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“VISÃO”: quando a bondade é conversa para boi dormir

A bondade é o mais precioso de todos os tesouros
Máximo Gorki

Em Albergue nocturno, Máximo Gorki manifesta um raciocínio: “a bondade é o mais precioso de todos os tesouros”. De facto, o autor russo tem muita razão, quase que na mesma proporção que João Paulo Borges Coelho, quando, em Água, salienta uma verdade: “deste nosso inferno, nos tempos que correm, migram quase todas as boas intenções”. Como que atento no paradoxo imposto pelas duas frases, nos dias que correm (por um lado, a bondade é nobre, no entanto, por outro, não investimos nela), Manuel Mutimucuio escreve VISÃO, uma novela bem ajustada à realidade moçambicana (presente) no que concerne a esse banal instinto de sobrevivência, o qual consiste em virar às costas à dignidade em troca de dólares.  

Tendo como protagonista Enoque, fundador e Director-Executivo da VISÃO, uma organização não-governamental, a narrativa de Mutimucuio concentra-se num jogo de influências que resumem as motivações por detrás de certas boas intenções, quer de entidades nacionais quer das quem vem do estrangeiro aparentemente para prestar um serviço social. Conversa para boi dormir. Este é um livro que retrata o processo de crescimento de uma instituição concebida para facturar em nome de uma filantropia hipócrita e ambiciosa. Nesse sentido, Manuel Mutimucuio investe com êxito numa estória muito bem contada, actual, leve, curta e sarcástica, como se a escrita fosse a única e verdadeira possibilidade de despir a máscara das quizumbas armadas em benevolentes. Escrevendo sobre a realidade que capta, mais do que reproduzir, o autor exprime um sentimento que, sendo seu, também é de um punhado de gente honesta, incapaz de perceber porque o peão de um tabuleiro de xadrez, não podendo ser bispo, num ápice, almeje tanto ser rei às custas dos outros.

VISÃO é sem dúvidas um livro de intervenção social que mostra como a ganância pode conduzir à degeneração de uma família que se revê na honestidade. Simultaneamente, esta obra de estreia de Manuel Mutimucuio brinca com a verdade de a bondade ter, muitas vezes, a ingratidão como paga, porque o oportunismo torna-se mais sedutor que qualquer sensatez. Fatiminha, cunhada de Enoque, é um exemplo disso, quando se aproveita a torto da confiança cedida pela irmã, Lurdes, num negócio na reprografia que beneficiava a ambas.

Esta estória que tem como centro a Beira, amplia o espaço da ficção moçambicana, abrindo uma linha temática nova, longe das repetições do passado. VISÃO é uma novela feita para o leitor actual, que prefere o cimento à palhota; é uma narrativa que não se esgota na ficcionalidade, de forma alguma, a ficção é apenas um subterfúgio para convidar o leitor a seguir um caminho crítico no que concerne à relação ONG e fomentadores de políticas sociais. Se Enoque representa a parte moçambicana, com toda manha que a estória lhe confere, Agnes é a personificação dos que, partindo do estrangeiro, vêm a Moçambique para alcançar uma notoriedade por um trabalho mal feito. Como é possível que ao invés de uma elevada soma de dinheiro permitir criação de programas para prevenir a propagação do HIV, em Sofala, seja convertida em tinta usada para pintar edifícios e estradas?  

Título: VISÃO
Autor: Manuel Mutimucuio
Editora: Fundza
Classificação: 15,5

 
 

 

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