Nelson Mandela: “Uma tarde, durante um intervalo da audiência preliminar, levei um amigo de carro de Orlando até à escola médica da Universidade de Witwatersrand e passei pelo Hospital Baragwanarth, o principal hospital negro de Joanesburgo. Ao passar por uma paragem de autocarro ali perto, reparei, pelo canto do olho, numa jovem lindíssima que estava à espera do autocarro. Fiquei impressionado pela sua beleza e voltei a cabeça para a ver melhor, mas o meu carro tinha andado demasiado depressa. A imagem do rosto desta mulher permaneceu comigo – até cheguei a pensar em dar a volta para passar outra vez por ela na direcção contrária, mas continuei.”
Nomzamo Winnifred Madikizela, o nome da jovem descrita neste impressivo relato de Nelson Mandela, no seu belo e pungente Longo Caminho para a Liberdade, era conhecida como Winnie. Acabara os estudos na Escola de Assistentes Sociais Jan Hofmer, em Joanesburgo, e era a primeira assistente social negra licenciada a trabalhar no Hospital Baragwanath.
Nelson Mandela é, então, um advogado estabelecido, tem escritório com Oliver Tambo e está comprometido com a luta contra o apartheid. Está casado com Evelyn Notoko Mase, com quem tem três filhos. A morte precoce da filha Makaziwe e os problemas causados pela acção política do marido transtornam, irremediavelmente, Evelyn. Ela junta-se às testemunhas de Jeová.
Algumas semanas mais tarde, Nelson ao procurar pelo seu sócio, no escritório, defronta-se, de novo, com aquele deslumbramento: a jovem da paragem de autocarros, ali está sentada diante da secretária de Oliver, na companhia de um irmão. Ficou, naturalmente, espantado. Contudo, disfarçou a surpresa. Oliver apresenta-lhe a bela Nomzamo e explica-lhe que ali estavam em busca de assistência jurídica.
O pai, Columbus K. Madikizela, que fora director de uma escola, era um homem de negócios. Tem onze filhos. Nomzamo é a sexta. O seu nome tem um significado como muitos dos nomes africanos. No caso, significa alguém que se esforça – que luta, se quisermos – ou passa por provações. Nascera em Bizana, Pondoland, no Cabo Oriental, a 26 de Setembro de 1936. É uma zona adjacente ao Transkei, onde Mandela também foi criado. Como o futuro marido, tinha um nome profético. Rolihlahla, o nome de Nelson, significaria “o que causa problemas”.
Nelson, apaixonado perdidamente pela jovem Nomzamo, cogitará subterfúgios para se encontrar com ela. Telefona-lhe para o hospital, no dia seguinte, e pede-lhe ajuda para fazer uma recolha de donativos na Escola Jan Hofmer para o Fundo de Defesa do Julgamento por Traição, a cujas audiências iniciais está submetido. Era um pretexto mais do que perfeito para convidá-la para almoçar. Foi buscá-la e levou-a a um restaurante indiano, dos poucos que admitiam negros, e onde ele almoçava frequentemente, perto do seu escritório.
Nelson Mandela: “A Winnie era estonteante, e até mesmo o facto de nunca ter comido caril e beber copos de água uns atrás de outros para acalmar o seu palato lhe acrescentava o encanto”.
A seguir ao almoço, levou-a a passear pelos arredores de Joanesburgo, num planalto aberto, com vegetação que lhe lembrava o Transkei, onde ambos tinham crescido. Falou-lhe do Julgamento por Traição, das suas esperanças e receios e não escondeu, naquele primeiro encontro, a certeza que tivera desde que a vira na paragem: queria casar com ela: “O seu espírito, a sua paixão, a sua juventude, a sua coragem, a sua força de vontade – senti todas estas coisas no momento em que a vi pela primeira vez”, escreverá ele na autobiografia.
Nos tempos ulteriores a esse encontro, ver-se-ão sempre que possível. Nomzamo conhecerá os filhos de Nelson: Thembi, Makgatho e Makaziwe (filha com o mesmo nome da que falecera). Ia vê-lo ao escritório. Ia vê-lo a treinar no ginásio. Também comparecia nos encontros e discussões políticas. Ele aproveita para a politizar nos cortejos que lhe faz. Quando estudava, a jovem andara próxima do Movimento de Unidade Não-Europeu, em cujo partido militava um dos seus irmãos.
A firma de Oliver Tambo e Nelson Mandela, entretanto, definhava. O Julgamento por Traição durava há dois anos e isso tirava-lhes tempo para se dedicarem aos clientes e à firma. Se antes haviam recusado clientes, agora mendigavam por eles.
Nelson, que se separara de Evelyn, entretanto, por absoluta incompatibilidade – ela era devota dos Testemunhas de Jeová, para além de não concordar com a sua luta -, explica à Winnie que está inadimplente e ela aceita assumir os encargos da futura família, com o seu parco salário de assistente social. “A Winnie compreendeu e disse que estava preparada para correr o risco e partilhar a sorte comigo. Nunca lhe prometi oiro nem diamantes, e nunca lhos pude dar.” Casam-se a 14 de Junho de 1958. Mandela está à beira dos 40 anos. Winnie tem 21, e em três meses terá 22 anos.
A despeito, o noivo providenciara o vestido e a indumentária das damas de honor, e conseguira cumprir o compromisso indeclinável do lobolo, pago ao pai da noiva. Consegue, outrossim, que a interdição lhe fosse abrandada e que ainda lhe fosse permitido ausentar-se de Joanesburgo por seis dias para Bizana. Muitos dos companheiros do ANC, abrangidos pela interdição, não conseguem deslocar-se ao local do casamento. São recebidos com euforia, sob o olhar vigilante dos guardas do regime. O carro dos noivos seria coberto com as cores do ANC. Não faltarão os coros das mulheres da aldeia, a sua vibrante e ululante alegria, a envolver os noivos, e as danças tradicionais. A avó de Winnie dançará em honra dos noivos. No centro cívico de Bizana acontece a recepção. Fazem-se discursos de ocasião. Como é usual.
Nelson Mandela: “O discurso de que me lembro melhor foi o do pai da Winnie. Reparou, como todos aliás, que entre os presentes não convidados para o casamento se encontravam vários polícias de segurança. Falou do seu amor pela filha, da minha dedicação ao país e da minha carreira perigosa de político. Quando a Winnie lhe comunicara pela primeira vez que ia casar, ele exclamou: “Mas tu vais casar com um engaiolado!” Na cerimónia, disse que não estava optimista quanto ao nosso futuro, e que um casamento destes, em tempos tão difíceis, seria implacavelmente posto à prova. Disse à Winnie que casava com um homem que já estava casado com a luta. Desejou boa sorte à sua filha, e acabou o seu discurso dizendo:
– Se o teu homem é um feiticeiro, tens de te tornar bruxa!
Era uma forma de dizer que tinha de seguir o seu homem no caminho que ele tomasse.”
Columbus K. Madikizela lançara a profecia. O resto da história prescreve o anátema que iria marcar a vida daquela jovem: duas filhas, uma vida conjugal improvável, 27 anos de prisão do marido, uma longa e duríssima vida de provação, a sua luta intrépida, as prisões e banimentos, o isolamento, o sofrimento, a confrontação com a polícia e a repressão, o facto de ter erguido, sempre, com punho levantado e firme, o nome de Mandela. A coragem. A sua longa biografia não está, porém, isenta de contradição. A controvérsia, o necklacing (os pneus em chamas no pescoço de supostos traidores), os raptos, o assassinato de Stompie Moeketsie, de 14 anos, e o declínio inexorável do casamento.
A bela e intrépida mulher, que se tornara um ícone, estava agora a viver no anverso da História. Recordo-me de ver, antes desse período sombrio e outonal da sua vida, as suas fotografias e das filhas, sobretudo Zindzi, e de me deslumbrar com a sua lendária beleza. Isto nos anos 70. Peter Magubane, que a fotografou nesses longos anos de luta, releva-lhe essa singular beleza, para além da sua entrega à luta. Os heróis também se contradizem. Por isso, é preciso esperar para os glorificar. A vida de Nomzamo, entre os finais da década de 80 e a década de 90, está cheia de contradições e contrariedades. Algumas, obviamente, insanáveis. Desmond Tutu, grande figura moral, foi certeiro: “Houve qualquer coisa que correu terrivelmente mal”.
A 13 de Abril de 1992, Nelson Mandela anunciou que se separava da sua mulher e companheira de luta, a Camarada Nomzamo, como lhe chamará. Não chegaria a ser primeira-dama como se alude, por aí, enganosa e insistentemente. Foi dos momentos mais dramáticos da longa vida de Mandela. Transcrevo, a seguir, trechos dessa declaração de um homem dilacerado:
“Durante as duas décadas que passei em Robben Island, ela foi para mim um pilar de apoio e amparo indispensável… A Camarada Nomzamo aceitou o oneroso fardo de criar as nossas filhas sozinha… Suportou as múltiplas perseguições lançadas sobre ela pelo governo com fortaleza exemplar, e nunca vacilou na sua dedicação à luta pela liberdade. A sua tenacidade reforçou o meu respeito pessoal, o meu amor e o meu afecto crescente. Também atraiu admiração em geral. O meu amor por ela permanece igual.”
“A minha acção não foi motivada pelas alegações que andam a ser feitas contra ela nos meios de comunicação… A Camarada Nomzamo tem o meu apoio incondicional, e pode continuar a contar com ele, durante estes momentos difíceis da sua vida.”
“Pessoalmente, nunca lamentarei a vida que a Camarada Nomzamo e eu tentámos partilhar. Circunstâncias que nos ultrapassam, porém, ditaram-nos um outro rumo. Separo-me da minha mulher sem recriminações. Abraço-a com todo o amor e a afeição que nutri por ela dentro e fora da prisão, desde o primeiro dia em que a vi. Senhoras e senhores, espero que compreendam o sofrimento por que passei.”
“Talvez estivesse cego a certas coisas devido à dor que sentia por não ter podido desempenhar a minha função de marido para a minha mulher e de pai para os meus filhos. Mas, assim como estou convencido de que a vida da minha mulher enquanto estive na prisão foi mais difícil do que a minha, também o meu regresso foi mais custoso para ela do que para mim.”
Na cerimónia de casamento da filha Zindzi, afirmou que o destino dos lutadores pela liberdade era terem vidas pessoais instáveis: “Quando a vida de uma pessoa é a luta, como a minha foi, sobra pouco espaço para a família. Essa foi a minha maior pena, e o aspecto mais doloroso da escolha que fiz.” (Mandela dixit.)
Os filhos tinham sido claros: “Pensámos que tínhamos um pai, e que um dia voltava. Mas, para nosso desânimo, o nosso pai voltou e deixou-nos sozinhos, porque se tornou o pai da nação.”
Nelson Mandela: “Ser pai de uma nação é uma grande honra, mas ser pai de uma família é uma alegria maior. Porém, foi uma alegria de que desfrutei muito pouco”.
Agora, enquanto termino, ouço “Until When”, de Hugh Masekela (ouvi, antes, “Bring Him Home”: “Bring back Nelson Mandela/ Bring him back all to Soweto. / I want to see him walking down the street/ with Winnie Mandela” -, ouvi todo este disco Hope). Pungente. Como comovente são aquelas palavras, imprescritíveis, de Nelson Mandela, que rememoro no dia do adeus à Camarada Nomzamo. Hoje, fala-se dela com benevolência, chamam-na Mama Winnie, a mãe da África do Sul. Parece-me justo. Ela foi uma bela lutadora pela liberdade. A luta de Mandela foi a vida sacrificada que teve e a luta dela. O seu pai, Columbus. K. Madikizela, proferira, naquele longínquo ano de 1958, sábias e proféticas palavras. Nelson Mandela foi, sem dúvida, o feiticeiro da nação Arco-íris que ele, miraculosamente, fundaria; Winnie, a sua bela filha Nomzamo, acabaria por ser, fatalmente, a bruxa.