O País – A verdade como notícia

A condição moçambicana – uma breve leitura sobre o livro “Uma Vida Qualquer”, de Chakil Aboobacar

Retomo uma obra que marca o início da caminhada do autor. Uma espécie de casamento de primeiras núpcias ou parto literário. Por estas alturas, assim esperamos, o autor já se confirmou como conceituado e não como promessa, nem aventureiro ou, ainda, curioso literário. Este era o prognóstico e profecia de Adelino Timóteo, no prefácio da primeira edição.

As crónicas, segundo Areosa Pena, são o género literário onde o autor nos oferece uma pista de como quer ser lido e interpretado. Todavia, nem sempre esta vontade coincide com a disposição do leitor e, muito menos, com a sua preparação para absorver e se deliciar com essa interpretação ou toda a hermenêutica que nos permite e dá o privilégio de julgar e compreender.

Este livro me parece um tratado excepcional de intervenção social. Aliás, Moçambique é terreno fértil para estas narrativas desconcertantes. Uma intervenção social e cultural que não se esgota no Sul, Centro ou Norte do país, regiões plenas de casos e de inconfidências.

Parece um bom pretexto para iniciar a leitura de “Uma vida qualquer”. Reler estas crónicas de Chakil Aboobacar, cuja primeira edição foi lançada em 2009, nos remete ao mundo despedaçado. Ou será que nós mesmos despedaçamos o nosso país e não nos damos conta?

Estes textos reflectem uma forma particular de se olhar para Moçambique, as suas aporias, contradições, confidências, a partir de um lugar privilegiado e longe de qualquer umbigo. O autor transporta e carrega a temática da traição e do amor, dos preconceitos e dos espíritos, do direito consuetudinário, da imagem da beleza corporal feminina, do machismo, da prostituição e do assédio, cada vez mais comuns no meio urbano e rural, do sobrenatural ao esotérico.

Muito provavelmente, o cerne da obra se espelhe no título que dá nome ao livro: o texto “Uma Vida Qualquer”. Nele, o autor faz um retrato aterrador da banalização da condição humana, ao contar a história do puto Jaime, um menino de rua que perde a vida estendido no chão de uma artéria qualquer de uma dessas nossas urbes, sem o devido socorro dos transeuntes e do próprio articulista que por lá indiferentemente vão passando. Isso até ao momento em que o mesmo puto Jaime, já morto, ganha imediata relevância para os mesmos transeuntes e o próprio articulista, quando todos se dão conta do seu falecimento e tentam correr hipocritamente contra o tempo para prestar ajuda! Quiçá procurando um escape que justifique a sua inacção de outrora, ou um alento para o fardo que passam a carregar na consciência. Quantas vezes não somos também assim, nen-humanos em vida e super-humanos na morte?

Todos os outros textos são lugares e sabores, valores éticos e programáticos para descrever esta sociedade cujas matérias de relacionamento social, cultural e de justiça social, continuam tão desiguais como deprimentes. O autor teve o sentido de oportunidade, destreza e determinação para expor o seu sentir, pulsar de uma sociedade enferma.

Os textos Maria, Amina, A Ida ao Maprofeta, Desejos da Alma, Minas de Morte e O Diálogo Fornicológico causam indignação por denotarem uma erosão de valores sociais, mas, igualmente, um sistema que aprofunda a exclusão social, a pobreza, a corrupção e os conflitos de toda a ordem. O autor, presumo, revisita a necessidade de mudanças sustentáveis no quotidiano das pessoas.

O autor recorre, com astúcia, a figuras de estilo para descrever esse quotidiano. Pela brevidade e leveza como faz, dá a impressão que se transfigura e ressignifica essa realidade social, transbordando, de forma objectiva, o seu pensamento assertivo, suculento e criando essa simbiose do oficial com o tradicional, abrindo, então, os caminhos para uma leitura relaxada, e que não fere e nem, sequer, parece ser temerária.

Chakil escapa, também, à armadilha intelectualmente empobrecedora de atirar para baixo do tapete as questões espirituais e de fé, que fazem o dia-a-dia de milhões de moçambicanos, num momento em que não se vislumbram alternativas para a reversão das dificuldades. Os espíritos parecem ser o seu fio condutor. Esse exoterismo, ou seja, o sabor do interior que existe para lá das aparências e que exige um certo esforço para se poder atingir.

Todos os amantes da literatura terão esta oportunidade de conviver com estes títulos fogosos e devorar os textos com um prazer e doçura. O autor, apesar de missões partidárias e empresariais, veste-se de muita intelectualidade e militância. Uma responsabilidade missionária que o tempo se encarregará de confirmar se ele continua sendo feito de palavras ou de acções.

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos