O País – A verdade como notícia

Isaac Zita: eu não vou por aí

Li, com redobrada atenção, o texto “ISAAC ZITA”, de autoria de Nelson Saúte, ora em considerável circulação nas redes sociais. Como sempre, o autor distingue-se no texto pela escrita escorreita que cultiva como pouquíssimos entre o leque de escritores moçambicanos. Aliado a esta distinta capacidade, Nelson Saúte entende ainda, nos escritos que tenho lido da sua lavra, saber ressuscitar palavras nada comuns na fala que nos caracteriza no dia-a-dia, a par de uma formulação frásica mesmo invulgar que o distinguem da escrita dos demais, que quase ninguém, para não dizer o pior, saberia estar-lhe próximo nesse aspecto. Palavra rara em Nelson Saúte não fere a leitura, surge com uma afinada naturalidade que a coloca distante do rebuscado no sentido meandroso do termo. Nisso Saúte é um verdadeiro mestre:

 “Não fosse o infortúnio da sua prematura entrevista com a morte, a 17 de Julho de 1983, Isaac Zita ter-se-ia afirmado, indubitavelmente, como o primeiro talento de gabarito na ficção moçambicana no pós-independência, tão surpreendentes como invulgares eram as suas qualidades como prosador. A sua erupção literária, no entanto, foi brevíssima, contudo dela ficou o espólio do seu raro dom narrativo. Quis o destino tecer-lhe outros acasos. Um deles este absurdo silêncio em que o seu nome se encontra obnubilado.

 É, de facto, prazeroso ler uma formulação frásica quanto “A sua erupção literária, no entanto, foi brevíssima...”, e essa capacidade de escrita não calha a qualquer um. Por exemplo, com a utilização da palavra “erupção” Saúte revela a sua capacidade de dizer em uma o que muitos diriam em mil palavras. Em “A sua erupção literaria” o autor condensa algo que um outro escritor podia ter  formulado da seguinte forma:  “o seu surgimento espontâneo comportava energia e brilho  literário”. Sobre a utilização de palavras raras, mas que surgem com afinada naturalidade no texto sautiano, atenção a “Um deles este absurdo silêncio em que o seu nome se encontra obnubilado.Obnubilado, que não é de uso no dia-a-dia, se encaixa na frase com a necessária naturalidade estética, mas que  provavelmente outro autor podia ter optado por “apagado”,  “esquecido”, “ignorado”, etc.

Todavia, como não há bela sem senão, ao nível ideológico, encontro muito espaço para divergir deste autor que, sinceramente, aprendi a admirá-lo pelos aspectos acima expostos.  Na verdade, o que não aprecio em Nelson Saúte estende-se, da pior forma,  a outros e tantos acadêmicos e/ou  fazedores de opinião no nosso panorama literário. Embora haja uma grande responsabilidade às costas dos que despontaram nos anos oitenta, por constituirem afirmadas referências. Ao emitir uma  opinião,  uma personalidade desse universo, porque já credenciada,  não deve ajustar-se ou rossar  as margens da desonestidade intelectual, falta de rigor ou interferência  com malabarismos de carácter pessoal no seu juizo sobre as nossas artes e/ou literatura, sob risco de tais  vícios arrastarem milhares de moçambicanos para  o mato.

De acordo com Nelson Saute, “Isaac Zita, nos seus imaturos 19 anos, era senhor de uma escrita segura, reveladora de grande maturidade e possuidor de uma invulgar capacidade de narrar acontecimentos, colhia do real aspectos aparentemente mais irrisórios para os transformar, pelas vias da ficção e da criatividade, em produto estético capaz de exercer forte atracção sobre o leitor”.

Em minha opinião, o texto ISAAC ZITA, de Nelson Saúte, não diria estar ferido de desonestidade intelectual, mas de alguma falta de rigor.  Primeiro, porque atesta que “isaac Zita era senhor(…) de um escrita segura, reveladora de grande maturidade e possuidor de uma invulgar capacidade de narrar acontecimentos”, entretanto Saúte não sustenta a sua constatação, não traz nenhuma evidência capaz  de também conduzir a quem o ler a essa mesma conclusão.  Por exemplo, que elementos textuais fazem de “Os Molwenes”, uma  “escrita segura”, ou de “grande maturidade”?

Segundo, e sinceramente, eu não encontro, por exemplo, uma grande maturidade em “Os Molwenes”, deparo-me,  sim, com uma grande promessa literária, infelizmente que conheceu o ocaso  aos 19 anos de idade. Mais adiante, e a cair na mesma malha de elencar qualidades, ou distinguir sem evidenciar, Saúte adianta:  “Para além de dominar a descrição, é habilidoso nos diálogos. Os diálogos são, na ficção narrativa, de difícil conseguimento. É uma das técnicas mais árduas. Poucos escritores sabem fazer diálogos.” Tambem sou tentado a contrariar essa afirmação de Nelson Saúte e passo a evidenciar o que não torna Zita “habilidoso nos dialogos’: sirvo-me mesmo da citação trazida por Saúte no seu texto: – Olha, n´duwê, eu paguei dez escudos, como você…/– Pôrra! Que merda é essa?… Mas não quero que conte!…

Remetidos a essas duas falas, de um escritor habilidoso não se espera que coloque os diálogos de modo dúbio (não disse ambíguo) como surge no excerto trazido por  Saúte de  “Os Molwenes” .  Passo a discussão: Em “Mas não quero que conte!…”   a adversativa “Mas” recai sobre o quê no diálogo?  Sobre “eu paguei dez escudos, como você…” ou sobre “Que merda é essa?…” ?

Quanto a mim, no mínimo, um escritor habilidoso contornaria o dúbio no diálogo  através de uma simples reestruturação frásica: – Olha, n´duwê, eu paguei dez escudos, como você…/– Mas não quero que conte!…Pôrra! Que merda é essa?…

Todo o ser humano tem uma boa história por contar, mas há-de diferenciar-se o habilidoso escritor acima de tudo, também pela atenção que dedica aos pequenos aspectos do texto, demonstrados pela sua capacidade de limar as arestas: o polimento que se obtém com o trabalho de reescrita. Portanto, indo contra a maré, Isaac Zita, infelizmente, aos 19 anos, não teve tempo para revelar essa grande maturidade, mas deixou marcas de ter sido um  grande talento!

Poderá alguém dizer que estou a lutar com um morto, e sempre ouvi que não se critica um finado, pois esse já  não poderá defender-se. Todavia, também, como africano, sei-o da memória colectiva que quando um vivente se apossa do espírito do morto para atormentar os seus contemporâneos, outra saída não haverá senão por intermédio do  nyamussoro dialogar com o próprio morto.

Da desonestidade intelectual, ou interferência com malabarismos de carácter pessoal nos artigos de opinião, Nelson Saúte entende que “falhara a ideia de o editar (Isaac Zita) como primeiro nome da colecção “Início”, que era dedicada a jovens talentos e que revelou, entre outros, o arrebatado e arrebatador poeta Eduardo White, com o livro “Amar sobre o Índico”. Ora, por que razão, na Colecção Início, Nelson Saúte vai rebuscar Eduardo White (por quem nutro uma admiração e tive a grata oportunidade de com ele privar, mas agora Saúte rebuscou-o mesmo. Com que objectivo?), com o livro “Amar sobre o Indico” (poesia), quando na sua abordagem tem como objecto um autor de narrativa?  Não seria coerente exemplificar com Aldino Muianga (Xitala Mati) ou Ungulani Ba Ka Khosa, aliás o único autor com obra, “Ualalapi” (Colecção Início)  cotado entre os cem melhores livros de África no Século XX.  Ora, esse fenómeno que não agrega mérito à classe intelectual moçambicana, com o fingimento de lapsos de memória quando e deixar-se, propositadamente, conduzir no mar dos (des)afectos pessoais em detrimento do rigor que é de se exigir a um escritor do quilate de Nelson Saúte.

Aviso à navegação, se a História absolverá Fidel Castro, seguramente condenará muitos intelectuais moçambicanos. Pois, muitos textos de opinião, entre ensaios e artigos jornalísticos que tenho a oportrunidade de ler, andam feridos pelo vício da memória selectiva e assim estão condenados a uma futura obscuridade: eu não vou por aí!

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos