Texto escrito em 2009
Interpretação da alínea b) do nª2 do artigo 178 da Constituição
A Assembleia da República, após o encerramento da sua última sessão ordinária, e em vésperas de início da campanha eleitoral, foi confrontada com um pedido de declaração de perda de mandato em relação a deputados que se inscreveram em partidos diferentes daqueles pelos quais haviam sido eleitos. O pedido teve como fundamento o estabelecido nas alíneas d) e e) do n?1 do artigo 8 da Lei n?3/2004, de 21 de Janeiro, Estatuto do Deputado, que estabelecem o seguinte:
«Perde o mandato o Deputado que durante a legislatura:
…………………………………………………………………..
d) se inscreva em partido diferente daquele pelo qual foi eleito;
e) assuma funções em partido diferente daquele pelo qual foi eleito;»
A Comissão dos Assuntos Jurídicos, Direitos Humanos e de Legalidade, em Parecer remetido ao Presidente da Assembleia da República, considerando que tal comportamento se enquadrava no previsto na alínea b) do n?2 do artigo 178 da Constituição, que determina a perda do mandato do Deputado que «se inscreva ou assuma função em partido ou coligação diferentes daquele pelo qual foi eleito», conjugado com a já referida alínea d) do n?1 do artigo 8 do Estatuto do Deputado, propôs que a Comissão Permanente da Assembleia da República deliberasse em conformidade com o pedido.
O Parecer da CAJDHL é escasso em fundamentação ou em argumentação, fazendo apenas referencia a um precedente que teri a ocorrido na legislatura anterior com alguns deputados da bancada ora requerente.
O Parecer registou um voto de vencido no qual se expende, essencialmente, que “O elemento teleológico da norma contida na alínea b) do artigo 178 da CRM e na alínea d) e e) do artigo 8? da Lei nº 3/2004, de 21 de Janeiro, ainda em vigor, visa defender os interesses e posições políticas do Partido durante a vigência do Mandato e não para a legislatura seguinte.”. pelo que “…os deputados em causa… não perdem o seu actual mandato, ainda vigente.”
Assim, ainda que breve, é o voto de vencido que aborda e argumenta sobre a questão de fundo que a interpretação dos dispositivos constitucionais e legais pertinentes ao caso sub judice suscita.
Com efeito, as disposições invocadas, tanto pela bancada requerente como pelo Parecer da CAJDHL, são as realmente aplicáveis neste caso. Só que não se vislumbra nenhum esforço de interpretação, limitando-se unicamente ao seu sentido literal. Ora o sentido literal, neste caso, coloca essas disposições em linha de colisão com outras disposições ou princípios constitucionais igualmente relevantes, e que , em princípio, não se percebe por que razões deveriam ser sacrificados.
Desde logo a questão deve colocar-se no plano da interpretação dos dispositivos constitucionais pertinentes, porquanto sendo o Estatuto do Deputado lei ordinária, ao regular a mesma matéria, terá que se lhes subordinar.
Ao se isolar o sentido literal da alínea b) do n?2 do artigo 178 da Constituição, colide-se inevitavelmente com outros dispositivos constitucionais, tais como o n?3 do artigo 170, o n?2 do artigo 147, ou o artigo 53. Vejamos como:
O princípio estabelecido no n?3 do artigo 170 constitui a base da universalidade do sufrágio, estende-se a todo o cidadão como prerrogativa fundamental, isto é, tanto aos cidadãos que estão integrados em partidos como aos que não estão. Todos eles gozam da liberdade de concorrer, com um único condicionamento: devem estar integrados em listas partidárias. Porém, o que este dispositivo não estabelece é que os cidadãos filiados num partido apenas possam concorrer por esse mesmo partido. Estes são livres de concorrer pelo mesmo ou por diferente partido ou mesmo como independentes. E não se vislumbra nenhum fundamento para retirar aos deputados essa prerrogativa tão fundamental ao sufrágio para que este seja de facto livre e universal, introduzindo uma espécie de capitis deminutio à margem da Constituição.
O vínculo que liga o Deputado a uma bancada é de natureza político-partidária, organizatória e disciplinar, não se sobrepondo ao vínculo que o liga ao Estado e à Nação. Por isso é que ele pode romper esse vínculo sem que seja posta em causa a sua condição de Deputado da Nação.
A proibição que a Constituição estabelece, como limite à liberdade do Deputado, é apenas a da sua ”migração” para outras forças políticas, entenda-se, na vigência do mandato. Uma prática proibida entre nós mas permitida noutros parlamentos e que se designa de “floor crossing”.
Esta limitação tem por finalidade, por um lado, defender o partido perante o qual o Deputado assumiu compromisso ao aceitar a inclusão na respectiva lista, e, por outro, a permitir a organização e disciplina dos deputados necessária à estabilidade e ao normal funcionamento da instituição parlamentar.
Porém, e apesar da reconhecida relevância destes fundamentos, nenhum deles se sobrepõe ao vínculo que liga o deputado à Nação, nem ao princípio de liberdade de consciência que lhe é inerente. Por isso mesmo o deputado pode afastar-se do partido (e da bancada) pelo qual foi eleito mantendo-se como deputado independente, portanto sem perda do mandato. Sobre esta possibilidade não se suscita nenhuma dúvida.
Assim, com que fundamento se iria forçar este deputado independente a inscrever-se, para o mandato seguinte, em listas de um partido do qual já estaria desvinculado? Não faria sentido nenhum. Mutatis mutandi, se lhe é reconhecido o direito de se desvincular e afastar totalmente do partido pelo qual foi eleito deputado, em pleno exercício do mandato e sem perda do mesmo, com que fundamento se lhe iria recusar o direito de se inscrever por outro partido para o mandato seguinte? A considerar-se sancionável este último comportamento, por maioria de razão se deveria sancionar o primeiro porquanto, por esse prisma, é sem dúvida mais grave.
Esta liberdade de se inscrever em partido diferente não constitui uma prerrogativa apenas do deputado independente. Com efeito, estamos perante uma liberdade política fundamental consagrada na Constituição, de que todos os deputados e os demais cidadãos, gozam.
Esta liberdade é condicionada apenas em função do mandato. Mas esse condicionamento não vai para além do mandato em causa, ela não o extravasa. Assim, não se pode, em nome do mesmo, prejudicar o exercício de direitos que se refiram ao mandato seguinte, porque isso seria excessivo em relação aos fins visados por aquele condicionamento e, por conseguinte, já não faria sentido.
A lei ou a Constituição nunca poderiam consagrar um princípio segundo o qual, uma vez eleito deputado por um partido, terá que ser reeleito pelo mesmo partido, sempre. Mais do que partidocracia seria «escravização» dos deputados aos respectivos partidos!
Uma vez que a organização dos processos eleitorais é concebida de forma que não se verifique qualquer hiato entre uma legislatura e a seguinte, isso tem consequências sobre a questão em análise. Com efeito, as eleições tem lugar, mais ou menos, imediatamente antes do termo do mandato em vias de cessar, não havendo um período específico, entre uma legislatura e a seguinte, destinado aos cidadãos que são deputados para exercerem a fundamental liberdade de opção político-partidária entre inscreverem-se pelos partidos por que foram eleitos ou inscreverem-se por quaisquer outros.
A inexistência de um tal período específico para o exercício da liberdade de opção não pode significar a exclusão da liberdade de opção. Não pode significar que essa liberdade é, como tal, negada, e substituída por um princípio de vinculação ou de obrigatoriedade de renovação do mandato pelo mesmo partido.
Na verdade a solução para esta dificuldade, que a meu ver é apenas de interpretação do dispositivo constitucional pertinente, deve assentar numa lógica paralela ou semelhante àquela que orienta as soluções já adoptadas pela legislação eleitoral relativamente aos “magistrados judiciais, do Ministério Público e os diplomatas chefes de missão que…pretendam concorrer ás eleições presidenciais ou legislativas…”, os quais, nos termos do n?1 do artigo 14 da Lei n?7/2007, de 26 de Fevereiro, “devem solicitar a suspensão do exercício da função, a partir do momento da apresentação da candidatura.” Nestes casos não se coarcta nem prejudica nenhum direito, apenas se compatibiliza o respectivo exercício.
No caso em apreço, porque não se vislumbra nenhuma contradição entre a condição de deputado da Nação, independente ou não, num mandato, e o exercício da liberdade de opção político-partidária para o mandato seguinte, o que a legislação eleitoral tem que fazer é adoptar uma solução de compatibilização prática, sem prejuízo ou exclusão de nenhum princípio ou direito.
A alínea b) do n?2 do artigo 178 da Constituição nada mais é do que a consagração constitucional da norma que dantes constava apenas ao nível do Estatuto do Deputado (Artigo 8 da Lei n?2/95, de 8 de Maio e sucessivas revisões). Em 2004, o legislador constituinte, considerando que esta matéria, pela sua directa conexão com a conformação do órgão de soberania que é a Assembleia da República, não devia ficar ao critério do legislador ordinário, conferiu-lhe dignidade constitucional.
Tenhamos em atenção que o legislador ordinário inspirara-se no correspondente dispositivo da Constituição Portuguesa que, desde 1976, vem consagrando, na alínea c) do n°1 do artigo 160 (Perda e renúncia do mandato), a norma segundo a qual “1. Perdem o mandato os Deputados que: c) Se inscrevam em partido diverso daquele pelo qual foram apresentados a sufrágio.”. Jorge Miranda e António Medeiros, em anotação a esta alínea (no Tomo II da sua «Constituição Portuguesa Anotada»), defendem que “É uma salvaguarda da vontade popular e um imperativo ético cuja consagração jurídico constitucional se mostra necessária olhando à experiência de muitos países, incluindo o Portugal do tempo do liberalismo….Além disso, a despeito de a disposição constitucional não o explicitar, deve entender-se que perde também o mandato… o Deputado que se apresenta como candidato a novas eleições (sejam parlamentares ou não) por partido diverso. A ratio é a mesma.”
Se a nossa análise está em linha com a primeira parte da anotação, no que concerne às razões em que se justifica o dispositivo em causa, já a parte final da mesma, justamente naquilo em que o texto da Constituição Portuguesa não é explícito, não nos parece que se possa, de forma coerente, fundar nas mesmas razões, nomeadamente de “salvaguarda da vontade popular” e de “imperativo ético”.
É que a vontade popular que é mister salvaguardar é a que se refere estritamente à eleição para o mandato anterior, e o imperativo ético só se pode referir ao compromisso político subjacente à candidatura para esse mesmo mandato. A vontade popular manifestada não se estende ao mandato seguinte, assim como não se vislumbra que imperativo ético se pode invocar em relação a um compromisso (relativo ao mandato seguinte) que ainda não foi assumido. Contrariamente ao que os ilustres e respeitados constitucionalistas expendem, parece-nos que a ratio não pode ser a mesma. A existir alguma ratio parece-nos que teria de ser bem outra e não aquela.