Está doente, muito doente,
O meu país,
Acamado às costas
Das terras e perlíferas águas do Índico!
Quando peguei o livro mais recente do Bucuane a que decidiu dar-lhe um nome sugestivo: Celebrar a Vida, Poemas de recesso e de esperança, tinha a plena certeza daquilo que me esperava, isto é, antes de folheá-lo, muito antes de ler os poemas que o compõe, sabia que estava perante escritos que pretendiam exaltar a vida. Não me enganei. Tal como acontece na vida, em cada folha, em cada página, chorei, ri, fiquei triste, fiquei com saudades, fiquei com nostalgia, alegrei-me, a minha vontade de viver e de amar renovou-se. Morri e ressuscitei quão segunda chance de voltar a ver o sol e sorrir todos os sorrisos que desperdiçara na outra vida, na outra encarnação.
Não é de admirar, Bucuane, o poeta depois de enfrentar o grande flagelo que foi Corona Vírus. Depois de com ele lutar. Sobreviver pegou na caneta e deixou o coração derramar no papel todas as lágrimas choradas pela perda de familiares, amigos, vizinhos, pela morte de compatriotas, pela morte de muitas pessoas ao longo do Mundo cujos números faziam questão de invadir o silêncio e o desassossego dos nossos isolamentos. A contrastar com o fica em casa, as notícias levavam-nos para viver o luto em terras distantes, numa altura em que nem podíamos enterrar os nossos entes queridos.
Bucuane derramou no papel também as lágrimas choradas por toda a prosperidade frustrada por causa da clausura geral roubando emprego de muitos, inviabilizando negócios de outros. Com a sua caneta, Bucuane vingava a morte daqueles que não tiveram a mesma sorte. Daqueles que morreram e ainda morriam. Enquanto essa desgraça se propagava por todos os lados, Juvenal Bucuane, como forma de enfrentar esse pesadelo, escrevia poemas sobre aquilo que estava a acontecer. E como alguém muito bem o disse, trata-se de: “Poemas escritos com dor advinda de muitas incertezas, que de crescendo em crescendo se iam alteando no retiro forçado a que a humanidade estava sujeita: em quarentenas uns, em convalescença outros, e ainda outros, apropriados pelo avassalador medo.” Quando a desgraça terminou o livro já estava pronto.
No meio dessa dor e, como não podia deixar de ser, Bucuane também deixou o seu coração transbordar uma ode à vida, kulunguela a vida por ele mesmo ter sobrevivido e por todos aqueles que como ele venceram a doença e convida-nos a perceber a doçura de reaprender a apertar a mão, a dar um abraço, a deketar, a dar dois beijinhos, a celebrar a vida, solidarizando-nos, na alegria e na tristeza. A amarmo-nos. É isso que eu aprendi, reaprendi.
Hoje, agora e aqui,
Corre,
Neste corpo físico
Que nos faz presentes,
A vida,
A vida que quer ser celebrada,
A vida que deve ser celebrada!
Com uma obra bastante extensa, o poeta não deixa de nos surpreender com a sua vitalidade e publicações regulares, o que nos leva a concluir que para o Bucuane, escrever não é apenas um acto de afirmação, mas sim, de militância, duma afeição pelas palavras, dessa quase obsessiva vontade de estar presente, de intervir, de utilizar a poesia como sua forma de expressão e, sobretudo, de contribuição no meio social onde ele se encontra inserido. E fá-lo com essa elegância narrativa que sempre o caracterizou, sem ser demasiadamente eclético e também sem entrar numa escrita simplória ou simplista. Confesso que em algum momento me senti perdido, sem saber se estava a ler uma crónica ou um poema despretensioso. Não sabia situar estes textos do Bucuane, não sabia como designa-los sentia-me a ler, simultaneamente, uma crónica, uma saga do Corona Vírus e poemas sobre o verdeiro valor da vida.
Enfim, concordo com as palavras da ensaísta Luísa Fresta no interessante posfácio dedicado ao livro Celebrar a Vida, quando afirma que estamos diante de textos que “oscilam entre a prosa poética, o poema em prosa e o verso livre”, sendo que, no seu ponto de vista, esses textos não carecem necessariamente de rótulos; eles existem e reverberam no leitor tanto pelo seu conteúdo quanto pela forma – uma escrita escorreita, objectiva e aberta – sem que com isso prescinda de uma estética muito cara ao autor, sempre indexada à clareza da expressão e à sua visão límpida das coisas deste mundo.
A verdade é que Bucuane, com as suas abordagens suaves e poéticas, sobreviveu, talvez com uma energia renovada, pronto para continuar a viver, a escrever, a celebrar a vida. Talvez seja por esta razão que Celebrar a Vida, de acordo com a posfaciadora deste livro, Luísa Fresta, o Bucuane” deixa transparecer uma postura de integridade, responsabilidade e fé, plasmadas em cada texto e em cada uma das ideias explanadas com coerência e habilidade. Como se o autor e o sujeito poético tivessem uma convicção inabalável num futuro melhor, mais sereno, com mais fraternidade e soluções para os problemas da espécie humana.”
Apesar do seu cronicar, da sua clareza em nos descrever a ocorrência dos factos covidianos, o livro que temos nas nossas mãos não deixa de ser um poemário onde nos cruzamos com a morte, o medo, o espectro do nada, a rendição, a trombose económica, a revolta, a luz, a esperança, a “celebração da vida”. E é exactamente esta que Juvenal Bucuane, afinal, vem celebrando. Desde sempre. Em cada livro que escreveu, Bucuane glorifica a vida. Desde “A Raiz e o Canto”, passando pela obra “Meu Mar”, até os livros mais recentes, Bucuane celebra a vida, com essa turbulenta vontade de falar sobre as coisas, de contar, de explicar, de justificar, de fazer poesia. E para isso Juvenal, independentemente de qualquer influência ou experiências que possa ter, atrevo-me a afirmar, que Bucuane, é ele próprio, tem uma identidade, uma linha própria, única, inconfundível, caracterizada pela espontaneidade da linguagem e pela pureza que facilmente se evidencia.
Chamou-me sempre atenção a forma como Bucuane milita a palavra, ou seja, o modo como ele a cristaliza, o modo como ele não a subverte e não a torna inatingível. Ele sabe que tem um objectivo a alcançar, sabe que tem leitores que esperam por uma mensagem que lhes seja perceptível, que lhes possa interessar e mostrar outros caminhos. Estamos, pois, a falar da forma. E assim sendo, talvez importe recordar as palavras do sociólogo e poeta Filimone Meigos, ao explicar que “ao falarmos de forma na literatura, referimo-nos à maneira como se diz, como se escreve, como se veicula o discurso. Tal forma não é isenta, ela revela uma certa maneira de estar, ética e estética. Na verdade, a forma do discurso revela uma certa forma de pensar, agir e sentir”. Já que estamos aqui, talvez possa aproveitar a oportunidade que o texto me oferece para dizer que sempre me chamou atenção a forma declaradamente saudável de Juvenal Bucuane estar na literatura, que se aproxima, sem dúvida nenhuma, à forma como o poeta se movimenta na vida.
Juvenal Bucuane é um poeta de todas circunstâncias. É um cidadão atento aos acontecimentos do seu país. Nada se lhe escapa, o que significa, por outras palavras, que os seus livros (um acervo de mais de vinte livros em poesia e prosa), que o fazem ser um dos escritores mais profícuos desta pátria amada acompanharam o crescimento do país e da própria sociedade. Os tempos da pandemia fizeram-no compreender que estamos no Mundo por pouco tempo, por esta razão são desnecessárias as guerras que movemos uns contra os outros. Precisamos de modificar tudo. De entrar no “novo normal”.
É quase tudo mudar,
Ser outra coisa
Sendo o mesmo ser!
……………………………
É uma nova forma
De ser e estar
Sem o desvio do que se é
Na essência!
A poesia do Juvenal Bucuane que aqui encontro não se restringe apenas ao vírus, ela se espalha para outras direcções com a abordagem de temas universais que constituem a preocupação da nossa sociedade. Bucuane fala de muitas coisas. Do medo “de algo que não vemos”, mas cuja dimensão destrutiva é assustadora. Faz apelo aos deuses de África para que estes “lancem sobre nós todos os fumos que se libertam dos grandes potes onde, nas florestas sagradas em que habitam cozinham os remédios que ora nos faltam”. Fala da chuva, para que ao cair sobre a terra e os homens aconteça o milagre da purificação. Fala também da terapia da luz do sol. Da nova ordem mundial. Do valor da solidariedade. Mas que este não venha a qualquer preço, por isso o poeta não se esquece de recordar: Ajudem-nos, sim, mas deixem-nos ser quem somos, “África, da cabeça aos pés”.
Estamos na corrida
da salvação do mundo
temos uma palavra a dizer!
Não somos animais no redil
à espera de engorda
para abate
somos participantes do jogo global.
Num momento particularmente difícil, quando o vírus devastava por todos os lados e tudo parecia perdido, a voz do poeta se erguia e dizia que ainda havia um caminho de esperança a percorrer. Num dos poemas mais eloquentes do livro Bucuane indica uma rota para os que pretendem sobreviver. Para ele a única possível: A caminhada para o mar. Para a purificação. Para a eternidade. E por essa razão escreveria o poeta Juvenal Bucuane:
Somos água,
Que toma a forma do seu curso,
Líquidos…
Corremos dentro de um leito,
Ganhando a sua forma,
À procura do nosso destino.
Nestes poemas de recesso e de esperança, Juvenal Bucuane foi buscar os traços do pintor Noel Langa, seu contemporâneo e ilustre habitante do Bairro Indígena, para ilustrar a capa do livro. A escolha não podia ter sido melhor, Noel Langa trouxe as suas cores vivas, luminosas, vibrantes, trouxe a solidariedade e amizade que os dois comungam desde tempos remotos e dessa lembrança que ainda os faz prisioneiros desses tempos inesquecíveis do Bairro indígena.
O livro está aqui e a sua mensagem é clara: não nos esqueçamos de celebrar a vida! Para juvenal Bucuane “estes poemas de Recesso e de Esperança tentam sugerir a quem os lê, a Celebrar a Vida constante e convictamente, como elemento útil das mudanças que a sobrevivência colectiva nos exige.”
E é tudo.
Maputo, 13 de Agosto, 2024