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A guerra e a paz de Kofi Annan

O Apóstolo da Desgraça

Nelson Saúte

Escritor

A guerra e a paz de Kofi Annan

Numa entrevista de celebração, para o programa HARDtalk, da BBC, realizada pela jornalista Zeinab Badawi, aquando dos seus 80 anos, em Abril, em Genebra, Kofi Annan voltou a impressionar-me pela sua figura impassível, indubitavelmente fleumática, quase pachorrenta, mesmo quando a jornalista britânica, de origem sudanesa, agitou os fantasmas que assombram a sua longa e admirável biografia. Quando abordou o genocídio dos tutsis no Ruanda, em 1994, e as responsabilidades de Annan – era ele na altura Subsecretário Geral para as Operações de Paz, Badawi foi intrépida ou até mesmo inclemente. Ela não tem a pesporrência de Stephen Sackur, fá-lo com candura, mas isso pareceu-me até muito mais verrinoso. Tive, porém, dois sentimentos contraditórios: se por um lado, me parecia quase uma traição, num momento festivo, insistir com aquele tema, e daquele modo, reduzindo uma carreira exemplar, a esse facto incontornável, que tem sido recorrente e foi amplamente esclarecido pelo próprio, tanto nas suas memórias, como nas entrevistas que tem dado; por outro, empolgou-me o facto de o interlocutor ter dado uma resposta serena e coerente com aquilo que tem sido a sua posição. Kofi Annan não se exasperou, foi até compassivo. Ali também escrutinei, naquele momento, as razões de uma longa e bem-sucedida trajectória.

Poucas semanas depois estive com o meu bom amigo Carlos Lopes, na Cidade do Cabo, onde nos encontramos amiúde, prolongando um convívio que praticámos há mais de 25 anos. Carlos Lopes é oriundo da Guiné-Bissau e serviu longamente as Nações Unidas. Trabalhou junto de Kofi Annan – tendo sido seu director político e pertence hoje ao grupo de conselheiros da Fundação que leva o nome de Annan. Ele estava na ocasião da entrevista, em Genebra e interveio, como intervieram Mo Ibrahim (sudanês), Martti Ahtissari (foi Presidente da Finlândia e é Nobel da Paz em 2008), Mary Robinson (foi Presidente da Irlanda e foi Alta Comissária para os Direitos Humanos, entre 1997-2002, no tempo de Annan), entre outros. Falei-lhe da minha perplexidade perante a resoluta interpelação de Zeinab Badawi e a sua impolida insistência no tema ruandês. E sobre a impressão que aquela sólida personalidade que o velho diplomata africano voltara a provocar em mim, sobretudo a sua serenidade. Em toda a entrevista Kofi Annan demonstrou a sua fortíssima e corajosa notabilidade e autoridade, o seu bom humor e os valores altruístas: o homem do diálogo, da convergência, da paz, dos direitos humanos, da defesa intransigente das sociedades civis – tudo aquilo hoje vejo sublinhado nos telejornais que dão conta da sua morte. A sua esperança inabalável sempre me causou impressão.

Samantha Power, que foi embaixadora de Barack Obama nas Nações Unidas, proferiu uma das mais impenitentes diatribes contra Annan: “O seu nome vai aparecer nos livros de história ao lado de dois crimes de genocídio definidores do século XX”. Outro que apontou violentamente o seu dedo a Annan foi Romeo Dallaire, que era o comandante da ONU no Ruanda. Dellaire enviara, em Janeiro de 1994, para a sede das Nações Unidas, um fax pedindo autorização de Annan para uma acção militar preventiva visando deter o movimento dos que seriam responsáveis pelo genocídio que ensombraria a história daquele país. Os americanos tinham acabado de ser expulsos da Somália – dois helicópteros dos EUA tinham sido atingidos por milícias somalis e este facto esteve na origem da morte de 18 elementos da força de elite americana. Annan viu na proposta de Dellaire um risco semelhante. “No pedido transmitido por Dellaire para um raide, vimos os ingredientes para um desastre semelhante ao raide falhado a Aidid, em Mogadíscio, três meses antes – mas com uma força que era mil vezes mais fraca em termos de capacidades militares e totalmente isolada de uma possibilidade de reforço”. Annan escreve isto nas suas memórias – Interventions (Intervenções). Ele era, à época, o responsável pelas operações de paz da ONU. Outro episódio tem a ver com a Bósnia e à protecção dos abrigos de civis em Srebrenica. “Para um homem, ou para uma criança, para quem a presença de um capacete azul é tudo o que separa a segurança da morte certa, a conversa sobre mandatos limitados, meios inadequados, e missões com poucos recursos – por mais certas que seja – é no mínimo, e na melhor das possibilidades, uma traição”, admitiria ele nas suas memórias. Não teve o apoio do Conselho de Segurança no caso da Bósnia e não tornou isso público. O seu silêncio justificava-se pela crença de que não caberia a um funcionário público internacional enxovalhar os governos que integram as Nações Unidas. Os EUA decidem, no entanto, intervir na Bósnia, em Agosto de 1995, e Annan apoia a intervenção e é aliado dos americanos para ultrapassar a resistência da ONU ao bombardeamento de alvos sérvios. Esta acção americana com a ajuda dos croatas conduziria às negociações de Dayton.

Paradoxalmente, quando é escolhido para suceder a Boutros Galli, no cargo de Secretário Geral, pelos americanos justamente, Annan emprestou à instituição o seu enorme prestígio moral, que é o seu grande legado, a despeito destes episódios que o perseguiriam desde então. A sua audácia tranquila foi importante para apaziguar os republicanos anti-ONU e permitir que os americanos descongelassem as suas contribuições para a ONU. Hoje, grande parte do trabalho de António Guterres passa-se nesses labirintos sinuosos de Washington. Annan foi um mestre nessa arte. A sua grande habilidade negocial é lendária. Circunspecto mas afável, tinha carisma e charme, e municiava-se de uma capacidade intelectual invulgar. A sua serenidade dava-lhe autoridade. Mas também a humildade. Annan era um grande conciliador. Não recusava falar com ninguém: fosse tirano, criminoso, déspota ou estadista impoluto. Era o homem perfeito para aquele lugar.

A sua reiterada esperança, o seu inabalável idealismo, e a sua enorme e pachorrenta capacidade de diálogo não tem paralelo na história da diplomacia africana e mundial. Michael Ignatieff, que foi líder do partido liberal no Canadá, da oposição, redigiu uma recensão crítica ao seu livro de memórias e descrevê-lo-ia assim: “Como se explica a longevidade do prestígio moral de Kofi Annan? O quebra-cabeças é ter sobrevivido a falhanços, tanto seus como da instituição que serviu durante 50 anos. O carisma é apenas uma parte da história. Para além do seu charme, que é muito, há também a autoridade que vem da experiência. Poucas pessoas passaram tanto tempo em mesas de negociações com bandidos, senhores de guerra e ditadores. Ele tornou-se no emissário mundial para as trevas.”

Outro grande paradoxo da vida de Annan prende-se com o facto de não ter tido lugar para se afirmar na sua terra natal, o Gana. O mesmo paradoxo cobre a brilhante trajectória de Carlos Lopes. Foi nas Nações Unidas, entre Genebra e Nova Iorque, que este africano se tornou num político global. Actuou em áreas complexas da organização como orçamento e recursos humanos. Fez uma impiedosa ascensão. Com um árduo trabalho de paciência e perseverança contornou problemas, manteve intacta a sua reputação. Foi o primeiro funcionário das Nações Unidas a chegar a Secretário-geral. Um outro que fazia o mesmo tirocínio é o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, dez anos mais novo, amigo de Annan, que o representaria fatalmente em Bagdade. São dilacerantes as imagens deste diante do féretro do outro. Annan morre um dia antes dos 15 anos da morte de Mello, que ocorreu a 19 de Agosto de 2003, num ataque terrorista. Samantha Power escreveu uma comovente e belíssima biografia de Sérgio Viera de Mello – One Man´s Fight to Save the World (O Homem que Queria Salvar o Mundo, na versão portuguesa). Não gosto particularmente do que ela disse de Annan, que me parece profundamente injusto, mas reconheço o seu notável trabalho aqui.

O percurso de Annan tem mais acertos de que falhanços. A sua posição sobre o Iraque é uma delas. Ele foi contra a intervenção americana e queria que houvesse mais tempo para que Hans Blix (inspector da ONU) e a Agência Internacional de Energia Atómica confirmassem as suas conclusões que Saddam Hussein suspendera, em 1991, os programas de fabrico de armas de destruição maciça. Annan considerou “ilegal” a invasão americana. A administração Bush não o haveria de perdoar. A sua reputação e a sua autoridade moral permitiam fazer isso. E fê-lo com coragem. Quiseram pôr em causa a sua honorabilidade. Mas a sua rectidão e a sua probidade seriam sempre inquestionáveis. Mesmo quando foi confrontado com o escândalo do programa petróleo por alimentos, no Iraque, que envolvia o seu filho Kojo, que teria acordos sob suspeição, foi provada a inocência de Annan e a sua reputação saiu, de novo, incólume.

Quando fez o seu discurso de despedida, Annan estava crente de que deixava melhor a organização. O seu impulso reformista seria responsável por muitas medidas que visavam transformar aquela máquina pesada e burocrática (a ONU) numa instituição com prestígio moral e capacidade de intervenção humanitária assertiva. A sua chegada ao topo da diplomacia internacional, é preciso dizer, ocorreu num tempo em que o mundo sofria abalos que o redefiniam: quase uma década depois da queda do Muro de Berlim e 5 anos depois da implosão da União Soviética; o 11 de Setembro ocorre em 2001; as invasões ao Iraque e Afeganistão. O mundo estava em rápida transformação e ele entendeu isso. Não seria o mesmo. Sobretudo pelo terrorismo. As suas reformas de uma organização pesada e burocrática, ou as suas iniciativas que tinha esse lastro da comunidade global, quer ao nível da intervenção humanitária – data de 2005 a adopção da “responsabilidade de proteger” da ONU, ou o Fundo Global para SIDA, malária e tuberculose. África esteve no topo de agenda. A fome, a miséria, as guerras. O Prémio Nobel veio coroar-lhe esse esforço.

Kofi Annan escreveu nas suas memórias: “Comecei a perceber que a ideia de comunidade, para mim, iria significar algo diferente do que tinha significado para a geração do meu pai”. Esta outra ideia de comunidade terá permeado o seu notável percurso. O compromisso com os outros levou-o a escalar todos os degraus de uma organização global e fez dele o primeiro negro africano a chefiá-la. Foram 50 anos ao serviço de uma comunidade global, pela qual empregou todo o seu altruísmo. África deve-lhe muito. Provavelmente, não teria sido tão útil se tivesse persistido no Gana, no lamaçal doméstico onde não conseguiu fazer carreira. Este é também um paradoxo. Como é que uma mente tão brilhante é descartada com displicência e descaso? Admirava-o também pelo facto de lhe não conhecer acrimónia alguma em relação a isso. Hoje vejo que é lembrado no Gana como um dos filhos prestigiados. Mas Gana enjeitou-o. África tem disto – desfaz-se dos seus melhores. A pátria, nisso, não está desacompanhada. Grande parte dos recursos, no entanto, que chegaram e chegam aos países africanos para o combate à pobreza, às pandemias como HIV, SIDA, malária ou tuberculose devem-se à luta implacável e à compaixão imprescritível de Kofi Annan. Como Secretário-Geral das Nações Unidas, a sua figura está entre as referências estelares da organização. Ele é comparado a Dag Hammarskjold, que morreu aos 56 anos, num acidente de aviação, em Ndola, na Zâmbia, ao serviço da ONU. Poeta, humanista, altruísta, membro da Academia Sueca, Dag Hammarskjold foi o terceiro SG da ONU e ser-lhe-ia, postumamente, atribuído o Nobel da Paz, justamente no ano da sua morte, em 1961.

Kofi Annan, que hoje morreu, em Genebra, era das últimas personalidades africanas vivas que eu admirava verdadeiramente. Desmond Tutu talvez seja a última. Já não temos referências morais em África de nível planetário. É o que hoje sinto quando oiço dizer que ele partiu e vejo, dilacerado, o que passam as televisões. Revejo também aquela entrevista intrépida de Zeinab Badawi e comovo-me com a compaixão e a honorabilidade deste homem que foi o mais prestigiado emissário africano da paz mundial e que sonhou, tenazmente, com um mundo melhor para todos. Redijo este texto tendo a pungente cumplicidade de Aretha Franklin que me acompanha. A Soul Queen canta: I Never Loved a Man, Save Me, Never Let Me Go, I Can´t See Myself Leaving You, (You Make Me Feel Like) A Natural Women, Respect. No intervalo de dois dias desaparecem dois nomes imperecíveis do nosso Planeta. Curvo-me a ambos. Respect.

 

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