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O ‘casamento’ de Alexandre Dunduro

O casamento é uma parceria e não uma democracia.
Nicholas Sparks.

Muitas vezes, a literatura infanto-juvenil moçambicana explora universos campesinos. Como se observa em O casamento misterioso de Mwidja, o campo e as suas circunstâncias são o motor da narrativa cujo alicerce é a tradição oral – aprofundo esta constatação num artigo a publicar brevemente. Assim, ao invés de prédios, congestionamentos de viaturas e movimentos acelerados, neste caso, o livro de Alexandre Dunduro implora uma história pausada, farta em lições cristalinas.

Mwidja, logo se vê, é uma rapariga que cresce numa família humilde e conservadora. Logo, o que a norteia são valores que a engrandecem o sentido de fraternidade, pelo menos enquanto as religiões do coração estão livres de delicadezas estranhas, como diria Émile Zola. Quando a menina torna-se mulher encantadora, em contrapartida, inicia um processo de resistência em relação à educação proporcionada pelos pais. Por isso, ao invés de se casar com um candidato da sua aldeia, conforme a tradição, a presunção alimentada pela beleza cega-a e aí é introduzido um problema a comprometer a paz inicial. “Eu quero casar-me com alguém que venha de longe, de um povoado longínquo. Aqui em Chimbitucula não vejo ninguém que me mereça pois não são bons caçadores nem bons pescadores” (p. 5).

A afirmação torna Mwidja uma personagem vulgar e um exemplo de desrespeito à decência. E esse confronto retira-a protecção familiar, comunitária e, portanto, espiritual. Atentos à vulnerabilidade consequente, rapidamente, os vilões do povoado de Nditoda aproveitam-se do intervalo de lucidez da protagonista para a propor um casamento afinal misterioso. O episódio faz do conto de Alexandre Dunduro um desempenho cheio de intencionalidade. Tomando Mwidja como modelo, as acções do universo diegético conspiram para que a escolha da personagem resulte em consequência perniciosa. Não obstante, por julgar os homens em função da sua bravura ou da sua origem, Mwidja perde o contacto com o seu chão e com isso o discernimento. Então, como se pretendesse corrigir comportamentos, o discurso do narrador esmera-se em esclarecer que as pessoas valem pelo que são e pelas relações que mantém com a família. Para esta posição vingar, a ovelha negra de Chimbitucula é conduzida à gruta das hienas, onde paira o pavor, a incerteza e a desumanidade.

Claro está, O casamento misterioso de Mwidja move relações de interdependência na estruturação de uma sociedade pacífica, daí o enredo iluminar zonas de perigo que se podem expandir se os integrantes de uma pequena aldeia resolverem fazer da sua vida um exílio, isto é, à margem dos interesses colectivos. Neste e em vários outros aspectos, o texto de Alexandre Dunduro institui uma relação intertextual com o conto Leona, a filha do silêncio, de Marcelo Panguana. Em ambos os casos, duas jovens personagens reivindicam o direito de escolher o noivo, aparentemente, por encontrarem na felicidade algo instantâneo. No primeiro caso, a escolha é decepcionante. No segundo, o tempo dá razão à Leona. À parte essa diferença, as duas histórias colocam a rapariga ou a mulher, por analogia, no centro do seu próprio destino. Mwidja e Leona são sujeitos activos da oração e ninguém as demove mesmo parecendo erradas, o que dilata perspectivas cruciais ao debate sobre sincero sobre a mulher moçambicana por educar.

Ora, bem diferente de Leona, ao activar o seu instinto perverso, Mwidja faz-se ponte entre o bem e o mal. Nessa aproximação, entretanto, não se adivinha nada de positivo. Pelo contrário, a arrogância da protagonista atrai a Chimbitucula os que, de outro modo, nunca colocariam vidas em risco. Há em tudo um perigo à espreita, logo o conto de Dunduro tanto pode ser usado na educação das crianças quanto na dos que se deixam iludir pelas aparências.

Num outro ângulo, ler a história de Mwidja pode motivar uma certa discussão sobre como, em determinadas circunstâncias, as populações humildes colocam-se em xeque ao abrirem portas do seu território a desconhecidos estrangeiros. Mbitisse, noivo de Mwidja, é esse estrangeiro disfarçado, com intenções estranhas, que chega e apropria-se do que a aldeia de Chimbitucula tem de melhor. Obviamente, isso não teria acontecido sem a colaboração ingénua de Mwidja. Esse tipo de episódio não se passa apenas na ficção. Aliás, nesse sentido, a literatura (e a escrita de Dunduro, em particular) cumpre essa tarefa de despertar leituras sobre esta actualidade confusa que Moçambique enfrenta.

Título: O casamento misterioso de Mwidja
Autor: Alexandre Dunduro
Editora: Escola Portuguesa
Classificação: 13

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