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quando fala depois de nove hora eu não sabe outra história como história de rosalina

Rui Nogar: “quando fala depois de nove hora/ eu não sabe outra história/ como história de rosalina// foi quando aquele tempo/ chegou noite devagarinho/ pouco qui  pouco lá/ lua começou / lumiar o caminho/ caniço  areia  zinco  gente// dentro / já fosfo cendeu luz/ candeeiro petromax// senhor António mandou fora/ vai lá fora espreitar / jossia quando ouviu/ foi no fora espreitar  espreitou / depois  porta de cantina fechou// agora sim/ todo gente ficou saber  nove hora/ todo gente ficou saber/ porta ficou atrás li no posto/ vai abrir  vai sair cavalo/ vai sair polícia com sipaio-anda-perto

Conheci-a há 30 anos e, desde a primeira vez que a vi no palco, reconheci nela uma força da natureza a representar, uma verdadeira força telúrica, uma actriz jubilosa, versátil, com uma plasticidade e uma capacidade de se transfigurar nas personagens que encarnou. Digo: para mim, foi a melhor actriz moçambicana, a mais espantosa, a mais incrivelmente espantosa. Vê-la a representar mexia connosco, mexia com o edifício dos nossos sentimentos. Não saíamos os mesmos depois de a ver em palco. Era uma mulher soberba no palco. Uma actriz soberana. Foi a fazer o papel inesquecível de Rosalina que se tornaria lendária para mim.

Rui Nogar: “passou tempo assim-assim/ lua subiu mais lumiou mais/ agora lumiou medo lumiou pressa/ lumiou casadela também/ casaquela fica meio de lagoas/ e foi ali que rosalina/ foi lá no fora fazer mijo// gente que passa  que olha/ pode ver rosalina/ fazer mijo assim mesmo/ mas ela não tem culpa/ não tem culpa rosalina

Conheci-a quando conheci os seus companheiros. Quando me demorei nas conversas com o João Manja, que era um brilhante actor e é um admirável senhor.  Conheci-a nessa década de 80. Foi ali, naquele tempo, que percebi o talento impressionante da Lucrécia Paco. Foi quando me defrontei com a grandeza do Adelino Branquinho. Com o Victor Raposo, o Eduardo Gravata, o Evaristo Abreu, a Margarida Muluana, de grata memória.

Rui Nogar: “paga dinheiro no dono/ cada mês dia trinta/ mas dinheiro muito senhor silva// quando quer fica quando não vai/ gente não falta para pagar// senhor silva falou rosalina ficou// paga sempre cada mês cada mês/ mas casa ranjar não ranja/ assim mesmo não pode ficar

Cumpliciei com eles. Fizemos viagens inesquecíveis. A de Pemba, em Janeiro de 1989, sobretudo, quando foram fazer Os governadores de Orvalho, do haitiano Jacques Roumain e Funeral de um Rato, de Mia Couto. Calcorreámos este país, no projecto “Moçambiquero-te”. Acompanhei-os quando andavam a fazer educação cívica em 1994. Parte do nosso país, forçado a emigrar, retornava. Mutarara ou Ilha de Moçambique, entre outros lugares, vivi momentos únicos com o Mutumbela. Fomos a Zurique em 1995 e eu fiquei comovido até às lágrimas perante aquele público electrizado com a brilhante actuação de todos em Os Meninos de Ninguém. Conversei com o Henning Mankell (que merece a nossa lembrança) naquela viagem. Provavelmente, não tanto quanto desejaria. Olhava para ele como se miram os gigantes. Ele foi um grande escritor. Vi-os a representar em Maputo, em Pemba, em Zurique, ou em diversas cidades alemães, vi-os em Lisboa.

Rui Nogar: “foi cacimba outro dia/ com mais chuva que choveu/ foi sapato de mulungo/ com mais bota de soldado/ mas quem pisa  pisou mesmo/ foi os pé  de moleque/ que dinheiro não tem/ mas que passa que olha/ que gosta coisa que vê/ que empurra com mão com perna/ mas que dinheiro é que não tem/ foi também   os dali/ que trabalha no bazar/ outro caminho não quer/ outro caminho mais perto/ foi também cada noite/ quele muchope zapungana/ ah  mas quem foi que foi mais/ foi o tempo que passou/ quando onde passa/ deixa tudo como vôvô// e o tempo  vento  chuva/ bota sapato moleque/ tudo ali passou// foi assim que rosalina/ quando mija fica fora/ gente que passa  que olha/ está ver ela quando quer

O teatro é uma ferramenta indeclinável na construção de um país, de uma identidade, de uma memória colectiva e da pluralidade sócio-cultural. O teatro é indispensável para a educação. Não só em momentos cruciais, como foram aqueles em que votámos pela primeira vez e que o Mutumbela Gogo percorreu o país, mas sempre. Não sei quem se interessa por isso. Já percebi que os poderes públicos na área da cultura divergem do essencial. Vejo-os resolutos a averiguar comportamentos. Não é esse o seu papel. A cultura é o reino da liberdade e eles tem que saber dar livre curso a isso. O teatro e outras disciplinas das artes precisam de uma política cultural inteligente. O teatro é decisivo na formação da cidadania. O teatro deveria ser indispensável num país como o nosso. O Mutumbela transpôs para o palco textos de Mia Couto, adaptou Luís Bernardo Honwana ou Rui Nogar. Esse trabalho é indispensável.

Rui Nogar: “mas agora/ não pode esquecer agora/ quando passa depois de nove hora/ cuidado não pode ali fora//e polícia  e cavalo  a passar/ com sipaio-parece-mesmo-outro gente/ está olhar olhou já viu ela/ e assim viu correu  correu mesmo/ e garrou prendeu lo (…)/ mulher de lagoa  mais moleque/ mais outro preto qualquer/ não pode ficar no fora/ quando passa já nove hora/ pronto cabou  vamos embora”

A Manuela Soeiro percebeu isso e é responsável pelo mais corajoso e inventivo projecto de teatro moçambicano. Eu vi como aquelas actrizes e aqueles actores cresceram nas mãos da Manuela. Não só como profissionais – e foram os primeiros actores profissionais em Moçambique! -, mas como mulheres e homens. E vi como a Manuela sabia harmonizar, num único grupo, tantos talentos, diversas personalidades, umas mais pronunciadas do que outras, umas discretas, outras exuberantes. E vi como eles olhavam para ela e como a amavam e respeitavam.

Rui Nogar: “e rosalina fica assim/ foi no posto número três/ com moleque polícia diz bandido/ com miúdo polícia chama vadio/ só porque passe no bolso não tem/ e bilhete-patrão-sina também/ não vai escola não pode estuda/ que vida moleque é trabalhar trabalho/ e dia todo moleca mesmo/ desde galo canta primeira vez/ até cão começou ladrar/ sozinho ali naquela estrada/ e primeiro agora é quintal/ vai varrer  já varreu/ tira lata de lixo fora/ põe lata de lixo dentro/ foi no talho  na padaria/ no bazar vasco da gama/ cendeu fogo cendeu já/ e quando caba tomar chá/ toda a gente que tomou/ rapaz vai tomar chá/ há muita roupa para lavar/ mas primeiro lava as chávenas/ mais os pires e colherinhas/ só depois é que lá fora/ vai no tanque de lavar/ e lava a roupa passa roupa/ de menino e de patrão/ e de menina e de senhora/ e roupa que vai usar/ outro domingo que deixar/ senhora é que vai mandar/ frega chão cera chão/ sábado sim sábado não

Ainda aqui há tempos – parece que foi ontem –  vi-a no Avenida, em Nove Hora, fazendo o papel de Rosalina, onde de facto ela se agigantou, peça baseada na adaptação do poema homónimo do inesquecível Rui Nogar. Aqui há tempos eu saíra em lágrimas daquele palco onde a vi brilhar. Vi-a em tantas outras peças. Admirava-a, tinha orgulho dela, aplaudia-a. De pé, como se devem aplaudir os gigantes.

Rui Nogar: “e caminho a continuar/ té no posto número três/ foi caminho de entrar/ lá no espada massuingue/ que no preço de um só disco/ tem um mundo a esmagar/ pontapés na louça toda/ sempre sempre está lavar/ tem na cama nos seus braços/ a senhora a espernear/ e a fugir é o patrão/ da navalha do seu riso// ah  o estrado lá no espada/ ah o estrado lá no espada/ twist  twist twist again/ ah o jive no estrado/ yah brothers i´m the king/ of my shadows/ everywere i´m working/ yes brothers  yes brohters  ah  ah  ah ah// ah o estrado lá no espada/ que liberta me liberta/ te liberta  nos liberta

Era e é uma actriz gigante. Disse-o e repito: a mais incrível actriz moçambicana. A mais bela actriz moçambicana. Quem não a viu, quem não foi interpelado pelo seu olhar no palco, pelos seus gestos, pela sua voz, pela sua representação, perdeu o melhor que tivemos no nosso teatro nos últimos quarenta anos. Para mim, a melhor actriz do Mutumbela Gogo, a melhor actriz moçambicana. Admirava-lhe o colossal talento, mas também, ou sobretudo, a imensidão da sua humildade. Foi uma mulher desprovida de todo e qualquer vedetismo. Não era uma diva, era sim uma grande senhora. Foi uma grande senhora do nosso teatro, a grande senhora do nosso teatro.

Rui Nogar: “mas agora é rosalina/ que no posto já chegou/ que sô chefe já chamou/ e a falar está dizer/ estava só fazer mijo/ e era dentro no quintal/ lá no casa não tem culpa/ senhor silva não faz muro/ para mijo ficar dentro/ não tem culpa senhor chefe/ lá meu filho está chorar/ está na esteira me esperar/ já não sabe está sozinho/ como pode sem mamar/ lá meu filho está chorar/ lá meu filho está chorar// e chefe quando ouviu/ diz a ela vai embora/ e outra vez se fores presa/ vais mijar no cangarrão/ e o sipaio agarra braço/ puxa ela ir embora”

Perdoem-me este tom intrépido. Enfático. Definitivo. Eu sou assim com as palavras, eu sou assim com os sentimentos. Ponho neles uma paixão intransitiva. Ela foi e é uma mulher que concitou sempre e continuará a concitar a minha incondicional admiração. Dou-me conta de que passaram trinta anos. E ela esteve sempre na trincheira do Mutumbela. Não sei de notícia que a colocasse fora daquele palco, daquele teatro, daquela vida, porque o teatro, o palco, a representação foram e são a sua vida. Passou a maior parte da sua vida ali. No palco. A sua vida foi o teatro. A devoção pela arte dramática, fê-lo com denodo, entregou-se reiteradamente. Com devoção e paixão. A sua vida foi a representação. No entanto, nunca lhe divisei, nunca consegui perceber nela nenhum sinal de estrela – como os falsos cometas que se guindam por aí e que estão desprovidos de obra e de valor. Ela tem um longuíssimo e profícuo currículo. Ela tem uma história. Ela é parte da história do Mutumbela Gogo, a história do nosso teatro, o melhor que vimos e aplaudimos nos palcos, nos nossos palcos.

Rui Nogar: “rosalina já não guenta/ cai no chão a soluçar/ soca areia chora grita/ quer bater no senhor silva/ que só sabe é explorar/ quer matar sipaio aquele/ que só prende o seu irmão/ quer lutar com força toda/ viu naquele o sopra gaita/ viu ali  lá no espada/ viu ahoje  quando viu/ filho nosso mesmo nosso/ mais sozinho já não fica/ já não pode mais ficar// rosalina rosalina/ rosalina está sentir/ que nós  todo mesmo/ vai um dia juntar raiva/ que precisa é rebentar// rosalina rosalina/ rosalina está sentir/ esta hora de nove hora/ é preciso vai cabar/ é preciso vai cabar/ para ninguém vais mais chorar/ para ninguém vai mais sofrer”

Ela fez este papel – e tantos outros – com garbo, com elevação, com elegância, com panache, com inteligência, com brilho, como uma grande actriz, como uma imensíssima intérprete. Pôs tudo o que era naquilo que fazia e por isso foi uma actriz extraordinária. O talento não é tudo, é preciso trabalho. Muito trabalho. As suas imagens que me ocorrem no palco, nas suas interpretações inesquecíveis, são, algumas, muitas, quase todas, arrepiantes. Morreu no dia 16 de Abril de 2017.  Há precisamente um ano, as mensagens sucediam-se numa manhã usual de domingo. As mensagens sentidas, de ocasião e outras. As mensagens sinceras. Inundavam as redes sociais. Chegaram-me por interposição. Não sou afeito à rede. Nem às redes. Permaneço obscuro e intransigente na idade do livro, sou relapso em tecnologia e desconfiado do conhecimento instantâneo. Desconfio, por conseguinte, das redes. Mas recebi screenshots: tudo parecia ter sido tão rápido naquela madrugada, tão brutalmente rápido, naquela infausta madrugada, a que nos subtraiu deste reino – onde os néscios contumazes persistem – uma belíssima mulher, uma belíssima actriz, que será sempre, para mim, sobretudo, a inesquecível Rosalina, do Nove Hora: Graça Silva.

Rui Nogar: “rosalina rosalina/ rosalina está sentir/ que outro dia lá no espada/ aquele disco vai tocar/ nunca mais vai parar/ nunca mais nunca mais/ nunca mais vai parar/ nunca mais nunca mais/ nunca mais vai parar”.

 

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