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Vovó Nely

Nely Nyaka; “Eu nasci em KaTembe, a 2 de Novembro de 1920, um Domingo, às 11 horas da manhã. A minha mãe chamava-se Jinita Libombo e o meu pai Jeremia Dick Nyaka. Os meus pais conheceram-se em KaTembe, onde ambos cresceram e frequentavam a mesma Igreja. Foi lá que eles se casaram, e tiveram os primeiros dois filhos: o meu irmão Daniel e eu. Tiveram ao todo sete filhos, quatro rapazes e três meninas.”

Começa assim “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, a nossa Vovó Nely. A Vovó Nely faz, esta sexta-feira, 98 anos. Mais não houvesse a distinguir, nesta longa e prodigiosa vida, este facto bastaria por si como motivo para a celebrarmos. Acontece que há muito para dizer sobre ela e há, até, motivos inéditos e dignos de exultação, como este livro. A Vovó Nely decidiu, aos 97 anos, fazer o registo da sua memória. Sou editor desta obra – declaro-o desde já e não temo que seja parcimonioso por isso. Mas antes disso, sou neto dela.

Edito livros há mais de 15 anos e este é um daqueles soberbos documentos que me passaram pelas mãos e que eu tive o privilégio de o transformar no objecto livro. Quando em finais de Julho fui à casa da Vovó Nely para tomar um chá e receber essa incumbência senti, nos ombros, o peso de uma irrecusável responsabilidade. Depois fui para casa e pus-me a lê-lo de imediato enquanto tratava de articular os diversos aspectos que compõem o complexo e fascinante labirinto da edição, entre nós.

 A Vovó Nely fala, de forma competente e impecável, a língua portuguesa. Mas é proficiente no ronga e foi nesta que ela ditou estas fabulosas memórias. O livro não perde fluidez, está enriquecido pela oralidade e transporta vocábulos de duas línguas – ronga e português – que se iluminam. Texto escorreito, memória prodigiosa, pessoas e acontecimentos, lugares e topónimos, cartografia de uma vida, de uma cidade, de uma época, de um tempo. O livro, que teve o concurso da sua filha, Gita Honwana Welch, na fixação do texto, é uma verdadeira relíquia.

Gita Honwana Welch, no prefácio, cita o livro do pai, Raul Bernardo Honwana, “Memórias”, como leit motiv deste. Na verdade, as duas obras dialogam, pese embora esta não se invista tanto a interpretar, através da biografia, os acontecimentos e os factos históricos e políticos, o que encontramos na obra precedente. Este livro é, di-lo a prefaciadora e bem, uma “cartografia.” Quem quiser saber como se vivia nos arredores da grande cidade, que era onde viviam os aborígenes – ou autóctones, ou indígenas, pode e deve socorrer-se dele. Isso por um lado. Por outro, esta descrição, em filigrana, das famílias, sobretudo de Lourenço Marques – ou mesmo da Catembe, Ressano Garcia – é extraordinária. A desmemória ou o desinteresse estratégico pela memória costumam relegar para um espaço obscuro nomes e percursos que, são, por assim dizer, os protagonistas do proto-nacionalismo. Muitos dos nomes anotados e tratados pela memória activa e esplêndida da Vovó Nely fazem, indubitavelmente, parte desse universo. Aqui se fala das origens e da importância desses nomes e dessas famílias no nosso percurso histórico. O pai da autora foi um dos fundadores, em 1920, do Congresso Nacional Africano, em Lourenço Marques, que mantinha contactos com o Congresso Nacional Africano (ANC), da África do Sul. Mas há muito mais.

Gita Honwana Welch: “Penso que terá sido a publicação do livro “Memórias”, do meu pai, Raul Bernardo Honwana, há mais de 30 anos, o que alimentou nela a vontade de também deixar, por escrito, o seu “legado” às novas gerações. Os meus pais assumiram como dever a transmissão do saber e das histórias que receberam das gerações que os antecederam. A importância que sempre deram à escola e ao ensino formal não diminuía a necessidade que sentiam de equipar, pelo menos os filhos, com outras formas de conhecimento, especialmente aquelas que nos deram consciência de quem somos e de onde viemos. O meu pai inclui no seu livro “Memórias”, publicado em 1985, vários episódios do seu percurso pessoal que nós já lhe tínhamos ouvido, vezes sem conta, nos serões de família, desde que éramos pequenos. Contudo, em “Memórias”, esses episódios têm forte conotação com o quadro político prevalecente, o que revela o profundo sentido de história que caracterizava o meu pai. A minha mãe vem agora partilhar neste livro a sua experiência de vida, usando como compasso social e moral o conhecimento do lugar onde nasceu, cresceu e viveu, a forma de ser e de estar (mahanyela), das pessoas e famílias com quem conviveu e, de maneira geral, o mundo dos subúrbios da grande cidade.”

Anoto-vos, capítulo a capítulo, do que trata verdadeiramente este Mahanyela: o primeiro capítulo versa as origens: KaTembe, a mãe Jinita e o pai Jeremia. Lourenço Marques, nos anos 20, para onde se muda aos 5 anos, a cidade e a periferia ocupam o segundo e terceiro capítulos. “Mahanyela,” a forma de viver, enformam o quarto capítulo. O quinto – que se refere à organização e aos rituais da vida – parece-me um dos mais facundos. Ou o sexto, a descrição do seu casamento com Raul Bernardo Honwana, o sétimo que se atém à Moamba, ao dia-a-dia da vila, às famílias, às relações familiares e sociais. As vidas nas terras do Sabié ocupam o oitavo capítulo. Os filhos – os oito filhos que teve – fazem o nono capítulo. Os tempos tenebrosos da acção da PIDE e a prisão do marido, a hostilidade que irão sentir na Moamba, o anúncio dos tempos sombrios, perfazem o décimo capítulo. No décimo primeiro, o regresso a Lourenço Marques – a casa de Xipamamnine, a prisão do filho Luís, o cerco da PIDE, o assassinato de presos políticos (as mortes sórdidas de Zedequias Manganhela ou de Ebenizário Guambe), a Vila Algarve, o papel de Adrião Rodrigues, Santa Rita, Pereira Leite, Rui Baltazar, Almeida Santos que defenderam, com coragem, generosidade e galhardia, José Craveirinha, Malangatana, Luís Bernardo Honwana, Rui Nogar, Daniel Magaia, Armando Pedro Muiuane, Abner e Abiatar Muthemba, entre outros. A autora revela um plano de assassinato do filho na prisão numa descrição assombrosa. Acresce a este capítulo, igualmente facundo, a viagem a Portugal, a mudança para a Matola. Este é um capítulo essencial da nossa história política. Seguem-se-lhe, no décimo segundo capítulo, os alvores da liberdade: o 7 de Setembro, o Governo de Transição, a viagem à Tanzânia, a convite de Samora Machel, os preparativos para a Independência. A revolução, Samora Machel, a nacionalização das casas de madeira e zinco, a acção cívica, sobretudo como juíza eleita, a operação produção. Não se coíbe de lhe apontar os erros: “Testemunhar a Independência Nacional foi uma coisa extraordinária, uma coisa única”, escreve. “Mas, no meio da euforia da Independência Nacional, houve um episódio que marcou muita gente: as nacionalizações dos prédios de rendimento. Acho que este episódio serviu para nos acordar para o facto de que, no nosso processo de construção do país, nem tudo seria fácil, haveria muitas dificuldades, muitos altos e baixos.” “A minha amiga, a vovó Teresa, mãe do Marcelino dos Santos, com quem sempre falávamos dessas coisas, dizia até pouco antes de morrer que a Independência era a melhor coisa que lhe tinha acontecido na vida, mas que nunca havia de perdoar à FRELIMO o ter-lhe tirado a casa que ela e o seu marido tinham construído com tanto sacrifício.” Ouvi o mesmo da minha avó Angelina até ela morrer aos 89 anos. A autora também é severa quanto à operação produção. Mas não vou insistir nesses temas, pois não são o esteio desta narrativa. A morte do marido, em 1994, ditando o fim de 54 anos de casamento, está na origem da mudança de casa. Sai da Sommerschield, para onde fora viver em 1975 e vai para um pequeno apartamento das Torres Vermelhas. Aqui ela se reinventa. O décimo quarto capítulo trata dessa ressurreição: a Pfuna, com Beatriz Garrido e outras activistas. O capítulo seguinte – décimo quinto – indaga o presente da cidade, preocupações de natureza cultural, a questão das línguas nacionais, aliás, o livro irá encerrar com um anexo importante neste domínio. O décimo sexto capítulo é uma espécie de epílogo: a vida aos 97 anos: “Vivo, hoje, no meu apartamento não muito longe das Torres Vermelhas, onde passei 23 anos da minha vida. Depois de viver em n`Hlanguene, no Ximphamanine, na Moamba, no Ximphamanine (outra vez), na Matola, na Sommerschield e nas Torres Vermelhas, sinto que este é um sítio tranquilo para a minha velhice porque, agora, sim, considero-me, de facto, velha”, assim começa este capítulo final, no qual relata a vida rodeada de filhos, netos e bisnetos e trisnetos, as viagens que a enriqueceram. “Na minha casa, vivo rodeada de retratos nas paredes e sobre os móveis. A cada minuto do dia, estes retratos recordam-me aspectos importantes e felizes destes noventa e oito anos.”

Esta “cartografia”, estabelecida pela “candura da observação” do interior, de como funcionam as famílias e a sociedade, mostra como evoluiu KaMpfumu, a antiga Lourenço Marques. Um dos capítulos que mais me empolgou, o quinto, trata da “organização da casa e os rituais da vida.” Volto a ele: o namoro (“Naquele tempo, os pais não escolhiam noivo para as meninas, mas havia controle sobre o namoro. As meninas começavam a namorar aos 16 ou 17 anos. Não havia ritos de iniciação ligados à puberdade, como havia noutros pontos do país.”); o casamento (“O cerimonial de casamento evoluiu muito. Quando eu era muito miúda, ainda me lembro dos convidados todos bem vestidos, caminhando para o local da cerimónia religiosa em grupo. Na altura não se andava de carro e as distâncias a percorrer eram, normalmente, longas. As meninas sofriam muito pois tinham que usar sapatos, coisa a que não estavam acostumadas no dia-a-dia, bem como espartilhos e soutiens, os quais eram só usados em tais ocasiões. Por isso, as meninas e as senhoras de idade levavam consigo cadeiras para se sentarem e descansarem, quando estivessem cansadas, ao longo do caminho”); a gravidez e o parto (“Antigamente, só se sabia que a mulher estava grávida quando a barriga já era bem visível, ou quando a criança nascia. A gravidez não se anunciava fora do ciclo familiar íntimo, e isto era assim porque em tempos idos, a situação de se ter um nado morto era, infelizmente, frequente, e havia a crença de que o anúncio da gravidez poderia “atrair azar.”; o falecimento (“De facto, antigamente, só a família chegada que, por exemplo, tivesse vindo de longe para o funeral, ficava e participava nas cerimónias dos oito dias após o enterro. O mesmo se passava com a missa de um mês, caso ela fosse feita, ou com as cerimónias dos 40 dias, em famílias islâmicas. Quanto aos vizinhos, o costume era passarem de manhã para saudar a família enlutada. Nessa altura, eram portadores de algo para ajudar a família, como chá, açúcar, ovos, ou mesmo algum dinheiro. Não ficavam lá para o almoço. Se, por acaso, chegassem à hora da refeição, traziam a sua própria comida para comer com a família, em sinal de solidariedade. E isto era só feito nos primeiros dias após o enterro. Penso que esta prática era mais digna, e fazia mais sentido. Na nossa cultura, a preocupação era chorar a morte do ente querido, com dignidade. Eu sei que, em outras culturas, há o hábito de se fazerem grandes velórios, com muita comida e bebida, que se considera uma celebração da vida do defunto. Se calhar o que se passa agora é, também, influenciado por esses costumes importados. Cada um é livre de fazer como entender, mas sou de opinião de que só deveríamos imitar aquilo que faz sentido, em termos de capacidade económica das famílias, e que demonstra respeito e compaixão pela perda de entes queridos. Uma festa não pode ser manifestação de pesar.”). A mudança estrutural, profundíssima, que se operou na sociedade moçambicana, motivada por factores endógenos e exógenos, produziu um contexto e circunstâncias que tornarão, para muitos leitores, sobretudo os mais jovens, espantosa esta experiência e este contacto com o passado.

 

A memória foi sempre o escopo da minha actuação. A memória, a herança, o património. Numa só palavra: a cultura. Vejo-a transversal a tudo. Politicamente relegada, dou-lhe a primazia e a relevância de principal estame para a sociedade. A cultura como essência da nossa experiência individual e colectiva. Como passado, como presente e como futuro. A cultura como educação, como cidadania. Desde muito jovem, quando iniciei a minha vida de publicista, queria fazer o registo do passado e indagava os escritores que tinham fundado a nossa literatura sobre o passado e narrava-lhes o percurso. “Os Habitantes da Memória” investe-se dessa intenção. A intenção da memória, a intenção do património, a intenção da herança. Queria, sobretudo, perceber aquilo que a história oficial ocultava ou não enunciava. Este jubiloso livro – “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, socorre-me nessa demanda.

A Vovó Nely Nyaka tem uma soberba trajectória, fez um longo percurso cujo activismo social, iniciado na Igreja Metodista Wesleyana, prosseguido no Instituto Negrófilo, que seria depois Centro Associativo dos Negros da Colónia de Moçambique, e, mais recentemente, prosseguiu na associação Pfuna, dedicada a mitigar a pobreza e a miséria de crianças órfãs. Aqui ela faz o testemunho e o testamento das profundas transformações que se operaram ao longo destes quase 100 anos da sua existência. Fá-lo com lucidez espantosa, humor e um ineditismo que faz deste livro, indubitavelmente, um referencial da moçambicanidade, um acervo imprescindível para o conhecimento, investigação e estudos futuros.

Sinto uma enorme gratitude por ter lido este livro e, sobretudo, por ter contribuído, ainda que modestamente, para que ele tivesse luz. Estou penhorado por isso. Quando, em finais de Julho, fui tomar chá à casa da Vovó Nely, na Ponta Vermelha, de onde ela avista a Catembe, onde nasceu há quase um século, e de onde ela faz este instigante relato, que não é um epílogo de uma vida, mas é um vigoroso hino ao futuro, eu estava avisado de que levaria para casa o projecto de um belíssimo livro. A despeito, sempre que o li, coisa que pratiquei inúmeras vezes, por dever de ofício, não deixei de ficar verdadeiramente assombrado. Termino, citando, as suas últimas palavras:

Nely Nyaka: “Olhando pela janela, a partir da minha sala de visitas, vejo KaTembe, do outro lado da baía. O sítio onde nasci. O sítio onde tudo começou.” Assim termina este notável “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, testemunho e testamento majestoso, sumptuoso, soberbo.

Post Scriptum: Aqui, nestas páginas, ao longo de um ano, intentei a celebração da memória. Regozijo-me pelo facto de terminar este excurso com um livro e uma personagem que me permitem exaltar a nossa esplendorosa – muitas vezes enjeitada – memória individual e colectiva. Assim encerro a redacção destes textos e esta gratificante colaboração.

 

 

 

 

 

 

 

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