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Releituras (12) – Os Condenados da Terra

FRANTZ OMAR FANON (1925 – 1961) foi um filósofo, ensaísta e psiquiatra. Este intelectual marxista, nascido na ilha da Martinica, no Caribe francês, descendente de escravos africanos, foi um dos influentes pensadores do século XX, principalmente no que se refere à temática da descolonização africana. Frantz viveu e trabalhou na Argélia onde depois se envolveu na luta pela independência daquele país.

Frantz Fanon é  autor de vários ensaios entre os quais o badalado livro “Os Condenados da Terra”, 1961, que o li pela primeira vez em 1990, edição brasileira (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968) que me chegara pela mão do poeta Rui Nogar (1935 – 1993). Nos seus estudos sobre a descolonização, mormente os desta obra escrita com base na experiência argelina, e não só, Fanon analisa as consequências da colonização do ponto de vista psicológico tanto para o colonizador quanto para o colonizado, e o processo de descolonização africana, duma forma geral, considerando seus aspectos filosóficos, sociológicos e até psiquiátricos.

O livro leva um prefácio da autoria de Jean Paul Sartre, filósofo existencialista francês (1905 – 1980), de quem Frantz Fanon era um grande admirador. Conta-se que Fanon teve que viajar à Itália ao encontro de Sartre, a fim de o solicitar o prefácio. A admiração era tal que chegou a afirmar que era capaz de pagar vinte mil francos só para estar à conversa com Sartre durante quinze dias consecutivos.

É interessante notar que, enquanto Fanon direcciona “Os Condenados da Terra” aos colonizados em África, Sartre, por sua vez, através do prefácio, envia recados aos seus patrícios – colonizadores europeus. E é o próprio Sartre quem o confessa:

“Este livro não precisava de prefácio, tanto menos porque não se dirige a nós. Contudo, eu lhe fiz um para levar a dialéctica até ao fim. É necessário que nós, europeus, nos descolonizemos, isto é, extirpemos, por meio de uma operação sangrenta, o colono que há em cada um de nós.” (p.16)

Sartre traduz a situação colonial descrita no livro na perspectiva da desumanização do colonizado, aquele a quem lhe foi retirado tudo que o tornava um humano, com direito a seus mitos, às suas línguas, à sua cultura. Oiçamo-no-lo:

“A violência colonial não tem somente o objectivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumaniza-los. Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga.” (p.9)

Frantz Fanon começa por descrever a descolonização como sendo um fenómeno que se propõe mudar a ordem do mundo: “Mas não pode ser o resultado de uma operação mágica, de um abalo natural ou de um acordo amigável. A descolonização, sabemo-lo, é um processo histórico, isto é, não pode ser compreendida, não encontra a sua inteligibilidade, não se torna transparente para si mesma senão na exacta medida em que se faz discernível o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo.” (p.26)

De facto, são justamente os movimentos de libertação que lhe dão essa forma e esse conteúdo, rebuscados e alicerçados nas massas populares. E mais adiante Fanon diz ainda que “A descolonização é, em verdade, criação de homens novos.” E que ela “introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens novos, uma linguagem, uma nova humanidade.”

O livro continua descrevendo a colonização em si, centrando-se no colonizado que acaba interiorizando aquilo que será o fundamento e a necessidade da sua sublevação, pois “descobre que sua vida, sua respiração, as pulsações de seu coração são as mesmas do colono. Descobre que uma pele de colono não vale mais do que uma pele de indígena. Essa descoberta introduz um abalo essencial no mundo. Dela decorre toda a nova e revolucionária segurança do colonizado. Se, com efeito, minha vida tem o mesmo peso que a do colono, seu olhar não me fulmina, não me imobiliza mais, sua voz já não me petrifica.” (p.34)

Mais adentro, Frantz Fanon debruça-se sobre o processo da descolonização, tanto na óptica do colonizado como na do colonizador. E prossegue atendo-se no transcurso das lutas de libertação nacionais, pontificadas pelos movimentos políticos nacionalistas, com todas as suas particularidades: “O colonizado descobre o real e transforma-o no movimento da sua praxis, no exercício da violência, em seu projecto de libertação.” (p.181)

O autor problematiza também a situação do colonizado, já na perspectiva de mentalidade, ou seja, de sequelas da noite colonial, resultantes da difícil relação colonizador – colonizado e vice-versa. Mais do que isso, é sabido que a natureza destruidora, aniquiladora, traumatizante da colonização, impôs-se de forma impiedosa  sobre os oprimidos, o que contribuiu sobremaneira para a sua própria desestruturação. É, portanto, uma análise sobre o colonizado ou, se quisermos, o ex-colonizado, e Fanon observa que:

“Diz-se então que os colonizados querem progredir com demasiada rapidez. Ora, é bom não esquecer que pouco antes atestava-se a sua lentidão, a sua indolência, o seu fatalismo. Nota-se já que a violência nos caminhos bem demarcados no momento de libertação não se extingue magicamente depois da cerimónia do hasteamento das bandeiras nacionais.” (p.58)

Muitos dos problemas dos outrora oprimidos pelo jugo colonial não terminam, de facto, com a proclamação da independência nacional. Ademais, estas massas, uma vez mais, serão chamadas a arregaçar mangas e redobrar seus esforços, desta feita, para a reconstrução da nação em todas as suas dimensões. Neste processo surgem também paradoxos estonteantes de permeio. Afinal de contas são paradoxos, quanto a mim, inerentes à própria condição humana. Nesta conformidade diz-nos Frantz:

“A mobilização das massas, quando se efectua por ocasião da guerra de libertação, introduz em cada consciência a noção de causa comum, de destino nacional, de história colectiva. Também a segunda fase, a da construção da nação, vê-se facilitada pela existência dessa argamassa preparada em meio ao sangue e à cólera. (…) Durante o período colonial convidava-se o povo a lutar contra a opressão. Depois da libertação nacional, é ele convidado a lutar contra a miséria, o analfabetismo, o subdesenvolvimento. A luta, afirmam todos, continua. O povo verifica que a vida é um combate sem fim.” (73)

Fanon continua ainda analisando as sequelas deixadas pela situação colonial na mente do ex-colonizado, sequelas essas também traduzidas na forma de estratégias por este delineadas ou adoptadas no decurso do processo da sua auto-governação. E porque são estratégias muitas das vezes desestruturantes, porque vazias em si mesmas, por não contemplarem a práxis popular – aliás, resultado da incapacidade de do povo extrair a razão -, são, invariavelmente, estratégias condenadas ao fracasso. Neste contexto ele defende que:

 “A consciência nacional em vez de ser a cristalização coordenada das aspirações mais íntimas da totalidade do povo, em vez de ser o produto imediato mais palpável da mobilização popular, não será em todo o caso senão uma forma sem conteúdo, frágil, grosseira. As fendas que nela se notam explicam amplamente a facilidade com que, nos jovens países independentes, se passa da nação à etnia, do Estado à tribo. São essas gretas que justificam os recuos tão penosos e tão prejudiciais ao impulso nacional, à unidade nacional.” (p.123/124)

No capítulo sobre a cultura nacional, e também sobre os fundamentos recíprocos da cultura nacional e das lutas de libertação nacional, Frantz Fanon questiona: “Quais são as relações que existem entre a luta, o conflito – político ou armado – e a cultura? Durante o conflito há suspensão da cultura? A luta nacional é uma manifestação cultural? (…) A luta de libertação é, ou não, um fenómeno cultural?” (p.204/205)

Obviamente que em África, digo eu, as lutas de libertação nacionais foram sempre de carácter eminentemente cultural. Porque o que estava em causa, na noite colonial, era o homem na sua integridade, na sua totalidade, no seu direito de ser e estar no seu espaço. Por outro lado, sempre acreditei que toda luta alicerçada nas massas populares só pode ser intrinsecamente uma luta cultural. Mas Fanon responde de forma global atribuindo a cada geração a sua responsabilidade específica:

“Cada geração, dentro de uma relativa opacidade, tem de descobrir a sua missão, cumpri-la ou atraiçoá-la. Nos países subdesenvolvidos, as gerações anteriores resistiram ao trabalho de corrosão realizado pelo colonialismo e, ao mesmo tempo, prepararam a maturidade das lutas actuais.” (p.171)

Enfim, “Os Condenados da Terra” é um livro portentoso, envolvente, mas também frio, realista, premonitório e, por isso mesmo, abrangente. Em minha opinião, é um livro de leitura obrigatória para os africanos de hoje e de amanhã. Como africanos que somos, o livro é um tratado sobre a nossa bravura, a nossa resistência, a nossa vitória, mas igualmente sobre as nossas fraquezas, os nossos medos, os nossos traumas. Fundamentalmente, é um ensaio sobre o nosso passado, o nosso presente, o nosso futuro. E é por pensar no futuro que Fanon explica que: “A condição  humana, os projectos do homem, a colaboração entre os homens em tarefas que acrescentem a totalidade do homem, são problemas novos que exigem verdadeiros inventos.” (p.272)

Em jeito de conclusão: qualquer semelhança ou dessemelhança com a nossa realidade, é pura “coincidência”, mesmo que se trate dum mesmo processo histórico. Sendo assim, fica então esta advertência que Frantz Fanon nos doa como africanos:  

“A humanidade espera alguma coisa de nós que não seja essa imitação caricatural e em geral indecorosa.” (p.275)

E mais:

“Se queremos transformar a África numa nova Europa, a América numa nova Europa, confiemos, então, aos europeus os destinos dos nossos países. Saberão fazê-lo melhor que os mais dotados de nós.” (p.275)

“Além disso, se queremos responder à esperança dos europeus, não devemos reflectir uma imagem, mesmo ideal, da sua sociedade e do seu pensamento pelos quais sentem de quando em quando uma imensa náusea.” (p.275)

É caso para perguntar: quo vadis África?

 

 

 

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