar-me como se eu me tratasse de papel, até vendes-me como se de roupa, eu me tratasse”.

Na citação acima, a cantora usa figuras de estilos, comparação, para enfatizar a mensagem. Segundo Infopédia, dicionário online da Porto Editora, comparação é uma figura de linguagem caracterizada pela analogia explícita entre termos de um enunciado. E, para expressar a dor da desvalorização pela mãe, a artista faz perfeitamente uso da comparação entre a jovem, o papel e a roupa.

Num tom de ousadia, a personagem, com toda coragem do mundo, diz: “Nili vona hi wene mamana”, como quem diz, mãe, se põe no meu lugar.

O que é mais incrível na canção é o direito de contraditório da mãe. A mãe não se pronuncia sobre esse grito, a afronta da filha. Depois da mãe ter ouvido as reclamações da filha, simplesmente cai em lágrimas. Cai em lágrimas e de joelhos chora.

Esta música não é para simplesmente ouvir, mas, sim, escutar, sentir e meditar. Na verdade, esta canção fala da vida de muitos jovens que estão em idade de lar, mas, constantemente estão em casa das suas mães ou vivem sozinhas em casas de renda e a sociedade lá aponta o dedo, certamente não sabem qual é a história destas pessoas.

O nível de divórcio que se assiste, hoje em dia, em Moçambique, do modo particular em Maputo, não será resultado de casamentos por encomenda feito pelos pais? E as jovens que vivem sozinhas, não será que em algum momento é fruto dessa dor de certos constrangimentos, de serem “chavissadas” pelos seus progenitores? Provavelmente, a saudosa cantora Elsa Mangue tenha razão: “ sortudas são às pessoas que se casam e conseguem manter o casamento”.

Não é tarefa dos pais definir com quem os filhos devem ficar. O papel dos pais é um papel paternal, isto é, de aconselhar e não decidir.

A Mingas está de parabéns pela belíssima canção, parabéns também para o Zeca Tcheco, pela belíssima composição, e o saxofonista, pelo sopro de rasgar o coração e massagear a mente. Ele deixa a música mais bonita e profunda, faz com que a música ganhe uma certa melancolia e gere um ambiente propício para uma bela reflexão.

 

Artista: Mingas
Título: Mamana

 

Pente é um objecto usado para alisar e organizar o cabelo, de modo a ter uma apresentação agradável. Quanto mais fino o pente é, mais rigorosa é a sua organização aos fios de cabelo. Este objecto de beleza é usado, igualmente, para elaborar diversidade de tranças e penteados, sobretudo quando se trata do cabelo de homens e mulheres negras.

” A pente fino” foi a metáfora que Filipe Branquinho encontrou para nomear a sua mais recente exposição no Centro Cultural Franco-Moçambicano, inaugurada no dia 20 de Agosto e que pode ser apreciada até 5 de Outubro.

Filipe Branquinho, com a clara intenção de passar um pente fino nos olhos da sociedade, trouxe duas séries da mesma exposição: In gold we trust e B(l)ack, a série que aqui nos interessa tratar.

B(l)ack é uma homenagem estética e estilística ao cabelo natural crespo como há muito não se contemplava. O quadro Black XXX é apresentado ao observador essencialmente com um fundo branco e um padrão verde claro que faz a base do quadro. As laterais do quadro são caracterizadas por colagens de várias figuras ilustradas, dentre as quais: bandeiras, um soldado, uma máquina e dactilografar.

Na figura central do quadro, está uma beldade negra, preta de ébano, com cabelo crespo, bem trançado, uma trança longa, que desce pelas suas costas adentro.

As linhas do quadro são finas e regulares, uma vez que representam figuras reais. As formas das figuras são essencialmente humanas, soltando um olhar, ou um sorriso desenfteado que carrega um forte simbolismo na retrospectiva que o autor pretende trazer.

A forte presença de símbolos, como bandeira, foto de soldado em tempo colonial, traz ao quadro um regresso ao tempo socialista. Aliás, a série B(l)ack, como escreve o autor, com o L entre parêntesis, pode ser lida Back to Black, o que em português seria: de volta ao preto, ou, figuradamente, de volta à cultura preta.

As cores foram estetizadas como um halo, que usurpa a atenção do espectador para o centro do quadro e, depois, para as laterais. As cores ao fundo do quadro acendem o seu brilho, porém, deixando máximo protagonismo para a cor preta e laranja, que são o sol do quadro.

O preto carregado, que ilustra a mulher no centro, tem uma função narrativa inequívoca, de que o autor se dirige a este grupo de mulheres em especial, a trança tecida caprichadamente a cor de laranja cintila no quadro como uma gaveta de memórias que diz: Ainda lembras te como eras bela naturalmente? Ou já te esqueceste?

Os contornos da mulher negra no quadro, incluindo do cabelo, não só sensibilizam para a diversidade de usos ao cabelo natural, mas fazem um forte apelo ao bem-estar, a auto estima, ao sorriso da mulher negra. Apesar de estar de costas, ela está em overdose de beleza no quadro, uma pintada no mamilo esquerdo, acrescentou-lhe um toque de voluptuosidade.

Se a mulher negra é bela,nauralmente, sem betumes ou perucas, como ilustra a exposição, porquê, então, ela importa beleza ocidental e oriental? Possivelmente, o autor deseja que cada mulher consiga responder para si o porquê da importação de beleza estrangeira?

Além fronteiras, no Brasil, outros cantos do mundo, em filmes de Holywood, sobretudo históricos, a mulher negra é distinguida pelo cabelo crespo natural, tranças e afro.

Mais que um manifesto, o quadro Black XXX é uma busca cultural de valores e princípios. É um exercício de regresso no tempo, para ir buscar o que éramos e trazer ao quotidiano.

A máquina de dactilografar, as colagens sobre desporto, o rosto negro ao estilo dos anos 80 no canto supeior direito, e os dois casais de dança que figuram abaixo do seio da mulher, mostram que o autor conduz aos espectadores, a um resgate de valores, princípios e práticas que existiam e nos tornavam seres felizes na simplicidade, hoje, práticas esquecidas.

Olhando para a nossa actualidade, a mulher negra tem sido escrava da indústria estética ocidental, e quase do vestuário também. Quando nos perdemos pelo caminho, precisamos regressar ao ponto de partida para nos encontrarmos. Com esta exposição,série “B(l)ack”, Filipe Branquinho faz uma intervenção social pertinente, ao mesmo tempo que “A pente fino” alisa o seu talento e diáloga profundamente com a sociedade.

B(l)ack é um grito profundo de chamada de atenção à sociedade, sobretudo à mulher negra em relação à beleza estética importada. Se a mulher negra moçambicana esteve “cega” à sua beleza natural, nesta exposição, com certeza, encontrará a luz que precisa para cintilar essa beleza e cabelo natural.

O quadro Black XXX é uma obra em aguarela, acrílico, colagem, caneta fineliner e posca sobre impressão a jacto de tinta em papel breathing color, Elegance Velvet, 300 GSM, 100% cotton rag, Bright white matte 110 X 90cm.

 

a revolta

“amada
a revolta é um poema escangalhado
alojado na boca do medo”.

[MBATE, 2009: 44]

 

“No Fundo dos Olhos” é o título do segundo livro da poetisa Águida Tumbo Alexandre. Lembre-se que esta poetisa se estreou com “Mar de Sentimentos”, em Junho de 2022.

Este livro tem 46 poemas. A temática predominante é a de intervenção social. Mas também, trabalha outros temas como, por exemplo, os que abordam o valor da mulher; textos que salientam a sua beleza física, as suas alegrias, a sua simplicidade, SENHORA NATURAL: “Muito bem cedo/ Exibe o seu sorriso de mulala [ênfase acrescentada]/ lábios vermelhos pintados com mulala [idem]// A tornam especial e única […]”. A mulala é uma raiz que é usada para a higienização oral. Pinta os lábios, deixando-os purpúreos. A mulher africana, particularmente, a mulher moçambicana, encontra um lugar de relevo na poesia de Águida Tumbo Alexandre. A sua beleza, a sua originalidade: “[…] com seus cabelos crespos/ Faz tranças de xindlandlalatani/ Sua pele natural e macia/ Inspira olhares da natureza”. Na terceira estância deste poema, a autora introduz novos elementos de carácter e de axiologia: simplicidade, auto-estima: “Com seus pés nas sabrinas/ Sente-se grande rainha/ Com seu corpo sem alterações/ Alegra-se pelo seu ser natural”. A autora seleciona, cuidadosamente, as palavras; sabe dar-lhes o seu sentido real: natural que combina, perfeitamente, com a expressão corpo sem alterações; estas duas expressões soam como um elogio, por um lado e, como uma crítica – por outro – à própria mulher que, vezes sem conta, desvaloriza-se; deita abaixo a sua beleza natural, em detrimento de aplicação de diversos produtos cosméticos para alterar a sua pele, estranhamente. E a palavra sabrinas, nome de calçado feminino, geralmente, de material de napa fina, todavia, é este calçado que o nosso sujeito poético – feminino – calça. Atenta a este verso: “Sente-se grande rainha”. É, exactamente, neste verso em que o sujeito poético exalta a auto-estima da mulher. Não se rebaixa perante a sua condição social. As sabrinas podem ser uma marca de carência. Mas também, de simplicidade. Esta desigualdade social é visível, em AMOR RARO, em que se descreve a situação de uma senhorita nascida numa família rica, entretanto, esta apaixona-se por um rapaz pobre e analfabeto: “[…] sou uma senhorita distinta/ a minha vida está no tapete vermelho/ não tenho identidade fora da passarela/ Fui concebida no ouro puro/ gerada no berço de ouro/ amo desesperadamente um analfabeto/ o empregado da casa/ é o amor da minha vida”. Nos dois poemas, nota-se: menina que calça as sabrinas [versus] senhorita concebida no ouro; sou senhorita distinta [versus] ele é uma poeira no meu salto; e é impressionante o seguinte verso: sou igual a um peixe/ que fora da água não vive; é uma metáfora, aqui, a autora faz alusão à riqueza – uma vida abastada – e à pobreza – uma vida de extrema carência.

Outras temáticas desenvolvidas, na poesia de Tumbo, são: sofrimento que traduz a dor, angústia, visível, também, em LÁGRIMA SECA, aliás, neste poema, a autora continua com o uso de contrastes, vistos nos poemas anteriores: frio e sol agressivos: “Na tarde de muita chuva/ O frio agredia as pernas/ O sol agressivo em meio a chuva/ O chão quente rachava as pernas// Meu corpo inchado pela dor/ A pele soltando fumaça de dor/ Alma minha desfalecida pela dor/ Coxeando nos cantos sem suor// No rosto da lágrima seca/ Ouvia-se grito sem voz/ Um som desafinado/ Sem voz”.

Neste texto, a autora pretende evidenciar o sofrimento. O desemprego. A ausência de suor, simbolizando a falta de emprego, (a partir de uma prática coloquial comum). E, recorrendo ao contraste: “Ouvia-se grito sem voz […]”, para trazer a grande contestação e aborrecimento, senão mesmo a manifestação da revolta, mas também, pode revelar-se uma agonia; o cansaço, não um cansaço físico, mas psicológico; a desesperança. Há, neste verso, a criação de uma imagem que se vai vislumbrar, na imaginação do leitor, de uma forma subtil.

O sujeito poético, na poesia de Águida Tumbo Alexandre, é um sujeito activo, que observa, que questiona, que clama pela justiça; uma justiça que – existindo – tal como ele a anseia, projectá-lo-á para a felicidade plena: “[…] Estou sendo forçada a crescer/ […] por que atropelam o meu futuro? […]// deixem-me sonhar com um castelo!” Aqui, o sujeito poético indaga, aflito, preocupado; e faz um apelo, na esperança de que seja ouvido. É condenação aos casamentos prematuros. No verso: “[…] Estou sendo forçada a crescer/ […]”. A palavra crescer revela, exactamente, uma roptura abrupta da sua idade pueril para assumir – entre aspas – uma responsabilidade de uma mãe. Responsável pelo lar. Ele começa, tão cedo e, forçosamente, a cuidar dos seus filhos. A palavra castelo trazida, no verso acima, não será nada mais que uma metáfora; não se trata dessas construções fortificadas e muito grande da Idade Média e que serviam de residência real ou feudal. Os castelos serviam de protecção e não de um lugar glamoroso como os palácios. Ora, o castelo a que se refere o nosso sujeito poético é, sem dúvida, a escola, o crescer com saúde, a sua formação; a formação é a chave de tudo. É este castelo que alvitra que não se lhe destrua.

Este poema tem alguma relação de significado com os seguintes: SONO INTERROMPIDO (pág.: 12) e MINHA INFÂNCIA (pág.: 35). Os versos como: “[…] o seu sexo tesouro/ Deus guardou como seguro”. Também se fala da formação e da protecção. Na verdade, a autora trabalha nesta perspectiva, cruzando os versos, fazendo o paralelismo, quer temático, quer estrutural, quer semântico. Um outro exemplo que o posso trazer, aqui, é o dos poemas SOU MOÇAMBICANA: “[…] Dizem que sou moçambicana/ nem sequer conheço o meu país/ também não conheço a História do meu país/ confundo sempre os meus líderes […]”, e estes versos do poema A ESTRANGEIRA: “[…] Sou turista/ da minha terra/ terra que me viu nascer/ a mesma viu-me a crescer […]”.
Nos dois poemas, a autora levanta uma questão ligada à falta da educação patriótica, a perda de valores; a autora não procura o culpado; ela, simplesmente, levanta o problema, cabendo a outras entidades a sua consideração/ponderação.

Em MINHA INFÂNCIA: “[…] roubada/ agredida/ sequestrada […]// queria muito saber ler/ e tinha que buscar água no poço// Muita roupa para as mãozinhas […]”; aborda a temática da intervenção social: a denúncia e o trabalho infantil. Aliás, esta temática é continuada em DENTRO DE MIM, em que retrata casos de violência, agressão, solidão, fome.

Se a poesia é considerada, também, um instrumento de luta, de revendição, de revolta, como é a poesia de José Craveirinha, de Noémia de Sousa, de Rui de Noronha, os textos de João Dias, entre outros que retratavam o que a dominação colonial portuguesa fazia aos negros; sim, a poesia de Águida Tumbo Alexandre resgata essa intencionalidade poética desse período histórico, para gritar, lutar, revindicar pelo bem-estar das raparigas e das crianças órfãs. É esta a temática tónica que marca a poesia, claro, não deixar de lado a do amor; um amor demonstrado pela mãe para um filho, poema QUERO SER CRIANÇA.

“No Fundo dos Olhos” projecta-nos para uma temática diversificada, isto, já, tinha sido dito. De entre ela, a que está ligada à família, a família como centro onde se adquire os valores, como se lê em A FAMÍLIA: “É a nossa identidade/ É a nossa originalidade/ É a nossa tradição […]// […] é o amor com o próximo/ É convívio e união/ É um grande propósito de Deus// […]”.
Estes valores são os que constroem uma sociedade sã e educada.

Em poemas, MÃE, a autora faz uma homenagem à mãe, o que José Craveirinha chamá-la-ia de Hino às mães,

– a descrição da dor:
[…] nesta vida
das entranhas em que se move
um embrião de gritos
nascem-te os filhos com renúncias
sangue e dor a mistura
Mãe! […]
(CRAVEIRINHA, 1974: 134)

– e, nestes versos, a descrição física de uma mulher em estado de gravidez e, por entre linhas, a irmandade:

[…] Ah!
mas desde o idílio
ao gâmetas fecundo
e da seiva plasma do mesmo sangue
ao primeiro beijo na face da menina que nasceu
salve-mulher da ternura que se não vende
o arfar do teu inchado ventre liso
curva inestética de beleza única
ao ângulo inobsceno das coxas
na invenção do nono mês
que ficou da primeira vida
na fêmea transformada
na técnica de nos fazer vivos. […]
(idem)

Águida Tumbo Alexandre explora versos livres. Os seus textos não apresentam vocábulos rebuscados. É o seu estilo. A sua poesia é incisiva na temática. Aborda a temática que tem que ver com a dor, morte, agressão, violência, amor: “[…] Despertou sorriso resplandecente/ com o seu olhar fascinante/ sempre despia e beijava mesmo distante”; mas também, ciúme: “[…] é veneno da alma/ sangra e chora sem motivo/ grita e briga por nenhum motivo// é uma arma fatal/ é uma poeira que entupe os ouvidos/ cega os olhos com tolice […]”; guerra: “[…] nesse derramamento de sangue/ no coração de Moça e Mbique/ terrível e violenta maldade/ ensanguentou Cabo Delgado, eternamente”.

Este livro que tem nas suas mãos, depois de tanto sofrimento, a autora abraça-nos com a alguma esperança, como que para fazer jus à temática de crença em Deus, a religiosidade, também, trabalhadas pela autora nesta obra. A esperança alivia a dor, o sofrimento. Dá-nos a confiança para enfrentarmos novos horizontes. Encararmos a vida com fé de que tudo muda.
Em FLORES, parece patente esta belíssima visão da poetisa “[…] Transmitem confiança/ Alimentam esperança/ Produzem a paciência/ desenvolvem a tolerância// O dia é lindo sempre com as flores […]”.

À guisa de conclusão:

“No Fundo dos Olhos” é um apelo ao leitor para fazer um exercício de (re)buscar a verdade, a honestidade, a sinceridade, a certeza, etc., etc., etc., nos olhos de cada um de nós. Os olhos são espelho do nosso interior.

Tudo isto vai resumir-se a uma única palavra: amor com o próximo.

Ferroviário, 8 de Julho de 2023

**ensaísta literário e escritor.

 

 

 

 

 

*Prefácio ao livro da Aguda Tumbo Alexandre; o livro foi publicado, no dia 8 de Agosto de 2024, na sala nobre da Associação do Escritores Moçambicanos, AEMO, e apresentada por Natércia Manhenje, ensaísta, docente universitária e linguista.

Titos Pelembe aventurou-se pelo mundo das artes, como um astronauta que se aventura pelo espaço. É artista, curador e pesquisador no campo das artes visuais. A busca de significados existenciais, e simbolismos sociais profundos, dão corpo à sua última exposição, intitulada Fragmentos da vida II.

E como um artista visual em diálogo psicossocial, através duma instalação, de moldagem em pasta de papel, com variadas dimensões, apresentou “A captura do Estado”.
Uma parede esbranquiçada, com figuras de distintas dimensões, os corpos mais humanos contrastando com algumas cabeças animalescas, traduzem a leitura visual da instalação “A captura do estado”.

Um Estado é uma maquina, constituida por um grupo de pessoas, regras e decisões que tem impacto na vida do cidadão comum.

A captura do estado remete-nos à ideia de quebra do poder estatal, e de tudo a isso conectado.

O autor parece propor que as figuras da instalação são representantes desse mesmo Estado capturado. Os reflexos e as posições emitidas por essas figuras são enigmáticas e misteriosas. Parecem gritar sem nada dizer, parecem fugir sem mudar de lugar, e parecem estar presas, sem algemas nas mãos.

A percepção de movimento é dominante, sobretudo devido às sombras das figuras, e as diferentes direcções em que elas estão posicionadas. As figuras parecem vir dum passado comum, mais ameno, no entanto algo obrigou a sua fuga e dispersão – a “captura”.

A captura do Estado é simbolizada pelo único elemento comum em todas as figuras, a corrente que prende cada representante do Estado.

As correntes são o centro das metáforas da instalação. Podem representar as leis do Estado, que são ignoradas, as regras de trânsito, pontapeadas quotidianamente, a postura urbana, vendida ao preço do desmazelo, o descredito, que é ter uma boa lei, mas que não funciona, devido à mesma captura do Estado.

As correntes podem também personificar a grande corrupção, que, de uma forma geral, captura o Estado nos diversos sectores: Na saúde, na educação e nos serviços públicos, locais onde, particularmente, se encontram estes representantes do Estado.

As figuras da instalação apresentam vários perfis de servidores públicos. Nota-se, por exemplo, uma figura de homem, com face de tigre, que pode simbolizar um mau servidor público, que, como um caçador, se serve do Estado com uma ganância animal, olhando apenas para interesses individuais.

A figura central da exposição também faz parte da instalação, assemelha-se a um líder corpulento, em posição de liderança no Estado, com a cabeça recheada de dois chifres, que, simbolicamente, traduz que está a ser traido, ou feito de parvo, pelos seus colegas de trabalho, ou por interesses obscuros provenientes do estrangeiro, que o obrigam a trocar ouro por ferro.

Uma outra figura apresenta-se vestida de roupa executiva e palitó. Com forte perfil dum especialista financeiro, tem as mãos estendidas para cima, no entanto, a sua cabeça está endada. A figura pode representar um alto funcionário do Estado, tentando estabilizar as finanças públicas da nação, mas sem controlo dos esquemas, dos branqueamentos de capital, do roubo institucional, e, por isso, apresenta-se de cabeça vendada, pois não pode controlar todo o sistema, ou então não tem poder para travar a máfia que capturou o Estado.

A instalação de Pelembe transmite mais do que a captura do Estado, consegue, visualmente, captar algumas consequências de um Estado capturado, um dos figurantes na instalação por exemplo, é achado completamente em queda e de rastos, que pode significar mais um funcionário com seis meses de atraso salarial. E desta forma, o Estado perde o seu poder e a sua capacidade operativa.
A captura do Estado é visivel no nosso quotidiano, pela incapacidade de se pagar salários aos funcionários públicos, professores, médicos, polícias, e etc, a incapacidade da polícia de controlar os raptos, a morosidade recorde dos tribunais e o turismo frequente dos infractores.

Como impedir que o Estado seja capturado? Esta é uma pergunta que a instalação de Pelembe deixa para a sociedade, num ano eleitoral.

A captura do Estado é uma instalação que faz parte da exposição Fragmentos da vida II, de Titos Pelembe, patente na Fundação Fernando Leite Couto até 31 deste mês de Agosto.

Sou Filomena Matusse, nasci em Moçambique, sendo assim, moçambicana e negra, com a pele muito escura, marcada pelo sol cuja intensidade aumenta a cada dia. A exposição solar é inevitável, agravando a minha negritude, uma vez que tenho de ficar exposta a ele para garantir sustento para a minha família; e não posso arcar com os custos dos protectores solares, que já ouvi falar por aí, pois são caros demais para o nível em que me encontro, pois, minha situação financeira não é boa.

Nasci em meio à pobreza, um facto que procuro aceitar diariamente, mas que não me impede de sonhar com um futuro diferente. Entretanto, não quero falar no momento da minha pobreza, pois não é culpa minha ter nascido nesta condição, quero falar de outra questão que me inquieta e é ainda pior que a pobreza a mau ver…

Desde jovem, fui testemunha da pressão imposta às mulheres da minha comunidade, província e país, que tentam clarear a pele. Eu própria, num determinado momento, sucumbi a essa tendência, utilizando cremes clareadores acessíveis, disponíveis inclusive nos mercados locais por 100 meticais. Inicialmente, julgava e condenava essas práticas, pois não compreendia a motivação por trás delas. Contudo, após reflexões e experiências pessoais, a minha visão mudou.

Moçambique é um país africano e a raça que predomina é a negra, entretanto não tenho paz na minha própria terra onde tenho o direito de ser negra e deveria viver à vontade…

Uma experiência dolorosa foi a de uma gestora sénior negra de certa empresa, que, embora competente, foi substituída por uma colega de pele branca, revelando uma hierarquia baseada na cor da pele. Estas situações evidenciam a desigualdade e discriminação persistentes, influenciando até mesmo o crescimento profissional e pessoal. Passo a expor: Uma jovem altamente capacitada foi contratada por empresários asiáticos em Moçambique para actuar como gestora sénior na sua empresa, onde os funcionários eram maioritariamente moçambicanos e negros. A convivência inicial entre todos era harmoniosa e produtiva. Todavia, tudo mudou quando o chefe da jovem decidiu contratar duas raparigas também asiáticas para a mesma empresa. Embora as novas funcionárias fossem fluentes em português e simpáticas, o chefe começou a introduzir divisões entre os colaboradores, separando-os pela cor da pele. Ele instituiu regras segregacionistas, tais como direccionar os negros para um lado e os brancos para outro, inclusive designando utensílios diferentes para uso de acordo com a cor da pele. Esta atitude discriminatória gerou desconforto no ambiente de trabalho.

A gestora, injustamente, foi removida do cargo sem motivo aparente para que uma das novas funcionárias brancas assumisse a posição, embora a gestora negra fosse mais competente. Esta era responsável por treinar as novas funcionárias e ensinar o sistema de contabilidade e gestão da empresa, inclusive as duas raparigas asiáticas foram instruídas por ela. Esta situação levou a jovem negra a concluir que, infelizmente, naquele contexto, a cor da pele parecia determinar a hierarquização e as oportunidades de trabalho, acima das qualificações e competências académicas. Este triste desfecho levanta a questão de como as desigualdades e preconceitos raciais ainda influenciam significativamente o ambiente profissional, mostrando que, para algumas pessoas, a pigmentação da pele pode influenciar injustamente as suas carreiras e oportunidades.

Este foi apenas um relato de muitos que poderíamos trazer, porque a discriminação racial é uma realidade na nossa sociedade, é fácil de ver as varias manifestações no nosso dia a dia, desde o acesso às oportunidades, até as suas formas mais graves.

O preconceito baseados na cor da pele e a discriminação geram divisões e desigualdades profundas na sociedade. Observa-se que, mesmo dentro da comunidade negra, a tonalidade da pele frequentemente determina a hierarquia e o tratamento recebido, perpetuando padrões de opressão. Estas experiências reflectem a complexidade e as feridas causadas pela discriminação racial, questionando se a opressão vivenciada resulta, em alguns casos, na perpetuação do ciclo de discriminação e divisão entre os próprios indivíduos de uma mesma comunidade.

A discriminação racial é uma realidade insidiosa que permeia a sociedade de forma profunda, criando divisões e desigualdades que prejudicam a todos. É imperioso reconhecer e confrontar activamente o racismo em todas as suas formas, desde os actos mais evidentes até as estruturas institucionais que perpetuam a injustiça. Apenas com consciência, empatia e acção conjunta podemos construir um mundo mais justo e inclusivo, onde a cor da pele não determine o valor ou as oportunidades de um indivíduo. Façamos a nossa parte para promover a igualdade e a diversidade e lutemos juntos contra o racismo em todas as suas manifestações!

“O homem é bom por natureza. É a sociedade que o corrompe” (Jean-Jacques Rousseau). 

É assim que decidimos iniciar a crónica de hoje, trazendo à tona o célebre pensamento de um dos filósofos mais renomados do Iluminismo. Nessa linha, urge-lhe um convite de reflexão sobre a bondade natural do ser humano e como as estruturas sociais podem corromper essa essência. Vale ressaltar que qualquer semelhança com factos reais é, de certeza, pura coincidência.

Vemo-nos em um mundo onde a posse material é mais valorizada do que o valor moral da sociedade. Aqui, as pessoas não reclamam pela injustiça, mas sim pelo que os outros ganham, sentindo-se prejudicadas por isso. Até parece que não sabemos o que, realmente, queremos ou precisamos. Parece até que o que desejamos é que os outros não desfrutem de seus momentos. Queremos que eles sejam meros espectadores do nosso sucesso, pois acreditamos que só nós merecemos ter oportunidades, quantas vezes forem possíveis, mas apenas as nossas oportunidades. Nunca as dos outros.

Mas aí vem a questão: de que sociedade estamos a tratar quando falamos “normal”? Aquela que vive de novos talentos? “One, Two, Three, Let’s go!”? Ou o que mais importa é acreditarmos ser o que pensamos ser e descontarmos o que realmente nos interessa devido às dificuldades de circunstâncias? Não há condições para uma sanidade mental. Então, conformemo-nos e pronto. Vamos normalizar o que temos, por mais podre e doentio que seja. 

Alguns dos poucos analistas e intelectuais que temos dentro destas quatro paredes da pátria defendem, com seus A’s + B’s, que é a sociedade que está corrompida por ser aliada do sistema, e, portanto, a culpada pela existência de todo o mal na face da Terra. E mais, os legisladores saem dela. Mas quem quer ser bom num mundo onde a pobreza afia suas unhas e garras? Então, dizem que é daqui que se origina o ciclo de vez-vez.

É de admirar como, em tempos de fome e necessidade, os bons samaritanos se destacam como nobres santos da Idade Média. Nesses momentos, a humildade torna-se uma virtude sagrada, elevando o espírito humano a um patamar quase intocável, onde até uma mosca não pode ser morta.

Aqui, estamos naquele tempo em que muitos ainda se apresentam de uma maneira em palavras, mas suas acções revelam outra verdade. Vivemos uma era de dissonância entre o discurso e a prática, onde a retórica de bondade e integridade é frequentemente desmentida por comportamentos que contradizem essas virtudes.

O que dizer sobre a corrupção? Todos os dias, as pessoas reclamam, são vigilantes e críticos da moral alheia, mas, quando são promovidas, esquecem que antes eram aquelas que sofreram e sonhavam com uma sociedade justa. Quando assumem posições de poder, acabam também se envolvendo em práticas corruptas. O que é mais lamentável é que poucos realmente pensam no bem comum.

‟Phoole-phoole”, há muito que se anda em contra-mão, pisca-se para a esquerda e segue-se para a direita. Agora, o lema é “vano timi”. Chegou a minha vez.

Está doente, muito doente,
O meu país,
Acamado às costas
Das terras e perlíferas águas do Índico!

Quando peguei o livro mais recente do Bucuane a que decidiu dar-lhe um nome sugestivo: Celebrar a Vida, Poemas de recesso e de esperança, tinha a plena certeza daquilo que me esperava, isto é, antes de folheá-lo, muito antes de ler os poemas que o compõe, sabia que estava perante escritos que pretendiam exaltar a vida. Não me enganei. Tal como acontece na vida, em cada folha, em cada página, chorei, ri, fiquei triste, fiquei com saudades, fiquei com nostalgia, alegrei-me, a minha vontade de viver e de amar renovou-se. Morri e ressuscitei quão segunda chance de voltar a ver o sol e sorrir todos os sorrisos que desperdiçara na outra vida, na outra encarnação.

Não é de admirar, Bucuane, o poeta depois de enfrentar o grande flagelo que foi Corona Vírus. Depois de com ele lutar. Sobreviver pegou na caneta e deixou o coração derramar no papel todas as lágrimas choradas pela perda de familiares, amigos, vizinhos, pela morte de compatriotas, pela morte de muitas pessoas ao longo do Mundo cujos números faziam questão de invadir o silêncio e o desassossego dos nossos isolamentos. A contrastar com o fica em casa, as notícias levavam-nos para viver o luto em terras distantes, numa altura em que nem podíamos enterrar os nossos entes queridos.

Bucuane derramou no papel também as lágrimas choradas por toda a prosperidade frustrada por causa da clausura geral roubando emprego de muitos, inviabilizando negócios de outros. Com a sua caneta, Bucuane vingava a morte daqueles que não tiveram a mesma sorte. Daqueles que morreram e ainda morriam. Enquanto essa desgraça se propagava por todos os lados, Juvenal Bucuane, como forma de enfrentar esse pesadelo, escrevia poemas sobre aquilo que estava a acontecer. E como alguém muito bem o disse, trata-se de: “Poemas escritos com dor advinda de muitas incertezas, que de crescendo em crescendo se iam alteando no retiro forçado a que a humanidade estava sujeita: em quarentenas uns, em convalescença outros, e ainda outros, apropriados pelo avassalador medo.” Quando a desgraça terminou o livro já estava pronto.

No meio dessa dor e, como não podia deixar de ser, Bucuane também deixou o seu coração transbordar uma ode à vida, kulunguela a vida por ele mesmo ter sobrevivido e por todos aqueles que como ele venceram a doença e convida-nos a perceber a doçura de reaprender a apertar a mão, a dar um abraço, a deketar, a dar dois beijinhos, a celebrar a vida, solidarizando-nos, na alegria e na tristeza. A amarmo-nos. É isso que eu aprendi, reaprendi.

Hoje, agora e aqui,
Corre,
Neste corpo físico
Que nos faz presentes,
A vida,
A vida que quer ser celebrada,
A vida que deve ser celebrada!

Com uma obra bastante extensa, o poeta não deixa de nos surpreender com a sua vitalidade e publicações regulares, o que nos leva a concluir que para o Bucuane, escrever não é apenas um acto de afirmação, mas sim, de militância, duma afeição pelas palavras, dessa quase obsessiva vontade de estar presente, de intervir, de utilizar a poesia como sua forma de expressão e, sobretudo, de contribuição no meio social onde ele se encontra inserido. E fá-lo com essa elegância narrativa que sempre o caracterizou, sem ser demasiadamente eclético e também sem entrar numa escrita simplória ou simplista. Confesso que em algum momento me senti perdido, sem saber se estava a ler uma crónica ou um poema despretensioso. Não sabia situar estes textos do Bucuane, não sabia como designa-los sentia-me a ler, simultaneamente, uma crónica, uma saga do Corona Vírus e poemas sobre o verdeiro valor da vida.

Enfim, concordo com as palavras da ensaísta Luísa Fresta no interessante posfácio dedicado ao livro Celebrar a Vida, quando afirma que estamos diante de textos que “oscilam entre a prosa poética, o poema em prosa e o verso livre”, sendo que, no seu ponto de vista, esses textos não carecem necessariamente de rótulos; eles existem e reverberam no leitor tanto pelo seu conteúdo quanto pela forma – uma escrita escorreita, objectiva e aberta – sem que com isso prescinda de uma estética muito cara ao autor, sempre indexada à clareza da expressão e à sua visão límpida das coisas deste mundo.

A verdade é que Bucuane, com as suas abordagens suaves e poéticas, sobreviveu, talvez com uma energia renovada, pronto para continuar a viver, a escrever, a celebrar a vida. Talvez seja por esta razão que Celebrar a Vida, de acordo com a posfaciadora deste livro, Luísa Fresta, o Bucuane” deixa transparecer uma postura de integridade, responsabilidade e fé, plasmadas em cada texto e em cada uma das ideias explanadas com coerência e habilidade. Como se o autor e o sujeito poético tivessem uma convicção inabalável num futuro melhor, mais sereno, com mais fraternidade e soluções para os problemas da espécie humana.”

Apesar do seu cronicar, da sua clareza em nos descrever a ocorrência dos factos covidianos, o livro que temos nas nossas mãos não deixa de ser um poemário onde nos cruzamos com a morte, o medo, o espectro do nada, a rendição, a trombose económica, a revolta, a luz, a esperança, a “celebração da vida”. E é exactamente esta que Juvenal Bucuane, afinal, vem celebrando. Desde sempre. Em cada livro que escreveu, Bucuane glorifica a vida. Desde “A Raiz e o Canto”, passando pela obra “Meu Mar”, até os livros mais recentes, Bucuane celebra a vida, com essa turbulenta vontade de falar sobre as coisas, de contar, de explicar, de justificar, de fazer poesia. E para isso Juvenal, independentemente de qualquer influência ou experiências que possa ter, atrevo-me a afirmar, que Bucuane, é ele próprio, tem uma identidade, uma linha própria, única, inconfundível, caracterizada pela espontaneidade da linguagem e pela pureza que facilmente se evidencia.

Chamou-me sempre atenção a forma como Bucuane milita a palavra, ou seja, o modo como ele a cristaliza, o modo como ele não a subverte e não a torna inatingível. Ele sabe que tem um objectivo a alcançar, sabe que tem leitores que esperam por uma mensagem que lhes seja perceptível, que lhes possa interessar e mostrar outros caminhos. Estamos, pois, a falar da forma. E assim sendo, talvez importe recordar as palavras do sociólogo e poeta Filimone Meigos, ao explicar que “ao falarmos de forma na literatura, referimo-nos à maneira como se diz, como se escreve, como se veicula o discurso. Tal forma não é isenta, ela revela uma certa maneira de estar, ética e estética. Na verdade, a forma do discurso revela uma certa forma de pensar, agir e sentir”. Já que estamos aqui, talvez possa aproveitar a oportunidade que o texto me oferece para dizer que sempre me chamou atenção a forma declaradamente saudável de Juvenal Bucuane estar na literatura, que se aproxima, sem dúvida nenhuma, à forma como o poeta se movimenta na vida.

Juvenal Bucuane é um poeta de todas circunstâncias. É um cidadão atento aos acontecimentos do seu país. Nada se lhe escapa, o que significa, por outras palavras, que os seus livros (um acervo de mais de vinte livros em poesia e prosa), que o fazem ser um dos escritores mais profícuos desta pátria amada acompanharam o crescimento do país e da própria sociedade. Os tempos da pandemia fizeram-no compreender que estamos no Mundo por pouco tempo, por esta razão são desnecessárias as guerras que movemos uns contra os outros. Precisamos de modificar tudo. De entrar no “novo normal”.

É quase tudo mudar,
Ser outra coisa
Sendo o mesmo ser!
……………………………
É uma nova forma
De ser e estar
Sem o desvio do que se é
Na essência!

A poesia do Juvenal Bucuane que aqui encontro não se restringe apenas ao vírus, ela se espalha para outras direcções com a abordagem de temas universais que constituem a preocupação da nossa sociedade. Bucuane fala de muitas coisas. Do medo “de algo que não vemos”, mas cuja dimensão destrutiva é assustadora. Faz apelo aos deuses de África para que estes “lancem sobre nós todos os fumos que se libertam dos grandes potes onde, nas florestas sagradas em que habitam cozinham os remédios que ora nos faltam”. Fala da chuva, para que ao cair sobre a terra e os homens aconteça o milagre da purificação. Fala também da terapia da luz do sol. Da nova ordem mundial. Do valor da solidariedade. Mas que este não venha a qualquer preço, por isso o poeta não se esquece de recordar: Ajudem-nos, sim, mas deixem-nos ser quem somos, “África, da cabeça aos pés”.

Estamos na corrida
da salvação do mundo
temos uma palavra a dizer!
Não somos animais no redil
à espera de engorda
para abate
somos participantes do jogo global.

Num momento particularmente difícil, quando o vírus devastava por todos os lados e tudo parecia perdido, a voz do poeta se erguia e dizia que ainda havia um caminho de esperança a percorrer. Num dos poemas mais eloquentes do livro Bucuane indica uma rota para os que pretendem sobreviver. Para ele a única possível: A caminhada para o mar. Para a purificação. Para a eternidade. E por essa razão escreveria o poeta Juvenal Bucuane:

Somos água,
Que toma a forma do seu curso,
Líquidos…
Corremos dentro de um leito,
Ganhando a sua forma,
À procura do nosso destino.

Nestes poemas de recesso e de esperança, Juvenal Bucuane foi buscar os traços do pintor Noel Langa, seu contemporâneo e ilustre habitante do Bairro Indígena, para ilustrar a capa do livro. A escolha não podia ter sido melhor, Noel Langa trouxe as suas cores vivas, luminosas, vibrantes, trouxe a solidariedade e amizade que os dois comungam desde tempos remotos e dessa lembrança que ainda os faz prisioneiros desses tempos inesquecíveis do Bairro indígena.

O livro está aqui e a sua mensagem é clara: não nos esqueçamos de celebrar a vida! Para juvenal Bucuane “estes poemas de Recesso e de Esperança tentam sugerir a quem os lê, a Celebrar a Vida constante e convictamente, como elemento útil das mudanças que a sobrevivência colectiva nos exige.”
E é tudo.

Maputo, 13 de Agosto, 2024

Desde a primeira alvorada de terça-feira, quando ouvi o comentário de Isidro Amade sobre a falta de fundos para viabilizar a participação da selecção nacional de basquetebol sénior feminino no torneio de pré-qualificação para o Mundial, senti que o dia não ia terminar bem!

Estamo-nos a focar no desporto, mas a conjuntura estrutural do país, em todas as vertentes, está em colapso. Desde os juízes, médicos e passando pelos professores que reclamam por melhores condições de trabalho e salários. Vou, no caso particular, cingir-me apenas no desporto sem, no entanto, elencar se é basquetebol, boxe ou mesmo atletismo.

No desporto, pecamos pela falta de apoio do sector privado e, por outro lado, de uma fraca intervenção do Estado, aliado a má gestão ou uma gestao que é feita em função das “lombrigas” que lhes roem os estomâgos. Elenco, a seguir, alguns pontos:

1.Financiamento Insuficiente

Sem o apoio do sector privado, muitas instituições desportivas e atletas não conseguem obter o financiamento necessário para treinamento e competições. Isso pode levar à deterioração das infraestruturas e à falta de equipamentos adequados. A pergunta que faço é: qual o investimento de relevo que foi feito ao nível desportivo? Como esperar resultados diferentes se não apostas e não investes? É como plantar milho e esperar colher cajú…

2 .Falta de programas de formação:

A ausência de investimento pode resultar na falta de programas de formação e desenvolvimento para os jovens atletas, o que limita o processo de surgimento de novos talentos. No basquetebol, os treinadores consagrados são os mesmos de há 20 anos, com a excepção de Leonel Manhique (Mabê) que “rasgou o véu” e uma nova lava de treinadores jovens que se destacam. Na verdade, isto mostra que nada mais evoluiu e paramos no tempo. É preciso reconhecer e olhar para base.

 

3. Menos oportunidades para os atletas:

Atletas que dependem de patrocínios podem encontrar dificuldades em competir em níveis mais altos, o que pode impactar o desempenho do país em competições internacionais. Rimos do atleta Steven Sabino pela falsa partida na segunda série da primeira eliminatória dos 100 metros inserida no torneio de atletismo dos Jogos Olímpicos 2024 ao invés de o acarinhar, um comportamento que mostra quão pequenos somos. Fazemos barulho, mas somos todos cobardes e merecemos os governantes que temos.

 

4. Perda de talentos:

Sem o suporte necessário, muitos atletas podem optar por abandonar o desporto em busca de oportunidades em outras áreas, resultando em uma perda significativa de talentos. Vamos continuar a naturalizar jogadores velhos. Não pensamos a longo prazo.

 

5. Desigualdade nas oportunidades:

A falta de apoio pode acentuar a desigualdade, onde apenas atletas de classes sociais mais altas conseguem acesso às melhores condições de treinamento e competições. A selecção nacional de Tang Soo Do é presença constante nos mundiais que se realizam em todos quadrantes do Mundo, e os atletas trazem resultados positivos para o país. Mas, diga-se, não se enganem porque é tudo custeado com fundos proprios. É um valor que vem do bolso dos pais e encarregados de educação. Por isso, o Tang Soo Do ainda é uma modalidade elite apesar de ser aberta a todos.

 

6. Diminuição do Interesse público:

Sem o investimento e o apoio do Estado, as iniciativas desportivas podem se tornar menos atraentes, levando a uma diminuição do interesse do público. Quem se vai interessar em apoiar o nosso desporto com as “lutas de comadres” que se propala nos bastidores. A única boa excepção à esta regra é a nova direcção da Comissão de Gestão da Associação de Basquetebol da Cidade de Maputo, agremiação que é dirigida por jovens que mostra(r)am que, com interesse e vontade, pode-se resgatar a modalidade porque o desporto tem valor. O desporto tem brilho. O que precisamos é de profissionalismo e comprometimento. Mais velhos, saiam e deixem os jovens trabalhar.

 

7. Dificuldade em oganizar eventos:

A falta de apoio financeiro e logístico pode dificultar a organização de eventos desportivos, que são importantes tanto para o desenvolvimento do desporto quanto para a promoção turística. Os Jogos Desportivos Escolares que deviam ser uma montra acontecem e, depois, o que é feito dessas estrelas que nascem no evento? Porque não se pensar em parcerias com os clubes e devolver a formação de algumas modalidades para as escolas? Seria interessante adoptar modelos como o “Basket Show” e desafios entre escolas. “Ops”, esqueci que nas escolas públicas as horas dedicadas à educação fisica diminuíram…

 

8. Impacto na saúde pública:

A falta de apoio ao desporto pode levar a um estilo de vida menos activo na população, aumentando problemas de saúde relacionados com sedentarismo.

Num caos social em que estamos a viver, queremos legalizar o consumo da suruma. Essa cortina de fumo que nos querem impingir é mesmo para levar Moçambique ao abismo.

A combinação entre o sector privado e do Estado é crucial para promover um ambiente desportivo saudável e sustentável, que beneficie tanto os atletas quanto a comunidade em geral.

Ergueram-se vozes atordoadas de mulheres que ousaram viver, e na sua jornada, beijaram várias formas de morte, morte sentimental, morte espiritual, morte de esperança e morte até de um pouco de suas vidas, mas como ainda as possuiam, juntaram os seus gritos de coragem fazendo “Ecos”.

Ecos é o docudrama que traz a vista depoimentos corajosos de mulheres que foram vítimas de violência baseada no género, incluindo a física, económica, e psicológica.

O roteiro tem o merito de seleccionar um grupo de mulheres das quais a sociedade quase desconhece, e pouco vê, as reclusas. Na primeira voz, as reclusas fazem-se conhecer, e expressam o que tem de mais forte para a sociedade, os seus sentimentos, suas marcas profundas.

O documentário inicia com uma narração sobre o papel que a sociedade reserva a mulher, o de cuidar do lar. Quitéria Guirrengane, activista dos direitos humanos, participa questionando a representatividade, de que forma mulheres em posições de liderança podem ser actores sérios na defesa dos direitos humanos e na prevenção da violência baseada no género. Reflecte-se, portanto, sobre a vulnerabilidade socioeconómica a que a mulher está sujeita, o dificil acesso às oportunidades, e o facto de a violência ser maioritariamente cometida por membros da sua própria familia.

A trilha sonora inicia com a música da rapper Iveth Mafundza, com um verso apelativo que cita: “Tudo começou com a maçã do Eden”, referindo-se ao início do tormento feminino, a música em causa é também uma introspecção sobre a realidade social da mulher. Os sons dramáticos e de suspense harmonizaram com as cenas sombrias retratadas.

A fotografia é executada na cadeia civil, local onde os gritos femininos se cruzam, gritos de mães, filhas, tias, gritos de mulheres que suportaram as bofetadas da vida. A fotografia torna-se dramática, colorindo a imagem daqueles depoimentos atormentados. O espectador é transportado para um submundo de horrores e terrores vividos pelas reclusas.

O nível de violência vivido por estas mulheres é do exponencial ao infinito das suas almas, desde Odete Caetano, que flagrou o seu esposo com sua irmã adolescente na cama, e, por conseguinte, recebeu uma proposta de casamento poligâmico, onde a segunda esposa seria sua irmã mais nova outrora violada por seu esposo. Que estado psicológico teria esta menor para assumir um lar?
Intrigante também foi o testemunho de Joaquina Niquice, que tinha de pedir dinheiro todos os dias para a escola dos seus filhos e estava proibida de pôr mexas, devido ao ciúme do esposo. O mais intrigante não era o ciúme, nem as pernas partidas pela violência, eram as próprias mexas, que eram arrancadas da sua cabeça, uma por uma, deixando cicatrizes e dor.

A partir deste documentário, é possivel radiografar fragilidades sociais, por exemplo: a deficiente preparação da rapariga, a cumplicidade dos familiares, o desconhecimento de linhas de denúncia.
Olga Muthambe, activista dos direitos humanos, acrescenta outras formas de violência contra a mulher: No acesso ao emprego, no acesso à terra. A violência baseada no género afecta as mulheres, sobretudo na perda de património, basta lembrar quantas mulheres são despejadas das suas casas quando o seu marido perde a vida. A decisão de permitir que adolescentes de 13, 14 anos estudem de noite, é um factor que aumenta a vulnerabilidade da rapariga a violência.

As vítimas são muitas vezes crianças e adolescentes, aterrorizadas pelos pais, irmãos e tios com quem vivem, o silêncio e medo das vítimas só favorece aos predadores sexuais.

No caso de Nompulelo Mpulampula, ainda em idade escolar, sua família era um exemplo local de uma família feliz, até sua irmã mais velha ser estuprada pelo seu pai, a ponto de engravidar, e ter filho. Tempos depois tornou se a família dos segredos, sua irmã engravidava quase todos os anos dentro de casa, e perdeu-se a conta do número de abortos que cometeu.

E porque filho de peixe aprende a nadar, seu irmão reproduziu a experiência consigo. Esta violência subverteu o seu carácter, tornou-a uma menina confusa na escola, que não podia ser tocada. Passou a odiar os homens, a sua casa era uma prisão de horrores sexuais de tal modo que já não suportava viver na sua família, sendo vítima. As ruas eram seu único lugar de liberdade, e foi lá onde libertou-se, e fugiu em busca de refúgio com apenas 17 anos de idade.

E que dizer da mulher que pariu um filho surdo e mudo, e foi culpada por ter parido um macaco?

Porventura teria feito o “macaco” sozinha? Culpada por ter nascido um filho com deficiência, Lafissa levou porrada e teve que abandonar o lar com o seu filho às costas.

Que dizer duma criança com pai branco, que não foi criada pela sua mãe por ser mulata, pois sua mãe negra não podia criar bebé mulato no bairro? Nontombi Victória foi vítima de racismo, um dia após seu nascimento, foi deixada em Kwazulu Natal pela sua mãe, para ser criada por pessoas estranhas. Cresceu sem o amor da mãe, sem ser amamentada, mas conheceu cedo o carinho animal dos dois irmãos do padrasto, que lhe estupravam quase todos os dias.

São várias atrocidades vividas por estas mulheres, cujo nível de crueldade, apenas o documentário pode revelar, levando-nos a concluir que a mulher é vista como objecto de prazer, e as suas aspirações são ignoradas, numa sociedade que está doente e precisa de cura.

Ecos desafia-nos a contemplar nas vítimas os estragos da violência baseada no género, e as consequências dessa violência na sociedade. Após muita exposição, a violência, as vítimas podem se tornar protagonistas da mesma. O documentário convida-nos igualmente a pensar na impunidade dos predadores, na prevenção da violência e na educação da rapariga de hoje.

A educação precária da rapariga, a falta de informação, a exposição de adolescentes ao horário nocturno, a falta de procedimentos de detecção e resolução destes conflitos nas escolas primárias e secundárias, são vulnerabilidades gritantes que o filme nos intima a prestar atenção.

Ecos é uma obra cinematografica em formato de documentário, escrito e dirigido por Gigliola Zacara, com a duração de 81 minutos, lançado em 2023 no Centro Cultural Franco-Moçambicano.

Passaram-se várias estações: aquela em que o sol brilha intensamente, trazendo alegria e esperança; a que se segue, em que o sol se esconde e o frio penetra até às entranhas; e ainda aquela em que as folhas caem no quintal, dançando ao sabor do vento. No entanto, as dúvidas que pairavam na minha mente não me deixavam em paz.

Sempre observei a forma enigmática como vivia aquela menina da minha idade no bairro. Sim, a menina linda, baixinha, com a pele negra como carvão e olhos tão escuros que pareciam poços profundos, que nunca refletiam emoção. Para ser honesta, posso afirmar categoricamente que nunca vi a cor dos dentes dela — se é que os tem!

Só sei que tem 14 anos, pois a minha mãe mencionou que era da mesma faixa etária que eu. E quando questionei uma vizinha mais próxima sobre ela, obtive apenas uma resposta evasiva, mas o que realmente me intrigava era por que ela não se juntava a nós nas nossas brincadeiras de rua.

Essa curiosidade despertava em mim uma vontade crescente de conhecê-la, de entender o que se passava na mente daquela menina tão distante. O contraste entre a nossa alegria e o seu aparente isolamento tornava-se cada vez mais angustiante.

Ficávamos tão empolgados durante os feriados e as férias, fazendo tanto barulho que até quem não queria brincar acabava por se juntar a nós, atraído pelos nossos gritos alegres que ecoavam pelo bairro. No entanto, aquela menina parecia viver num mundo à parte, imune à nossa alegria. Sempre que perguntei à minha mãe sobre ela, a resposta era a mesma: “Deixa-a em paz, minha filha. Brinca com quem quer brincar.” Mas como faria isso se a angústia não me deixava a mim? percebi que, mesmo de longe, ela nos espionava por um buraquinho entre o murro da sua casa, e eu poderia jurar que o seu coração pulsava de vontade de se juntar a nós, mas não sabia o que a impedia…

Decidi que queria entender mais sobre a sua vida e por que ela parecia tão distante. Na minha mente, vestia-me como uma detective e comecei a investigar a origem daquela menina que chegara recentemente ao nosso bairro. Contaram-me que ela vivia com o tio que a adotara como filha — à parte da sua família biológica, estava no distrito de Molevala, na província da Zambézia, cá mesmo em Moçambique. O que me intrigava era saber onde estava a mãe dela e se estava realmente doente, como me disseram — esse vazio só aumentava as minhas perguntas. O que teria acontecido à sua família? Como era a vida dela antes de vir para cà?

Mais intrusiva do que teria previsto, comecei a espreitar pelo buraco que ela usava para nos observar quando brincávamos na rua. Numa das minhas investigações, vi algo que me gelou o sangue: a cena brutal em que o seu tio a agredia fisicamente… a cada golpe parecia que também atingia o meu coração. Escutei os gritos desesperados dela, implorando por misericórdia, e a impotência tomou conta de mim. Ninguém fazia nada! 

Os vizinhos ouviam, mas permaneciam em silêncio, como se a dor dela não fosse a dor deles. Voltei para casa em prantos, contando à minha mãe o que vi, esperando que ela pudesse agir de alguma maneira. Porém, em vez disso, a raiva surgiu nela — zangou-se comigo por estar a ‘espiar’ a vida alheia. E eu? Também ficava zangada, porque não era a espionagem que me preocupava, mas sim a brutalidade do que acontecia diante dos meus olhos.

A cada dia, o meu desejo de ajudar aquela menina aumentava, mesmo após o seu tio ter sido o terror da sua vida. Decidi espreitar pelo buraquinho para ver como a minha amiga estava, e, para minha surpresa, percebi que o amor que ela sentia pelo seu irmãozinho de 1 ano de idade era profundo, quase avassalador. Para ela, ele não era apenas um irmão; era como uma das suas bonecas, à qual dedicava todo o carinho que possuía. Às vezes, via-a brincar com ele de forma ternurenta, oferecendo-lhe o peito para mamar, e ele aceitava o gesto com a naturalidade de um pequeno que confia incondicionalmente. A cena era ao mesmo tempo doce e dolorosa; a inocência daquela brincadeira contrastava com as sombras da sua realidade.

Pelo menos, fiquei aliviada ao ver que, de alguma forma, a menina encontrava alegria nas suas brincadeiras de amamentar o irmãozinho (como eu fazia com as minhas bonecas… ah, quem me dera também ter um irmãozinho para brincar de dar de mamar), mesmo que a vida lhe tivesse imposto fardos tão pesados. 

O que me deixava inquieta era a suspeita de que ela tinha descoberto que eu andava a espioná-la, mas, estranhamente, parecia não se importar com isso. E, pela primeira vez, vi um sorriso genuíno iluminar o seu rosto. Era um sorriso lindo, com dentes branquíssimos que pareciam brilhar à luz do dia, um sorriso tão contagiante que me fez acreditar que talvez, só talvez, ela estivesse a começar a gostar de mim também como amiga.

Aquela reação positiva trouxe um misto de esperança e emoção ao meu coração, como se, naquelas pequenas interações, estivéssemos a desbravar um caminho para a verdadeira amizade, apesar das barreiras que nos separavam. Entretanto, os dias foram passando e a sombra do seu tio continuava a pairar como um lobo à espreita. A forma como ela reagia na presença dele mudava drasticamente; havia um medo que a fazia encolher. Pedi-lhe certa vez para me abrir a porta, mas a resposta foi diferente daquela que obtinha antes, e a certeza de que ela não desejava falar veio como um golpe. Os meus instintos diziam que o homem não era pai nem tio, e o mistério permaneceu. Mas foi através de uma conversa reveladora que finalmente soube a verdade: aquele homem era o seu marido e não seu tio ou pai.

Fiquei paralisada. Como poderia aquilo ser verdade? Ele parecia mais velho que o meu próprio pai! A história que se desenrolou diante de mim foi uma mistura de horror e tristeza. Ela foi oferecida em casamento quando a sua família passava fome e, agora, além de cuidar do que presumi ser seu irmão e não era, mas sim filho, ela tornara-se a propriedade desse homem cruel. O meu coração, de alguma maneira partido por ela, questionava o mundo à minha volta, e uma raiva profunda me invadia, ela so tem 14 anos, tal como eu!

Decidi que não poderia ficar de braços cruzados. Com o desejo de ajudá-la pulsando em meu peito, procurei formas de intervir. Mas as sombras do medo e das consequências recaíam sobre nós como nuvens ominosas. Não sabia como poderia ser a resposta do mundo, nem até onde iria por uma amiga que mal conhecia, mas algo em mim gritava que não poderia ficar inerte. O que poderia fazer? O que poderia realmente ajudar?

Estas perguntas também ecoam na minha mente como assobios do vento, e a cada resposta que tento encontrar, o labirinto de dúvidas tornava-se mais profundo. Como iremos acabar com as uniões prematuras, e a violência doméstica em Moçambique? 

À medida que refletimos sobre as histórias de vidas marcadas pela dor, pelo sacrifício e pela perda, somos confrontados com a dura realidade dos casamentos prematuros e da violência doméstica. Estas não são meras estatísticas, mas diálogos íntimos e silenciosos que ecoam nas vidas de adolescentes e crianças inocentes, como a pequena menina de que relatamos, e de tantas outras meninas e mulheres que têm os seus sonhos e esperanças desfeitos por tradições que perpetuam o sofrimento.

Cada união que se celebra sem a liberdade de escolha é uma vida que se arrisca a ser dilacerada pelas garras da opressão. Cada menina levada ao altar contra a sua vontade é uma promissora vida fechada dentro de quatro paredes, onde a violência se torna uma sombra que a acompanhará, dia após dia. A realidade é cruel, e a dor que estas meninas enfrentam não pode ser subestimada.

“Azarias a fanale ku dondza, ku fana ni vapfana hinkwavhu vha lomu”
(Avó Carolina, no filme “O dia em que explodiu mabata bata ”, 2017, no minuto 18:50)

 

As obras audiovisuais sempre nos trazem algo acrescido na narrativa, coisas que não seriam trazidas numa obra literária. Por exemplo, um conto. E é nesse exemplo que nasce o filme “O dia em que explodiu mabata bata”, de 2017, realizado por Sol de Carvalho. A obra de 52 minutos foi inspirada no conto com o mesmo título de Mia Couto, cujo texto está inserido na colectânea “Vozes anoitecidas”, publicado em 1986.

Esse texto abordará as infidelidades de Sol de Carvalho, em relação ao texto original, e a infidelidade com a produção convencional dos filmes baseados na linearidade cronológica e os três actos.
O anoitecer das vozes, no texto “O dia em que explodiu Mabata Bata” nos é apresentado aqui como um destroço, um vestígio sangrento da guerra dos 16 anos, trazido à superfície pelo “Ndlati”, que abocanha tanto o Mabata Bata como o Azarias, esse, se bem observado com os olhos de Mia Couto, ganhou esse nome devido à sua sina: órfão de pai e mãe, pastor de gado “obrigado”, e negado o lápis para desenhar os seus sonhos, tendo a sua existência reduzida no forjar e acautelar do sonho alheio, nesse caso do seu tio Raul, que era de “lobolar”.

Apesar de ser adaptado do conto de Mia Couto, esse filme não foi fiel ao mesmo. Para aquele que vira espectador, simplesmente por saber que se trata de uma adaptação de um tal texto, pode terminar os minutos frustrados por conta da tamanha “infidelidade” da produção. Esse, diria, seria aquilo em que se postula como o que foi menos conseguido em toda a obra vencedora de muitos prémios em várias categorias, como melhor filme, melhor director e melhor actor na “Garden Route International Film Festival”.

As premiações não deixam enganar. A obra teve uma direcção de encher o olho, desde a produção com Sol de Carvalho, a direção de fotografia com Jorge Quintela, o som com Dinis Henriques e outros. Também teve desde actores já consagrados nas telas nacionais, como Horácio Guiamba, o tio Raul, e o Mário Mabjaia, tendo actuado como espírito, e outros actores emergentes como o Emílio Billa, o Azarias, o protagonista.

O filme começa a “trair” o texto original logo no início. Contudo, percebe-se que, no contexto cinematográfico, não se trata de algo “amais”, o que se acrescentou, deu ainda mais aspecto realístico no enredo. A primeira separação está nos inícios: Mia Couto não nos traz cá uma fase de “introdução”, onde, geralmente, se estende o contexto em que a história irá se desenvolver. Contudo, Sol de Carvalho dá-nos esse precioso contexto. Ou seja, Mia Couto vai deixando ideias de espaço e tempo de forma estilhaçada ao longo do texto, e o filme apresenta-nos quase tudo do início.

Nos primeiros dois minutos, esquecendo por hora as falas do próprio Azarias, correndo até pisar a mina (o que será analisado mais a frente), vemos a paisagem verde, o rio, o gado, uma menina carregando água na cabeça, o que nos remete inequivocamente ao campo, áreas rurais, mas também, que prol lhe faça, a direcção de arte [que] coloca lá soldados a correr. A disposição da tropa envia uma mensagem clara: momento de conflito armado. Isso se pode notar, actualmente, em Cabo Delgado, onde a forte contingência armada dos militares significa que é uma zona de conflito armado.

A fotografia, essa direcção também merece os parabéns. Não é preto e branco, mas também não é a cores. A fotografia situa-se entre essas duas cores que nos permite tecer o tempo: não é o antigamente e, também, não é o actualmente. Talvez estejamos no meio dos dois; antes do agora (que deve ser longo) e depois da independência porque, em Moçambique, quando se conta histórias, “A khali, I Khali ka Wu Koloni” (O antigamente é o tempo do colonialismo). Também a trilha sonora é excelente: a música incidental inicial remete-nos a África, aquele som, de um instrumento africano, não engana.

A obra audiovisual é complexa. Ela dá-nos impressões, às vezes confusas, de que vai narrando duas histórias em simultâneo: a do Azarias e a do Raul. Há duas histórias sendo contadas em paralelo. A primeira narrativa é a frustração do sonho de Azarias, que é de estudar como outras criança. E o que frustra esse sonho é o seu tio Raul. Paralelamente, no início do filme, dão-nos a entender que há uma outra narrativa com um fim completamente diferente da primeira, apesar de estarem entrelaçadas. Nessa outra história, Azarias, esse já morto, frustra o casamento do seu tio Raul, fazendo exigências que somente espíritos sofridos o fazem, e isso foi bem adiantado no próprio filme, “Em África, quando na família acontece uma morte violenta, qualquer acto futuro exige uma consulta aos espíritos”.

É basicamente nessa questão de confusão narrativa causada por histórias paralelas em que Juliana Milheiro (in Narrativas não lineares e a estrutura de roteiro em filmes multiplot, 2020, online) disserta e as trata por “narrativas não lineares”. Hartner (2012, citado por Juliana Milheiro), diz que são “um modo de contar histórias em que pontos de vista múltiplos, e muitas vezes discrepantes, são empregados para a apresentação e avaliação de uma história e seu mundo”. E o mundo em que se fala aqui é bantufano: em que visões distintas fazem o tecido histórico que nos compõem.

No seu livro “The 21st century screenplay” (O roteiro do século XXI), Linda Aronson (2010:167) chama isso de “Narrativas paralelas”, definindo, pela forma, que “usam várias narrativas separadas em paralelo, muitas vezes envolvendo não linearidade, saltos de tempo, grandes elenco ou todos estes.” Aqui é onde esse filme situa-se teoricamente: não se trata de uma produção convencional em que está baseada na estrutura dos três actos, que se dividem em configuração, confronto e resolução. Aronson alerta que esse tipo de produção tanto é complexa, quanto paradoxa, o que leva à incompreensão do que é narrado. Logo, se é projectado num cinema, onde a pessoa não terá oportunidade de rever, pode criar uma confusão tremenda. Contrariamente, esse tipo de narrativa é bem recebido nos livros pelo facto de sempre ser possível retornar para entender bem a história.

É nesse manto de incompreensão que urge trazer uma sinopse longe da que dei antes, apenas da narrativa na “perspectiva” de Azarias.

Raul quer casar. Esse é o seu objectivo, mas o conflito, que trava esse acontecer, é o espírito de Azarias, que, já no final do filme, faz exigências, e, supridas essas, consente o lobolo para o regozijo de todos. Entre o início, o conflito, e a resolução desse conflito, que deveria ser clímax, existe lá uma outra história que explica o conflito que Raul enfrenta. Isso é o “flashback” ou “analepse”, um recuo no tempo discursivo. Falando já em alteração da ordem temporal dos actos, o filme, bem no início, quando corre e explode o Azarias, pode ser vista como “prolepse” ou “flashforward”, avanço no tempo discursivo.

Nos diferentes tipos de flashbacks estipulados por Aronson (2010:175), o filme adequa-se no “Bookend flashback”, que seria, quando “uma cena ou sequência no presente, aparece no início e no final do filme”. No roteiro, a cena presente é o pedido aos mortos, intermediado pelos curandeiros, que está no início e no fim, quando já dançam, no tardar da lua.

Além dessa forma de produção que rompe com a forma convencional e “Hollywoodiana” de fazer filmes, a produção, como disse antes, acrescentou mais matéria que enriquece o filme. Nesse caso, estaríamos a referirmo-nos aos curandeiros, que simbolizam a tradição e folclores africanos. Trajados bem a rigor, capulanas com cores pretas e vermelhas. A primeira cor lembra-nos que os curandeiros lidam com o lado escuro da vida (no sentido de invisível) que só pode ser enxergada com os que são “iluminados”, e a segunda cor expressa, para nós, que esses lidam com a vida, nas analogias com sangue. Aqui também se felicita a Guarda roupa, que também meticulosamente vestiu o espírito da mesma roupa com a que Azariana (como é tratado no filme) é apresentado: camisa branca e calções verdes já esfarrapados. Enquanto no início do filme é difícil conectar o espírito ao Azaria, que são a mesma entidade em dimensões diferentes (um é espírito e outro é corpo físico), mas paralelas (como se compreende a existência em África), as vestimentas vão clarificando essas ambiguidades, principalmente porque os dois são apresentados de forma “não linear”, mostrando-nos o futuro de Azarias, quando já está morto e rancoroso, e antigo Azarias numa sentada (prolepse ou flashforwards).

Um dado interessante no filme, também nota-se esse intercâmbio cultural na dimensão das crenças. No mesmo instante nota-se o chamar dos curandeiros para lidar com certos assuntos, mas também vê-se a avó Carolina rezando, dentro de casa, por um “Hosi” (palavra que designa rei), que concluo ser Deus judaico-cristão. Essa ambiguidade cultural e tradicional, numa altura, já se dissipava antes dos discursos de ódio que (re)nascem entre cristãos (que apesar de serem evangélicos e protestantes têm atitudes ortodoxas) e os defensores de folclores africanos, uns diabolizando os outros, como o último caso público de Paulina Chiziane, que foi agredida por crentes de uma igreja em Maputo.
O que salta à vista nessa obra é a língua usada: Changana. A obra torna-se ainda mais original. Também, penso, possa ser uma forma de revitalização linguística, quando se usa no contexto artístico. Aliado a isso, temos a questão das falas dos personagens, que não passam despercebidas. Toda intervenção discursiva dos personagens ajuda a criar um sentido cada vez mais histórico e contextual, ora falas que reflectem o texto original ora não. É a partir das falas que se percebem questões como ‘mulher-objecto’ na sociedade, quando o pai da Helena a diz que ela está “prometida”.

No filme, nota-se Azarias, esse que tem o sonho de ir à escola, a trabalhar duro fazendo pastorícia enquanto outras crianças estudam em baixo das árvores. Aqui o realizador traz-nos o contexto completo desse tempo e lugar quando as crianças sentam-se no chão ou nas pedras para poderem estudar. Mas é a fotografia do contraste entre a realidade degradante do Azarias e das outras crianças que nos sobra na memória, fazendo-nos reflectir sobre a questão de privar as crianças de estudar e sonhar. Esse sonho frustrado é visível no semblante cabisbaixo do Azarias, profunda melancolia, que em toda história não esboça nenhum sorriso no rosto, mesmo que de mentira. Se o riso é uma língua, então diria Mia Couto que Azarias “foi perdendo [essa língua] à medida que o mundo foi deixando de ser dele”.

Na narrativa audiovisual, Azarias é apresentado mais um pouco com ares de criança, o que o texto não nos traz nunca. Isso mostra que, apesar de ser impedido de ser criança, em momentos, encontra algum descansar do tempo em que podia jogar xindire (o brinquedo que José e Azarias jogam momentos antes da vaca explodir) com o José, que não é muito bem apresentada a relação com Azarias, mas parece que é amigo. Ou mesmo para espreitar a menina, de longe, quando faz banho.

As tropas, a trilha sonora, e a fotografia revela-nos, sinto, que se trata de dos anos da guerra civil que durou aproximadamente 16 anos, desde 1977 até 1992. Numa análise mais profunda, percebe-se que além de tudo sobre o casamento, tradição e estudar, estão os destroços da guerra. A guerra, pelo que a história traz, nunca acaba quando se calam as armas. O ser órfão, os conflitos familiares que surgem das almas aterrorizadas pela mesma, os sonhos frustrados, o vazio nas famílias, a antipatia que se nutre, e os refugiados, o que sempre causa fome, são consequências profundas que ela pode trazer.

Vendo bem as consequências da guerra civil nas costas do pequeno Azarias, encontramo-nos a questionar: quantas almas vagando entre tiros e granadas em cabo delegado não vestirão, num futuro inimaginável, os andrajos com as quais é fadado a cobrir a sua infância para evitar doenças tipo escravidão infantil, orfandade, a privação da educação e, mais crónico, a privação de sonhar? Essa, talvez, seja uma questão a ter em conta quando se for a falar da guerra, mas por agora, “Em tempos de guerra, o melhor plano é acabar com ela” (fala do personagem Espírito no filme “o dia em que mabata bata explodiu”, minuto 48).

Por aqui já é notório afirmar que Sol de Carvalho cometeu várias “infidelidades” tanto com o conto como com a forma em que os filmes são, geralmente, produzidos, principalmente no Ocidente. Mas, esse é o caso em que se diz que há males que vêm para o bem, e é esse um deles, indubitavelmente.

Moçambique e o mundo enfrentam novos desafios decorrentes das mudanças que ocorrem a nível demográfico, avanços na ciência bem como das mudanças climáticas. Estas mudanças têm impacto na forma como as politicas públicas são definidas e, acima de tudo, na forma de construir os problemas e as respectivas resoluções. É lugar comum afirmar-se que as elites definem as trajectórias das organizações bem como das nações. Naquelas sociedades quando elas, as elites, se seguram a dogmas e às mesmas formas de fazer e lidar com os problemas a inovação tenderá a ser nula, a resistência à mudança poderá ser prevalecente e as oligarquias que controlam e procuraram perpetuar-se no poder irão, com facilidade, afirmar-se. As oligarquias são pequenos grupos de interesse ou lobby que controlam as políticas sociais e económicas em benefício de interesses próprios. O termo é também aplicado a grupos sociais que monopolizam o mercado económico, político e cultural de um país, mesmo sendo a democracia o sistema político vigente. No contexto moçambicano entendemos por elites políticas oligárquicas os grupos de interesse ou lobby dos partidos poliíticos que procuram controlar o poder a autoridade em benefício próprio. Tendo presente este postulado, neste artigo analiso as elites políticas em Moçambique argumento que os partidos políticos moçambicanos devem encetar um processo de reforma das suas elites políticas. A reforma das elites dos partidos políticos moçambicanos contribuirá sobremaneira para a inovação no diagnóstico dos problemas, na maneira de estruturar o poder e a autoridade e na forma como se relacionam com o povo. Sobre a necessidade de reforma das elites há autores que eleições livres e justas realizadas periodicamente são a base rudimentar para a circulação qualitativa das elites políticas e da representação dos interesses públicos mediante as políticas públicas. Para estes autores as eleições são o mecanismo de renovação das elites. Ora ao focarem-se simplesmente na eleições, estes autores, negligenciam aspectos importante como os processos institucionais para a renovação das elites,às diferenças reais sobre a inovação das elites pelo tempo e espaço e a importância da liderança inovadora.

Em Moçambique, as elites oligárquicas tendem a construir modelos patrimonialistas de poder com a afirmação de castas dominadas por famílias. Esta estruturação das elites políticas dos partidos políticos moçambicanos não contribuiu para a sua inovação ideológica. Ademais as elites oligárquicas são nocivas ao fortalecimento da democracia interna uma vez que tendem a resistir ao debate instalando no seio dos partidos práticas para amordaçá-lo, tais como oculto a personalidade, invenção de factos e narrativas dissuasores de um debate aberto, grupos internos de ataque a figuras que estruturam um pensamento diferente e controlo dos processos de eleições internas através de escolhas definidas pelo topo fazendo das bases simples legitimadores de processos previamente definidos. Nos partidos onde se instalam grupos com tendência oligárquica há centralização do poder, não há debate porque este pode pôr em causa o “status quo”. Para passar a ideia de democraticidade interna estas elites acordam em controlar o debate, estabelecendo minutos para a intervenção dos seus militantes nas reuniões ou impondo a regra de intervenção nos orgãos internos. A escolha dos dirigentes dos partidos de nivel intermédio e de base são impostos pelo nível central pondo em causa a legitimidade de livre escolha dos militantes destes partidos. Este forma de actuar modifica a base política dos partidos porque é construida à imagem destas oligarquias e não reflecte os diferentes interesses no seio dos partidos. A composição dos órgãos dos partidos não é feita em função dos diferentes interesses dentro dos partidos mas à imagem dos “chefes”, entendendo por chefes os presidentes dos partidos.

As elites que se reproduzem perpetuando-se no poder, ostensivamente ou de modo subtil, têm a tendência em disvirtuar os processos políticos conforme temos assistido ciclicamente na contestação interna que os militantes fazem dos processos eleitorais internos. Esta parece a moda em todos os partidos políticos em Moçambique pela forma como as contestações são feitas e partilhadas na esfera pública. A disvirtuação de processos políticos é feita através do estabelecimento de normas para as eleições internas feitas à medida dos interesses das elites oligárquicas. Estas elites oligárquicas não têm interesse nenhum em estabelecer ou consolidar instituições e processos impessoais que fortaleçam a democracia interna. Pelo contrário, procuram estabelecer regras e processos que estejam sob o seu controlo agindo como árbitro e jogador.

Estas elites não reformam os partidos políticos muito menos ousam reproduzir o Estado. Elas não têm interesse em reformar o Estado uma vez que vivem das “tetas” do Estado. Elas não reformam os partidos políticos ajustando-os às dinâmicas da sociedade. Elas recusam-se a dar respostas ao clamor que os militantes fazem por reformas internas de maneira a impessoalizar os processos internos reforçando a democracia. Estas elites oligárquicas ignoram o clamor da sociedade pela mudança, investindo, pelo contrário, numa práxis discursiva desfasada da realidade. Elas apropriam-se de casos singulares e os generalizam com o argumento de que os números falam por si. Elas se outorgam donas da razão. Para elas a razão é mais importante que a razoabilidade.

A experiênca de 30 anos de democracia multipartidária permitiu-nos, hoje, afirmar que é preciso que os partidos tenham processos internos transparentes de reforma das suas elites. Estes processos devem permitir que em ciclos curtos e intermédios apareçam novas elites com idéias e praxis ajustadas à conjuntura e aos desafios que o país enfrente. Elites que não se fecham no sempre fizemos assim. Elites cuja autoridade radica do facto de estarem a longo tempo no centro do poder e não nas propostas que apresentam para dar respostas aos desafios que os partidos enfrentam. Mas só faz sentido reformar as elites oligárquicas dos partidos se: os partidos intitucionalizarem debates abertos no seu seio; os sistemas de eleição interna forem reformados por militantes que não estejam em conflito de interesse, isto é, que não tenham interesse pela eleição; for limitado o número de mandatos nos orgãos centrais dos partidos permitindo refrescar os partidos do ponto de vista de idéias e propostas políticas e estabelecer regras que evitem a “monarquização” dos órgãos dos partidos políticos. Ora, só faz sentido reformarmos as elites oligárquicas se os militantes dos partidos estiverem comprometidos em contruir uma sociedade aberta que propicia inovação e uma economia do conhecimento.

A crise que os partidos políticos atravessam resulta mais da recusa das elites oligárquicas em sair da cena política e do conformismo daqueles que têm condições políticas para empreender reformas. Só se reforma com coragem e ousadia. O facto é que, em Moçambique, os partidos polítios precisam reformar as suas elites.

Não advirá nada de novo com um actor novo e com centros de tomada de decisão nas mãos de elites oligárquicas. O compromisso destas elites com Moçambique, o seu patriotismo deveria revelar-se na tomada de decisão de criar condições para que as reformas aconteçam sem a sua interferência para que se evite a repetição dos mesmos processos com resultados iguais. O país só viverá novos tempos com novas idéias, novas forma de fazer e agir empreendido por novas lideranças que produzam novas elites. Novos tempos, novas idéias e formas de fazer fazem-se com liderança comprometida com mudança e não com alternância política. Há uma tese falaciosa de que novas idéias, novas formas de fazer e agir só se produzem com alternância política.

Para que o sitema político moçambicanos funcione mais efectivamente é necessários uma transformação necessária uma transformação na composição periódica das elites, em termos não somente quantitativo, renovação, como qualitativo, inovação, com competência e responsabilidade política dos seus membros. Novos tempos exigem novas idéias, novos actores e novas formas de fazer. É possível construir uma sociedade de conhecimento que leve a reestruturação da nossa economia, melhorando a vida dos moçambicanos. tudo isso feito com cooperação mas acima de tudo contando com as nossas próprias forças e a nossa inteligentsia.

Estamos aqui para reflectir sobre Moçambique. Para começarmos, gostaria que tivéssemos uma reflexão inicial focada nas seguintes perguntas: O que significa, realmente, pensar Moçambique? O que nos vem à mente quando nos propomos a esta reflexão? Será que temos refletido de forma suficiente sobre o país que queremos ou estamos a construir?
Quero propor que pensemos em Moçambique como um país não só de esperança, mas de realizações e concretizações:

Como podemos construir um Moçambique onde a educação não exclua nem discrimine? Um país onde a qualidade da educação seja um direito universal, independente do estrato social ou localização geográfica. As condições de ensino na cidade, no campo ou no posto administrativo mais remoto devem ser iguais e exemplares. Não deveríamos exigir que todas as crianças, em qualquer parte do país, tenham acesso a escolas de qualidade, ao invés de aprenderem debaixo de árvores ou sentadas no chão? Precisamos desenhar uma educação que forme cidadãos do mundo, onde o desenvolvimento das sociedades seja alicerçado numa educação de excelência.

Mas como podemos falar de qualidade na educação quando temos turmas superlotadas e professores que mal conhecem os seus alunos? Essa realidade reflete a transformação da educação em comércio, quando, na verdade, a educação é muito mais séria do que imaginamos. Quais são as consequências de uma educação de improviso ou de arranjo? Teremos parlamentos sem cérebros, onde a competência se mede pelo maior vibrar de palmas, uma saúde que não satisfaz nem as necessidades básicas, e gestores que não alcançam os resultados desejados. Então, como estamos a pensar Moçambique, é nosso dever, como povo moçambicano, questionar: Como podemos mudar essa realidade?

Precisamos da participação visível das universidades no desenvolvimento do país. Uma universidade que ofereça ao país estudantes com competências técnicas, capacidade crítica e cidadania ativa.

Pensar Moçambique também é refletir sobre uma política de transporte eficiente. Estamos a garantir uma mobilidade pública segura e acessível? Precisamos de estradas com ciclovias, passeios e pavimentação que favoreçam o transporte de pessoas e bens, pois melhorar a transitabilidade do país promove o crescimento econômico.

Será que as nossas instituições públicas e privadas têm a capacidade técnico-científica e ética para servir Moçambique? A ética manifesta-se no comportamento e na personalidade do nosso ser. Precisamos de mentes criativas e inovadoras nas instituições, que acompanhem as mudanças tecnológicas globais. Estamos a entrar num mundo de inovação tecnológica onde o homem está a ser substituído por robôs e/ou Inteligência Artificial (IA). Estamos preparados para essa realidade?

Um país que privilegia a inteligência pode se tornar um país “certo”. Queremos pensar num país com gestão pública próxima da perfeição, onde a soberania seja plena e total, mesmo nas regiões onde empresas internacionais, como a Total, exploram os nossos recursos. Como podemos assegurar que o prazer de viver se reflita na oferta de serviços públicos e privados de qualidade? Pensar Moçambique é imaginar um auditório como este, composto por moçambicanos e cidadãos engajados que não esperam as coisas acontecer, mas participam ativamente com seu saber no desenvolvimento social do país. Podemos transformar Moçambique num exemplo de resiliência e progresso, assim como o Japão, que superou os desafios após a Segunda Guerra Mundial?

Pensar Moçambique é também valorizar a competência em detrimento da confiança baseada em amizades ou critérios étnico-tribais. Queremos um Moçambique que pensa nas futuras gerações e cria as melhores condições para elas. Um Moçambique competente, que exporta não apenas recursos, mas também conhecimento e produtos acabados. Como podemos construir um país onde os serviços públicos de saúde são de qualidade, sem doentes a dormir nos corredores, e onde a educação produz conhecimento inovador?

Pensar Moçambique é também sonhar com um país onde as teorias “Changuisianas” não têm expressão, onde as autoridades públicas priorizam educar o cidadão antes de o multar. Um país que valorize a competência, que pense nas futuras gerações e crie as condições para que estas possam prosperar. Como podemos fazer com que o conhecimento seja a nossa maior riqueza, assim como o Japão fez, apesar das adversidades geográficas?

Queremos um Moçambique que utilize as tecnologias de comunicação para o bem da humanidade, como faz o Japão, que coloca a tecnologia no centro do seu desenvolvimento.
Podemos criar um Moçambique onde o turismo seja uma verdadeira força motriz da economia? Temos o sol, as praias e os recursos naturais incomparáveis, com extensões de praias de águas mornas e longos períodos de sol. Como podemos capitalizar essas vantagens comparativas para impulsionar o desenvolvimento e fazer com que o turismo e os mega projectos contribu de forma apreciável para o PIB do país?

Para terminar, pensar Moçambique é imaginar um país onde a desnutrição não tenha lugar, graças a políticas agrárias sérias e ao aproveitamento dos nossos recursos naturais. Estamos a usar as nossas terras férteis, como os vales do Zambeze, regadio de Chókwè, e outros regadios , de forma a eliminar a fome e a promover o bem-estar? Precisamos de capitalizar os recursos que temos, como os rios que atravessam o país e que vão abraçar as águas do Oceano Índico, para o benefício integral de todo o povo.

Estamos preparados para criar um Moçambique com valores que mostrem ao mundo que o povo africano está a conquistar a sua independência econômica? Um Moçambique com uma identidade própria, onde a consciência coletiva pense no bem-estar comum, e onde não haja espaço para greves ou reivindicações nas várias profissões do país.

Queremos, juntos, pensar num Moçambique melhor de todos os tempos.
Muito obrigado

À porta de Agosto, quando o mês se apresenta como uma tela em branco, Paulina Chiziane, a celebrada escritora cujas palavras moldaram paisagens literárias, nos oferece uma nova forma de expressão: “Timbila ta mina”.

Num cenário onde a timbila, com o seu murmúrio ancestral, entrelaça-se com a introspecção emocional, Chiziane transforma sua prosa em uma sinfonia de dor e descoberta. Esta obra não é apenas uma canção, mas uma travessia poética, onde o som da timbila se torna o pincel que pinta o retrato da condição humana com tonalidades de tristeza e esperança.

A música que se insere no género marrabenta, combina elementos visuais e sonoros que transportam uma carga significativa que, naturalmente, é preenchida de um ambiente sombrio.

A dança da mulher de um rosto coberto de pintura tribal, vestida com elementos típicos dos curandeiros, não é apenas uma performance, mas uma fusão entre o antigo e o novo, reflectindo as dificuldades da continuidade cultural.

O cenário ritualístico estabelece um contraste profundo com o lamento pessoal expresso na música, criando um diálogo entre a tradição e a experiência individual.

Formando um espaço de intimidade e comunhão, Chiziane posiciona-se ao redor de uma fogueira com uma jovem no seu colo, ambas descalças, um detalhe que simboliza uma conexão directa com a terra e a essência da tradição.

Em meio a isso, um homem toca a timbila (Cheny wa Gune), enfatizando a importância da tradição como um meio de expressão e resistência face à dor.

A letra, cantada em changana, é um grito visceral de sofrimento e alienação. Frases como “A minha timbila é de tristeza” e “A minha existência é de sofrimento” são repetidas com uma intensidade que sublinha a persistência da agonia. Nesse contexto, diria Armando Guebuza,“É preciso refletir-se sobre o que somos e o que queremos ser”.

A imagem de um homem revirando um contentor de lixo em busca de alimento, esse acto de buscar comida entre resíduos, representa a desigualdade e a degradação que afectam os mais vulneráveis.

Efectivamente, a cena não evidencia apenas a miséria, não obstante, destaca também a luta desesperada de indivíduos que, confrontados com a indiferente opulência ao seu redor, buscam qualquer forma de sustento. Portanto, a representação do acto na música serve como uma crítica incisiva, ou por outra, a invocação a Deus e o lamento pela rejeição dos “homens de bem” acrescentam uma esfera espiritual e social, entretanto, sugerindo uma crítica às atitudes da sociedade em relação aos marginalizados. Como diria Said Augusto “Estamos em um país onde todos são iguais, mas vivemos submergidos em total desigualdade social”.

Apesar do envolvimento afectivo e valor cultural, “Timbila ta mina” pode ser vista como excessivamente sombria e introspectiva para alguns. A ênfase no sofrimento e na dor, embora autêntica, pode limitar o apelo da música para aqueles que buscam uma abordagem mais equilibrada.

Além disso, a pujança dos elementos visuais e a intensa conotação simbólica podem tornar a interpretação da música desafiadora para alguns, que podem sentir dificuldade em conectar-se com a narrativa. A escolha predominante de tons e imagens sombrias pode também fazer com que a música seja percebida como um lamento contínuo, sem oferecer momentos de alívio ou esperança.
À medida em que Moçambique se prepara para as eleições presidenciais, “Timbila ta mina” emerge como um espelho das aspirações e frustrações do país. A música, com suas nuances de dor e introspecção, ressoa como uma premonição das lutas que transcendem o simples acto de votar.

Cada nota da timbila e cada lamento na letra ecoam a voz de um povo que, como o homem que busca comida entre o lixo, se vê à margem das promessas e expectativas. A jornada entre o sofrimento e a esperança na música reflecte a tensão entre a necessidade de mudança e o desafio de encontrar um alívio real.

Assim, a música, em sua forma actual, serve como um poderoso espelho das aspirações e frustrações de Moçambique, reflectindo a complexidade das lutas sociais e culturais, mas também revela a necessidade de um equilíbrio entre lamento e esperança para alcançar um impacto mais universal e duradouro.

 

Artista – Paulina Chiziane
Título – Timbila ta mina
Género – Marrabenta
Lançamento- 2024

 

 

 

 

 

A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma.

in A insustentável leveza do ser, Milan Kundera.

Há uns anos, publiquei um artigo no qual defendi que O menino que odiava números, de Celso Cossa, foi o melhor livro publicado em Moçambique, em 2019. Lembro-me que nesse mesmo texto manifestei o desejo de continuar a ser amigo do Celso, pois, no ano anterior, um artigo similar quase me custou amizade com Álvaro Taruma. Cortando etapas, o poeta não reagiu muito bem ao artigo em que indiquei o seu Matéria para um grito como a principal proposta para vencer o Prémio BCI de Literatura. Com alguma razão, pois teve de suportar sozinho a acusação (de outros autores) de que eu fazia uma propaganda gratuita a seu favor. Como se eu fosse um lobista…

Talvez por ser ficcionista, Celso Cossa não ficou nada constrangido com o meu artigo. Pelo contrário, sem demora, enviou-me um SMS a dizer-me que tinha gostado imenso do texto e a garantir-me que a nossa amizade estava completamente salva. Aliás, algumas semanas mais tarde, o nosso escritor convidou-me a apresentar O menino que odiava números, na Escola Portuguesa. Sem pormenores (Celso, agora ficas a saber a verdade), inventei uma viagem qualquer e assim evitei apresentar aos leitores uma história muito bem elaborada.

Só uma nota de rodapé: nem foi por maldade que menti ao Celso, coitado. Apenas julguei que, sobre o seu infanto-juvenil, que, na altura, me valeu umas conversas muito animadas com vários escritores, estava tudo dito. Inclusivamente, no dia seguinte à publicação do meu artigo, O menino que odiava números foi considerado Prémio BCI de Literatura, isto é, melhor livro do ano publicado no país em 2019. E eu agora pergunto-te, ó Celso: já imaginaste quantos porcento poderias ter-me pago, se eu fosse um nhoguista?

Como na crítica não há nhongas, e com a amizade manifestamente fortalecida, cinco anos depois, Celso Cossa volta a convidar-me para apresentar um livro. No caso, este A greve das palavras. Desta vez, não tive argumentos contrários, até porque o nosso escritor teve o cuidado de ir lá a casa oferecer-me um exemplar, logo num domingo de manhã, em que tanto se sacrificou ao trocar um copo de cerveja por outro de água que o ofereci.

Não podendo resistir ao privilégio de apresentar o novo livro do Celso, aceitei satisfeito o convite, convicto de que tinha em mãos um excelente livro juvenil. E não me enganei. A greve das palavras é um exercício literário interessantíssimo, quer do ponto de vista temático, quer em termos de abordagem estética. Quando o li, a primeira questão que me ocorreu captar é “A infância como ponto de partida” para a escrita. Quer dizer, o nosso escritor, ao fazer jus a esse substantivo, realiza uma viagem anacrónica para a sua própria meninice, da qual, como fazem os grandes escritores deste e do outro século, recupera um conjunto de ocorrências prolíferas para a ficção. Há-de ser por isso que as histórias deste livro encerram perspectivas sugestivas na definição do espaço, enquanto categoria da narrativa onde as personagens se movem e sofrem acções suficientemente robustas para moldar comportamentos humanos.

O espaço de A greve das palavras, tendencialmente agreste, no entanto, longe daquele registo paisagístico (feito de colinas, árvores e aves), recorrente em imensos infanto-juvenis, é coerente e complementa-se com o tempo. Mas não há aqui um tempo concreto. Nos seus contos, Celso Celestino Cossa explora um tempo indeterminado, porém possível, o que faz com que as histórias possam ser referentes a um instante do passado e até do futuro. Nesse aspecto, este livro juvenil é uma espécie de pêndulo, sem fronteiras fixas entre o possível e o imaginário. Contribui, para esse cenário, a destreza do escritor na manipulação dos estatutos do narrador. Em alguns casos, participando no enredo como protagonistas e, noutros, como enunciadores do discurso apenas. Seja qual for a situação, vale a pena observar o investimento que o nosso autor faz, mais do que no final, no princípio da narração. Vejamos, por exemplo, o primeiro conto, designado “O livro desaparecido”:

 

O detective contratado para encontrar o livro desaparecido passeou os olhos pelas prateleiras da biblioteca, retirou os livros que lhe pareciam suspeitos e, com a minúcia de quem procura uma agulha num palheiro, inspeccionou as lombadas, as orelhas, as capas e as contracapas, antes de folhear as páginas e constatar que o objecto de leitura ali não se encontrava (p. 9).

 

Aparentemente simples, o excerto revela uma capacidade descritiva acrescida. Num só período, repare-se, inicial, o narrador consegue apresentar uma personagem (detective), uma missão (encontrar o livro desaparecido), um espaço (biblioteca), uma acção (retirou os livros que lhe pareciam suspeitos) e, enfim, introduzir uma bela história de uma forma sublime. Num só período, o nosso escritor introduz a história de modo a gerar encanto e expectativa, explorando até alguns recursos estilísticos no exercício da sua linguagem.

Outro aspecto que me chamou atenção, durante a leitura deste livro, é o que considero “A desconstrução de um paradigma” no conto “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudo”. Primeiro, a narrativa de Celso Celestino Cossa fez-me regressar à época em que dei aulas numa escola primária em Tete. Lembro-me que em 2008 e 2009 tive alunas que, mal passavam do sétimo para o oitavo ano de escolaridade, tinham de cancelar os estudos porque, de acordo com a vontade dos pais, tinham de se casar mal vissem a menarca.

Em geral, a situação das minhas alunas é ficcionada em “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudo”. Esta é um conto sobre uma menina inteligente, que, por isso, ganha uma bolsa de estudo, surpreendendo a comunidade escolar e as autoridades locais por ser a primeira do sexo feminino a atingir tal realização. Entretanto, quando o pai toma conhecimento do êxito da filha, imediatamente vocifera:

 

Não quero ouvir nada sobre este assunto advertiu meu pai. A nossa filha já completou a 7ª Classe. Isso é mais do que suficiente para uma mulher! Agora, ela deve, mais é, ficar a cuidar da casa e dos seus irmãozinhos, até que eu lhe arranje um marido (p. 20).  

 

Triste e inconformada com a decisão do pai, Dandiwa confessa, quase num monólogo silencioso:

 

Não cabia na minha cabeça que a mulher somente nasce para cuidar do lar, do marido e dos filhos (p. 21).  

 

E mais adiante:

 

Para provar que em certas sociedades é mais fácil desenterrar as raízes profundas de um embondeiro a deixar que as mulheres corram atrás dos seus próprios sonhos, alguns dias depois o meu pai reuniu na nossa casa todos membros da família e anunciou que já me tinha arranjado um marido. Aquele que eu tinha para marido era o homem mais próspero da nossa aldeia. Para além de uma população inestimável de gado, extensas áreas de cultivo e vários fontenários, a maioria da população da nossa aldeia trabalhava para ele, o que fazia dele o melhor partido para qualquer pai casar uma filha” (p. 21).

 

Com a protagonista desta história, inevitavelmente, também sofremos, quando lemos. E, no enredo, o sofrimento é bom, porque nos purifica e nos situa na nossa realidade e na nossa condição de moçambicanos. Muitas vezes, quem nunca viveu no interior no país, corre o risco de julgar que certos hábitos e costumes estão ultrapassados. Ficciona-los, com efeito, contribui para a arte literária afirmar-se como elemento essencial e imprescindível na construção de uma cidadania condizente com a nossa contemporaneidade. Afinal, o futuro das nossas filhas, sobrinhas ou irmãzinhas importa na mesma proporção que o futuro dos nossos filhos, sobrinhos e irmãozinhos.

Além da forte possibilidade de nos ligar ao nosso contexto, “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudos” apresenta uma intrínseca intertextualidade com o conto “A mulher sobressalente”, de Dany Wambire. Neste último caso, há uma menina que, impedida de estudar, foge de casa, da sua aldeia, e vai trabalhar para cidade como empregada doméstica. Pressionada pelo pai da pequena, entretanto, a mãe vai convencê-la a regressar a casa, de modo a salvar o casamento da irmã mais velha, que, segundo uma percepção machista, só gera meninas, quando o marido almeja um herdeiro.

À semelhança de “Dandiwa, a menina que ganhou uma bolsa de estudos”, “A mulher sobressalente” apresenta um pai interesseiro, com uma visão do mundo redutora, injustificável na opressão da rapariga. A diferença encontra-se, sobretudo, no fim das histórias. Enquanto em Cossa a justiça impera no lançamento do destino da protagonista, em Wambire essa justiça é adiada irreversivelmente. Todavia, em todos os casos, a proximidade entre as duas histórias é tão particular que, a certa altura, questionei-me: Será que o Celso, pretendendo publicar um livro pela Editorial Fundza, pôs-se a escrever um conto que dialogasse com o do seu editor? Bem, o Celso é adulto e terá a oportunidade de responder a esta pergunta, se julgar conveniente.

Com ou sem resposta, levanto mais um aspecto que me interessou durante a leitura do livro, designadamente, “A perspectiva do outro”. Muitas vezes, nós julgamos e tomamos decisões  apenas em função do nosso ponto de vista, sem nos preocuparmos em ouvir ou compreender a outra parte num eventual conflito. Nesses casos, geralmente, falhamos e perdemos claras oportunidades de construir algo comum e duradouro.

Ora, o grande exemplo da relevância de nos colocarmos na “perspectiva do outro” é o conto “Zumbido de pernilongo”. Esta é uma história engraçada e dramática. A certa altura, um ser humano fere gravemente um mosquito. Já no leito da morte, o insecto conta à filha mais velha o que lhe aconteceu e esta jura vingança mal perde a mãe mosquito. A história é tão bem contada na perspectiva das vítimas que, ao longo da leitura, questionei-me várias vezes sobre quão injustos temos sido por nos julgarmos o centro do mundo, se preferirem, os donos da razão. Celso Cossa, na verdade, confronta os nossos juízos de valor numa narrativa aparentemente banal, mas carregada de uma intensidade e originalidade.

“Zumbido de pernilongo” é uma história sobre a empatia ao invés de ressentimento. Por isso mesmo, quando o mosquito localiza o homem culpado pela morte da mãe, no momento em que ele brincava com o seu filho, pergunta-se se seria justo deixar o menino órfão de pai na sequência da sua vingança. Quer dizer, antes de qualquer sentença, o insecto coloca-se no lugar do outro (ainda que esse outro seja um ser vivo de outra espécie), imagina e capta as possíveis dores do menino. Só depois disso o insecto vingador toma a decisão que torna o conto ainda mais sugestivo em abordagem. Como é óbvio, não vou contar qual foi essa decisão porque sabe melhor quando lemos em silêncio.

O grande problema de “Zumbido de pernilongo”, entretanto, é que de há algum tempo a esta parte eu já não consigo matar um mosquito. Sempre que um insecto voador passa por mim, penso que pode ser um zumbido de pernilongo. E reparem. Eu vivo em Infulene, na Matola, e lá o que temos demais são mosquitos. Então, não me vai admirar nada se daqui a algum tempo, ó Celso, seres acusado de contribuir para o aumento de casos de malária. Quem manda escrever tão bem uma história que nos faz reflectir sobre a importância de todo tipo de vida?

É bom que se lhe diga. Celso Cossa tanto sabe escrever sobre a abstracção do afecto quanto sobre o “Contexto crítico”. Motivado ou não pela nossa actualidade política e social, o escritor traz-nos “A greve das palavras”, conto que empresta o título ao livro. Apesar de o autor não tocar categoricamente em aspectos contextuais, na leitura, é difícil não relacionarmos as greves que colocam em xeque as instituições do nosso país. Sem ser explícito, mas sugerindo, o conto consegue atravessar um tempo e uma realidade, claro está, dando-nos a possibilidade de escolher a melhor interpretação para cada evento.

A mim, em particular, “A greve das palavras” fez-me lembrar da escrita do meu amigo Mélio Tinga, no que se refere ao investimento discursivo dos narradores e das personagens em detrimento do enredo. Esse último de seis contos é, principalmente, um exercício sobre a linguagem literária, sobre a susceptibilidade do nosso escritor criar sempre, tendo os mais novos como a razão e finalidade da escrita.

A propósito dos mais novos, em Levantando do chão (salvo o erro), Saramago escreve uma frase como a seguinte: “As crianças são a melhor coisa do mundo. Sobretudo quando precisamos de uma rima para danças”. Eu não sei se o Celso leu aquele romance do único autor de língua portuguesa a vencer o Nobel. Seja como for, abusado como é, contraria o escritor português quando nos sugere que a criança não é uma rima para coisa nenhuma, pelo contrário, é o poema inteiro. E, como nos sugere o narrador do conto “O rato e o dicionário”, as histórias deste livro tanto valem por si como também valem pelo perfil de quem as conta. Neste universo imaginário, com efeito, “conhecer as palavras é sinónimo de resolver quase todos os problemas” (p. 57).

Para terminar, que esta apresentação já vai longa, Celso, deixo-te mais uma pergunta. Sinceramente, espero que respondas: já reparaste que te estás a tornar uma das grandes referências do infanto-juvenil em Moçambique?

*Texto escrito de cor na sequência da apresentação do livro A greve das palavras, de Celso Cossa, no Camões Centro Cultural Português em Maputo, no dia 25 de Julho de 2024.

Por: Sara Nhabau

 

A menina da Ronil. Assim dizem, quando relatam a minha história. Afinal, quem é a menina que assombra o bairro? É a Leonor. Esta é a minha história. Aos meus 15 anos, saí às ruas de Lourenço Marques. Estava um dia lindo e as acácias traziam cor à cidade. Não sabia eu que era a última vez que via a estrada cheia de viaturas de marcas e jovens desfilando os seus estudos. Atravessava para junto aos outros esperar transporte para regressar à casa, quando um condutor, sob efeito de álcool, bateu-me. No momento perdi consciência. O meu corpo ficou estatelado no passeio e cheio de vinho que das veias escorria. A minha perna não se mexia. O condutor viu a minha condição e preferiu colocar-se em fuga. Na hora, fiquei sem forças. Pedi ajuda, mas ninguém se aproximava. Então, vi os meus antepassados. Era a morte!

Fechei os olhos. O meu coração parou de bombear sangue e a minha alma deixou o corpo. Haaa, a ambulância chegou. Aliás, o coveiro veio tirar-me. Aí começou o terror. A minha família teve informação. Rapidamente, vieram reconhecer o meu cadáver. No dia seguinte, procederam com o meu funeral. E pronto. Abandonaram-me. Não houve oitavo dia, nem seis meses, mal esperei pela missa de um ano.

O condutor, este tinha um filho cinco anos mais velho do que eu. Nele recaíram os males do pai, para todo caso há um acaso. O jovem, já com 25 anos, fez-se às ruas da cidade, justamente na Ronil. A minha alma amargurada pelo abandono após o acidente e após a morte, decidiu assombrar os vivos. Num vestido cor da noite, com um sorriso e toda deslumbrante, fiz-me ao local onde Armindo, filho do condutor, estava, humildemente. Saudei-lhe. Ele foi gentil que a conversa alongou-se até que saímos para uma barraca onde bebemos até a madrugada, mal imaginava que estivesse com uma alma morta. O passeio foi agradável até que o meu filme começou.

Disse-lhe que sentia muito frio e era asmática. Gentilmente, emprestou-me seu casaco. Levou-me ao portão da minha casa e despediu-me com a promessa de nos vermos mais logo. Chegado a sua casa, com o sorriso no auge, relatou o sucedido à sua família que alegremente felicitaram-no pois nunca havia saído para passear com uma jovem. Às 16 horas, preparou-se e foi à casa que lhe tinha apresentado como minha. Chegado lá, bateu e minha mãe atendeu.

Quem é? – perguntou minha mãe.

Sou Armindo, amigo da Leonor. – respondeu o jovem.

Em quê posso ser útil? – perguntou novamente minha mãe.

Venho ter com ela, pode chamá-la? – perguntou o jovem.

Minha mãe ficou espantada e em simultâneo ficou triste porque achou que o jovem estivesse ali para tirar sarro dela. O jovem não entendeu o motivo da repentina mudança do semblante da minha mãe, dona Judite.

Ela morreu, passam cinco anos. – disse minha mãe.

Não é possível, estive com ela ontem, a mesma levou-me até aqui e ficou com o meu casaco porque sentia muito frio, alegando que é asmática. – relatou o jovem.

Sim, ela era asmática e morreu num acidente, inclusive fez cinco anos ontem. – explanou minha mãe.

Não, não é verdade. – Armindo recusou-se a acreditar.

É, sim. – afirmou dona Judite.

Minha mãe convocou todos os que estavam em casa: senhor Nguluve, meu pai e meus dois irmãos, Alfredo e Zaina, estes também confirmaram o que a minha mãe antes dissera. O jovem não acreditava, então, levaram-no à minha campa. Quase caía por trás, quando viu o seu casaco estendido no meu sepulcro. Foi aí que a minha família percebeu que o jovem falava a verdade.

Depois de presenciar aquele cenário, o jovem voltou à casa abatido, e mais uma vez relatou o sucedido à família, deixando assim o pai a transpirar, acreditando que a menina vinha se vingar. Dia seguinte, a família de Armindo foi à casa de Nguluve, conversaram e decidiram que deviam fazer missa.

Passado um mês, fizeram o decidido e todos passaram a ter uma vida normal. Armindo, com os seus 27 anos, já tinha a sua família, mas nunca mais passou da Ronil. A minha família e do condutor já havia recebido o meu perdão pelo abandono sepulcral.

A minha história até os dias actuais é narrada em Maputo, cidade das acácias e antiga Lourenço Marques.

04 de Maio de 2024

Muita da pintura abstracta é, de facto, pintura literária, a expressão de ideias.

in Um mundo de estranhos, Nadine Gordimer.

 

Os artistas plásticos têm a particularidade de exprimir em imagens o que, eventualmente, é redutor em palavras. Nos movimentos tácitos do pincel, o pintor esmera-se em alcançar uma harmonia demiúrgica, geralmente, a condizer com um estado emotivo: pretendido ou sugerido. Com efeito, entre o vazio e o absoluto, a ideia e a finalidade, denota-se, no campo visual, a representação pessoal das condições do inconsciente expresso simbolicamente, o que em Jung se resume a uma palavra: sonho.

No universo das cores esteticamente concebidas, parafraseando Adler, as funções primordiais do sonho incluem pensamento e sensação, claro está, transbordando sentidos como analogia da vida. Quer dizer, ao contrário do que Freud diria, o sonho não é absolutamente egoísta, mas profunda partilha (às vezes) experimentalista do estado da alma. Categoricamente, é nessa concepção que Languana situa a sua oficina, enquanto dimensão intangível do corpo e do mensurável.

Na sua mais recente individual de pintura, exposta na Galeria da Fundação Fernando Leite Couto, o artista realça que o seu “jardim dos caminhos que se bifurcam é a imagem incompleta, mas não falsa”* da existência. Na verdade, o jardim languaniano é a metonímia inversa de um mundo em convulsão, um lugar de pretensas animosidades políticas, ideológicas, económicas e culturais. Tendo em consideração um contexto adverso, depois da individual Conversando com o silêncio, novamente, Languana pinta, mais ou menos como Génesis procede com o Éden, uma dimensão degradante, mas subvertendo-a de conteúdo.

Nas suas representações, esquivando-se do horror e de todos níveis de indecência, da miséria, da leviandade e da consternação, o autor elege o Homem e a geográfica como fragmentos de uma narrativa escassa: na forma e no procedimento.

Dito de outro modo, Languana põe a rosa no lugar da arma, a sensualidade na ganância, a nudez na imperfeição e a infância no caos, até porque Nadine Gordimer prevê: “os psicólogos dizem que as brincadeiras das crianças são um longo ensaio para a vida”.

A partir dos seus Jardins de sonhos, o artista fixa projectos sintécticos sobre as coisas que realmente importam, intersectando, em geral, a abstracção das suas aguarelas sobre papel e a realidade envolvente. No seu conjunto, telas como “Esmola”, “Encontro de compadres”, “Todos de costas voltadas” e “A cadeira de leite e mel” reflectem o misticismo de um povo tradicional-animista, que encara a razão e a crença no mesmo nível de complementaridade.

Não obstante as frivolidades de algumas molduras, nas escolhas técnicas do tipo de material e nos acabamentos, às vezes com o papel mal esticado, Jardins de sonhos apresenta um autor sensível à configuração de um ecossistema suportado pelos distintos anseios do Homem. Com a excepção dos jogos de equilíbrio igualmente sustentados pelo carácter narrativo das telas, em Languana nada é total. Ao artista importa mais sugerir, com a coerência daí resultante, do que definir. Quiçá por isso, em algumas ocasiões, nota-se uma vaga de substâncias que, aparentemente, se consolida com tinta-da-china e com técnica mista. Nesses casos, a cor, enquanto elemento vibrante, desaparece. Há-de ser por essa razão que as telas “Cão de guia”, “Apocalipse”, “Brincadeira de criança” instauram uma atmosfera melancólica, em que a incerteza relativamente ao futuro das figurações é dominante. Naquelas três telas a preto e banco, Languana, como Amin Maalouf, parece subscrever que “o homem é tão vulnerável perante o Destino que mais não pode do que ligar-se a objectos rodeados de mistério”.

Finalmente, nas suas variadas estruturas e proporções, com ou sem mistérios, as obras de Languana são bifurcações do ser colectivo, a textura de um fiel jardineiro que, em silêncio, encontra nas artes plásticas a particularidade de intervir no seu território físico. Para o efeito, o artista inventa flores, fragmenta e distorce, recria e modifica, propondo, assim, uma realidade consentida e inadiável.

 

Título da exposição: Jardins de sonhos

Autor: Languana

Galeria: Fundação Fernando Leite Couto

Classificação: 17

 

* Título e excerto original de Jorge Luís Borges, in Ficções.

Numa sociedade marcada pela tensão entre a preservação das tradições e a pressão da modernidade, “Lagartos de Madeira e Zinco” se destaca como um retrato vívido e crítico das complexidades da vida em Moçambique, capturando a luta pela identidade e a resistência diante das desigualdades.

A narrativa de Hélio Nguane mergulha profundamente nas adversidades enfrentadas por indivíduos que, em meio a uma realidade brutal, buscam dignidade e sentido.

Com uma combinação de lirismo e realismo, a obra expõe o impacto das transformações sociais e culturais sobre as vidas cotidianas, revelando as fissuras e as tensões que moldam a experiência de seus personagens.

Nguane utiliza uma linguagem imersiva e evocativa para retratar a luta pela sobrevivência e pela dignidade num contexto marcado pela precariedade. Desta forma, a crónica não só expõe as duras realidades da vida em Moçambique, mas também provoca uma reflexão mais ampla sobre o impacto da modernidade nas tradições culturais e nas relações sociais. Como diz Fernando Pessoa, “a literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”.

A linguagem, ainda que bela, no entanto, pode apresentar desafios, com palavras e expressões menos comuns que se desdobram pela narrativa, dificultando a compreensão para alguns.

De facto, através de personagens como João Matandza, o autor explora a luta diária pela sobrevivência. O vínculo com a ancestralidade e as raízes culturais é um tema recorrente, ressaltado por referências a locais significativos como Massinga e a presença constante de influências urbanas corruptoras.

A obra é permeada por conceitos e representações que provocam uma reflexão sobre a natureza humana e os conflitos sociais. Aliás, a descrição das roupas gastas e dos pés rachados de João Matandza não é apenas um detalhe físico, mas uma representação visceral de sua trajectória difícil e da aspereza do ambiente que o cerca.

“Quem com pés descalços conhece seu destino, com calos conta como foi dura a sua caminhada”, escreveu Josias Doba, e essa dualidade ressoa fortemente na luta e na esperança presentes na narrativa de Nguane. Cada passo que João dá com os seus chinelos, que “raspam a entrada, roçam a areia”, é uma metáfora para a árdua caminhada da vida. A caixa que ele carrega, destinada a conter 48 ovos cozidos, sal e o dinheiro da receita, evidencia responsabilidade e esperança, ainda que frágil, contrastando com seu estado físico debilitado.

Embora a construção dos personagens seja sólida, o desenvolvimento do enredo poderia ser aprimorado com uma estrutura narrativa mais clara e objectiva, o que potencializaria a dinâmica da história, tornando-a mais acessível e impactante.

Efectivamente, a interacção dos personagens com o ambiente urbano também é notável. Nguane descreve a presença do pregador no transporte colectivo como um reflexo da persistência da espiritualidade, num contexto de indiferença e rotina exaustivo.

Por um lado, a crónica apresenta várias passagens ambíguas. Aliás, a falta de clareza sobre os sentimentos e pensamentos internos de João, durante as interacções com as profissionais do sexo, pode dificultar a compreensão completa de suas motivações e reacções.

Por outro lado, a obra permanece intrinsecamente envolvente. As descrições minuciosas das adversidades diárias, como o caos no transporte colectivo e a necessidade de lidar com a violência e a coação, evidenciam as dificuldades enfrentadas pelos moçambicanos em busca de dignidade e estabilidade.

Ora, enquanto os atletas olímpicos se tornam heróis luminosos num palco mundial, a crónica de Nguane ilumina as sombras que persistem nas vidas das pessoas comuns, lembrando que, para muitos, a verdadeira vitória é encontrada nas batalhas silenciosas da vida cotidiana.

No capítulo intitulado “Ontem foi o meu aniversário”, o autor aborda a temática do tempo e da memória de maneira pessoal e introspectiva. Utilizando a celebração de um aniversário como pano de fundo para explorar reflexões mais profundas sobre a vida, as mudanças e as permanências.

A rotina matinal descrita pelo narrador, que envolve um olhar para a mãe no espelho do vaso e repetição acções cotidianas, contrasta com a reflexão interna sobre mudanças.

Nguane manipula o tempo narrativo de forma eficaz, demonstrando habilidade em transformar o ordinário em algo extraordinário. A menção ao aniversário serve como um ponto de ancoragem para reflexões mais amplas sobre o que mudou e o que permaneceu inalterado na sua vida.

Mais adiante, em “Perdi a minha melhor crónica”, o autor oferece uma narrativa que nos leva ao âmago da frustração criativa, enquanto também nos faz refletir sobre a dependência tecnológica e os desafios inerentes à escrita. Este capítulo é uma montanha-russa emocional que revela tanto os pontos fortes quanto as limitações da obra.

A falha do computador não é apenas um contratempo, mas uma metáfora para a fragilidade do trabalho digital. A tecnologia, que deveria ser uma aliada na criação, revela-se um campo minado, onde um simples erro pode destruir dias de esforço e inspiração.

Nguane compartilha uma experiência pessoal e íntima, conferindo uma sensação de realidade que ressoa profundamente com qualquer pessoa que já tenha enfrentado uma perda criativa. A inclusão de detalhes específicos, como a tentativa desesperada de recuperação e a oração final, reforça a veracidade e a proximidade da narrativa.

A narrativa, embora emocionalmente rica, sofre de previsibilidade. A ideia de uma falha tecnológica, causando a perda de um trabalho, é uma situação familiar e esperada. Isso diminui o impacto da história, que poderia se beneficiar de reviravoltas mais inesperadas ou de uma complexidade maior no enredo.

O capítulo toca em temas cruciais como a inspiração súbita e a dependência tecnológica, mas a exploração desses temas é superficial. Uma análise mais profunda sobre a natureza efémera da criatividade ou a luta dos escritores contra as limitações técnicas teria adicionado maior profundidade à narrativa.

“Lagartos de Madeira e Zinco” oferece um retrato imprescindível e evocativo, lembrando que, mesmo em meio à brutalidade da realidade, há uma beleza resiliente na luta pela identidade e pela justiça. Ao fim, a crónica nos exorta a valorizar as pequenas vitórias do cotidiano e a manter viva a chama da esperança e da resistência frente às transformações implacáveis do mundo moderno.

“Chókwè é um verdadeiro paraíso para negócio ilícito,[ porque], todo o mundo vê, as autoridades vêem, mas ninguém se preocupa. O enriquecimento ilícito não assusta a ninguém.”

In: Almeida Cumbane. “Ilusão à Primeira Vista”. 2.ed. 2016, p.75

Esta citação nos faz viajar para Ndaveni, em Mabunguanine, província de Gaza, distrito de Chibuto, para reflectir em torno do enriquecimento ilícito, tema abordado por meio da música.
Na década de 80, Moçambique foi surpreendido com uma belíssima canção intitulada “Metical”, do músico e compositor Alexandre Langa, na qual “Jossefa Mukombo”, uma personagem, andava sempre cheio de dinheiro e bêbado, mas desempregado. A música pertence ao género Marrabenta, tem apenas duas personagens, uma que é estranha e a outra chamada Jossefa Mukombo.

Na mitologia moçambicana, a marrabenta, nos seus primeiros anos de configuração como género musical, usava guitarras manufacturadas. Por isso, as cordas rebentavam com muita facilidade, daí que surge a palavra marrabenta, que, Segundo INFOPÉDIA, dicionário online da Porto Editora, vem do verbo “rebentar” (“arrebentar”, em vernáculo local), em uma provável referência às fracas cordas em guitarras de latas usadas na altura. As letras das canções deste género versam sobre temas como: a injustiça, o amor; a vida quotidiana; a história de Moçambique.

Quanto ao andamento, a música tem um compasso quaternário, alegre-moderado. Uma marrabenta, mas não agitada, tem um ritmo suave e fácil de acompanhar porque não precisa se mexer muito para dançar, a tonalidade está na escala de sol maior, uma escala muito bem seleccionada por ser uma música de carácter vivo e alegre, com ritmo característico da zona Sul do país.
Escutando a música é possível perceber que para a produção do instrumental foi usado: uma bateria e três guitarras.

A primeira guitarra faz solo, a que tem som mais agudo. A segunda produz ritmo, e a terceira faz baixo, som mais grave e juntas produzem uma melodia muito rica, porque para além de servirem de base para o corro também ornamentam a música através de ritmos repetitivos que preenchem perfeitamente os espaços vazios que a voz do corro não consegue cobrir.

Do modo particular, a guitarra baixo, fora marcar o andamento da música, função principal deste instrumento, também cria groove, permite com que quem escuta possa sentir ou ter vontade de dançar. A marcação do tempo da guitarra baixo coincide com os batimentos do coração e, por isso, aos ouvidos de quem escuta automaticamente gera movimentos involuntários sobretudo o abanar da cabeça para quem está de pé ou o chocar repetido do pé com o chão para quem escuta a música sentado.

Na projecção da ideia central, o músico monta um cenário de um silogismo, segundo a qual apenas os trabalhadores têm dinheiro. Logo, todo aquele que não trabalha não têm dinheiro. Mas o que é absurdo, escândalo nesta canção, acontece que, Jossefa Mukombo não trabalha, no entanto, tem dinheiro.

O facto de um desempregado ter dinheiro escandaliza a voz de enunciação, que quer saber onde Jossefa arranja tanto dinheiro mesmo não sendo trabalhador.

O momento mais alto deste diálogo trazido em forma de marrabenta é quando a personagem sem nome questiona J. Mukombo: “Metical pega quem trabalha. Você não trabalha. Onde encontra tanto dinheiro?”. Por sua vez, este cala, não diz nada. Porquê Mukombo não disse a proveniência do seu dinheiro? Será que era ilícito?

De referir que esta música é gravada nos tempos em que o país usava a música como uma via para persuasão e educação da moral social, diferente da música actual, que é mais uma simples contribuição para a idiotização da sociedade, sobretudo dos adolescentes.

A música de Langa é uma bússola na actualidade. Pós, o país encontra-se mergulhado nesta realidade de pessoas que não trabalham e meia volta aparecem ostentando carros de luxo, telemóveis caríssimos nas redes sociais. Os pais, na actualidade, são desafiados a ir buscar a coragem do músico e questionarem aos seus filhos a origem dos Ractis, IPhone 14 pro Max trazidos para casa diariamente por filhos que não trabalham e não produzem.

O que é incrível, nos dias de hoje, os pais fazem festas, abrem garrafas de champanhe para comemorar junto dos filhos bens de proveniência duvidosa.

Cada vez mais, a sociedade está de forma impávida a assistir a degradação da moral social. O eu lírico da canção é que diferente dos pais da actualidade. O compositor não corre para festejar, mas, sim, para questionar.

É difícil para, os pais, perguntarem onde uma rapariga de 14 anos encontra dinheiro para comprar IPhone 14? Um aparelho avaliado em um pouco mais de 2 mil dólares, o correspondente a 126 mil meticais. Sem falar dos cabelos de somas incalculáveis até aos olhos de um trabalhador que recebe salário mínimo,4.941 MT, quanto mais para uma pessoa que não trabalha!

Em Maputo, sobretudo nas zonas periféricas da cidade, até 2005, quando uma criança ia à escola, levava consigo, no ombro, uma pasta plástica, doada pela UNICEF, devido às cheias de 2000. No regresso da escola, os pais, sobretudo as mães, tinham o hábito de revistar a pasta no regresso da criança para se verificar se, por engano, não teria pego um livro, um caderno, um lápis, uma borracha que não fosse dela. Bastava encontrar algo impróprio ou que a mãe não reconhecesse, a criança tinha de devolver de imediato. Onde foi parar este hábito?

Como mencionado no livro o “Vagabundo da pátria”, do escritor Marcelo Panguana, “depois da independência, o país quando parou de vigiar. Logo do imediato, começou a produzir putas, ladrões e xiconhocas”.

O mérito da música de Alexandre Langa reside no facto dela educar a sociedade e ressaltar os valores. O músico nos lembra sobre a importância de questionar e não aceitar receber dentro de casa coisas de origem duvidosa. “Metical” é uma tentativa de resgatar os valores de uma sociedade que cada vez mais tende a tornar-se menos vigilante.

 

 

Artista: Alexandre Langa
Título da Música: Metical
Gênero: Marrabenta
Duração: 4’:54”

 

 

 

À medida que nos aproximamos do fim de um ciclo governativo de uma década e nos preparamos para um período eleitoral que inaugura outro ciclo, surge uma agitação crescente em relação ao futuro. As expectativas ampliam-se e as propostas para a próxima fase de governação começam a emergir como fundamentos essenciais para orientar o país nos anos seguintes. Nesse contexto, é imprescindível avaliar o papel e a importância da literatura moçambicana como um elemento vital no panorama do desenvolvimento nacional. Devemos questionar-nos qual será o papel que esta arte pode desempenhar neste próximo decénio.

É crucial lembrar que a literatura moçambicana, como um sistema, é relativamente jovem, com menos de 100 anos de existência, e a sua base na escrita representa um desafio significativo num contexto em que mais de 40% da população ainda é analfabeta. Além disso, enfrentamos contínuas e visíveis dificuldades no processo de ensino e assimilação da língua portuguesa, que é a língua oficial em Moçambique e na qual assenta, grosso modo, toda a produção literária nacional.

Ao pensarmos sobre a literatura moçambicana nos próximos 10 anos, é fundamental considerar, em primeiro plano, a massificação da alfabetização e o acesso ao livro: é essencial investir em soluções ou programas de alfabetização para reduzir o alto índice de analfabetismo em Moçambique, tendo o livro como centro. Devemos garantir que a população tenha acesso à literatura em todas as suas formas, seja por meio de livros físicos, digitais ou recursos audiovisuais. Só para citar este último exemplo, já tivemos em Moçambique, ao nível da rádio, programas de teatro radiofónico, que serviam para criar, adaptar e difundir a literatura local através da rádio e assim levar as nossas histórias e vivências imaginadas à maioria da população. É necessário, partindo desse tipo de experiências, encontrar novas formas de levar a literatura, o livro e as histórias, e devolvê-las para quem as faz ou as vive no dia-a-dia.

Em segundo lugar, devemos preocupar-nos com a inovação literária: a nossa literatura precisa continuar a inovar e explorar novas formas de expressão que reflictam as complexidades da sociedade contemporânea e abordem questões urgentes, como as mudanças climáticas, a vida urbana e rural, as desigualdades sociais e os direitos humanos. É preciso encontrar novas formas e modelos temático-narrativos que nos coloquem lado a lado com outras literaturas e preocupações que permeiam o mundo, partindo sempre da nossa experiência e dos nossos saberes locais.

Um terceiro aspecto, não menos importante, é a educação literária: necessitamos de voltar a investir na educação literária nas escolas, algo que a minha geração e as que a precederam assimilaram, mas que está descontinuado neste novo modelo de educação. Estimular as crianças ao livro é essencial para cultivar o amor pela leitura desde cedo, desenvolver habilidades críticas e analíticas e promover uma compreensão mais profunda da identidade moçambicana e da diversidade cultural. Isso passa, por um lado, por expor as crianças às histórias e aos escritores, ainda mais cedo.

Em último, e aqui, puxando a sardinha para a minha brasa, falo de uma melhor integração do escritor na cadeia de valores da indústria cultural e criativa: é necessário reconhecer o escritor como um profissional e fornecer-lhe todo o suporte necessário para que seja valorizado e ressarcido adequadamente pelo seu trabalho. Isso implica considerar a dimensão social do trabalho literário e apoiar toda uma indústria cultural emergente.

Outro factor que me leva a reflectir sobre os desafios enfrentados pelo sector literário é que, enquanto a produção literária cresceu nos últimos anos, as estruturas de suporte, como livrarias e editoras, sofreram com o fecho de muitos estabelecimentos e a falência de várias editoras. Além disso, os prémios literários, que muito motivavam o escritor, entre os iniciantes e os consagrados, e o compensavam, às vezes, das vendas incipientes que caracterizam o mercado livreiro nacional, foram fechados ou estão no limbo, caso de célebres prémios como o BCI de Literatura, o prémio TDM, o prémio 10 de Novembro, para mencionar alguns. É essencial resgatar e valorizar os verdadeiros talentos da literatura moçambicana, reconhecendo os precursores e os contemporâneos que têm contribuído significativamente para enriquecer o cenário literário do país.

Além disso, a literatura pode ter um impacto económico positivo, através da criação de empregos na indústria editorial, promoção do turismo cultural e geração de renda para escritores, editores e outros profissionais do sector. O investimento nas economias criativas e na literatura, em particular, pode proporcionar imensos ganhos e fortalecer a nossa cultura, condição indispensável para a consolidação da democracia. Uma literatura de qualidade, por exemplo, é condição para um cinema e televisão mais abrangentes e fortes, um teatro mais criativo e dinâmico e uma música mais capaz de narrar e poetizar histórias maduras e de qualidade.

Investir na literatura moçambicana no próximo decénio é essencial para garantir um desenvolvimento integral e sustentável do país, que promova a cultura, a educação e a economia, proporcionando um futuro mais promissor para todos os moçambicanos.

Para terminar, lanço aqui uma pergunta provocatória: quais são os últimos livros de literatura moçambicana que estão ou estiveram a ler os até então três candidatos à presidência da República?

 

Aproveitando-se da ausência do Estado, das normas emanadas pelos órgãos oficiais e da sua própria ausência nas estatísticas daquele, instalou-se aqui um Estado paralelo. Os seus limites geográficos vão para além dos parques e paragens de semicolectivos, as suas fronteiras são abstratas, mas bem consolidadas e não são porosas.

Exerce-se aqui um verdadeiro poder político. Ninguém dentro do povo que constitui este Estado ousa desobedecer ou pôr em causa qualquer norma. Este governo autoproclamado, consequência do caos da inexistência de quem deveria dar protecção e fiscalização, instituiu-se para pôr ordem à sua própria (des)ordem.

Ao cair da madrugada e o prenúncio do novo amanhecer, os sons dos pássaros e os estalidos dos seus bicos e pernas, que, augurando um bom dia de nova caçada, se vão misturando às vozes e cantos melodiosos que vêm dos “chapeiros”: Xiqueleneeeee, Baixa, Baixa, Xipamanineeee, em coros e dicção afinados e perfeitos para publicitar o destino.

Em contraste, vai o desejo de ninguém chegar ao destino, pois as paradas intermédias são as mais desejadas, porque é aqui onde se encontra o verdadeiro passageiro.

O que vai até o destino final, é mercadoria, é pedra ou acompanhante do “xiguiane”. Aqui só se deseja passageiro, o fugaz, o famoso sobe e desce.

Neste território, a soberania não reside no povo. Este é apenas um mero instrumento de garantia de receita. O passageiro aqui não escolhe o seu próprio destino, é-lhe imposto.

Constituem órgãos de soberania deste Estado:

I) O chefe de Estado – o “modjeiro”;

II) O Governo (constituído por dois ministros – o cobrador e o motorista).

“Modjeiro” – figura emblemática, é o chefe de Estado, o órgão máximo, tem concentrado para si todos os poderes:
a) o poder legislativo, é ele que emana todas as normas que funcionam no território deste estado, a Assembleia da República é ele mesmo, as suas regras vinculam a todos, o motorista, o cobrador, o passageiro, todos os outros “chapas” e, por vezes, a própria Polícia Municipal. As suas normas são de cumprimento obrigatório para todos, não passam pela fiscalização prévia da inconstitucionalidade, aliás nunca são declaradas inconstitucionais, porque o modjeiro é também o próprio conselho constitucional. Ninguém entra ou sai do carro sem obedecer a estas normas.

O modjeiro detém também:

b) o poder executivo, ele é quem determina o que o cobrador e o motorista devem fazer, em que local devem estacionar, quem deve entrar e sair da viatura, infeliz quem não cair nas graças deste. Os seus critérios de selecção dependem das suas necessidades momentâneas, humor, estado de espírito e o seu nível de lucidez. Não interessa a beleza do passageiro, seu sorriso contagiante, seus atributos físicos, sua indumentária, o tamanho da sua gravata, o preço do seu cabelo, seu diploma universitário, nem é dissuasor o seu destino.

—Vou à Faculdade moço, posso entrar?

— Aqui não funciona Faculdade, está bem!? – Vai saindo assim a ordem de Estado, numa voz arrogante, com algum boçalismo à mistura, numa demarcação clara e inequívoca de quem detém o poder naquele local.

É preciso cair nas graças dos modjeiros, para embarcar em qualquer odisseia nesta nave espacial supersónica mas sem espaço interior, são levados todos à sardinhada.

Todos viram mendigos e prestam vassalagem ao chefe para conseguir um bilhete de embarque no minúsculo espaço que sobra.

É nesta figura que está também descrito c) o poder judicial e judiciário, pois é ele quem dirime qualquer litígio e contenda que ali surgir, lavrando a sentença executória, transitada em julgado, em um processo sumaríssimo, que ele próprio fez diligências de prova, é testemunha, advogado e Ministério Público.

O direito à defesa, ao contraditório e o princípio “in dubio pro réu” aqui não existem. Ele Indica o tribunal: “vai para outro chapa”, “vai queixar onde quiser”, “vai ter com o motorista”.

O modjeiro profere e executa a sentença no momento, contra todos os que desobedecerem às suas normas. Tem o poder de emanar uma providência cautelar de “embargo de carregamento novo” contra qualquer outro carro que ousar efectuar carregamento antes do tempo e fora da fila, executando ele mesmo o encerramento da porta para impossibilitar a violação do direito do legítimo transportador.

É um verdadeiro justiceiro.

O chefe deste Estado [o modjeiro] é astuto, focado e objectivo, cumpre todas as suas missões com zelo e determinação, não se distrai do objectivo. Um verdadeiro Luís XIV, num autêntico “l’Estat c’est moi”. Exerce um poder absoluto, mas não é absolutista, escolhe o sistema e o governo do dia por conveniência, quando lhe convém, é democrata:

— “Só tenho 10, cobrador.”

— “Pode entrar.”

Escolhe a teocracia às vezes, “só carrego minhas manas da igreja”, “graças a Deus mana, conseguiste entrar”.

Por vezes é um monarca, só carrega o seu clã: “vem cá entrar, meu puto”, “para onde vais, tia Anabela?”, “hei, esse lugar reservei para a minha mãe, aí ninguém senta”.
Quando lhe é conveniente, é um oligarca… “Ei, bro, vais para onde? ah entra, meu babo” “não paga nada, mais logo chutas um bond para mim”, “teu chapa está onde babo?” “não jobas hoje?”.

Por vezes, é um tirano e déspota: “desce lá! Apanha táxi, aqui não vais subir”.

A ascensão do modjeiro ao poder foi minuciosa e calculada como a de qualquer ditador. Aproveitando-se da inoperância, luxúria, soberba e apatia do seu antigo patrão – [o cobrador], o modjeiro foi aos poucos caindo nas graças do grande público que consigo fazia negociatas para “furar” a fila. Foi acreditando no seu potencial de negociador e deu golpe de Estado palaciano ao cobrador, substituindo-se ele mesmo aos antigos atributos daquele, hoje tem o seu poder consolidado.

O cobrador – membro do governo, ministro das Finanças, outrora arrogante, boçal, exemplo de mau carácter, pouco apuro de glamour e higiene. Enamorado pelas belezas que transporta, decidiu dar um “upgrade” no seu “look” e estatuto, autopromoveu-se, passando ele mesmo à figura de “patrão” contratando seu subordinado. Virou um boémio, distraído pelos prazeres da vida, abandonou o leme, sentiu-se galã, era já um sedutor, um “Dom Juan”, traído pela libido, o “bon viven” Hoje golpeado pelo seu antigo empregado, agora seu chefe.

Pouco se diga desta figura, que lhe foi reduzida a extensão e dimensão do cargo “cobrador”, hoje exerce papel restrito, sobrando para ele apenas a colecta de receitas, ja pré-definidas e pré-negociadas pelo seu actual chefe (o ex-empregado), em perfeita semântica do seu nome (cobrar apenas).

O motorista – é a figura aparentemente mais calma e parca deste executivo, mas só durante a vigência das ordens do chefe modjeiro, pois, a partir do momento em que se faz a rodovia, é o piloto no cockpit do supersónico, liberta pelo escape, os gases da combustão na fuselagem. Contudo, há aqui, pelo menos, justiça social, este ministro pode-se confundir com o proletariado, é quem mais trabalha e de forma justa, o que mais ordenado recebe. Tem poder discricionário sobre os colegas, mas as suas ordens podem encontrar oposição por parte do modjeiro, quando este as julgar ilegais e furtar-se ao cumprimento. Este é o ministério dos transportes por excelência.

Este é um Estado, montado longe dos holofotes e escrutínio dos que ao conforto das suas viaturas se locomovem, não sentem o ar empoeirado que vitima os que àqueles parques se fazem para nutrir a sua necessidade obrigatória e diária de mobilidade. Aquele não é um caos, é um verdadeiro estado organizado, onde as normas são cumpridas na íntegra e a presença de ordem após o caos é materialmente sentida.

O modjeiro tomou de assalto aquele território para o organizar à sua imagem, está no pleno exercício de uma cidadania activa.

Não é nenhum Estado paralelo, aquele é o verdadeiro Estado!

A noite descia vagarosamente sobre a terra e precipitava o seu amadurecimento. O Wimbe chamava por mim na voz que abria a janela do Hotel Raphaels. Vestida de um robe de chambre branco, se me espreitavam a alma, os meninos de Faulkner no lodo, e das águas do mar soprava o Som e a Fúria. Haviam muralhas entre a morte e o medo e o mar fruía as feições de uma onça.

Pelos corredores de Nautilis, outro paraíso que detém a minha alma, cruzei-me com um ferido dentre tantos outros militares sul-africanos, sangrava pelo braço direito e com todo o seu corpo gigante apoiava-se com seu peso sobre os ombros de um outro coitado. Para Sartre (2004, p.19) “a prosa é antes de mais nada uma atitude do espírito…há prosa quando nosso olhar atravessa a palavra como o sol ao vidro. E ainda hoje, o meu olhar atravessa o homem ferido no braço direito que continua passando pelo corredor das minhas lentes de longo alcance e o seu sangue que goteja pelo braço tinge ininterruptamente a capulana que cobre a terra que move tantos outros coitados.

Num mapa conceptual criei os meus personagens. Pessoas do quotidiano, com quem me cruzei amiúde na terra e no céu e outras imaginárias.

Steiner (1994, p.36) diz o seguinte: nunca me ha parecido que existan diferencias entre poesía y filosofía, entre música y matemáticas. Move-me este pensamento porque em mim nunca encontrei a fronteira entre os números e a literatura. A paixão que me move enquanto contabilista é a mesma que me move intensamente como escritora. Escrevo como analiso os números. A literatura é um conjunto de equações solúveis e insolúveis e nessas equações busco por via de caminhos individuais diversificados, uma resolução que me conduza à solução conjunta ou mesmo à epistemologia de enigmas que são os imbróglios que assombram o quotidino. A alteridade caracteriza o mistério com que se resolve uma função matemática.

Em “uma onça na cidade”, quebro o paradigma de se pensar a contemporaneidade como sacrossanta, e busco a hodiernidade, porque o passado cheira à mofo e a minha rinite não mais me aquiesce fuçar as narinas no pó, quero embrenhar os fluxos de consciência, os monólogos interiores e diálogos no contentor depositado agora, porque este é o meu tempo e tenho os meus olhos fixos na tela do tempo presente.

Penso na batata-reno que açoita a sociedade que procura por mesas para nelas pousar suas moscas, mesmo quando o seu preço tem função linear de assímptota vertical.
Uma calcinha que tira o sono de um homem de 1.90m é o plano estratégico de uma nação que pensa em morar eternamente dentro duma calcinha. Exercita-se a constuição de memórias dos tempos de autocarros que rasgavam as estradas das cidades até ao interior e hoje essas estradas rasgam o interior das paredes das cidades forradas de raptos e mortes.
Neste livro, escrevo sobre o polícia-ladrão, as leis de silêncio e silenciamento e os jornais fodidos pelas perseguições no exercício de suas funções de comunicar. Confesso-vos, que hoje tenho muito mais medo de polícia fardado que qualquer outro cidadão. Escrevo sobre a fuga da meritocracia nos ambientes de trabalho, o assédio sexual e nepotismo, que tornam a sociedade indigente.
Escrevo sobre mulheres fodidas pelo desemprego que desesperadas submetem seu curriculum e manifestam pedido de emprego depositando a sua candidatura na cama de um chefe em Matalane e Munguine, no serviço militar obrigatório, e o chefe despacha todos os pedidos dentro dos lençóis das camas adentro, ele defende a pátria, defende as mulheres desprotegidas engravidando-as e dando-as HIV, ele assegura a nação para que as mulheres tenham tranquilidade, emprego e amor, entram em Matalane e Munguine desempregadas e saem ocupando o posto de amantes do chefe e assim reduz a taxa de desemprego no país.

Todas as lágrimas que não cabem nos Homens cabem no Wimbe. Analiso a minha escrita como produção da consciência autoral que reside na terra: um idioma, uma etnia, uma religião e uma cultura.

E a Joaneta?

Joaneta, somos todos nós a quem apenas resta um orificio e não nos restam membros. Todos somos Joanetas, corpo decapitado, corpo de errante que vaga sem membros. Resta-nos apenas um orifício para que sejamos homens e mulheres. Todos nós somos Joaneta. A violência contra os homens, as mulheres e crianças, torna-se uma arte em escolas, igrejas e outras infra-estruturas públicas esfaceladas pelos al-shabaabs.

Entre a descrença e as imprecisões, há ainda serpentes que sobrevivem comutadas em humanos que alimentam-se de outros humanos. Ah, esses são Homens desta época, mitos da contemporaneidade.

O país não tem mais cabeça. Como se pensa sem cabeça? O país não tem mais olhos para contemplar a sua miopia. Tem uma sexualidade indefinida. Ao fim todo orificio serve para o alívio de quem está no aperto.

Na perspectiva de Guillermo Cabrera Infante (2012, pag. 232), “a única literatura possível estava escrita nos muros’’. Nesta reflexão reverberam-se sentimentos contrastivos que norteam a sociedade redefinida entre novíssimos muros edificados entre a ética e anti-ética, entre os ricos que fazem fronteira com os pobres e ainda que perfaçam diferentes estruturas sociais, continuam a respirar o mesmo ar que escreve a literatura nas paredes do quotidiano descrito em “uma onça na cidade”.

A arte é comunhão. O escritor entrega quando se dá à sua sociedade. Dá-se gratuitamente porque o verdadeiro amor não está no Mercado do Peixe e nem sequer no Zimpeto.

Na translineação estrutural do texto, em “uma onça na cidade” deparamo-nos com as rondas de negociação da paz, no Centro de Conferências Joaquim Chissano. A paz negociada em mesas e poltronas, um bem tão sonhado que habitou nossas casas em telas televisivas e jornais por via das pessoas que a negociavam. Destarte, ainda que durmamos em travesseiros de catanas e cubramos lencóis de medo, continuamos expectantes em ver os paletós sorrirem abraçando o corpo de dois homens de extremos diferentes, mesmo sabendo que hoje somos apenas beatas, dum cigarro que fora um mero projecto de um fumante.

A galeria da Fundação Fernando Leite Couto acolheu, no passado dia 3 de Julho, uma exposição individual, do artista plástico Aldino Dinis Languana, intitulada “Jardins de sonho”.

Dentre os quadros patentes na exposição, encontra-se “a cadeira de leite e mel”, obra aprimorada com recurso à técnica de pintura com aguarela sobre tela. A obra possui as dimensões 54x65cm, e foi criada em 2024.

O título “a cadeira de leite e mel” oferece-nos a ideia de um espaço confortável, um pedaço de lar, de aconchego, onde podemos sentar e sossegar. O quadro apresenta um homem sentado sobre um banco no meio de alguma rua, no alvorecer ou ensurdecer do dia, tendo uma possível zaragata, com três homens que se encontram em pé, sob o olhar impávido de um cachorro cinzento, provavelmente vadio como os homens, e um mamífero no canto inferior direito não tanto distinguível.

As linhas do desenho são finas e curvadas, criando uma sensação de suavidade e leveza, mas também são semi irregulares e acrescentam a percepção de estarmos perante um esboço de um desenho que ainda vem a seguir.

O ponto central da imagem assalta a atenção do observador, devido à ilusão de movimento, causada também pela sobreposição das figuras humanas, onde observamos os três homens praticamente tocando no peito ou ombro da figura sentada no banco, provavelmente desenfreando um assunto quotidiano.

As formas das figuras são humanas e animalescas mais próximas da realidade, permitindo maior envolvimento e interpretação do observador em relação à obra.

As cores modelam-se na passarela da tela, complementando-se e harmonizando entre si, com a variação entre o azul, amarelo, cinzento e tons diversos do laranja, que em cada canto da tela encontram o seu brilho. O castanho, ainda que camuflado, confraterniza em menos espaço com outras cores que, em uníssono, cintilam na tela.

Languana faz da sua tela um ambiente natural, provavelmente um jardim, ou uma rua sem movimento, onde as figuras interagem em busca da sua cadeira de leite e mel.
Mas porque três homens procurariam uma cadeira já ocupada num lugar público? Porque provavelmente não têm um lar. A presença de um cão próximo ao banco e aos homens indica, claramente, que se trata de uma praça pública ou de um lugar frequentado por pessoas sem lar.

A obra pode estar a convidar-nos para reflectir em torno das pessoas desfavorecidas que vivem na rua, sem lar e assistência. Em Moçambique, temos um extenso número de pessoas, inclusive de crianças que vivem na rua, sem esperança de ter um lar, um aconchego onde possam ter uma vida digna. Quanto de acção social ou solidariedade temos doado a este grupo social? Esta pode ser uma pergunta do autor.

Outro debate pertinente que o autor pode estar a omitir por trás das pinceladas é a disfunção familiar actual. Os homens não nascem em jardins, nem em praças públicas, eles vão lá parar por várias circunstâncias, conflitos, muitos deles envolvendo suas famílias vulneráveis financeiramente, onde não se pratica o amor, respeito e tolerância, resultam em disfuncionalidade e fragmentação.

Mas também se pode concluir, com este retrato, que Languana quer debater sobre a  economia do País, que está em queda, gerando a pobreza e miséria, e, por sua vez, a pobreza, gerando moradores de rua e mendigos que não têm rentabilidade para se susterem a si próprios.

Languana, ao colorir a obra “cadeira de leite e mel”, colore também o seu talento e a sua opinião sobre flagelos sociais no país, convidando o espectador a fazer parte do seu debate.

Nota: “a cadeira de leite e mel” é uma obra de Languana, que integra a individual “Jardins de sonho”, na galeria da Fundação Leite Couto. A exposição com curadoria pode ser visitada até 3 de Agosto.

A galeria da Fundação Fernando Leite Couto acolheu, no passado dia 3 de Julho, uma exposição individual, do artista plástico Aldino Dinis Languana, intitulada “Jardins de sonho”.
Dentre os quadros patentes na exposição, encontra-se “a cadeira de leite e mel”, obra aprimorada com recurso à técnica de pintura com aguarela sobre tela. A obra possui as dimensões 54x65cm, e foi criada em 2024.

O título “a cadeira de leite e mel” oferece-nos a ideia de um espaço confortável, um pedaço de lar, de aconchego, onde podemos sentar e sossegar. O quadro apresenta um homem sentado sobre um banco no meio de alguma rua, no alvorecer ou ensurdecer do dia, tendo uma possível zaragata, com três homens que se encontram em pé, sob o olhar impávido de um cachoro cinzento, provavelmente vadio como os homens, e um mamífero no canto inferior direito não tanto distinguível.

As linhas do desenho são finas e curvadas, criando uma sensação de suavidade e leveza, mas também são semi irregulares e acrescentam a percepção de estarmos perante um esboço de um desenho que ainda vem a seguir.

O ponto central da imagem assalta a atenção do observador, devido à ilusão de movimento, causada também pela sobreposição das figuras humanas, onde observamos os três homens praticamente tocando no peito ou ombro da figura sentada no banco, provavelmente desenfreando um assunto quotidiano.

As formas das figuras são humanas e animalescas mais próximas da realidade, permitindo maior envolvimento e interpretação do observador em relação à obra.

As cores modelam-se na passarela da tela, complementando-se e harmonizando entre si, com a variação entre o azul, amarelo, cinzento e tons diversos do laranja, que em cada canto da tela encontram o seu brilho. O castanho, ainda que camuflado, confraterniza em menos espaço com outras cores que, em uníssono, cintilam na tela.

Languana faz da sua tela um ambiente natural, provavelmente um jardim, ou uma rua sem movimento, onde as figuras interagem em busca da sua cadeira de leite e mel.

Mas por que três homens procurariam uma cadeira já ocupada num lugar público? Porque provavelmente não têm um lar. A presença de um cão próximo ao banco e aos homens indica, claramente, que se trata de uma praça pública ou de um lugar frequentado por pessoas sem lar.

A obra pode estar a convidar-nos para reflectir em torno das pessoas desfavorecidas que vivem na rua, sem lar e assistência. Em Moçambique, temos um extenso número de pessoas, inclusive de crianças que vivem na rua, sem esperança de ter um lar, um aconchego onde possam ter uma vida digna. Quanto de acção social ou solidariedade temos doado a este grupo social? Esta pode ser uma pergunta do autor.

Outro debate pertinente que o autor pode estar a omitir por trás das pinceladas é a disfunção familiar actual. Os homens não nascem em jardins, nem em praças públicas, eles vão lá parar por várias circunstâncias, conflitos, muitos deles envolvendo suas famílias vulneráveis financeiramente, onde não se pratica o amor, respeito e tolerância, resultam em disfuncionalidade e fragmentação.

Mas também pode-se concluir, com este retrato, que Languana quer debater sobre a economia do País, que está em queda, gerando a pobreza e miséria, e, por sua vez, a pobreza, gerando moradores de rua e mendigos que não têm rentabilidade para se susterem a si próprios.

Languana, ao colorir a obra “cadeira de leite e mel”, colore também o seu talento e a sua opinião sobre flagelos sociais no país, convidando o espectador a fazer parte do seu debate.

Nota: “a cadeira de leite e mel” é uma obra de Languana, que integrta a individual “Jardins de sonho”, na galeria da Fundação Leite Couto. A exposição com curadoria pode ser visitada até 3 de Agosto.

Sou Filomena Matusse, nasci em Moçambique, sendo assim, moçambicana e negra, com a pele muito escura, marcada pelo sol cuja intensidade aumenta a cada dia. A exposição solar é inevitável, agravando a minha negritude, uma vez que tenho de ficar exposta a ele para garantir sustento para a minha família; e não posso arcar com os custos dos protetores solares, que já ouvi falar por ai, pois são caros demais para o nível em que me encontro, pois, minha situação financeira não é boa.

Nasci em meio à pobreza, um facto que procuro aceitar diariamente, mas que não me impede de sonhar com um futuro diferente. Entretanto,  não quero falar no momento da minha pobreza, pois não é culpa minha ter nascido nesta condição, quero falar de outra questão que inquieta-me e  é ainda pior que a pobreza a mau ver…

Desde jovem, fui testemunha da pressão imposta às mulheres da minha comunidade, província e país, que tentam clarear a pele. Eu própria, num determinado momento, sucumbi a essa tendência, utilizando cremes clareadores acessíveis, disponíveis inclusive nos mercados locais por 100 meticais. Inicialmente, julgava e condenava essas práticas, pois não compreendia a motivação por trás delas. Contudo, após reflexões e experiências pessoais, a minha visão mudou.

Moçambique é um país africano e a raça que predomina é a negra, entretanto não tenho paz na minha própria terra onde tenho o direito de ser negra e deveria viver a vontade…

Uma  experiência dolorosa foi a de uma gestora sénior negra de certa empresa, que, embora competente, foi substituída por uma colega  de pele branca, revelando uma hierarquia baseada na cor da pele. Estas situações evidenciam a desigualdade e discriminação persistentes, influenciando até mesmo o crescimento profissional e pessoal. Passo a expor: Uma jovem altamente capacitada foi contratada por empresários asiáticos em Moçambique para actuar como gestora sénior  na sua empresa, onde os funcionários eram maioritariamente moçambicanos e negros. A convivência inicial entre todos era harmoniosa e produtiva. Todavia, tudo mudou quando o chefe da jovem decidiu contratar duas raparigas também asiáticas para a mesma empresa. Embora as novas funcionárias fossem fluentes em português e simpáticas, o chefe começou a introduzir divisões entre os colaboradores, separando-os pela cor da pele. Ele instituiu regras segregacionistas, tais como direcionar os negros para um lado e os brancos para outro, inclusive designando utensílios diferentes para uso de acordo com a cor da pele. Esta atitude discriminatória gerou desconforto no ambiente de trabalho.

A gestora, injustamente, foi removida do cargo sem motivo aparente para que uma das novas funcionárias brancas assumisse a posição, embora a gestora negra fosse mais competente. Esta era responsável por treinar as novas funcionárias e ensinar o sistema de contabilidade e gestão da empresa, inclusive as duas raparigas asiáticas foram instruídas por ela. Esta situação levou a jovem negra a concluir que, infelizmente, naquele contexto, a cor da pele parecia determinar a hierarquização e as oportunidades de trabalho, acima das qualificações e competências académicas. Este triste desfecho levanta a questão de como as desigualdades e preconceitos raciais ainda influenciam significativamente o ambiente profissional, mostrando que, para algumas pessoas, a pigmentação da pele pode influenciar injustamente as suas carreiras e oportunidades.

Este foi apenas um relato de muitos que poderíamos trazer, porque a discriminação racial é uma realidade na nossa sociedade, é fácil de ver as varias manifestações no nosso dia a dia, desde o acesso as oportunidades, até as suas formas mais graves. 

O preconceito baseados na cor da pele e a discriminação geram divisões e desigualdades profundas na sociedade. Observa-se que, mesmo dentro da comunidade negra, a tonalidade da pele frequentemente determina a hierarquia e o tratamento recebido, perpetuando padrões de opressão. Estas experiências refletem a complexidade e as feridas causadas pela discriminação racial, questionando se a opressão vivenciada resulta, em alguns casos, na perpetuação do ciclo de discriminação e divisão entre os próprios indivíduos de uma mesma comunidade.

A discriminação racial é uma realidade insidiosa que permeia a sociedade de forma profunda, criando divisões e desigualdades que prejudicam a todos. É imperioso reconhecer e confrontar activamente o racismo em todas as suas formas, desde os actos mais evidentes até as estruturas institucionais que perpetuam a injustiça. Apenas com consciência, empatia e acção conjunta podemos construir um mundo mais justo e inclusivo, onde a cor da pele não determine o valor ou as oportunidades de um indivíduo. Façamos a nossa parte para promover a igualdade e a diversidade e lutemos juntos contra o racismo em todas as suas manifestações!

Numa manhã que fazia sol, chuva, vento forte e brando, céu azul, cinzento e nublado, numa manhã comum de atmosfera corriqueira como aquela que cobre os dias mais ordinários das nossas vidas, não sabendo eu o que presentear as minhas sete filhas, todas aniversariantes do dia, decidi então proporcioná-las o que de mais valioso e prazeroso havia na vida: a felicidade.

Quem buscasse pela felicidade, precisava apenas de ir à pequena mercearia que se situa no centro da na nossa aldeia. A mercearia chamava-se sociedade. Então disse eu à minha filha, vá até à sociedade e traz-me felicidade conforme o teu desejo. Não precisa ser muita e nem pouca, basta apenas que seja suficiente para uma vida. Eu poderia ir lá buscar a felicidade dá-las de presente, seria até uma óptima surpresa, mas não seria a felicidade delas, seria a minha felicidade. Ela percebeu. Arrumou-se e lá se foi, a minha filha, para a sociedade, à busca da felicidade, da sua felicidade.

– O que buscas? – questionaram-lhe, os agentes da felicidade.

– A felicidade – respondeu ela, inocente.

Olharam-na. De soslaio, de frente, de trás, de cima, de baixo. Fizeram uma radiografia da sua imagem.

– Para ti não temos – sentenciaram os agentes, aquele que, lá na sociedade, cambiavam a felicidade.

– Como assim? – questionou, atónita, a minha filha.

– Olha para ti. Baixinha, pele escura, lábios e calcanhares rachados, dentes desalinhados, mãos ásperas, mal cuidadas e cheias de calos e esse corpo cheio de cicatrizes. Nem pareces uma mulher. Fazes o quê da vida? És uma adestradora de animais selvagens?

Não acreditei quando a minha filha narrou-me este infortúnio episódio. Pedi a segunda para que ela fosse até a sociedade buscar a felicidade e, curiosamente, a esta também lhe foi recusada.

– Não te podemos dar. Tão fina, comprida e com esse pé de colossal tamanho que mais parece de um soldado que de uma princesa. E essa tua cara? toda cheia de botões vermelhos e escuros? Deves ser uma doente.

Revoltado, pedi à minha terceira filha que fosse também a busca da felicidade, que igualmente lhe foi recusada. Disseram-lhe que não sabiam diferenciar se, entre ela e um elefante, quem era mais pesada. Sugeriram que ela aprendesse a fechar a boca antes de buscar pela felicidade. Disseram-lhe isso, lá na sociedade, na mercearia onde trafica-se a felicidade.

Foi a minha outra filha, a quarta. Riram-se dela e nem se deram o trabalho de ocultar o riso. Ordenaram-lhe que fosse primeiro buscar a pigmentação da sua pele e só depois disso poderia retornar e buscar pela felicidade.

À minha quinta filha, a sorte não lhe foi diferente.

– Toda vaidosa, com esses produtos coloridos nos teus lábios, essa face toda rebocada de químicos artificiais. Serás tu uma funcionária de uma fábrica de cimento? Ou terás deixado a tua face cair numa forma gigante de preparação de cimento e absorveste cimento suficiente para rebocar um edifício? E essa tua saia curta? Não te ensinaram a vestir em casa? ou pensas que és a única com ancas? Deves ser uma mulher de todos e de ninguém. És tu quem destrói os nossos casamentos e retiras a paz dos nossos lares. Não há nada para ti aqui – disseram isso, à minha filha, lá na sociedade, na mercearia onde ela foi a busca da felicidade.

Foi a minha sexta-filha, revoltada, aquela que tinha mais estudos, a busca da felicidade. À esta, foram contundentes com as palavras: – vá primeiro buscar um marido, sua bocuda. Os teus diplomas, aqui de nada valem. Se não tens um homem que dê sentido a tua vida, não és mulher suficiente para adquirir a felicidade aqui na nossa mercearia. São as solteironas como tu que atentam contra os bons valores das nossas famílias.

Foi a minha sétima filha, a minha última esperança. Pele clarinha, corpo esguio, cabelos longos, pele macia e movimentava-se suavemente. Chegou à sociedade, na mercearia onde vende-se a felicidade. Olharam-na, falaram-lhe cordialmente e disseram-na que o seu pedido seria atendido com a maior das honras que lhe são devidas. Mas antes, sarcasticamente, perguntaram-lhe:

– E a fatura? Enviamos para qual dos pais dos teus filhos? Sim… porque cada um dos teus filhos tem um pai diferente e não sabemos qual deles paga as tuas contas.

Era demais. Nenhuma das minhas filhas tinha direito à felicidade. A sociedade, aquela mercearia responsável pela felicidade, recusava-a, a todas elas. Decidi ir lá ter com esse agente da mercearia, esse homem que era o atalaia da felicidade, que decidia a quem dar e a quem não dar a felicidade. Esse homem teria de me explicar olhando nos meus olhos por que é que as minhas filhas, todas diferentes e perfeitas, não tinham direito a felicidade?

E as minhas filhas, em uníssono, disseram:

– Não foi um homem quem nos falou, foi uma mulher.

 

 

Por definição, a Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) considera refugiado “qualquer pessoa, que (…) temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade (…) e não quer voltar a ele”. Se prestarmos atenção, a definição não incorpora a dimensão das alterações climáticas, ou seja, os “refugiados climáticos” não têm o direito de pedir asilo à luz do Direito Humanitário Internacional. Talvez seja razoável interpretar que outrora a questão não estivesse em voga. Dessa forma, gostaríamos que ficasse patente, à priori, que o conceito de “refugiado” é diferente do “deslocado interno”, dado que às vezes se utilizam os termos como sinónimos. Nesta reflexão, cingimo-nos sobre os refugiados.

A partir dos anos 80 o assunto ganhou novo rumo, cujo precursor foi o Professor El-Hinnawi (1985) tendo cunhado o termo “refugiados ambientais” como sendo “aquelas pessoas que foram forçadas a abandonar o seu habitat tradicional, temporária ou permanentemente, devido a uma perturbação ambiental acentuada (natural e/ou desencadeada pelas pessoas) que pôs em perigo a sua existência e/ou afetou gravemente a qualidade de sua vida”. Nos dias que correm, o debate sobre as alterações climáticas tornou-se bastante mediático. Boeno and Ferrão (2016), chegaram a ponto de considerar que as alterações climáticas são um risco sistémico mais crítico do que os outros socialmente muito reconhecidos, tais como os ataques terroristas, as pandemias ou crises financeiras.

Se nos basearmos nos Relatórios da World Meteorological Organization (WMO, 2022), constatamos que, em relação ao período pré-industrial, a temperatura média global aumentou cerca de 1°C. As emissões de CO2, em resultado do uso de combustíveis fósseis, aumentaram 1% globalmente em 2022 em comparação com 2021. Os últimos oito anos, 2015 a 2022, foram os mais quentes já registados e a chance de pelo menos um ano exceder o ano mais quente já registado nos próximos cinco anos é de 98% (WMO, 2023). O nível médio global do mar atingiu um novo recorde em 2021, aumentando 4,5 mm por ano durante o período entre 2013-2021 (WMO, 2022). Em termos de danos, 50% de todos os desastres, 45% das mortes e 74% das perdas económicas à escala global nos últimos 50 anos foram relacionados aos eventos atmosféricos, clima e ao risco hídrico (WMO, 2021), sendo que mais de 90% das mortes e 60% das perdas económicas ocorreram em países em desenvolvimento (WMO, 2021, 2023).

Por sua vez, o Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC, 2022) reporta que, entre 2010 e 2020, a mortalidade humana por inundações, secas e tempestades foi 15 vezes maior em regiões altamente vulneráveis, em comparação com regiões de baixa vulnerabilidade. A região do Corno de África, por exemplo, está mergulhada na seca mais longa e severa já registada e contabilizam-se mais de 180 000 refugiados da Somália e do Sudão do Sul para países como Quénia e Etiópia, também fustigados pelo mesmo fenómeno (ACNUR, 2023). Em 2022, cerca de 2500 moçambicanos refugiaram-se para o distrito de Nsanje, em Malawi, vítimas das inundações, em resultado da ocorrência da Tempestade Tropical Ana (VOA, 2022). Estes, em emergência, infelizmente não puderam ter assistência humanitária internacional, pelo facto de não terem, na época, protecção legal.

Dados do IPCC (2022) indicam que até 2030 o número de pessoas que vivem em extrema pobreza aumentará em 122 milhões dos actuais cerca de 700 milhões. Ademais, cerca de 10% da superfície terrestre está sob condições de seca severa ou extrema (WMO, 2023) e o aumento na frequência, intensidade e gravidade de secas, inundações e ondas de calor e o aumento contínuo do nível do mar aumentarão os riscos à segurança alimentar em regiões vulneráveis. No mesmo diapasão, as Nações Unidas (2018) admitem que embora não sejam em si as causas dos movimentos de refugiados, o clima, a degradação ambiental e os desastres de origem natural interagem cada vez mais como motores dos movimentos de refugiados no período contemporâneo. No geral, exorta-se que o mundo reduza pela metade, anualmente, as emissões de Gases com Efeito de Estufa nos próximos oito anos, para limitar o aumento da temperatura a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais (United Nations Environment Programme [UNEP], 2021).

Chegados aqui, podemos admitir que os efeitos das alterações climáticas são hoje uma questão de Direitos Humanos, de crise humanitária global, que requerem uma resposta imediata, em função das circunstâncias e contextos sociais. Busquemos o exemplo crítico de Kiribati, onde as projecções indicam que nos próximos 15 anos o país, composto por mais de 30 ilhas, corre o risco de desaparecer, devido ao aumento do nível médio das águas do mar em consequência das alterações climáticas. Aliás, face à realidade, em 2020 o Comité de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas reconheceu o cidadão Ioane Teitiota como um “Refugiado Climático”, depois de uma longa batalha que travou, a pedir asilo na Nova Zelândia, onde havia se refugiado. Provavelmente seja o primeiro na história a se beneficiar deste tratamento. A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR, 2020) congratulou o acto e insta para que “pessoas fugindo de efeitos adversos das mudanças climáticas e o impacto de desastres repentinos e de início lento (como secas) podem ter reivindicações válidas para obterem status da condição de refugiado sob a Convenção de 1951 ou acordos regionais sobre refugiados”.

Para além do exemplo acima mencionado, é notório que a ocorrência dos desastres tende a aumentar em termos de frequência e intensidade. À excepção das secas, acompanhamos recentemente as cheias ou inundações que se abateram sobre alguns países, como por exemplo, Moçambique, Burundi, Tanzânia, Quénia, Brasil, Dubai, etc, a atingirem novos recordes, com impactos significativos na economia, ambiente e sociedade. Ora, face ao exposto, não seria urgente e producente que as Nações Unidas revissem os Estatutos do Refugiado, incorporando a categoria das alterações climáticas? O fenómeno cria efeitos múltiplos. O aumento do nível médio das águas do mar pode forçar a população das regiões costeiras a abandonar o seu local habitual, procurando regiões seguras. As cheias e as secas severas destroem culturas, o que pode igualmente obrigar as comunidades rurais, dedicadas à agricultura e à pecuária, a abandonarem para sempre as suas áreas tradicionais de produção e recorrendo a outros pontos alternativos, em busca de abrigo e sobrevivência. A população dos países pobres, que pouco contribui com a emissão de Gases com Efeito de Estufa, é a principal vítima desta crise global.

Por exemplo, o ciclone tropical Idai, que atingiu a cidade da Beira (Moçambique) em 2019, e a seca de 1990 na África do Sul são, conjuntamente, os dois eventos mais caros (ambos estimados em US$ 1,96 biliões) em África nos últimos 50 anos (WMO, 2021). Enquanto os países são desafiados a pautarem por um “Desenvolvimento Sustentável”, em várias dimensões, o Relatório da Agenda 2030 (Objectivos de Desenvolvimento Sustentável [ODS], 2023), indica que é hora de soar o alarme, pois o progresso de mais de 50% das metas foi fraco e insuficiente; 30% estagnou ou retrocedeu, cujas metas importantes tem que ver com a pobreza, fome e alterações climáticas.

Assim, entendemos que travar os desastres climáticos constitui um quesito que se pode considerar problema de resolução complexa, dependente de múltiplos factores, mas há um conjunto de acções individuais e colectivas que podem ser tomadas em conta, que não caberiam mencionadas nesta reflexão. Tal como escreveu Spencer (2009), especialista da NASA, o clima vai alterar, com ou sem a intervenção antrópica (utilização de combustíveis fósseis, por exemplo, o carvão, o petróleo e o gás; o desflorestamento, a prática de agricultura, a industrialização, etc). Assim, a melhor forma de isolar os pobres dos riscos ou perigos ambientais é ajudá-los a suplantar a pobreza. Ou seja, se os pobres vivem numa zona costeira, que é ameaçada por ciclones, a resposta não é apenas aprovar leis sobre as alterações climáticas, pois estas não poderão reduzir as velocidades médias dos ciclones, mas sim oferecer meios ou condições para que as vítimas consigam fugir e ter acolhimento assim que o perigo for a chegar. É assim que se poderá impedir os maiores desastres, salvando vidas e aliviar o sofrimento das pessoas nos países pobres.

A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados (Convenção de Genebra) de 1951 foi proposta e aprovada num contexto pós II Guerra Mundial, visando salvaguardar os direitos dos refugiados vítimas de perseguições (que apenas ocorreram antes de 1 de Janeiro de 1951). Sucede, porém, que a conjuntura geradora de crises humanitárias hoje ganhou novas dimensões, já não são apenas as guerras que estão em causa. Facto positivo é que o próprio dispositivo legal fornece mecanismo para uma proposta de revisão. Assim, havendo interesse e fazendo-se o uso da prerrogativa dos números 1 e 2, respetivamente, do artigo 45 da Convenção, “Qualquer Estado Contratante poderá, a qualquer tempo, por uma notificação dirigida ao secretário-geral das Nações Unidas, pedir a revisão desta Convenção. A Assembleia Geral das Nações Unidas recomendará as medidas a serem tomadas, se for o caso, a propósito de tal pedido.”

Ora, perante vários cenários críticos acima expostos, apresentamos as seguintes indagações: será que nenhum Estado, até ao momento, terá manifestado tal vontade? Se a resposta for negativa, porque não fazê-lo, é inoportuno? Será que o silêncio reflecte a falta de interesse por parte do secretariado-geral das Nações Unidas em discutir sobre esta matéria? Enquanto as respostas às perguntas colocadas ficam ao critério de cada um, em última análise, no nosso entender, é fulcral que as Academias, Juristas, Organizações da Sociedade Civil e outras partes interessadas, mormente os países em desenvolvimento, que se configuram como as principais vítimas das alterações climáticas, se mobilizem a nível internacional, criem lobby e reflictam sobre a necessidade premente da revisão do Tratado; com intuito de que os “Refugiados Climáticos” sejam reconhecidos e protegidos à luz do Direito Humanitário Internacional, à semelhança das perseguições raciais, políticas ou religiosas.

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