Os títulos, pouco parece, são laboriosos de se formarem, às vezes. Trabalha-se a gestação, e dá-se vida a um texto, e, depois, atrapalho-me no apelido. “Há festa de marrabenta” é um título com alguma história na cultura. Antes de partir desse mundo dos vivos, atestou Ndjindji que já há festa de marrabenta em Moçambique, e que poderia morrer.
É nesse estado anímico em que empresto essas palavras para apelidar o texto na qual irei falar do concerto ‘Noite de marrabenta’ com a banda Unsse, que teve lugar no dia 3 de Agosto de 2024, no Centro Cultural Municipal Ntsindya, em Xipamanine.
Como bons moçambicanos que somos, a direcção do concerto não se desfez, por horas, do traço ‘+ moçambicano’, no que se refere a atrasos. A festa demorou cerca de 45 minutos, quase uma hora, para dar partida. Isso já está tão enraizado no moçambicano que, de forma que não me surpreendeu, a sala começou a ser ocupada por almas, e não mais por mosquitos e moscas, depois do evento ter iniciado.
Ainda no rescaldo do Dia Internacional da Música (1/10), o Centro Cultural Municipal Ntsindya brindou-nos com mais uma noite de muita Marrabenta. Agora, espero que o meu título faça sentido, essas noites de marrabenta são recorrentes no Centro Cultural Municipal Ntsindya, dando um espaço, talvez fixo, para que fazedores e apreciadores desse ritmo tenham um lugar onde festejar o que são. Essa data, parece-me, foi meticulosamente escolhida para fazer ponte entre dois dias festivos: um mundial e outro nacional, que é o proeminente dia 4 de Outubro, o dia em que se assinaram os Acordo Geral de Paz, em Roma.
O evento deu partida com a actuação dos alunos do próprio Centro Cultural Municipal Ntsindya, saudando-nos e mostrando que, até para próximas gerações, a marrabenta ainda será festejada entre palcos desse belo Moçambique. Por ainda serem alunos, fizeram warm up (aquecimento) do palco e do dia, preparando-nos para o que estava ainda por vir, com uma miscelânea harmoniosa (contradição pensada) da velha guarda, e actuais vanguardas dessa arte, a Marrabenta.
Dentre eles, ouvimos a interpretação da música de Humberto Luís, intitulada “Pfumela”, ouvimos a interpretação da música “Elisa”, de Mingas, celebrou-se Mr. Bow e outros como Nordino Chambal, com a música “Mamana”, lembrando-nos, com essa, a honrar ainda mais as figuras maternas. Assim homenageavam-se todas as mães que cuidaram/cuidam dos filhos com muito amor. Desde já, talvez endereçar um obrigado por todos e todas as mães do mundo que, em condições adversas que caracterizam Moçambique, ergueram homens e mulheres. Com isso, joga-se uma nota de recordação, todo dia, é o dia da mãe.
Depois foi a vez da banda Unsse. Há quem disse que Unsse é festa, contudo ignoro se esse é a tradução de Unsse em português (nem sei qual é a língua de partida) ou se Unsse acabou tendo uma extensão semântica e passou a significar festa por conta do tipo de música que essa banda toca. Entre um ou outro, só uma certeza cresceu dentro de mim: houve festa de Marrabenta.
Além do arranque em falso do evento, quando a banda quis entrar e alegrar os que lá estavam, houve também (des)arranjos no momento da actuação. A maquinaria estava desafinada, cabos não conectados e outros inconvenientes que, infelizmente, sucedem.
Veio a música que tanto se esperava. A primeira nota musical da banda obriga-nos a pensar sobre a dualidade erro-perdão. “Nambi dzi hoxile, nambi ndzinga hoxanga” (mesmo se tivesse errado, ou não) alguma coisa que se parece com tolerância era cantada. No final, talvez seja isso uma coisa que poderíamos pegar e tentar repaginar o nosso dia 4 de Outubro. Sem tolerância para os pecados de outrem, não há paz que se aguente. A tolerância talvez seja um dos alicerces de um homem ético. Aqui ética, senhores, não é sinónimo de moral, apesar de se ter feito, por muito tempo, andar de mãos dadas e grudadas. A moral é mais ou menos algo de proibições e obrigações, enquanto a ética, segundo o professor brasileiro Clóvis de Barro Filho, é “a arte da convivência”. Talvez, também, a nossa sociedade necessite de mais tolerância de uns para com os outros, e também para connosco mesmo.
A segunda nota musical o Eu lírico argumenta que a “A lizandzo hi xilondza” (Trad. lit. Amor é uma ferida). Essa música retrata a dor que pode ser o amor, e todos os seus eventos que fazem sofrer quem o porta. Nessa canção, o Eu lírico narra uma história sofrida de amor, em que o seu amado/a fugiu para um lugar incerto. Ouvindo essa música, de longe, ouvia na minha mente o polonês Zigmunt Bauman, quando fala da modernidade líquida, amores líquidos que caracterizam nossos tempos. Umas das suas frases icónicas é a de “tempos são líquidos porque, assim como a água, tudo muda muito rapidamente. Na sociedade contemporânea, nada é feito para durar” nem mesmo os relacionamentos. Principalmente estes, em que depois de passar a satisfação que trazia no período inicial, procura-se por uma outra relação que traga ainda mais satisfação.
Nessa sociedade líquida, hoje está-se numa relação e amanhã acorda-se com outro. Não estou cá a fazer apologias ao casamento forçado que caracterizou a idade média (na Europa) e a tradição moçambicana retratado, por exemplo, por Dany Wambire em “A mulher sobressalente”, em que as mulheres não possuem volição. Também não estou a retirar a liberdade que as pessoas têm de se separar e se juntar com quem quiserem. Só que as juras de amor são tão efémeras como pó que se dissipa com a ameaça do arejar.
As notas são riquíssimas de mensagens que refletem um tanto a realidade moçambicana, que é de precariedade generalizada. A quarta nota fala da condição da pobreza e pobres (Xisiwana). Primeiro que essa condição de pobreza é notada quando o Eu lírico diz que “a Nina papai, a nina mamana” (não tenho pai, nem mãe). Para os mais atentos percebem que os moçambicanos são, essencialmente, metafóricos. Acho que Lakoff e Johnson (em Metaphors we live by), se tivessem estudado as línguas bantu teriam provado facilmente a sua posição de que a metáfora (figuras de linguagem) não é um recurso restritivamente poético e extraordinário, mas que é de uso quotidiano e ordinário. O “não tenho pai, nem mãe” pode não significar que alguém seja órfão de pai e mãe, mas que essa pessoa é tão pobre que não tem para onde reclamar da sua condição precária porque os seus familiares também são pobres. Essa construção iguala-se a “a Nina munu, novha Xisiwana” (não tenho ninguém, sou um pobre). Não significa necessariamente que essa pessoa é/está sozinha no mundo, mas que, num mundo materialista e capitalista, não tem um parente com capital.
A canção ainda dá nota que um pobre “não reclama”, tem o que lhe ofertam, bom ou ruim, muitas das vezes péssimo, e agradece. Aliás, onde é que irá o pobre queixar? Essa nota musical também levanta questões pertinentes da nossa sociedade moçambicana, onde os pobres sentem-se abandonados, deixados à sua sorte para tantas injustiças que lhes acontecem no dia-a-dia. Não raro se ouve que a justiça (o sistema judicial) não está para os pobres, esses sem pais e mães. A ideia de sem pai e mãe reflecte perfeitamente o sentimento de abandono generalizado entre os pobres, principalmente numa colisão entre ricos e pobres.
Houve festa de marrabenta em Ntsindya. Os batuques, a bateria, as violas criavam ritmos dançantes, em que pessoas saíram das suas cadeiras e requebravam no festejo da música moçambicana. Reflectimos. Pensamos. Mesmo abandonados, tínhamos o sentimento de acolhimento. Além dos inconvenientes, como se diz por aí, foi a cena (agradou).