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Releituras (14) – Perestroika

MIKHAIL GORBATCHOV, estadista e político russo, nasceu na Rússia  em 1931. Foi secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e oitavo e último líder da União Soviética. É mentor e responsável da política da Perestroika (reestruturação) e da Glasnost (transparência) que acabaram descambando na desintegração da união soviética. É igualmente autor do livro “Perestroika “, 1987.

Nos últimos anos da década de 80 e princípios da de 90 do século transato, eu era assistente dos secretários para as relações exteriores, designadamente, Pascoal Manuel Mocumbi e seu adjunto José Luís Cabaço. Foram anos decisivos tanto para Moçambique, no quadro do processo de paz e das transformações políticas, económicas e sociais, quanto para o bloco soviético em relação às reformas no âmbito da perestroika e da glasnost. Lembro-me que discutia, em privado, tanto com um como com outro, sobre diversos assuntos relacionados com estes processos. Tive o privilégio de pertencer aos círculos restritos de ambos. E como tal, conversávamos abertamente, sem preconceitos e nem aqueles pruridos característicos dos meandros políticos. Pessoalmente, confesso que devo também a estes intelectuais parte da minha formação política. Mas sobre as reformas soviéticas havia algo que ainda não estava claro para nós outros, os da periferia. Não sabíamos exactamente se tais reformas visavam a uma espécie de capitulação “velada” ou simplesmente à potenciação do sistema socialista em si. Isto, em parte, devido à rapidez com que o processo ia se desenrolando e, ao mesmo tempo, ao caos que aparentemente ia criando no seio da própria sociedade soviética. E o livro “Perestroika” veio de certo modo ajudar a compreender o processo.

Li este livro em 1999 (edição portuguesa, 1987, Publicações Europa-América, 280 páginas). Andava tão sedento por esta obra que comecei a lê-la a partir da própria livraria onde a comprara, em Lisboa. Lembro-me de ter sido eu a dar a boa nova, em primeira mão, ao poeta e político moçambicano Marcelino dos Santos (1929 – 2020) da sua referenciação no livro de Gorbatchov, aliás, um dos poucos líderes africanos nele citados. Quanto a mim, “Perestroika” é um documento histórico que sistematiza os princípios e objectivos que se pretendiam com as reformas consubstanciadas na política da perestroika e da glasnost, mau grado a história ter sido mais célere que as próprias reformas então preconizadas. O próprio autor do livro defende que “Perestroika não é uma obra científica ou um panfleto propagandístico, ainda que as perspectivas, conclusões e abordagens que o leitor nela observará sejam naturalmente baseadas em valores precisos e em premissas teóricas. Constitui, antes de mais, uma recolha de pensamento e reflexões sobre a perestroika, os problemas que enfrentamos, a amplitude das mudanças, assim como sobre a complexidade, responsabilidade e singularidade do nosso tempo” (p.17).

“A perestroika é uma necessidade urgente surgida dos profundos processos de desenvolvimento na nossa sociedade socialista. Esta sociedade está madura para as mudanças. Há muito que ansiava por ela. Qualquer demora no lançamento da Perestroika poderia conduzir, num futuro próximo, a uma situação interna exacerbada que, para colocar as coisas com franqueza, estaria carregada de crises sociais, económicas e politicas muito serias” (p.25).

E é justamente isso o que veio a acontecer. A implementação da perestroika foi demasiadamente lenta face à insustentabilidade da situação que então se vivia na união soviética. O que terá, então, falhado no processo de construção do socialismo na União Soviética?  Gorbatchov justifica as suas reformas afirmando: “Ao mesmo tempo, falhámos no que respeita à utilização de todas as potencialidades de socialismo para responder às crescentes necessidades de habitação, qualidade e por vezes quantidade dos produtos alimentares, na devida organização dos transportes, nos serviços de saúde, educação  e na resolução de outros problemas que, muito naturalmente, surgem no decurso do desenvolvimento da sociedade” (p.29).

Mikhail Gorbatchov continua com a sua justificativa acrescentando que “Também no plano ideológico o mecanismo de travagem trouxe consigo uma cada vez maior resistência às tentativas de exame construtivo dos problemas emergentes e às novas ideias. A propaganda do sucesso ? real ou imaginado ? sobrepunha-se a tudo, os panegíricos e o servilismo eram encorajados” (p.30).

“A alguns níveis administrativos surgiu o desrespeito pela lei e o encorajamento da lisonja e dos subornos, do servilismo da glorificação. O povo trabalhador mostrava-se justamente indignado com os abusos do poder, supressão da critica, com as fortunas feitas, e em certos casos tornou-se até cúmplice ? se não organizador ? de actos criminosos.” (p.31)

É realmente indiciador de revolução quando, numa sociedade, a situação resvala ao ponto de ser o próprio povo trabalhador a ser cúmplice de actos criminosos. É o cúmulo da desestruturação dessa sociedade. E Gorbatchov conclui a sua justificação: “Uma abordagem sem preconceitos e honesta conduziu-nos à única conclusão lógica, a de que o país estava à beira da crise” (p.32).

O autor do livro reconhece o papel das artes e da literatura que sempre desempenharam um importante papel na vida espiritual do país, sendo impiedosas para com todas as manifestações de injustiça e de abuso do poder. Gorbatchov acrescenta que “Nas suas melhores obras, os escritores, realizadores de cinema e produtores teatrais, bem como os actores, tentaram impulsionar a crença do povo nas realizações ideológicas do socialismo, na esperança de conseguirem um renascimento espiritual da sociedade, e, apesar de todos os impedimentos burocráticos e até perseguições, prepararam moralmente as pessoas para a perestroika (p.33).

Gorbatchov sublinha que “Perestroika é uma palavra com muitos significados. Mas, se escolhermos entre os seus muitos sinónimos possíveis aquele que constitui o seu conceito-chave e exprime a sua essência com maior exatidão, podemos dizer o seguinte: a perestroika é uma revolução. Uma aceleração decisiva do desenvolvimento socioeconómico e cultural da sociedade soviética que envolve alterações radicais na via para um estado qualitativamente novo é inegavelmente uma tarefa revolucionária (p.60).

Como sempre, toda e qualquer mudança pressupõe coragem e sacrifícios. Pressupõe igualmente firmeza e tenacidade, pois “O desaparecimento de qualquer coisa habitual provoca protestos. O conservantismo não quer ceder, mas tudo isto pode e tem de ser ultrapassado se quisermos satisfazer os interesses de longo prazo da sociedade e de cada indivíduo (p.63).

“À semelhança da revolução, a perestroika não é algo com que se possa brincar. É necessário levar as coisas até ao fim e todos os dias fazer progressos para que as massas sintam os seus resultados e o processo possa continuar a ganhar ímpeto, quer material quer espiritualmente” (p.64).

Em política, afinal, tudo é uma possibilidade. É preciso avaliar científica e cuidadosamente todas essas possibilidades quando se pretende delinear programas e tarefas, visando a grandes transformações. E Gorbatchov sublinha de facto que “A politica é a arte do possível. Para lá dos limites do possível começa o aventureirismo” (p.76)

A política da perestroika e da glasnost veio, como não podia deixar de ser, levantar inúmeros debates dentro da intelectualidade soviética, principalmente no seio dos escritores. A respeito, Gorbatchov afiança que “Houve uma dada altura em que o tom acalorado cresceu na comunidade literária” (…).  “A  pior coisa que poderia acontecer era se a intelligentsia criativa, nestes tempos revolucionários, se permitisse envolver em coisas mesquinhas e  ridículas, dando largas a ambições pessoais e gastando as suas energias em palavrões insensatos em vez de se lançar em empreendedorismo criativos” (p.94/95).

Gorbatchov entende que a intelligentsia criativa está dotada de um sentido de responsabilidade cívica e que aguentou aos ombros o peso de uma larga fatia do esforço de reestruturação. Ademais, o maior problema do socialismo foi como combinar os interesses pessoais com os do colectivo. E, sendo este um problema de fundo, Gorbatchov diz que “Acreditamos que combinar os interesses pessoais e socialismo continua a ser o problema fundamental. Referimo-nos, evidentemente, a interesses pessoais em sentido lato e não só no sentido material” (p.109).

Sobre a segurança mundial, Gorbatchov entende que “A nova visão política exige o reconhecimento de um outro axioma simples: a segurança é indivisível. Ou é segurança igual para todos, ou não é nenhuma” (p.158).

E o autor assegura que era convicção aceite de que a origem das guerras mundiais se encontrava nas contradições entre os dois sistemas sociais (capitalismo e socialismo).  “Antes de 1917 havia apenas um sistema no mundo ? o capitalismo ?, mas esse mesmo sistema. E também houve outras guerras” (p.163).

Gorbatchov sustenta este pensamento recorrendo à primeira Guerra Mundial que provocou uma verdadeira tempestade revolucionária, ao  culminar com  a revolução de Outubro no seu país. E vai mais longe acrescentando que “A segunda Guerra Mundial desencadeou uma nova onda de revolução na Europa oriental e na Ásia, assim como uma poderosa revolução anticolonial” (p.164).

Mikhail Gorbatchov nega que a URSS tenha exportado sua revolução a outros cantos do mundo e consubstancia isso citando Marx «O proletariado vitorioso não pode impor o seu próprio ideal da vida feliz a qualquer outra nação sem causar danos à sua própria vitória» (p.167).

Depois o autor remata asseverando que “As revoluções e os movimentos de libertação emergem no solo nacional. Surgem quando a pobreza e a opressão das massas se tornam intoleráveis, quando a dignidade nacional é humilhada e quando a uma nação é negado o direito de decidir por si o seu próprio destino. Se as massas se erguem para lutar, isso quer dizer que os seus direitos vitais foram suprimidos” (p.168).

Gorbatchov volta a realçar o papel da literatura, desta feita, citando o notabilíssimo escritor latino-americano, Gabriel Garcia Marquez, a quem considera um homem de grande intelecto. “A extensão do seu pensamento é global; basta ler um dos seus livros para o verificar. Aconteceu então que, ao falar de reestruturação a processar-se na união soviética, se pode mergulhar em qualquer problema internacional e social dos nossos tempos. Pois todo mundo precisa de reestruturação, isto é, de alterações qualitativas e desenvolvimento progressivo” (p.172).

Gorbatchov reconhece existirem conflitos um pouco por todo lado, principalmente nos países em vias de desenvolvimento, e que apesar de a essência desses conflitos divergir, tal como a natureza das forças  que se digladiam, “o seu surgimento a nível local é uma consequência de conflitos internos ou regionais que radicam no passado colonial dos países, em novos processos sociais ou no recurso a políticas predatórias ou nos três factores  simultaneamente” (p.193).

E para o gáudio de Moçambique, Gorbatchov referencia um dos seus melhores filhos quando afirma, a dado passo, que “A cerca de um ano e meio, tenho vindo a contactar e a manter profundas discussões com vários dirigentes políticos africanos (com alguns deles mais do que uma vez), entre os quais se contam Robert Gabriel Mugabe, Mengistu Haile-Mariam, Marcelino dos Santos, Oliver Tambo, Moussa Traoré,  Marthieu Kérékou e Chandli Bend-jedid. Trata-se de dirigentes nacionais influentes e amplamente reconhecidos. Das nossas conversas fiquei com a impressão de que a África está a atravessar um período activo do seu desenvolvimento, que exige uma atitude responsável. A África é um continente agitado, que enfrenta problemas de grande acuidade e no qual se encontram em embrião modificações vitais” (p.207).

Que me interessa a mim se Gorbatchov é ou não acusado, por alguns sectores internos e externos, de ter sido o autor principal do golpe mortal da União Soviética e do seu sistema socialista? A verdade, porém, é que, mesmo revestido de poder (aquele que geralmente cega a muitos), ele soube fazer leitura do seu tempo e espaço, cujo vector temporal indicava precisamente que estava eminente o fim do sonho soviético. A perestroika pecou, em minha opinião, não por ter sido mal ou lentamente implementada, mas sim por ter vindo tarde demais quando a situação, já de per si, era insustentável e reforma nenhuma podia salvá-la.

Há muito que se aprende lendo “Perestroika” de Mikhail Gorbatchov. E também há muito que se diga sobre o mesmo livro. Muitas das questões e análises trazidas ao de cima mantêm-se actuais. Se o processo moçambicano pode ou não aprender com a perestroika, eu diria que sim, e muito!, uma vez haver, em muitos aspectos, semelhanças e dessemelhanças.

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