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O Inteligível do Real e a Cauda Fantasmática da Realidade em Vinte (e) Vinte (Um), de Carlos Nhangumele

Neste artigo, pretende-se demonstrar o Realismo (em duas vertentes) que, de acordo com Barthes (1973:60), por um lado, decifra o real (o que se demonstra, mas não se vê); por outro lado, diz respeito à realidade (o que se vê, mas não se demonstra), através do traço que concorre para a construção do universo realístico – a denúncia dos desequilíbrios sociais, determinados, principalmente, pelo tempo e espaço.

Com efeito, denota-se, a priori, que o título da obra nos reenvia a um tempo específico: 2020 e 2021 [Vinte (e) Vinte (Um)], período em que o mundo se viu em desalento, devido à Covid-19. Ademais, todas as histórias se desenrolam entre a urbe e o subúrbio. A obra é constituída por catorze cronicontos, dos quais onze serão objecto de análise demonstrativa dos desequilíbrios sociais do Homem contemporâneo, a quem Nhangumele soube bem dar voz. Assim, o confronto entre as personagens e o imaginário colectivo, o culto da aparência, os factores naturais (temperamento, raça e clima) e culturais (ambiente e educação), determinam o comportamento das personagens: desde o enfoque ao Homem da época, ao adultério, ao relacionamento ocasional e/ou efémero, aos problemas concretos, aos dramas cotidianos que estão ancorados no presente histórico – características que permearão a análise.

O confronto entre a personagem e o imaginário colectivo depreende-se, por exemplo, com a personagem Ginoca, que age de forma contrária ao que o meio esperava. À revelia do grupo, com a ideologia de que quando a mulher é violentada é briga de casal; paradoxalmente, Ginoca tareia o marido, enfrenta o colectivo, continuando a dar porrada a ele, ainda que o espanto se tenha manifestado na voz do chefe do quarterão.

Em «Ginoca Foi a Matalane, Sim!» evidencia-se, ainda, o culto da aparência, pois Ginoca se junta a Beny, baseando-se na aparência deste, todavia, a realidade ficcional da convivência entre ambos tratou de revelar o contraste entre a aparência e o comportamento. A escrita de Nhangumele decifra essa realidade: eventos que se demonstram, mas não se vêem; os motivos da violência de Beny, por exemplo, quando o narrador nos dá a conhecer o desabafo de Ginoca ao abandonar Beny, cansada do tormento a que estava condenada, depreende-se em: “Ah! Sempre me expulsavas, dizias que não tenho família, que nem a gravidez que tinha do Júnior sabias se era tua.” (Nhangumele, 2021:82) (Grifos nossos).

A escrita do realismo é revelada objectivamente pela elipse dos acasos e milagres do romantismo. As personagens aparecem condicionadas a factores naturais (temperamento, raça e clima) e culturais (ambiente e educação). A história de Khambula é uma decifração da realidade por parte do autor, a personagem encontra justificativa para a sua condição de infértil, supostamente devido à vacina contra a Covid-19.

No croniconto intitulado «Por Culpa da Covid-19», são convocados factores históricos e naturais, o fenómeno da pandemia, a sua percepção e prevenção, os possíveis efeitos colaterais (…) A influência educacional de Khambula reflecte-se nas suas escolhas em querer melhorar as suas condições de vida. No Realismo, a vida é feita de sacrifícios; a personagem, em idade concebida pelo meio de procriar, abriu mão de ter filhos em nome de uma vida melhor: organizar-se. Dito de outro modo, Khambula, professor universitário de profissão, arrepende-se de ter deixado de engravidar Telinha para ir fazer o Mestrado em Linguística Aplicada em Portugal. Eis que, depois da formação, se vivem tempos da Covid-19, onde teve de se prevenir, e a consequência, passados dez anos, fora dolorosa, tal como se pode inferir em: “(…) Sim. Eu não faço filhos. Não me caíram bem. A vacina evitou a minha morte por Covid-19, mas matou-me por dentro. Matou o meu futuro. Matou a minha descendência (…)” (Nhangumele, 2021:23).

Estes eventos não são justificados por acasos, milagres e magias, mas por razões lógicas da educação, do ambiente e do momento. Por exemplo, a pressão social vai demarcar-se relevante para o arrependimento de Khambula: “Agora me arrependo, méu! (…) A família está a pressionar, os meus pais, os dela. A sociedade, brô.” (Nhangumele, 2021:22) (Grifos nossos). Gamito vai atiçar-lhe a derramar lágrimas com a evocada citação de obrigação e de pressão, representado em Vozes Anoitecidas, de Mia Couto, e recuperado na obra em análise: “(…) homem pode ter barba, não-barba, mas um filho tem que tirar: um documento exigido pelos respeitos.” (Couto s/d, apud Nhangumele, 2021:22) (Grifos nossos), o que decifra que Khambula foi contra as origens, os princípios e, porque o meio é forte, contra o meio pelo qual sofre.

Entende-se ainda que a perspectiva continua na diegese do senhor Khetile, quando este faz uma conversa de desabafo e de lição de vida com Mataka, de arrependimento pelo tempo perdido, por não se ter relacionado com mulheres quando jovem: “Tive pouco tempo para brincar” (Nhangumele, 2021:54). Por causa da formação superior, esta personagem casa-se depois de procurar emprego e estabilizar-se financeiramente. À medida que era promovido no trabalho, para garantir o ritmo da sua prestação, bebia para se estimular, e nada fazia pela esposa, família, sem se aperceber que matava a sua máquina (metáfora do sistema reprodutor masculino), tal que foi o motivo do desprezo da parceira, razão dos seus fantasmas. Por detrás de um homem respeitado profissionalmente, existia um homem “deveras magoado e derrotado pela estrada da vida” (Nhangumele, 2021:56).

O realismo é o determinismo associado ao Lamarckismo do uso e desuso, que se observa no texto, denunciando a impotência de Khetile. Aliás, o outro intelectual cujo percurso também não compensou é Khambula, pois que ficou infértil. Confesso que não sei o que é mais grave: tornar-se impotente devido ao álcool ou a uma vacina tomada devido a uma pandemia que assolou o mundo após decidir fazer filhos, depois de estar financeiramente estável. Facto é que se denota um arrependimento profundo em ambos. Ora, já não são os iletrados, os Magaízas Mandevo, os Mampara Magaíza que logram escolhas sem sucesso; são, agora, intelectuais, académicos que alcançam respeito e estabilidade financeira, todavia sucumbem no imaginário e nas leis da natureza, da procriação e da erecção. Isto é o que Nhangumele e o seu Vinte (e) Vinte (Um) nos trazem, despindo as máscaras do que se vê, mas não se demonstra.

Sublinha-se ainda, na obra, uma acentuada preferência pelo enfoque ao adultério, pelo relacionamento ocasional e/ou efémero, despido de qualquer compromisso, pela aventura na simples satisfação de desejos carnais, factores que o realismo encara como os que causam destruição da família e da sociedade. Quem experimenta essa desestruturação é a personagem Marito que, vivendo maritalmente com Jéssica, decide sair, num fim-de-semana, para beber cerveja com Fidjó, na companhia de duas mulheres. Ao longo da bebedeira, atiçados por estas, cogitam saciar as vontades da carne e sem protecção (widas) nem remorso. Não tardou e, quatro meses depois, a esposa, que estava grávida, durante a pilha de exames de rotina, descobre que havia contraído HIV. Em decorrência disto, Marito também havia contraído a Sidinha, diminutivo do substantivo Sida (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida), cujo som e a grafia coincidem com o nome próprio mais humano, atribuindo-se, assim, o título ao texto e criando-se no leitor a ideia de que o texto fala de um perfil de uma mulher, todavia, lendo-o é que se percebe que Sidinha é, porém, uma doença.

Estes eventos marcam, deveras, o ano 2020 e 2021. O tempo e os seus efeitos fizeram-se determinar para a morte em «A Triste História de Pedrito», por exemplo. Pedrito, em tempos de Covid-19, convidou alguém que conheceu numa festa clandestina (uma vez que o Decreto Presidencial impedia que ocorressem), instado por substâncias para a demonstração da potência sexual (gonazololo). Para o seu azar, a parceira não consegue se fazer presente devido ao Recolher Obrigatório, tendo procurado por outras, já que são múltiplas. Ainda assim, os eventos do dia não lhe favoreceram. Pedrito foi levado ao hospital, onde viria a perder a vida.

Não muito distante do amor fisiológico, percebe-se, quando depois de catorze dias internado devido à Covid-19, foi declarado óbito o protagonista de «Beijei Covid-19», que se envolveu sexualmente com a namorada, que estaria infectada pela Covid-19.

O momento de caus pandémico propicia, por causa do isolamento, vontades. Então, isolar a Natureza da Biologia não é fácil. Ao longo da leitura, lê-se a história de Chiquinho, que conheceu Chelsea no Facebook e, dentro de 24 horas, consumara o que é próprio de casados: manter cópula. Após acompanhá-la a casa, ela pergunta-lhe o que afinal eram. Chiquinho respondeu que eram “Sensíveis Seres Humanos”, dando, assim, título ao texto. Título este que se encaixa perfeitamente no Realismo do que se vê mas não se demonstra.

Na escrita de Nhangumele não são apenas personagens jovens que se perdem. O pecado, no sentido de erro, gere consequências, pelo que a morte é a punição, consequência óbvia. Ninguém escapa nem por benevolência, misericórdia ou milagre. Por outro lado, o adultério deteriora a família. Razão: o amor fisiológico. Em «O Bom Filho Sempre Volta a Casa», pai de Ntavasi abandona um casamento de quarenta e cinco anos, devido a uma terceira esposa: jovem, de atributos jamais vistos que, quando este denotou estar doente, decidiu regressar a casa, debilitado e envergonhado. Consequência: não levou duas semanas, perdeu a vida.

A denúncia dos desequilíbrios sociais, os conflitos do Homem da época (2020 e 2021), os problemas concretos, os dramas cotidianos que estão ancorados no presente histórico, são evidenciados de maneira objectiva, própria do Realismo. O cúmulo desses dramas são retratados, por exemplo, em «Redes Sociais», onde Mathauzi, motorista de transporte público, se faz, cedo e junto do seu cobrador, ao parque dos transportes, onde se põem a carregar os passageiros. Neste ínterim, Mathauzi é surpreendido pela morte, enquanto embalava um sono profundo do qual não acordou mais. Facto curioso do tempo é a falta de humildade e empatia. O comportamento dos motoristas, passageiros e fiscais ao perceber que Mathauzi não dava sinal de vida não era de prestar primeiros socorros, mas, sim, registar com as câmaras fotográficas a situação, de forma a partilhar nas redes sociais, rematando, assim, a harmonia entre o texto e a epígrafe: “Rede social é ilusão, atrai quem está longe e distancia quem está perto”. Trata-se, portanto, da realidade que se demonstra e se vê.

Bibliografia:

Nhangumele, C. (2021). Vinte (e) Vinte (Um). Maputo: Bantus.
Barthes, R. (1987). O Prazer do Texto. Brasil: Editora Perspectiva.

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