Não são os prémios que dão valor aos livros.
São os livros que dão valor aos prémios.
Venho pensando neste exercício de apresentação de livros e do alcance que devemos dar a ele. Olho para mim nesta actividade e não sinto mais nada senão a responsabilidade. Quando recebo um convite desta natureza pairam em mim algumas perguntas: Quem eu sou? De quem é o livro? Quem serão as pessoas que me irão escutar? E por que razão o livro deve ser apresentado? Sinceramente (e por agora), só tenho respostas para a primeira e a última (quem eu sou e o por que razão o livro deve ser apresentado?)
Quanto a esta primeira pergunta, apenas sei que não sou um influencer com poder de vos fazer comprar o livro à força, como quem diz “se ele falou tão bem do livro, deve ser bom”. Não, não sou…felizmente! Imaginem se eu fosse uma dessas entidades com o nome já firmado no âmbito académico, cultural ou político. Estaria aqui numa espécie de saia justa. Teria de escolher entre falar bem do livro, com o risco de comprometer a minha imagem se o livro for mau; ou ter de ser sincero relativamente aos aspectos negativos do livro para salvaguardar a minha honra, e ser tomado como incoerente tanto pela editora, quanto pela autora, pela natureza desta actividade. Mais adiante retomamos o sentido desta incoerência a que me refiro.
Cabe, também, acrescer o facto de estar, pela primeira vez, a interagir com a autora do livro, o que me salva da acusação de amiguismo sobre qualquer aspecto a que eu vá fazer menção sobre o livro.
Ora, todos estes elementos colocam-me diante de uma neutralidade que me permite falar deste livro sem amarras e com a responsabilidade focada pura e simplesmente ao acto de apresentação do livro que, em si, invoca a aludida coerência entre o que o livro é e os motivos pelos quais deva ser objecto de consumo. Respondendo à segunda pergunta (por que o livro deve ser apresentado?), vejo este exercício na dimensão publicitária e, sobretudo, crítica. É um exercício que vai permitir que os senhores aqui sentados comprem o livro, certos do que poderão encontrar nele; para os que não poderão comprar hoje, servirá de amostra do quão grande será a sua perda; para os que já leram (editor, revisor, autor, etc.) será uma oportunidade para revisitarem as leituras que fizeram dele e criarmos, assim, algum espaço de discussão e aprendizagem.
Enquanto percorria as páginas deste diamantes pretos no meio de cristais, eu dizia cá para mim: este livro é único. Digo, contudo, que foi inevitável não pensar em Neighbours, de Lília Momplé, um belíssimo romance em que esta emblemática figura da literatura moçambicana cria um enredo que se desenrola em três blocos narrativos cuja interseção é a ocorrência de um crime que envolve três famílias vizinhas.
À semelhança desta narrativa, diamantes pretos no meio de cristais apresenta-nos três universos de narração distintos e independentes cujo fio condutor não se estabelece no enredo propriamente dito, mas na reflexão a que nos remete que se prende com a atemporalidade da luta pela igualdade de direitos diante das diferenças raciais e de doenças pandémicas. Portanto, o racismo (de brancos para negros, sobretudo) e a discriminação de pessoas com HIV/SIDA quando não se tinha muita informação sobre esta doença, são o mote que sustenta o enredo deste romance.
Nos últimos 20 anos da literatura moçambicana, há um sentimento muito acentuado de abandonar os clichês do que se possa considerar, efectivamente, literatura moçambicana, seja do ponto de vista de temáticas, de espaços e tempos da narração, da estrutura narrativa e, finalmente, da construção linguística do livro. A forma como estes elementos são abordados em diamantes pretos no meio de cristais é o que constitui a unicidade deste livro no nosso meio e dá à Maya Ângela alguma autoridade para se assumir como “escritora” pura e simplesmente, sem nenhum qualificador que, na essência, é um clichê redutor.
O trama do livro desenrola-se, principalmente, em três espaços diferentes: Kansas (Estados Unidos da América), Cidade do Cabo (África do Sul) e Cidade de Maputo (Moçambique). Do ponto de vista temporal, as acções que ocorrem em Kansas iniciam em Agosto de 1856 e se enceram em Dezembro do mesmo ano. As da Cidade do Cabo ocorrem no intervalo entre Fevereiro a Setembro de 1961 e as da Cidade de Maputo, respectivamente, começam em Junho de 2001 e terminam em Outubro do mesmo ano. Relativamente à aludida estruturação destes enredos, diga-se que obedecem blocos estruturais que se permutam e se mantêm independentes do início ao fim, salvo o facto de a reflexão a que nos remetem ser a mesma conforme disse acima.
Diante deste aspecto peculiar na construção do romance, valerá, sobremaneira, a atenção do leitor para manter o fio condutor destes universos temporais e espaciais bastante diversos e que nos remetem a um aspecto não muito comum na construção narrativa a que já estamos acostumados. Refiro-me à coabitação de cerca de cinco línguas, entre as quais podemos destacar: Português, Inglês, Xirhonga, IsiXhosa, Afrikaans, entre outras. O que chama atenção neste exercício é a busca de verosimilhança do enredo através da atribuição de falas das personagens nas línguas em que as mesmas são fluentes em função das suas características sócio-identitárias, pelo menos é o que se pode inferir deste esforço de dar vida às letras através da mistura de códigos, linguagens e linguajares.
Este exercício curioso e particular relativamente às categorias do acto de narrar faz com que rebusquemos bases teóricas que possam sustentar as escolhas estéticas que foram feitas em “diamantes pretos no meio de cristais”.
Resumidamente, considere-se que muitos autores apontam o século XIX como o período em que o romance atinge o apogeu do ponto de vista de produção e consumo. Portanto, a popularidade de que o romance se beneficia nos dias de hoje é uma novidade dos últimos duzentos anos. Isso não significa que ele tenha surgido exactamente neste período. A questão da origem/surgimento é uma outra conversa, porque desde os tempos antigos o ser humano teve sempre este hábito de reflectir sobre grandes temas, personalidades, ideias e valores.
Um dos géneros a que se recorria nesse tentame, pelo menos no que à narrativa diz respeito, era a epopeia: forma textual que teve especial incidência na Antiguidade e no Renascimento. Com a ascensão de sociedades burguesas, o romance passou, também, a conhecer os seus dias de glória, abandonando, em certa medida, a afirmação de projectos nacionalistas excepcionais, a competição dos deuses com os homens e a representação do destino colectivo de comunidades de alcance nacional. Todos estes aspectos deixam de ter primazia com a entrada em cena de personagens antes tidas como pacatas, triviais, mas não menos importantes para o entendimento de sociedades actuais ou antigas, suas dinâmicas políticas, sociais e até quotidianas.
É por esta razão que neste romance nos são apresentadas três personagens pacatas do ponto de vista de origem social, mas que desencadeiam reflexões existencialistas de grande vulto. Talvez venha daí o título que o livro recebe: diamantes pretos no meio de cristais. A Juno Beomunt, a Anna e a Elvira Guambe são, indubitavelmente, os diamantes pretos deste livro.
Juno Beomunt: uma escrava, negra, que fora adoptada como filha por um casal no Norte dos Estados Unidos da América, cresceu como tal e com direito à edução a que não tinham acesso as outras pessoas iguais a si. Cresce nutrida de ideias de abolição da escravatura por, ela própria, ser a amostra de que a descriminação das pessoas com base na cor da pele é uma construção social que nada tem a ver com um “projecto divino” como inescrupulosamente se tentava defender. Somos todos iguais, temos os mesmos direitos – é assim que vê o mundo: o seu e o dos outros.
Anna: uma empregada doméstiga, negra, que trabalha para a família Dawnson em Cape Town, um casal de brancos, com dois filhos (uma menina e um menino recém-nascido). Sente na pele as mazelas do apartheid e as regras discriminatórias que vigoravam em torno deste sistema. Convive com a família Dawnson no contexto familiar, debate-se com os seus dramas conjugais e vivencia a pequenez de um racismo estrutural que, felizmente, não comanda o sentimento das crianças do casal pelas quais tem imenso carinho, ao ponto de amamentar o bebé recém-nascido da sua patroa por esta se negar a atender aos choros da criança em virtude de estar a cuidar das unhas.
Elvira Guambe: uma jovem que muito cedo concebeu, foi ao lar, perdeu o filho, ficou viúva, descobre que era seropositiva numa altura em que tal condição constituía um tabu social e, por via disso, é expulsa de casa pelo pai. É acolhida em casa de um amigo, passa a trabalhar nas lojas da cidade de Maputo, desfaz-se da casa do amigo por achar que precisasse de cuidar do seu destino de forma autónoma. Segue o tratamento anti-retroviral em segredo e não partilha a sua condição de saúde nem com a própria sombra. Por influência de amigas, torna-se prostituta, passa a não seguir as recomendações médicas. O seu estado de saúde piora e, enfim, desfalece.
O drama destas três mulheres, quais diamantes pretos no meio de cristais, deixa o leitor em transe relativamente a diversas questões que constituem o nosso universo histórico e existencial não só como africanos, mas como humanos na dimensão mais ampla possível para compreender a vida presente como consequência de um passado que, embora nos pareça alheio, faz parte de uma teia diacrónica com a qual devemos saber conviver para melhor contribuirmos rumo a um mundo cada vez mais humano. Tomando como minhas as palavras de José Saramago durante uma entrevista no programa Roda Viva (em 2003), diria: o recorte histórico a que Maya Ângela recorre neste romance prova que “contrariamente ao que se pensa, não é o passado que nos ajuda a entender o presente, mas o presente que nos ajuda a entender o passado”. Este é o maior valor deste livro. Vem daí, portanto, o sentido das palavras que servem de epígrafe deste texto: não são os prémios que dão valor aos livros. São os livros que dão valor aos prémios.
[1] Texto de apresentação do livro diamantes pretos no meio de cristais da autoria de Maya Ângela Macuácua, chancela pela Fundação Fernando Leite Couto, no Salão Nobre do Conselho Municipal da Cidade de Xai-Xai, a 20 de Junho de 2023.