Mzeno Wa Melekwane
«O futebol profissional é algo parecido com uma guerra. E quem se comporta de maneira muito gentil perde».
Rinus Michels
(1928-2005)
Singela homenagem a Míster Baba!
(1964- 2001)
No dia que cheguei atrasado ao muro descobri muitos outros companheiros, que para além de mim, todos os sábados se dedicavam a assistir aos treinos de futebol no campo da São Gabriel. Um senhor de casaco preto, funcionário do Conselho Executivo da Matola tinha abandonado a viatura encostada ao passeio, com a chave na ignição. Talvez movido pela curiosidade, a gritaria, os aplausos que choviam na assistência. A senhora que vendia arrufadas e sumos aos jogadores e à assistência. Um velhote batia palmas ao sabor dos malabarismos da rapaziada. O madala todo entretido pelas jogadas frenéticas, exibindo um par de marfins escassos e uma careca reluzente.
Mister Baba, ao centro dava instruções rodeado por jogadores, de rostos suados depois do aquecimento. Há medida que ia falando, o míster dividia os pupilos em grupos, criando sete equipas. Para além destes havia o grupo de guarda-redes: Euclides, Mitó, Avelino e Elias.
O dia era de um sol fulgurante. Míster Baba, de fato de treino, apito pendurado ao pescoço, sapatilhas, uma prancheta debaixo do braço e um boné à cabeça. Os místeres Baba e Nino orientavam a movimentação dos jogadores, ensaiando jogadas diversas, explorando jogadas pelas laterais, em movimento ofensivo. Um outro grupo de jogadores, na faixa central, esmerava-se no plano defensivo. A cada jogada mal feita o míster Baba interrompia, dava instruções, aconselhava, insistindo sobretudo com a condução da bola rente ao chão. O míster recomendava repetidamente a prática do cruzamento em queda caso a bola fosse lançada em velocidade junto à linha. Isto permitia que a bola ganhasse altura ao ser cruzada. Assim o atacante ou defesa haveria de receber a bola, com potência suficiente para cabecear à baliza ou aliviar, dependendo do interveniente que ganhasse o esférico.
Um outro grupo, junto à baliza da parte norte fazia uma peladinha. Jogava à bola rentinha ao chão, como fazem as galinhas debicando os grãos sobre a terra: GALINHA COME NO CHÃO. Um, dois toques, depois o portador fazia o passe. A bola é trocada entre os colegas, pressionados pelos adversários de ocasião. Os grupos distinguiam-se por haver uns vestindo coletes amarelos, com inscrição OBSERVADOR NACIONAL. Os outros envergavam camisetes brancas.
Míster Baba desdobrava-se, incansável e paciente entre os grupos. O mestre preocupava-se com a postura do jogador ao transportar a bola, a marcação de jogadas rápidas, cantos curtos, a técnica de bloqueio, a astúcia dos defesas perante a ratice dos avançados. O treino era um regalo de se ver, sobretudo pela idade dos executantes, a rondar entre 11 a 14 anos. Corria o ano 1994. Aos treinos a rapaziada levava pastas, porque para além da roupa para mudar era preciso levar cadernos para apontamentos técnicos-tácticos e cultura-geral. O míster queria que todos jogadores dominassem os rudimentos do futebol, desde as medidas do rectângulo do jogo ao mínimo detalhe. Baba leva ao extremo a influência do futebol total de Rinus Michels.
Ubaldo Muthambe, mais conhecido por Míster Baba decidiu abraçar o projecto da escola de jogadores GALINHA COME NO CHÃO, após o seu regresso de Angola onde cursara petroquímica. Baba fundou a equipa de futebol PROGRESSO, enquanto prosseguía com os estudos tendo se formando em sociologia. Os místers Baba e Nino recolheram, desde os irmãos, sobrinhos de casa, aos vizinhos, andando por vários bairros da cidade da Matola para iniciá-los no ofício da Bola. No campo da Igreja São Gabriel treinavam iniciados, juniores, seniores, uma equipa feminina e até veteranos todos sob o olhar tutelar de Míster Baba.
Olga Muthambe, irmã que acompanhou-o de perto revelou que Baba foi influenciado por um vizinho da família Calado na mítica Mafalala, onde nasceu no 1.º de Maio de 64. Uma influência que obviamente se estendia a craques da Mafalala e outros subúrbios que já jogavam em Portugal, isto para não falar de Hilário, Coluna, Matateu Mário Wilson, Eusébio, Vicente, Armando Manhiça e outras vedetas. A família Muthambe saíu da Mafalala para viver na Matola no ano que a selecção holandesa, orientada por Rinus Michelis sagrou-se campeã mundial, com Cruyff à cabeça do carrossel da laranja mecânica, em 1974.
Voltando à peladinha, o médio ofensivo Baggio, depois de receber um passe do Bónswa, passou por Marito e Parmalat, fez um passe ao Tujó, que ao primeiro toque soltou a bola para o Nelson. Este desceu pelo flanco direito, já em queda cruzou para a área de rigor. Germano amorteceu a bola com o peito para Ravanelli que finalizou, em habilidade na baliza improvisada, perante o olhar desolado de Popescu. Era este encanto que me convocava reliogiosamente, ultrapassando a geografia dos meus desejos. O muro estava inudado de espectadores.
Uma das maiores virtudes do mister Baba era o ensino da atitude correcta ao jogador, com ou sem bola, o aperfeiçoamento das jogadas, o ensino da paixão pelo jogo. O míster Baba ensinava com primor, tanto ao sol, à chuva, ou ao vento, com a mesma paixão com que abraçava efusivamente aos seus pupilos na celebração do golo ou de jogadas bem-feitas. O Míster transfomou-se numa figura icónica da Matola. Para além do treino ampliou os quintais das famílias matolenses, unindo mais de quinhentos jogadores, entre crianças, jovens e adultos.
A paciência característica do Míster Baba contrastava com a cólera quando um jogador falhasse um lance, numa atitude desinteressada ele explodia:
-Onde dormiste ontem? Passaste a noite lá no Macopeni com a tua avó? Sai daí mesmo, cabrão!
E de onde estivesse o visado já sabia que devia dar três voltas ao campo antes de ocupar o lugar no banco de suplentes.
Podia ter dissertado uma tarde inteira sobre o míster Baba. E, tal como disse o Bónswa numa conversa recente, o míster era um professor da dimensão de um Carlos Queiroz. Pena que teve pouca sorte e o magnetismo que nos fazia inundar o campo da São Gabriel perdeu-se com a sua morte em 2001, aos 37 anos. Eis que resgato o Poeta Rui Knopfli neste «precário registo das palavras», que pretendem ser provas guardadas, de poder e sabedoria de um cidadão verdadeiramente admirável.