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Kalungano, até sempre!

Conheci e convivi com o poeta Marcelino dos Santos (1929 – 2020) em várias esferas sociais, tais como literárias, familiares e políticas. Sempre pensei nele como um poeta que fora emprestado à política, e que acabara assumindo essa condição por toda a sua vida. Por isso, cá por mim, conheço melhor a faceta do poeta do que qualquer outra, em razão da nossa actividade comum no campo da literatura.

Marcelino dos Santos (Kalungano ou Lilinho Micaia), foi um poeta assumidamente marxista mas que soube associar, ao mesmo tempo, a poesia à sua acção política. Tenho dito que toda a estrutura mental do Kalungano era verdadeiramente a de um poeta. Ele era um homem lúcido e coerente, com relação a tudo quanto pensasse e fizesse. Lembro-me que, nos anos oitenta, no quadro do movimento literário “Charrua”, quando começámos a introduzir na nossa literatura outras formas e outros conteúdos, em contraposição à literatura laudatória e panfletária que então estava na moda, alguns círculos políticos radicais tentaram questionar as novas propostas, mas foi justamente Marcelino dos Santos quem saiu em defesa da “Charrua” e das novas tendências, defendendo e preconizando uma literatura aberta e livre de quaisquer interferências sejam de que natureza fossem. Foi esta lucidez e visão de Marcelino dos Santos que, em grande medida, permitiu construir as bases fundamentais para a literatura que hoje se produz em Moçambique.

Kalungano foi um revolucionário da primeira linha, na medida em que, com a sua “praxis” poética e política, promoveu com relativo sucesso algumas e profundas transformações económicas e sociais no Moçambique que então acabava de nascer. Ele soube ouvir e interpretar o rumor longínquo das aspirações do seu povo, e tudo aquilo que continha testemunho da marcha ascendente do povo pelo qual sempre lutou, abrindo assim os caminhos possíveis para uma sociedade de, pelo menos, iguais oportunidades para todos.

Numa luta colectiva e com objectivos colectivos, não pode haver vontades individuais, uma vez que o indivíduo acaba diluindo-se no próprio colectivo, embora mantendo a sua individualidade. São princípios que regem a essencialidade colectiva num processo igualmente colectivo. Marcelino dos Santos, consciente deste princípio revolucionário, escreve o seguinte:

“O importante não é o que EU quero

o que TU queres

 

mas o que nós queremos

 

A Revolução é assim

tem as suas leis”

(…)

 

A força e o ímpeto das lutas inspiradas e travadas desde a resistência secular à luta armada contra a dominação estrangeira, levaram Marcelino dos Santos a saudar vivamente o novo porvir, corporizado num mundo e num homem novos. Os poemas de Marcelino dos Santos são autênticos cânticos que inspiram e acompanham a marcha do povo em direcção ao sol nascente. Mas também há nesta sinfonia poética um compasso profundamente humanista, aliás, como não podia deixar de ser em um poeta marxista e nacionalista da estirpe de Marcelino dos Santos.

 

“Nossa terra é de esperança

aberta ao franco amplexo

 

na esteira dos passos dados

vão brilhando círculos livres

 

e como irmãos mais novos

de um século mais velho

vamos levando em largas mãos

a herança dos nossos avôs

 

e com folhas do coração

continuar a obra humana

o grande desenho da vida.”

 

Um dos elementos simbólicos na poesia de Kalungano é a mulher, pois ela é um dos seus laços com o essencial, isto é, com a vida e com a sua pátria amada. Por isso, ela tem que ser cantada assim:

 

“ Eu canto uma mulher e canto um país

e canto as águas dos regatos

na paisagem dos teus olhos”

(…)

Canto uma mulher

talhada à imagem do amanhã necessário

onde a palavra Pátria e a palavra Povo

são páginas abrindo-se à mesma ressonância”

(…)

 

A poesia de Kalungano é marcada  fortemente  de esperança e certeza, renascidas continuamente com o labutar diário do seu povo, conferindo-lhe assim uma significação de luta e engajamento:

 

“Mãe negra

Embala o seu filho

E esquece

Que o milho já a terra secou

Que o amendoim ontem acabou.

 

Ela sonha mundos maravilhosos

Onde o seu filho irá à escola

À escola onde estudam os homens

 

Mãe negra

Embala o seu filho

E esquece

Os seus irmãos construindo vilas e cidades

Cimentando-as com o seu sangue

Ela sonha mundos maravilhosos

Onde o seu filho correria na estrada

Na estrada onde passam os homens

 

Mãe negra

Embala o seu filho

E escutando

A voz que vem do longe

Trazida pelos ventos

 

Ela sonha mundos maravilhosos

Mundos maravilhosos

Onde o seu filho poderá viver.”

 

Deter-me-ei por aqui, nesta rápida e singela homenagem a este poeta da esperança e militante do futuro, cujos poemas são animados de uma fé inabalável no seu povo e no seu país. Se, por um lado, a sua poética exalta a confiança no futuro que ele próprio sempre conservou no meio de todas as vicissitudes consequentes da conjuntura interna e externa, por outro lado, nela encontramos realmente um optimismo soberano, uma certeza da vitória final do povo moçambicano sobre todos os entraves ao seu renascimento e desenvolvimento.

 

Descansa em Paz, Poeta!

 

 

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