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Ndzuthini – A arte de escrever na sombra

“Escrevo em changana porque é uma língua muito rica, uma língua muito bela. Escrevo em changana porque acredito que o plurilinguismo nacional é uma realidade que não nos deve assustar com fantasmas de um tribalismo morribundo”.

                                  Bento Sitoe

 

Não sei se entre nós se atribui alguma importância a uma crónica literária sobre um livro escrito numa das nossas línguas nacionais, neste caso o changana, porque no universo dos leitores considerados atentos, poucos são os que dominam essa língua, subalternizada, como todas as línguas moçambicanas, ao longo dos tempos pela língua portuguesa desde o início do processo de colonização. Apesar deste constragimento aventuro-me a fazer alguns comentários sobre o livro Ndzuthini, da forja de Mabjeca Tingana, o que significa que vou escrever para um público consideravelmente constituido por leitores que desconhecem o changana, mas a crónica terá cumprido a sua missão, o de fazer com que ninguém deva ignorar esta obra  que explora com uma considerável criatividade os aspectos sociais que julga significativos.

Vou escrever não apenas sobre um livro de poemas, mas sobretudo sobre essa figura peculiar que é o Mabjeca. Tal como a sua poesia, ele não poderia ser diferente daquilo que o caracteriza: profundamente irreverente no seu modo de ser, totalmente despretensioso na sua maneira de trajar, definitivamente desencantado na sua leitura sobre as coisas que o rodeiam. Está perfeitamente claro, naquilo que fala, escreve e sugere, que Mabjeca Tingana nos quer abalar. É, se assim o quisermos definir, um perturbador, um provocador, um indiscutível exemplo de alguém que cresceu muito por dentro, e segundo tenho estado a observar nao se preocupa em perder tempo, cada vez mais escasso, em guerrilhas literárias que traduzem os conflitos que nos perseguem,  perdendo o tempo, como diria o saudoso escritor Baptista Bastos, “na volúpia do mesquinho na mesquinhez”.

Ndzuthini significa sombra, lugar de repouso e aconchego ou então esse  lugar de sossego e paz que desesperadamente almejamos nestes tempos em que grassam na nossa sociedade inúmeros conflitos. De modo que Ndzuthini pode ser o país que sonhamos, o homem novo que tentamos construir, a poesia que queremos escrever colocando as palavras certas capazes de modificar o mundo. Não sei se é um lugar onde o poeta Mabjeca Tingana já esteve ou que desejaria, um dia, colocar os seus pés. Se “o sonho comanda a vida” nada impede que o poeta deseje encontrar o almejado mundo novo, diferente desse outro que o seu livro denuncia. Recorro apressadamente a imagem que ilustra o livro: uma frágil cabana de caniço e madeira e zinco quase a tombar sobre si mesma; por que razão Mabjeca a escolheu para ilustrar o seu livro? Talvez para nos sugerir que o aconchego que passamos a vida a procurar também se pode encontrar naquele modesto lugar, nas coisas mais simples. Uma antítese da ostentação que domina as nossas vidas.

Mabjeca escreveu um livro que pelas suas caracteristicas linguísticas se tornou diferente de outros livros. A língua com que se construiram os poemas que nele constam fez com que houvesse esse rebuscar filosófico que sustenta as línguas bantu e torna os seus poemas interessantes. Exactamente por isso, feliz ou infelizmente, ele se influencia a si próprio, foge de um Eugénio de Andrade, um Sangare Okapi ou Armando Artur, torna-se a bússola da sua própria inspiração, a língua changana faz com que Mabjeca Tingana se reebusque permanentemente, que estabeleça as suas fronteiras e defina a largueza do seu voo poético. Não é por mero acaso que o poeta nos diz: “Penso em dar asas às linguas moçambicanas, as vinte e três línguas moçambicanas que temos. Para podermos estar independentes, temos de pensar nas nossas línguas como forma de educação, ao invés de investirmos nas línguas estrangeiras nesse sentido”. Tingana aposta, pois, na literatura como arma para o nosso desenvolvimento, retoma deste modo uma pretensão antiga que Francisco Noa desenvolve no seu incontornável livro Para Além do Túnel quando nos fala sobre “o conjunto de vantagens que o texto literário propicia na aquisição e no desenvolvimento, não só da competência linguística, mas também de outras competências na formação e nas interacções humanas”. A mensagem que Noa nos pretende transmitir é de que além da literatura representar um material autêntico e valioso, concorre para o enriquecimento cultural, envolvimento pessoal e desenvolvimento linguístico, que passa necessariamente pela capacidade de ler, escrever, ouvir e falar fluentemente. E é exactamente esse desiderato que Mabjeca Tingana persegue.

Escrever sobre Ndzhutini é tentar pensar sobre um livro que fala dos nossos tempos com uma frontalidade que pouco se encontra nos nossos escritos mais recentes, alguns deles se perdendo, na minha modesta opinião, em labirintos poéticos de difícil descodificação. Falando de Ndzhutini diria, com alguma convicção, que estamos perante um livro que manifesta um indisfarçável desencanto em relação aos males decorrentes na nossa sociedade. Aos olhos do poeta muitos valores que devem nortear a nossa maneira de estar se desmoronaram. Ou quase isso. Seja como for, Mabjeca Tingana tem a plena consciência que todos nós somos culpados e por conseguinte devemos assumir a responsabilidade de sermos cada vez melhores e nunca esquecer que a Pátria pertence a cada um de nós e não apenas aos “vanyankhadle lavayana”, como diria Tingana, referindo-se a alguns dentre os que gerem a coisa pública e que não se cansam de esvaziar os bolsos dos incautos aprofundando a desgraça colectiva. Por isso o poeta chora:

 

                         Hlohlotelani mfumu

                             Wuhumula akukoxa atimale matikweni

                             Hi vito ra ntsungu

                             Wufaka hi mavabzi, ni ndlala a Musambiki *

                              ………………………………………

*

                                Falem aos que nos governam

                                 Que deixem de fazer empréstimos

                                 Em nome do povo

                                 Que morre de doença e fome em Moçambique.

 

           Perdem os que não serão capazes de ler este livro no seu xi-txangana peculiar, cuja profundidade, sonoridade, riqueza  vocabular e suas expressões idiomáticas escapam a qualquer tradução. Diria, aliás, o estudioso Feliciano Chimbutane, da Universidade Eduardo Mondlane, no seu interessante artigo Desafios da tradução de textos literários das línguas Bantu para o Português, que “Fica claro que traduzir de uma língua para outra é sempre um desafio pois, entre outros aspectos, requer que o tradutor, por um lado, seja fiel ao sentido do texto original, e, por outro, transmita a mensagem veiculada nesse texto tendo em conta a forma e o contexto cultural apropriados na língua alvo”.  E adianta ainda Chimbutane que esse desafio torna-se mais exacerbado quando há uma considerável distância estrutural e cultural entre a língua fonte e a língua alvo. “Este é o caso da relação entre o changana e o português, pese embora a situação secular de contacto e miscigenação entre estas línguas.”

          Numa interessante conversa que Mabjeca Tingana manteve com o ensaista e jornalista José dos Remédios, quanto à necessidade de investir numa edição bilingue, por se entender que há coisas do changana que não se podem traduzir, o poeta Mabjeca mencionou que de facto pensou-se na possibilidade de fazer uma edição bilingue, mas ele afastou essa hipótese. Disse: “Sou investigador de línguas moçambicanas. Faço poesia em changana e traduzo do português para o changana. Então, para mim, não faria muito sentido uma edição bilingue, porque as pessoas iriam apostar em português e não no changana. Assim consigo me libertar melhor, porque eu, quando estou a dormir, não sonho em português, sonho em changana. Changana é uma forma de poder estender aquilo que pretendo, segundo a minha forma de pensar. Nunca escrevo nada em português. Tudo começa em changana e, depois, é traduzido para o português. Mesmo os poemas”. Neste livro Mabjeca Tingana manifesta a sua tristeza por se estar a falar muito pouco ou quase nada as línguas moçambicanas, e assiste-lhe toda a razão, porque uma língua que não se fala obviamente que não se escreve e o que não se escreve acaba morrendo. Poucos são ainda os que sobem nos palanques dos saberes para a promover, cantar e exaltar as línguas nacionais, e os que ainda sobem fazem-no quase de uma forma silenciosa, como se falar das línguas autóctones fosse um pecado, uma blasfémia. O poeta alerta-nos:

 

                             Vasungulile akuyimbelela.

                         Vata ni kuhiphamela marito hi Xiputukezi.

                             Ntumbuluku wa hina wujimiwile. **

                              .…………………………………………………..

                             **

                              Já começaram a cantar

                              Alimentam-nos com palavras em português

                              A nossa tradição está ao avesso.

                       

Falar sobre Ndzhutini é também fazer uma espécie de homenagem a todos aqueles que ao longo dos tempos usaram as línguas autoctones como forma de expressão. Referimo-nos a importantes nomes como os de Porto Manhiça, que desde os primórdios esteve incansável nos seus esforços para fazer vincar a escrita na língua ronga; do reverendo, poeta e declamador Gabriel Macavi, autor do livro “Mwambi wa Vubumabumari”, e um dos participantes na Assembleia Constitutiva da Associação dos Escritores Moçambicanos; do Professor Bento Sitoe, com uma vasta obra na área de Linguística Africana, ou de um Alfredo Chamusso, autor da obra Matsalwa ya Wusungukati  e que com noventa e sete anos de idade, tornou-se, provavelmente, o escritor mais velho de Moçambique. De modo que Ndzhutini e a saudável irreverência poética de Mabjeca Tingana, podem representar mais do que o surgimento de um livro, para chamar atenção a uma forma de escrita insuficientemente divulgada entre nós. Enquanto isso não acontecer as línguas nacionais não passarão duma simples teorização, de pretexto para se desencadear narrativas que continuarão a ser incapazes de dar resposta as exigências de uma situação de comunicação real, de uma necessidade real, como disse o estudioso Albino Chavale no seu artigo “ Texto literário no desenvolvimento da competência de comunicação”.

Um livro, qualquer que seja, deixa sempre expressa alguma mensagem, um recado, uma proposta, uma lição de moral. Um livro, seja qual for, é uma fonte de aprendizagem, é uma espécie de ponte que se atravessa para descobrir o outro lado da vida. O ensinamento maior que o livro Ndzhutini pretende nos transmitir traduz-se nesta feliz expressão de Mabjeca Tingana:

 

                                “Tiva hi kan’we, alirhandzu i ndzhuti.

                                 Aloko kunga na ndzhuti, aku na lirhandzu”,

 

ou seja, “ O amor é a sombra, onde não há sombra não existe amor”. O que significa, definitivamente, que onde não existe amor não pode haver harmonia e sem esta, não há Pátria que se construa ou que possa se sustentar. Sem nenhuma sombra, sem ndzhuti, não existe o lugar onde o poeta se possa sentar, sossegadamente, para escrever toda a poesia.

 

 

 

 

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