O Comunicado de Imprensa da CNE, tornado público no dia 21 do corrente, contém deliberações relativas a passos cruciais do processo eleitoral em curso que se prendem com os direitos dos candidatos, partidos e grupos de cidadãos, que mereceram reacções imediatas dos vários quadrantes políticos, e sobretudo jurídicos. É nesta última perspectiva que pretendo situar o meu breve comentário sobre alguns aspectos em que considero necessário todo o rigor de interpretação das normas pertinentes, sob pena de se ver prejudicada, à partida, a liberdade, justiça e transparência, que devem caracterizar os processos eleitorais.
A controvérsia que se está levantando sobre alguns desses aspectos evidencia o sentido crítico e de vigilância com que se acompanha o processo. Esse sentido crítico e de vigilância faz parte da fiscalização do processo eleitoral, a qual não é restrita ou exclusiva dos candidatos, dos partidos ou dos grupos de cidadãos, pois é interesse de toda a sociedade, podendo constituir uma inestimável contribuição para que se corrijam ou se evitem erros e violações.
Assim,
No n°1 do Comunicado notifica-se um certo número de cidadãos subscritores da lista da AJUDEM para corrigir algumas irregularidades, atinentes aos requerimentos de desistência que submeteram à CNE, em conformidade com o n°2 do artigo 30, da Lei n°7/2018, de 3 de Agosto, que permite «…a desistência de qualquer candidato constante da lista, através de declaração…assinada e reconhecida por notário…», declaração esta que deve ser feita «…até dez dias depois da publicação das listas definitivas…», conforme o n°1 do mesmo artigo. Depois disso a CNE, nos termos do n°3 desse dispositivo, «…manda imediatamente afixar a deliberação respectiva sobre a matéria…», «sobre a matéria» entende-se sobre a desistência do candidato.
O n°3 do artigo 30, ao tratar desta matéria, pára na publicação da deliberação da CNE sobre a desistência, sem que complete, pelo menos de forma explícita, o regime que regula a situação criada. Porque se atentarmos nos números seguintes, o n°4 e o n°5, que tratam da desistência do candidato a cabeça de lista, aí já se prevê expressamente o regime da sua substituição. A qual se faz pelo segundo da lista ou então reorganizando a lista.
Ora, assim como os partidos, coligações de partidos ou grupos de cidadãos, têm a prerrogativa de substituir os cabeças de lista por virtude da sua desistência, também lhes assiste o mesmo direito em relação aos demais membros da lista. Dando lugar à publicação de nova lista em relação aos candidatos desistentes, nos termos do n°2 do artigo 29 desta lei.
Esta é uma prerrogativa inquestionável dos partidos, coligações de partidos ou grupos de cidadãos. Porque a não ser assim estar-se-ia a introduzir um elemento de extrema insegurança, eventualmente de manipulação e de má-fé, que a lei eleitoral não pode propiciar ou caucionar.
Admitir isso seria o mesmo que legitimar todo o tipo de chicana eleitoral, antes mesmo dos próprios pleitos, com o presumível fim de se eliminar concorrentes, fora e à margem das urnas.
Os partidos, coligações ou grupos de cidadãos, não podem ficar à mercê de factores dessa natureza. Uma vez que eles cumpram com as exigências da lei, dentro dos prazos por ela estabelecidos, não podem ser colocados como inadimplentes pela deficiente interpretação da lei, instrumentalizada para dar cobertura a permissividade, caprichos e má-fé, de alguns componentes das suas listas. Senão mesmo á prática, tornada corrente, de «compra de consciências».
Portanto, no caso vertente, a CNE, ao mesmo tempo que torna pública a deliberação sobre as desistências, nos termos do n°3 do artigo 30, terá que dar um prazo não inferior ao previsto no n°5 do mesmo dispositivo, para que o grupo de cidadãos em causa proceda á substituição dos desistentes da respectiva lista.
E, naturalmente tem que haver um limite a partir do qual nem os partidos, coligações ou grupos de cidadãos, nem os integrantes das listas, podem provocar alterações nestas. Para a moral, segurança e estabilidade do processo eleitoral.
Quanto ao artigo 13 da Lei n°7/2018, de 3 de Agosto
A controvérsia sobre a interpretação do artigo 13 tem girado à volta da questão da retroactividade ou irretroactividade da nova lei que veio expressamente revogar a Lei n°7/2013, de 22 de Fevereiro. Não é essa a questão sobre a qual me vou debruçar, mas sobre o n°2 do artigo 155 (Incompatibilidades) da Lei n°7/2007, de 26 de Fevereiro, sobre a eleição do Presidente da República e a eleição dos deputados da Assembleia da República.
Esta norma estabelece, entre outros, o seguinte:
«O Mandato de deputado é incompatível com a função de:
1.………
f) titular de órgãos autárquicos
2. As entidades referidas no número anterior que sejam eleitos deputados e pretendam manter-se naquela função, devem ceder o mandato de deputado nos termos previstos pelo artigo 182 da presente Lei.»
Portanto temos que, por um lado, a Lei n° 7/2018, de 3 de Agosto, Lei da eleição dos membros dos órgãos autárquicos, não impede os titulares de órgãos autárquicos de se candidatarem para a Assembleia da República, e, por outro, temos que é a citada Lei n°7/2007, de 26 de Fevereiro, que vem estabelecer a incompatibilidade entre o mandato da AR e o mandato nos órgãos autárquicos. E estabelece-a de uma forma que não podia ser mais clara, no sentido de que, os titulares de órgãos autárquicos, que forem eleitos deputados da AR, terão que renunciar ao mandato da AR se porventura quiserem permanecer titulares daqueles órgãos. O que significa que se tomarem assento na AR não precisam de fazer mais nada porque perdem automaticamente o mandato nos órgãos autárquicos por efeito dessa tomada de assentos na AR.
Se acaso estes titulares, por via de algum equívoco de interpretação da Lei, submeteram renúncias de mandato nos órgãos autárquicos, sem que isso seja necessário ou exigido por lei, tais renúncias são irrelevantes, porque eles perdem os mandatos por força da lei e não por força das suas renúncias juridicamente irrelevantes.
Por isso não pode a CNE vir agora retirar efeitos jurídicos inexistentes de irrelevantes renúncias.
Na verdade essas renúncias só poderiam relevar se eles não tivessem sido eleitos para a AR. Só e apenas nessa hipótese.
É preciso entender que não se está perante normas isoladas e que possam ser consideradas sem qualquer relação uma com a outra. Estas normas integram o sistema eleitoral, desde as autarquias, às Províncias e aos Órgãos de Soberania. Nesta perspectiva sistémica as normas não se atropelam nem se sobrepõem, mas articulam-se harmoniosamente e em coerência com os objectivos e com o funcionamento integrado do sistema.
Assim, cada norma tem o seu objecto, e tem o seu âmbito de aplicação. A norma que comina as renúncias com a penalização de inelegibilidade, aplica-se àquelas situações em que os membros dos órgãos autárquicos abandonam os respectivos mandatos sem qualquer justificação legal, e «vão à sua vida». Já a norma sobre incompatibilidades aplica-se a outras situações, quais sejam, as daqueles que prosseguem a sua carreira política em Assembleias de nível superior sem interrupção de actividade política. O tratamento que é dado a essas situações nunca poderia ter um carácter sancionatório mas apenas de proibição de acumulação de funções ou de cargos, como a lei justamente fez. Portanto, numa interpretação rigorosa das leis em causa, cabe ao intérprete fazer esta separação de águas, para não criar ele, o intérprete, a confusão que não existe.
No que estou em concordância com a linha de interpretação expendida pelo DR. Teodoro Waty, e sobretudo também com o seu veemente chamamento à ética e moralidade, que se presumem nas leis e que devem prevalecer na interpretação e aplicação das mesmas.
A posição da CNE quanto à candidatura de Silvério Ronguane
A candidatura de Silvério Ronguane, pelo que sei, encontra-se na mesma situação da candidatura de Venâncio Mondlane. Mas a CNE não teria tomado nenhuma posição em relação à mesma alegadamente porque não recebeu nenhuma reclamação a respeito.
Ora isto me parece de um absurdo inadmissível pelas razões que passo a aduzir.
A Constituição da República estabelece, no n°3 do artigo 135, que «A supervisão do recenseamento e dos actos eleitorais cabe à Comissão Nacional de Eleições, órgão independente e imparcial…»
Por seu lado,a Lei n°8/2007, de 26 de Fevereiro, Lei da CNE, e que regulamenta a definição constitucional, vem determinar, no n°2 do seu artigo 2, que «entende-se por supervisão a função de, orientar, dirigir, superintender e fiscalizar os actos do processo eleitoral».
No artigo 7 (Competências), desta lei, de entre as competências atribuídas à CNE, estabelece no n°1, alínea b), a de «assegurar a igualdade de tratamento dos cidadãos em todos os actos do processo eleitoral», na alínea c), a de «assegurar a igualdade de oportunidade e de tratamento dos partidos políticos e coligações de partidos ou grupos de cidadãos eleitores proponentes em todos os actos do processo eleitoral», e na alínea f) a de «receber e apreciar a regularidade das candidaturas às eleições legislativas e autárquicas».
Os dispositivos aqui transcritos não requerem nenhum particular esforço de interpretação para se constatar que a CNE, ao abster-se de conhecer da candidatura de Silvério Ronguane, com fundamento em não ter recebido nenhuma reclamação, violou a Constituição e a lei.
Violou a Constituição porque não assumiu o seu múnus de supervisão, tal como estabelecido no n°3 do artigo 135.
Absteve-se de dirigir e de fiscalizar a conformação com a lei da candidatura de Silvério Ronguane, no que era seu dever de ofício.
Ao proceder desse modo tratou de forma discriminatória e prejudicial a candidatura de Venâncio Mondlane e tratou com favoritismo a de Silvério Ronguane.
Em duas situações rigorosamente idênticas tratou de forma desigual o Partido RENAMO e o MDM, acabando por, na prática, utilizar «dois pesos e duas medidas».
Recusou-se a apreciar a regularidade da candidatura de Silvério Ronguane, no que era seu dever de ofício como já referi.
Salta á evidência a insustentabilidade da actuação da CNE num caso, e da sua omissão no outro.
Em conclusão, é minha convicção que estes problemas, que desde já perigam a liberdade, justeza e transparência do corrente processo eleitoral, poderão encontrar o devido remédio e correcção no Conselho Constitucional como instância última de recurso.