Na obra a Saga d ??'Ouro, a voz do narrador omnisciente nos dá a conhecer a história do reinado de Gatsi rucere à decadência do império Mwenemutapa. Portando, do universo diegético apresentado, chamou-nos mais atenção a presença de realidades surpreendentes e estranhas, realidades legítimas para demonstrar elementos que concorrem para construção de fenómenos e/ ou comportamentos insólitos. Desse modo, esperamos estimular outros estudos na obra, bem como, contribuir na compreensão do insólito na obra em causa. No presente estudo, argumentamos que o absurdo, as consequências (efeito) da transgressão ao código de conduta do meio natural que os personagens estão inseridos, como punição ou indicação de um acontecimento, concorrem para a construção do insólito.
Desta feita, o insólito ficcional é uma categoria comum a vários géneros literários. O conceito abarca uma série de modalidades representativas, como o maravilhoso, o fantástico, o estranho, o realismo mágico, o realismo maravilhoso, o realismo animista, o absurdo, sobrenatural e outros subgéneros híbridos em que a invulgaridade é marca distintiva. (Petrov: 2016).
Se para Petrov (2016), o insólito é uma categoria comum a vários géneros literários, observamos em Matusse (1998), os traços que constroem as experiências insólitas, estas, que são fenómenos e comportamentos que se colocam no limiar do fantástico. Pois, os fenómenos ultrapassam limites do que é considerado normal mas não são sobrenaturais, contudo, desproporcionais e invulgares. Para este autor, o retrato da guerra nos seus aspectos absurdos; a atmosfera trágica, apocalíptica, em que impera a ideia da decadência e destruição, representada pela morte e loucura; a marcação de destinos trágicos, alguns fenómenos com cariz cómico; o uso da hipérbole para retratar realidades sórdidas e a procura do equilíbrio perdido concorrem para a construção do fenómeno e comportamentos insólitos.
Os autores García 2011, Ferreira e Stoelehner S/d, Furtado 1980 citado por Carneiro e Ribeiro 2013 e Petrov 2013 sustentam que o insólito coloca o leitor a questionar o real diante do sucedido, uma vez que aparecem no meio quotidiano, manifestações meta-empíricas cuja razão da lógica vigente, não encontra explicação.
Portanto, os fenómenos insólitos são invulgares e meta-empíricas, podendo estas, desafiar a compressão e aceitação no leitor implícito ou não, este, rejeita ou aceita os fenómenos tendo em conta a realidade que o envolve. A propósito da realidade que envolve o leitor, Matusse (1998:175) considera que o insólito deve ser lido dentro de um contexto histórico marcado por vivências em que se consolidam elementos culturais. No estudo em causa, é preciso entender as sociedades africanas na perspectiva do contexto colonial, as atitudes perante o facto de colonialismo, por este, desencadear fenómenos de assimilação, rejeição e de tentativa de conciliação de valores, conduzindo a desequilíbrios de diferentes sistemas de valores.
O insólito é um assunto correlato ao fantástico, sobre este, Todorov (1980) explica o que metaforicamente designa de coração do fantástico, ou seja, a condição fundamental para a sua ocorrência.
Em um mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Que percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então esta realidade esta regida por leis que desconhecemos. […] a possibilidade de vacilar entre ambas cria o fantástico. (Todorov, 1980: 15-16)
Aqui, a ideia de vacilar diante do fenómeno é a condição primeira para que ocorra o fantástico. O leitor implícito ou não, carece de explicação sobre o insólito, quando confronta o sucedido com as leis do mundo que lhe são familiar.
Nessa perspectiva, concorda Matusse (1998) sobre a condição sine qua non para a sobrevivência da dúvida e do fantástico, acrescentando que este caracteriza-se nas obras de Mia Couto e Ungulani Ba Ka khosa, pela coexistência da ordem natural e sobrenatural; pela sobreposição do sentido literal e do sentido alegórico; pela tentativa da restauração da ordem e aparece também, o insólito, representado pelo fantástico, como punição de uma transgressão ao código de conduta e como sinal de um acontecimento. Em contrapartida, ilustra a inadequação da concepção de Todorov (1980), ao conceber o fantástico como género. Sendo preferível para Matusse (1998) a definição abrangente, o fantástico como toda ocorrência de fenómenos que invertem a lógica natural, tendo como base a concepção padrão dos homens.
Por sua vez García (2011), demonstra numa análise comparativa dos seguintes textos: «Elisa» de Murilo Rubiao, «Do Deus memória e notícia» de Mário de Carvalho e «O não desaparecimento de Maria sobrinha de Mia Couto» a subversão da personagem, como estratégia de construção narrativa do fantástico, visto que as acções desenvolvidas ou sofridas pela personagem, ligadas a sua condição física e psicológica é que determinam a fanstasticidade.
Diferente da perspectiva de Garcia (2011), Carneiro e Ribeiro (2013), tende como corpos o conto o curioso caso de Benjamin Button de F. S, Fitzgerald, a adaptação para a narrativa gráfica e o filme: a transposição intersemiótica, ressalta o absurdo associado ao cómico como elementos que concorrem para causar no leitor e espectador a dúvida, portanto, o elemento desestabilizador do real.
Portanto, ao lermos a Saga d ??'Ouro de Aurélio Furdela, compreendemos que o absurdo associado ao cómico, assim como não, a punição e sinal de um acontecimento relativamente a transgressão das normas de conduta dos personagens constroem o insólito.
O absurdo
De acordo com Teixeira (1987: 77) citado por Noa (1998), o absurdo caracteriza-se «ostentar leveza no tratamento de matéria grave, em inverter a ordem natural, histórica ou esperada das coisas. […], Põe tudo de cabeça virada».
Pretendemos com a acepção acima, demonstrar que dadas personagens em a Saga d ??’Ouro tratam algumas situações graves com leveza, invertendo a ordem esperada no que diz respeito a sua reacção diante do grave. Trata-se de um humorismo em que «a morte se cruza com o risível» Noa (1998:99-100), tal como podemos ler o absurdo associado ao cómico, quando o soldado Francisco Barreto disposto a vingar a morte do padre Gonçalo da Silveira, embrenha-se no Mwenemutapa com 650 soldados contra os guerreiros de Negomo Mupunzaguto. Francisco Barreto esperava uma batalha encarniçada, ou seja, cruel e sanguinária. Contudo, após a dança de uma idosa por parte dos guerreiros de Mutapa, os soldados fizeram comentários, nos quais, embora assumam estar numa guerra, chamem-se de princesa; chamam os túmulos onde os cadáveres dos soldados foram inteirados de berços, o fato destes chamaram-se bebés em plena guerra, suscitou nos soldados gargalhadas até a morte. Veja-se o seguinte fragmento: «Os demais soldados, apesar de esfaimados e da dor que sentiam no corpo, acometidos de vómitos e diarreias, retomaram a marcha. A cada passo, haviam de rir-se às gargalhadas, até a morte» (Furdela, 2019: 87).
Portanto, o absurdo concorre para construir o insólito, na medida em que a irrupção do real, é feita pelos comportamentos que os personagens não encontram explicação na lógica racional, do comportamento esquisito, Francisco Barreto reage da seguinte maneira, diz-nos a voz do narrador: «embora nada disposto a admitir o que as circunstâncias acusavam» (Furdela, 2019:83), para sustentar que lhe era difícil admitir a existência do meta-empírico, coexistindo assim, o natural e sobrenatural. Os nomes (princesa, bebés e berços) que os soldados se atribuem durante a suposta guerra, diante da morte, provam a leveza com que tratam a matéria grave.
Nota-se ainda o absurdo concorrendo para construir o insólito em a Saga d ??'Ouro associado a uma atmosfera trágica, quando Gatsirucere ordenou a dezenas de ínfices para matar todo aquele que antes da sua entronização dormiu com sua primeira esposa. Para exemplificar podemos ler o seguinte fragmento textual:
Na noite das lanças longas, como ficou conhecida a madrugada em que Gatsirucere ordenou a dezenas de ínfices para se embrenharem nas trevas e verter sangue de todo aquele que, antes da sua entronização, tivesse dividido momentos de sexo e prazer com Dakarai, sua irmã, mulher escolhida pelos deuses para Mazarira, a primeira das três principais esposas do soberano de Mwenemutapa. (Furdela, 2019:30-31)
Como podemos observar, o personagem principal ordenou aos guardas pessoais para matar quem tenha dormido com a primeira esposa antes da sua entronização, atitude, que pela sua invulgaridade, orientada pela loucura, nas consideradas normas de Mutapa, era inconcebível, aprovar pela «aparição de centenas de corpos estranhos a boiarem nas águas do Musengesi, rejeitados pela estirpe natural de crocodilos» (Furdela, 2019:38) domesticados para patrulhar e caçar animais como alimento para os espíritos Mpondoro, mostrando assim, que o meio não aceita a atitude de Gatsirucere. Sendo este comportamento meta-empírico concorre para justificar a construção do insólito a partir do absurdo, ao permitir que Gatsirucere trate com leveza a matéria de matar homens só porque no passado, antes de estar no trono, dividiram momentos de prazer e sexo com sua primeira esposa, Dakarai.
O sinal de um acontecimento (transgressão ao código de conduta)
Pretendemos aqui, demonstrar que o insólito aparece no universo da diegese para indicar e/ ou acusar dada personagem por transgredir o código de conduta vigente no meio em que se encontra inserido. Deste modo, veja-se o seguinte fragmento: «Os ritos para trazê-las de volta não produziram o efeito desejado, senão o revés com as águas a galgarem as margens do rio, para inundarem palhotas e machambas dos camponeses […] os líquidos vazantes eram lágrimas dos guerreiros varridos na Noite das lanças longas a desrespeitar as margens» (Furdela, 2019:46)
De facto o «sobrenatural está quase sempre ligado a um acontecimento particular, que interfere no equilíbrio da vida da sociedade ou de um indivíduo» (Matusse: 1998:172). Compreende-se dada ideia, aquando da abolição da realização dos ritos de busca das esposas de Gatsirucere, cujo efeito fora inverso do desejado. Pois, ao invés se encontrar as esposas, as águas do Rio Musengesi, por causa da atitude de Gatsirucere de mandar matar todos que antes da sua entronização dividiram momentos de sexo e prazer com a Mazarira, galgaram inundando palhotas e machambas, interferindo no equilíbrio da vida da comunidade, acentuado ao facto de tais líquidos serem lágrimas dos guerreiros, que portanto, indicam e/ou acusam Gatsirucere como transgressor do código de conduta do meio, indicando, ocorre o insólito.
Essa perspectiva, nota-se ainda quando Personagens Bengo e Mudzingaze entram na mata à busca de raízes para produzir dôro-re-simba a mando de Gatsirucere. Todavia envolvem-se numa luta, Mudzingazi viria a perder a vida e Bengo prosseguira com a viagem de modo a chegar ao reino de Mutapa, contudo já distante, admirou o seguinte: «pôde ver o fio de sangue de Mudzingaze a descrever curvas, passando por debaixo de folhas secas, ou a contornar escolhas de ramos secos, tombados sobre as areias da floresta» (Furdela, 2019:111)
Depreende-se que o insólito aparece para indicar e/ ou acusar personagem Bengo por ter matado Mudzingaze, transgredindo o código de conduta do meio que o envolve.
Efeito de punição à transgressão do código de conduta
Mostrar-se-á aqui, que personagens sofrem acções advindas do seu próprio comportamento de transgressão ao código de conduta, do meio natural onde se encontram inseridos, com efeito, os fenómenos em forma de punição, que recaem sobre estes, são insólitos. Recuperemos a atitude de Gatsirucere ao mandar matar homens só porque no passado, antes de estar no trono, dividiram momentos de prazer e sexo com sua primeira esposa, Dakarai, dado que no dia seguinte, além centenas de corpos estranhos a boiarem nas águas Rio Musengesi, os corvos vindos do nascente formaram gigantescas nuvens provocando escuridão que prolongou-se por meio-dia, «tempo suficiente para desaparição do Tichaona, pai de Mudzingaze» (Furdela, 2019:38). Portanto, além de acreditar-se que dada escuridão enturvaria o reinado de Gatsirucere, Rumbidzai insistiria que o «cheiro da podridão que infestava os ares do Mwenemutapa duraria até ao fio do reinado de Gatsirucere» (Furdela, 2019:39).
Como que a confirmar-se os presságios por conta da transgressão de conduta por parte do Gatsirucere, ora na busca do equilibro ao reino, sucede consequentemente o seguinte: «Bengo começou a envelhecer, assim, a olhos vistos, enquanto se debatia como quem lutava com uma força oculta no vazio do espaço, de onde sobre o mutante corpo de Bengo havia uma serra que lembrava uma enorme cabeça de velho». (Furdela, 2019:113).
O envelhecimento repentino de Bengo irrompe a ordem natural da lógica dos factos do meio em que o mesmo se encontra inserido, e associado ao facto deste envelhecimento impedir que Gatsirucere reequilibre o reino serve como forma de puni-lo com a decadência do mesmo. De facto, a proliferação de fenómenos meta-empíricos como efeito de punição, no meio natural constrói o insólito, interferindo na vida do indivíduo e da comunidade. Não é apenas esse fenómeno insólito que se notara após a transgressão de conduta de Gatsirucere, podemos ler «Para o espanto das anciãs que assistiam ao parto, do ventre de Manyara, centenas de crias de cabra saíram para povoar o monte cabeça de velho» (Furdela, 2019:114).
Diante do fenómeno, as próprias anciãs ficam espantadas, perplexas. Pois, no mundo em que se encontram não há explicações para o nascimento de centenas de crias de cabra, da barriga de um pessoa, mas sim, de uma cabra, logo, o efeito da punição pela transgressão do código de conduta de Gatsirucere contribuindo também para a decadência do império, constrói o insólito.
Portanto, em a Saga d ??'Ouro de Aurélio Furdela o absurdo, o efeito da punição e o sinal de um acontecimento (de uma transgressão ao código de conduta) concorrem para construir o fenómeno insólito.
Bibliografia
Activa
Furdela, Aurélio. (2019). Saga d ??'Ouro. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, S.A.
Passiva
Carneiro, Raphael. M.O e Ribeiro, Ivan. (2013). Fantástico ou Realismo Magico? Um estudo sobre o insólito ficcional em o curioso caso de Benjamin Button. In Anais do Silel. Vol. 3, núm 1. Uberlandia: EDUFU;
García, Flavio.(2011). Fantástico: a manifestação do insólito ficcional entre modo discursivo e género literário – literaturas comparadas de língua portuguesa em diálogo com as tradições teóricas, crítica e ficcional. Brasil: XII Congresso Internacional da Abralic, Centros- ética, estética;
Matusse, Gilberto. (1998). «O Fantástico e as experiencias insólitas». In A construção da imagem de Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Maputo: Livraria universitária, UEM. Pp 175-182;
Noa, Francisco. (1998). «O Absurdo em Machado de Assis e Mia Couto». in A escrita Infinita. Maputo: Livraria Universitária, UEM. Pp. 97-108;
Petrov, Peter. (2016). Representações do insólito na ficção literária: o fantástico, o realismo mágico e o realismo maravilhoso. In revista Nonada: Letras em Revista, vol. 2, núm. 27. Pp 95-106;
Todorov, tzvetan. (1980), Introdução à literatura Fantástica. (versão Brasileira à partir do espanhol: Digital Source).
*Leituras anteriores do mesmo autor, “A Dimensão Tragicómica em De Medo Morreu o Susto de Aurélio Furdela”, ensaio de culminação do Curso de Licenciatura em Literatura Moçambicana, pela Universidade Eduardo Mondlane.
Segundo Furdela (2019:26), trata-se de espíritos ancestrais de elevado prestígio.