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Kwashala Blues: “Uma obra de grande profundidade e reflexão sobre as incidências da vida”

Por Lourenço Rosário
O papel de quem apresenta uma obra não é o de entrar no seu conteúdo e tentar desvendar a sua substância, antecipando-se aos leitores.  O papel de quem apresenta uma obra é sobretudo o de despertar o espírito de quem vai lê-la, de modo a estar alerta para eventuais curvas e contracurvas que nela pode encontrar. Quer isto dizer que apresentar uma obra é abrir os caminhos para que o leitor possa mais facilmente percorrê-la,  descobrindo os seus encantos e não antecipando-se a esta descoberta.
Contudo, o jovem escritor Jessemusse Cacinda criou-me uma hesitação de leitura que gostaria de abordar através do excerto V, do conjunto do seu trabalho, cujo título é “O avião que roubou sonhos” e que passo a citar.
“(….) Na esplanada do hotel, encontrou-se com Moreira Chonguiça.
_ O taxista, que me trouxe do aeroporto ao hotel, disse-me que tu fazes “kwashala”, um ritmo  que está quase morto. _ interrompeu Moreira.
_ Sim. E escuto muitos sons dos meus ídolos como Rei Costa, Norte Jazz, Manono Jazz, Murara Jazz, Rena, Charifo Victor Salimo …
_ Muitos deles têm o apelido de Jazz, porquê?
_ Os kwashaleiros de Cabo Delgado eram fãs de jazz e os de Nampula eram fãs de rumba.
-A música congolesa?
-Sim, mestre.
A conversa tomou vôo até Moreira prometer conseguir um contrato de gravação, em Maputo, do disco de Fred Khoropa. Assim, mobilizaria instrumentistas e produtores, fundindo diferentes ritmos: rumba, jazz, blues, raggae, tufo e kwashala. Fazendo ressurgir o kwashala, quinze anos depois  de Charifo Victor Salimo e trinta anos depois do Rei Costa mas, desta vez, em diálogo com o mundo. “( 54-55)
A minha perplexidade leva-me a pôr a seguinte questão:  A que propósito é que uma obra que praticamente apenas fala deste ritmo que dá o título ao texto a meio da obra, se casa com a temática principal que começa e fecha o livro: a morte?  Logo no primeiro texto, o título é a “Morte do meu pai”, e no último texto, “As gavetas de necrotério”. Aparentemente parece ser um casamento mórbido, ou talvez não, porque da conversa com Moreira Chonguiça deduzimos que as Kwashala estavam também a morrer nos subúrbios de Muahivire e Namicopo.
A segunda surpresa nesta obra será, do ponto de vista literário, a questão do género, se nesta circunstância adotarmos o consenso de que se trata de narrativas. De facto elas são narrativas curtas, ordenadas de tal forma que me escapam a adequada classificação com que a teoria literária clássica amarra este tipo de género
Os textos desta obra não são nem conto, nem novela, nem fábula, mas intuitivamente me parecem ser ao mesmo tempo tudo isto. Ao ler a obra, dei-me conta de que estava perante pequenos episódios teatrais da vida do dia a dia de cada um de nós: o conflito pai e filho, a luta pela vida de quem pelos seus próprios pés deve subir a escada da vida, a sobrevivência, o adultério, os conflitos conjugais. Com a morte, pairando em todos esses episódios. Toda essa movimentação passa por nós com um núcleo de personagens muito reduzido, configurando aquilo que mais facilmente se parece com crónicas. E esses episódios poderiam aparecer nos jornais, nas conversas do dia a dia ou em peças teatrais.
Desta forma, o autor surpreende-nos, porque colocando estas pequenas narrativas de uma forma contígua, mas ao mesmo tempo mantendo as mesmas personagens pelas diversas histórias, ele apresenta-nos, ao fim e ao cabo, um desenho de uma novela da vida. Por outras palavras, o autor, num jogo de simplicidade, cria uma obra de grande profundidade e reflexão sobre as incidências da vida.
Do ponto de vista estilístico, a simplicidade da abordagem das questões numa linguagem que poderia ser à volta da mesa do café, leva-nos a dois extremos da escrita. Por um lado, as cartas de leitores compiladas por José Capela na obra Moçambique Pelo Seu Povo, e alguns dos contos de Luís Bernardo Honwana, em Nós Matamos o Cão Tinhoso. Mas não é só isso. Há também um espreitar do estilo de crónicas de Juma Aiuba.  Além disso, do ponto de vista teatral, de dramatização, o texto leva-nos a cenários contíguos tão popularizados do teatro Gungu, de Gilberto Mendes, que tanto deliciou o público urbano de Maputo.
A temática da obra leva-nos a certos dramas da vida, mas que o autor descreve-os de uma forma dramaticamente naturalizada, pois a chave desta naturalização encontrámo-la nos dois últimos parágrafos da obra.
Amália, mulher desapontada no casamento e desapontada perante a burocracia das autoridades e da igreja, e desapontada pela impossibilidade de ser feliz com seu amado, dá um conselho sobre o segredo para ser feliz.
“__Passa por aceitar os percalços da vida como normais, a vida é uma viagem longa, durante o percurso podemos ter quem se senta ao nosso lado, podemos ter longas paragens ou várias, mas a única forma de chegar ao destino é continuar a viagem. “
Esta afirmação, do tipo pensamento do dia, transporta consigo uma filosofia de grande estoicismo de como jovens urbanos tentam lutar pela vida, e o último capítulo mostra a crueldade naturalizada no comportamento de uma mulher que não foi feliz, mas procura ser feliz dentro de um ambiente tétrico, um necrotério.
Parabéns, Jessemusse Cacinda, pela surpresa com que nos brinda nesta obra.
Maputo, 04 de Setembro de 2023

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