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A cegueira do velho Bila

O velho Bila era cego. Um par de óculos escuros desviava as imagens que lhe chegavam. Era uma porta inválida para imagens. Parecia um soldador de instantes com os raios quentes do sol. Os rostos dos filhos captava-os a partir da rouquidão das suas vozes. Era como se o timbre das suas vozes fosse um corpo palpável e mensurável. Nunca falhava. Os passos eram os seus binóculos à distância e os odores eram os olhos de reconhecer quem se aproximasse.

Era como se o som dos passos, o odor, as vozes transportassem os rostos dos seus donos. Com as mãos, o velho, lia o amarelo da sua bengala, o verde da sua camisa e o vermelho da porta da sua cabana. Pela manhã a sua neta cortava-lhe as unhas enquanto de olhos abertos, mas bem fechados, mirava o escuro do seu interior. O velho Bila sorria sempre que ouvisse ruídos de passos vindo até si. A sua camisa era uma peça que se usava duas vezes: ora era o lado de dentro que ficava de fora, ora era o lado de fora que ficava de dentro, vice-versa.

O velho Bila já não vigiava o mundo, o mundo vigiava a ele. O mundo tinha-lhe como espelho – dizia-me sempre o meu pai. Sentado de olhos tão abertos e fechadíssimos assustava pela sua presença os cães e as galinhas que passavam por ele. Os que não conheciam, o velho, de longe até levantavam a mão para o cumprimentar. Os filhos à hora do almoço lançavam gargalhadas vendo televisão em cores que o velho comprara em tempos. Divertiam-se no interior de casa e por vezes até se esqueciam do velho. Era como um objecto de casa que a sua presença equivalia com a de uma pá ou uma enxada.

“Esquecemos, o pai lá fora” – era sempre normal ouvir isso de madrugada. O velho era depois resgatado pela sua bengala no escuro e puxado para o seu quartinho escuro. Que quarto? O seu quarto era um ensaio a morte. Tinha aspecto de um caixão e tudo cheirava a morte. Entrava de corpo dobrado. Apesar de ter os olhos cegos conseguia pisca-los e contornar as curvas de sujidade…

O velho sentado, com uma mão segurando uma terrina de sonhos, molhava o seu rosto com a chuva dos seus olhos nublados de cegueira. Com a mão esquerda, trémula, desembainhava o seu rapé e cheirava-o com quem bebesse uma taça de oxigénio.

– “Papá quando terminar de comer vai me chamar para trazer água”.

Afastava as moscas do lado que não vinham e ajeitava com dificuldades a blusa feminina que usava. Destilava as horas, mastigava espinhos de pensamentos e por vezes se esquecia dele próprio para não sofrer tanto. Afastava-se dele. Quando se via em sonhos enxergando, medindo com seus próprios olhos a altura do seu corpo, um fogo-fátuo corria-lhe o rosto.

Nas sextas-feiras o velho era aprumado, escovado os dentes, penteado a barba e levado para receber sua cesta básica: um quilograma de arroz, três barras de sabão, um quilograma de sal e duas unidades de leite em pó. O velho sorria. Sorria porque é isso que podia fazer enquanto criatura de pouco interesse na família. O peso da cesta básica era a única coisa que fazia o velho esquecer o peso da carga do mundo que tinha nos olhos.

“Tem açúcar? Hoje deram muito leite?” procurava saber o velho pelos olhos dos netos que lhe acompanhavam.

“O velho Bila não é cego, filho. Ele só não gosta de olhar o mundo com os olhos. Usa o coração” – dizia-me o meu pai.

 

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