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O isolamento esplêndido de Nelson Mandela

Nelson Mandela: «Além de me dar vida, uma constituição física forte e uma ligação duradoira à casa real thembu, a única coisa que o meu pai me concedeu à nascença foi um nome, Rolihlahla. Em xhosa, Rolihlahla significa literalmente “arrancar o ramo de uma árvore”, mas o sentido coloquial seria, mais precisamente, “o que causa problemas”. Não acredito que um nome constitua um destino, ou que o meu pai de alguma forma estivesse a adivinhar o meu futuro, mas, anos mais tarde, amigos e família atribuíram ao meu nome de nascença as muitas tempestades que causei e sofri. O meu nome mais conhecido, o inglês, só meu foi dado no primeiro dia de escola. Mas estou a antecipar-me.

Nasci no dia dezoito de Julho de 1918, em Mvezo, uma vila pequenina nas margens do rio Mbashe, no distrito de Umtata, a capital do Transkei.»

Assim começa a notável autobiografia de Nelson Mandela Longo Caminho para a Liberdade, originalmente concebida na Ilha de Robben: «Como os leitores se aperceberão, este livro tem uma longa história: comecei a escrevê-lo, clandestinamente em 1974, durante o meu encarceramento em Robben Island. Sem o trabalho infatigável dos meus velhos camaradas Walter Sisulu e Ahmed Kathrada para trazerem de novo à luz do dia as minhas memórias, seria pouco provável que o manuscrito chegasse a completar-se. O exemplar que eu tinha em minha posse foi descoberto pelas autoridades e confiscado. No entanto, para além de terem dotes caligráficos únicos, os meus colegas de prisão Mac Maharaj e Isu Chiba conseguiram fazer o manuscrito original chegar ao seu destino. Voltei a dedicar-me a ele quando saí da prisão em 1990.» O escritor Richard Stengel ajudou-o a fixar o texto. Mas também teve colaboração e conselhos de Nadine Gordimer (1923-2014) e Ezekiel Mphahlele (1919-2008), ambos escritores sul-africanos renomados – Nadine foi prémio Nobel -, do fotógrafo Peter Magubane (1932, tem hoje 86 anos), ou Fatima Meer (1928-2010), escritora e activista anti-apartheid. O livro foi publicado em 1994. Um ano emblemático.

No dia 18 de Julho, quarta-feira, assinala-se o centenário deste homem extraordinário. Haveria muitos motivos para evocá-lo. A sua biografia é colossal. Vou ater-me em um ou dois factos da sua longa vida. Começo por evocar a própria ilha, onde esteve encarcerado quase duas décadas. Visitar a Robben Island é imperativo, um gesto impreterível. Eu fui lá e estive à beira das lágrimas perante aquela cela: os 2 metros de exiguidade e humilhação. O vexame da esteira, do cobertor, da latrina de latão, do prato e do púcaro de alumínio. Aquela cela e aquela cadeia são indispensavelmente uma iconografia da própria liberdade. Conhecia a ilha de nome, referida sempre que se aludia ao nome ínclito de Nelson Mandela. Hoje é indeclinável a sua associação ao legendário homem que dali se tornou um mito. Conhecia a história do homem e dos seus companheiros. Das provações por que passaram. Do calor intolerável no Verão e do irrepreensível frio no Inverno. Sabia do seu labor da pedra, o labor obrigatório de partir pedra sem protecção; dos calções vestidos no Inverno; da fome ou da comida para os bantus; da falta ou proibição de jornais; das reiteradamente más notícias lá fora – a mulher presa, a mulher banida, a mulher impedida de o visitar. Das visitas escassas (só anos depois, em Pollsmoor, é que abraçaria a mulher. A descrição que faz desse encontro é pungente. Fixei uma frase contundente: «Há vinte e um anos que não tocava nem sequer na mão da minha mulher.») Sabia, ainda, da recusa das autoridades para que ele fosse enterrar a mãe, em 1968, ou o filho Thembi, no ano ulterior. Das cartas que não chegavam ao destinatário. Sabia, lera, ouvira, imaginara. Contudo, a despeito disso, não obstante, não me contive naquela cela, naqueles exíguos metros quadrados. Ali, aquele homem deixou de ser prisioneiro e libertou-se ao longo dos anos no cativeiro. Ali o homem agigantou-se, ali Mandela tornou-se Mandela. Como pode um homem viver aquele opróbrio e não ser mau? Como pode alguém suportar o insuportável e depois ter a candura e a magnificência de tratar como tratou os seus opressores? Aquele homem humilhado, aquele belo e hierático combatente pela liberdade, caminha, na minha imaginação, ainda hoje, sempre, o longo caminho da liberdade. Vejo-o solitário e obstinado. E ele fez da solidão uma poderosa arma, com inteligência e coragem. Com altruísmo e intuição. Quero falar-vos hoje da prodigiosa solidão de Nelson Mandela.

Longo Caminho para a Liberdade percorre um longo (perdoe-se-me a redundância) excurso: da infância no campo de Transkei a Joanesburgo, da actividade cívica e do nascimento do lutador pela liberdade à acusação no processo de Rivonia, dos anos sombrios da Ilha de Robben, onde permaneceu 18 dos 27 anos de prisão, aos capítulos em que ele intenta as conversas com o inimigo até à liberdade, este livro é soberbo e fascinante. Esteve preso com Walter Sisulu (1912-2003), Ahmed Kathrada (1929-2017), Govan Mbeki (1919-2001), Raymond Mhlaba (1920-2005), Andrew Mlangeni (tem hoje 93 anos, nasceu em Junho de 1925) ou Elias Motsoaledi (1924-1994), com muitos outros, com tantos outros, estes, muitos deles sentenciados a pena de prisão perpétua. Entre 1963 a 1982 ali viveu (digo-o com sarcasmo, evidentemente) Nelson Mandela, antes de ser transferido para a penitenciária de Pollsmoor, na Cidade do Cabo, e, mais tarde, em 1988, quando fez 70 anos, para a prisão de Victor Verster, perto de Paarl.

Para Pollsmoor parte, em 1982, com os seus velhos companheiros. «Comparado com Robben Island, estávamos num hotel de cinco estrelas.» A luta anti-apartheid atingia, nos anos 80, dimensões planetárias. O MK actuava com virulência. A luta armada prosseguia. O regime estava isolado. P. W. Botha fraquejava, apesar de atacar com ferocidade a maioria negra afastada nas townships, apesar de violentar os países vizinhos, como Moçambique. O nome de Mandela era motivo de uma grande campanha internacional para a sua libertação. Free Nelson Mandela – cantava-se nos palcos do mundo. Mantê-lo na Ilha de Robben era insustentável. «Para nós, a ilha tinha-se tornado o lugar da luta.» Mandela acha que, ao retirá-lo dali, o regime intentava decapitar o ANC. «A própria Robben Island estava a tornar-se um sustentáculo mítico da luta, e, eles queriam retirar-lhe alguma da sua importância simbólica através do nosso afastamento.» Nesse mesmo ano, em Agosto de 1982, o regime assassina, com carta armadilhada, Ruth First, activista anti-apartheid, mulher de Joe Slovo, em Maputo.

A minha geração viveu empolgada essa história e manifestou-se para que Nelson Mandela fosse libertado. Sonhámos com isso. Não existia nenhum retrato dele havia muitos anos e isso era também algo que nos concitava: como seria o rosto de Nelson Mandela tantos anos depois? Recordo-me das campanhas pela libertação de Mandela. Ainda me comovo com Peter Gabriel cantando, de punho cerrado, como numa fotografia de Peter Magubane, “Biko”, em honra de Steve Biko, brutalmente assassinado, aos 30 anos, em 1977. Recordo-me do Kok Nam, meu velho companheiro na vetusta Tempo, que sonhava cobrir a libertação de Mandela. Partilhávamos esse sonho. Lembro-me do belíssimo poema do José Craveirinha dito pelo Tomás Vieira Mário nos “Msahos” do Tunduru – “Desde que o meu amigo Nelson Mandela foi viver para a Robben Island”. Esse momento aconteceu no início da década de 90. Antes da sua libertação, que ocorreu a 11 de Fevereiro de 1990, Nelson Mandela empreendeu uma engenhosa e solitária aproximação ao inimigo e conta essa fascinante história na sua autobiografia.

Nelson Mandela: «Em 1985, depois de um exame médico de rotina feito pelo clínico da prisão, mandaram-me a um urologista, que diagnosticou um aumento da próstata e recomendou uma intervenção cirúrgica. Disse que era uma operação de rotina. Consultei a minha família e decidi ir para a frente com a operação.» Quando teve alta, não o levaram de volta para junto dos seus companheiros de prisão. É aqui que a sua inteligência e a sua coragem revelam um grande líder. Perante o espanto dos seus companheiros revoltados, Mandela diz algo que para eles parece incompreensível: «Oiçam, meus velhos – disse eu -, não parece que nos devamos opor a isto.» Walter Sisulu, Ahmed Kathrada e Raymond Mhlaba estavam perplexos.

Escreve Nelson Mandela: «A minha solidão dava-me uma certa liberdade e resolvi usá-la para fazer algo que ponderava há bastante tempo: encetar conversações com o governo.» Mais adiante: «A minha solidão proporcionar-me-ia a oportunidade de dar o primeiro passo nessa direcção, sem o tipo de escrutínio que poderia destruir tais esforços.» Isto é de uma grande intuição política. «Encontrava-me agora numa espécie de isolamento esplêndido.» Mandela reconhece: «A decisão de falar com o governo era de tal importância que só deveria ter sido tomada em Lusaca. Mas eu achava que era necessário dar início ao processo, e não tinha nem tempo nem meios para comunicar com o Oliver. Alguém do nosso lado tinha de dar o primeiro passo, e o meu isolamento proporcionava-me simultaneamente a liberdade para o fazer e a certeza, pelo menos durante algum tempo, da confidencialidade das minhas tentativas.»

Nelson Mandela: «Decidi não comunicar a ninguém o que ia fazer. Nem aos meus colegas lá de cima, nem aos de Lusaca. O ANC é uma organização colectiva mas o governo tinha tornado a acção impossível neste caso. Não tinha nem a segurança, nem o tempo suficiente para discutir estes assuntos com a minha organização. Sabia que os meus colegas do andar de cima condenariam a minha proposta, e tal matá-la-ia à nascença. Há alturas em que um líder tem de passar à frente do rebanho, afastar-se numa nova direcção, com a certeza de estar a levar o povo para o caminho certo. Por fim, o meu isolamento forneceria à minha organização uma desculpa, no caso de as coisas correrem mal: o velho estava sozinho e completamente isolado, e as acções foram tomadas por ele como indivíduo, não como representante do ANC.»

O ANC ficou naturalmente inquieto quando se apercebeu destes esforços solitários de Mandela, que os ocultou. «Pouco depois disto, recebi um recado do Oliver Tambo, trazido às escondidas por um dos meus advogados. Tinha ouvido dizer que eu encetara conversações secretas com o governo, e estava preocupado. Disse que sabia que eu estava sozinho há algum tempo, separado dos meus colegas. Deve ter-se perguntado: o que se passa com o Mandela? A mensagem do Oliver era breve e directa: queria saber do que é que eu estava a afalar com o governo. O Oliver não poderia nem acreditar que eu me estava a passar para o lado do inimigo, mas talvez imaginasse que estava a cometer um erro de julgamento. Na verdade, o tom da sua mensagem sugeria isso mesmo.»

Em Maio de 1988 faz o primeiro encontro formal do grupo de trabalho secreto. Estas reuniões tinham o consentimento de P. W. Botha. Nelson Mandela fala-lhes da história do ANC, explica os pontos de vista do ANC, sublinha aquilo que os divide do governo, fala dos assuntos críticos: a luta armada, a aliança do ANC com o Partido Comunista e do objectivo do governo de maioria e a ideia da reconciliação racial. Foram dias, semanas e meses. O governo tinha uma condição: para haver negociações o ANC deveria renunciar à violência. «Respondi que o Estado era responsável pela violência, e que é sempre o opressor, não o oprimido, a ditar a forma de luta.» Isto é brilhante: «Cabe-vos a vós – disse -, não a nós, renunciar à violência.» Outro engulho: o Partido Comunista. Mandela argumenta que eram organizações separadas e distintas que prosseguiam um mesmo objectivo. O regime afirmava que o Partido Comunista controlava o ANC. Também aí Mandela é genial na argumentação. Exasperado atira-lhes: «Os senhores consideram-se inteligentes, não é verdade? Consideram-se poderosos, não é verdade? Bem, estão aqui quatro dos vossos e apenas eu, e não conseguem controlar-me ou fazer-me mudar de opinião. O que os leva a pensar que os comunistas são bem-sucedidos naquilo em que os senhores fracassam?»

O governo de maioria, as nacionalizações preconizadas na Carta da Liberdade, de 1955, preocupavam o regime: «Mas remiti-os para um artigo que tinha escrito em 1956 para o Liberation, em que afirmava que a Carta da Liberdade não era um esquema do socialismo, mas do capitalismo de estilo africano. Disse-lhes que não tinha mudado de opinião desde essa altura.» Quanto ao direito das minorias? «A África do Sul pertence a todos os que nela vivem, negros e brancos. Acrescentei que os brancos também eram africanos e que, em qualquer regime futuro, a maioria necessitaria da minoria: Não queremos empurrar-vos para o mar – disse.» Nesse mesmo ano, Mandela é transferido para Victor Verster, em Paarl. A 5 de Julho de 1989, P. W. Botha recebe-o: “visita de cortesia”. Um eufemismo, naturalmente. Botha, que se demitira do Partido Nacional, permanecia, no entanto, na chefia do Estado. F. W. de Klerk, ministro da Educação, ascende à liderança do Partido Nacional. Apesar da ferocidade do Grande Crocodilo (“Die Groot Krokodil”), o encontro corre bem. Tomam chá e são cordiais um com o outro. Um mês depois, em Agosto, P. W. Botha demite-se de presidente da África do Sul. De Klerk assume no dia seguinte. Mandela prosseguia os seus encontros com o comité secreto das negociações. Consegue vencer etapas. Em Outubro de 1989 são libertados: Walter Sisulu, Ahmed Kathrada, Raymond Mhlaba, Andrew Mlangeni, Elias Motsoaledi, jeff Masemola, Wilton Mkwari e Oscar Mpetha. Govan Mbeki saíra antes. Vive-se um momento de esperança.

F. W. de Klerk recebe-o a 13 de Dezembro de 1989. «Apresentei as minhas felicitações ao Sr. de Klerk pela sua ascensão ao cargo de presidente e exprimi o desejo de podermos trabalhar juntos. Ele foi extremamente cordial e retribuiu estes sentimentos.» Ali estava um interlocutor diferente. «Desde o primeiro momento que notei que o Sr. de Klerk escutava o que eu tinha a dizer.» A conversa entre os futuros Prémio Nobel da Paz de forma promissora: «O Sr. de Klerk, disse, imitando a famosa descrição do Sr. Gorbachev por Margaret Thacher, era um homem com quem se podia fazer negócios.»

Nelson Mandela: «Em 2 de Fevereiro de 1990, F. W. de Klerk foi ao Parlamento pronunciar o tradicional discurso de abertura e fez algo que nenhum outro chefe de Estado sul-africano alguma vez fizera: começou realmente a desmantelar o sistema de apartheid e a lançar os fundamentos de uma África do Sul democrática.» Uma semana depois, a 9 de Fevereiro, F. W. de Klerk quis ver Nelson Mandela. Este deslocou-se novamente a Tuynhuys: «Deparei com um Sr. de Klerk sorridente no seu gabinete e, ao cumprimentarmo-nos, ele informou-me que me ia libertar no dia seguinte.» O diálogo entre ambos é igualmente fascinante – De Klerk queria libertá-lo a 10 de Fevereiro em Joanesburgo; Mandela queria tempo para se preparar (ficara aturdido apesar de ter sonhado décadas com aquele momento e temia que uma libertação abrupta não fosse aconselhável)  e queria sair em liberdade na Cidade do Cabo -, mas já não cabe nesta história que vai longa sobre o ingente e prodigioso isolamento de Nelson Mandela.

 

 

 

 

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