O País – A verdade como notícia

Aberto aos Domingos

 

Para

Albino Macuácua

 

Meu primo Germantino falou-me do novo bar, mas eu não acreditei. Era simplesmente impossível, incompreensível de todo um bar abrir apenas aos Domingos. Não no nosso bairro, «…o bairro dos bebedores inveterados», como disse um dia a caixa de um extinto jornal, aludindo ao facto de as fábricas de cerveja recrutarem entre nós os seus provadores mais oficiais.

Isso então não pode ser um bar, disse-lhe, Deve haver algo muito sujo lá dentro. O Germantino garantiu-me entretanto que era, mas não um bar qualquer, e quando ele fez um nó com os dedos indicadores, beijou-o e disse xikwembu xihanyaka, aquela novidade transformou-se na minha curiosidade incontida.

‒ Então vamos lá tentar bater uma Laura…

O Germantino não podia aceitar o desafio, tinha parado de beber nem ele sabia porquê. Acordou um dia e disse simplesmente Já não bebo!

‒ Já não bebes?! ‒ saltei do banco de madeira onde me sentava, a ponto de atirá-lo na direcção da Maria, a mais velha servente do Tio Tchoinado que naquele momento ia a passar com umas cervejas. A Maria tropeçou no banco admirado e as canecas acabaram escaqueiradas no soalho do bar. O Germantino pôs-se a rir das despesas do meu espanto, porque logo a seguir ela colocou na nossa mesa a conta das oito canecas bem calculada, de um lado o conteúdo e do outro o recipiente.

Eu ia insistir com aquela do meu primo parar de beber, pois desde o seu regresso da Alemanha tinha inspirado tanta gente a acreditar nos benefícios da cevada que se tornou no engenhoso criador da fama do nosso bairro, mas uma malta juntou-se à nossa mesa e já não valia a pena, nem todos ali eram amigos do Germantino. As minhas cautelas foram entretanto água em cima de pato, pois o pessoal assustou-se à mesma quando ele pediu sumo de laranja. Se uns perguntavam se ele estava doente, outros ameaçavam abandonar a nossa mesa. A Maria respondeu assustada que não vendia sumos, mas ofereceu-se para comprar numa mercearia do lado e depois colocou a gelar nos seus frigoríficos. A Maria gostava do Germantino, eu sempre soube, mas essa é outra história. O facto é que aparentemente todos aceitamos a mudança do meu primo, porque até chamamos um rapaz que andava ali a vender amendoim torrado e pedimos para ir comprar mais à mercearia, e ninguém admirou quando ouvimos a ameaça contra o miúdo:

‒ Hei, puto, ver bem a validade, senão eu é que te vou expirar…

O Germantino bebeu muitos litros de sumo, a ponto de ter a incrível ideia de erguer um pomar algures para um negócio qualquer que já ninguém quis ouvir. A partir desse dia, deixamos de nos ver como era habitual, no bar. É que no fim eu tive mesmo que lhe dizer:

‒ Primo, não é nada pessoal, mas não andas mais connosco. Desculpa lá, mas assim também não dá.

Portanto, para resolver o caso do bar que só abria aos Domingos, eu devia procurar alguém que ainda jogasse na nossa liga. Mas não podia ser apenas um jogador, antes tinha de ser um adepto muito ferrenho, como o Filipe, o Alexandre ou o António Descoberto, mas estes também andavam com ideias esquisitas. O primeiro meteu-se numas secas que de tão molhadas via-se claramente que aquilo era uma forma de sair da liga à francesa. O tipo era capaz de adicionar dez cubos de gelo num simples de uísque. Ninguém entendia aonde o Filipe ia assim sorrateiramente.

O Alexandre disse-me que tinha bebido cerveja toda vida e que a morte devia encontrá-lo rejuvenescido, por isso passou a beber vinho. Eu viria a descobrir que essa decisão afinal tomou-a depois de perder o emprego. Nessa altura percebeu que com um único pacote de vinho era capaz de andar exilado de tanta miséria como quando emborcava 36 bazucas. Como disse um dia o Germantino no seu melhor humor, o caso do Alexandre era uma questão de gestão álcooleconómica.

Já o António Descoberto só queria saber de cuidar dos filhos, porque descobriu que a mulher rivalizava com ele. Aconteceu num 7 de Abril: ao invés de a senhora voltar das celebrações com lenços, rosas e capulanas, entrou em casa a tropeçar num canto esquecido:

Eu vou morrer na escolinha

Com copo de vinho na mão…

Mal ouviram a voz da mãe, os filhos foram a correr para a abraçar, mas o Descoberto, que não podia ouvir a outra parte da canção pueril, bloqueou-lhes a saudade e tratou imediatamente de esconder as crianças na casa de banho, e acusou-lhes de terem despachado o banho.

‒ Tomem de novo.

Quando regressou à sala, a mulher ressonava derrubada no velho sofá encardido, sem uma capulana nova para cobrir-lhe as vergonhas descobertas. Segurava entretanto, firme na mão direita, um copo descartável com uma réstia de vinho tinto. Talvez por causa dessa firmeza o António quis saber: «Onde deixaste a calcinha estavas com quem?» E abanou-a para ver se havia uma confissão, mas a única coisa que ouviu foi um roçagar metálico e o ruflar de um saco plástico que a mão esquerda deixava pender com o peso de três latas de cerveja, um maço de cigarros quase vazio, uma garrafinha de uísque, uma peruca desgrenhada e dois preservativos.

Não podia ser com nenhum dos três. Só me restava o Chico Traquina, um sujeito que eu não suportava desde que abandonou a minha irmã. Tínhamos entretanto ajustado as contas porque eu convenci a mana a meter o caso na Justiça e assim garantir a pensão do filho deles. Apresentei então o problema ao Chico, disse-lhe que tinha ficado na esquina oposta ao bar um dia inteiro e que como um detetive tinha detetado muitos detalhes. Mas em síntese o caso era o seguinte: apesar de estar aberto, ninguém ousava beber naquele bar, pois todos que eu tinha visto a entrar saiam imediatamente enquanto atiravam manguitos não sabia eu para quem.

‒ Vamos lá…

‒ Tu não entendeste: Aberto aos Domingos

‒ Ouve cá, no meu bairro nenhum bar abre apenas aos Domingos.

‒ É o que diz o letreiro…

‒ Que brincadeira é essa? Eu só quero provar a cerveja. E digo-te: se não prestar é porque o gajo vende merdas e o álcool é apenas um pretexto. Porra, ainda lhe fazemos um abaixo-assinado… Cerveja apenas aos Domingos, essa é que era boa!

O Chico ainda sugeriu que levássemos connosco a Joana Ajoelha, mas eu não concordei. A Joana tem um problema muito sério: a coitada até gosta de beber, mas não engrossa e assim não nos permite qualquer avanço sobre o seu peito bojudo. É muito bonita, a Joana, mas não ajoelha para ninguém. A única vez que isso aconteceu foi quando nós, eu, o Traquina, o Filipe e o Alexandre, sugerimos ao António Descoberto um amor sem sonhos nem desculpas, e até chamamos para ele uma prostituta que o Chico conhecia muito bem, porque a tinha amado incondicionalmente. Nós queríamos muito que ele se curasse das traições da mulher, mas nisto apareceu a Joana, menina-senhora sem amigas, boa conversadora e amiga de um grupo de bêbados poetas da vida. Ela, muito esperta, percebeu imediatamente a missão daquela rameira já sentada no colo do António.

‒ Então é assim que vocês resolvem os cornos do vosso amigo?!

A Joana mandou embora a jovem e pegou o António pelas goelas:

‒ Tu agora vens comigo!

Aquilo era tão inusitado que nós queríamos acreditar que pela primeira vez a Joana tinha apanhado uma bebedeira, mas também era-nos difícil aceitar esse ciúme sem procurar o sacana autor da proeza que era embriagar a nossa amiga, a nossa Joana. Vimos o António impotente, a ser arrastado por um corredor que ia dar às casas de banho do Tio Tchonado e esperamos atónitos. Passados exactos quinze minutos, o nosso amigo regressou exultante, parou no meio do salão, abriu os braços e gritou para os bêbados como quem acabava de marcar o golo da desforra:

‒ Afinal a Joana ajoelhaaaaaa!!!…

Nunca soubemos o que realmente aconteceu no fundo do corredor, mas a Joana saiu também muito feliz. Nunca mais soube se eles se meteram nalguma outra escuridão, mas também podia ser o caso de não quererem que soubéssemos que continuavam a iluminar-se. Esta é, na verdade, a principal razão por que neguei levar a Joana connosco: confesso que ela nunca ajoelhou para mim… Enfim:

‒ Não levamos a Joana e ponto final.

Quando chegámos o bar estava vazio. Era um pub bonito e ao mesmo tempo estranho, o que o tornava atraente. Tinha um estilo industrial um tanto antiquado: o espaço havia sido adaptado de uma oficina colonial fechada durante mais de trinta anos. O dono conservara o chão de cimento, dando-lhe apenas algumas pinceladas irregulares com tinta branca para limpar os óleos. O que mais me impressionou foi ver, suspenso bem no centro do salão, o chassi de um camião militar Mercedes Benz, que nós chamávamos de Matchedge. A estrutura militar mantinha-se imperturbável e confiante nas suas glórias, memórias entretanto disfarçadas pela arte de algum grafiteiro que se tinha empenhado em exorcizar nela os anos de guerra com o amarelo, o branco, o vermelho e o azul da sua juventude.

As luzes intermitentes entre piscas, presenças, máximos e emergências, eram distribuídas pelos cantos inferiores, rentes ao chão, e projectavam sobre o chassi do Matchedge e nas paredes um mundo alternativo. Entre as quatro paredes havia uma especial, onde desenhavam-se a carvão outros carros da História, um Lada, um Niva e um Whaz. Nas restantes três paredes o proprietário tinha chamado algum artista plástico para fazer coisas da sua cabeça pós-moderna.

Ao lado da parede oposta ao mural da História, erguia-se uma área restrita a quem quisesse beber uma cerveja aos bancos de um Lada amarelo impecável. As mesas do bar eram de paletes de madeira em bases de jantes grafitadas com cores quentes e os assentos feitos de eixos embutidos no chão, encimados por pneus cortados e ajustados à longa conversa da gente que sabe que a vida é bela. Para a música havia uma jukebox mesmo debaixo do Matchedge, mas apenas tocava para os amantes de jazz ou de blues.

Quando chegamos ao balcão vimos quatro torneiras muito bonitas e geladas. Aqueles finos de certeza não se bebiam em qualquer parte do mundo e como sairiam apetecíveis os dois malucos e a Dona Laura! Chico Traquina ficou tão sequioso que não quis esperar pelos meus salamaleques, pediu logo:

‒ Uma Laura…

De repente todos empregados suspenderam os gestos habituais e olharam para dois sujeitos que às dez horas de uma terça-feira queriam beber cerveja. O barman ignorou-nos e continuou a fingir que limpava umas serpentinas. E todos começaram a fingir estar a limpar qualquer coisa que devia estar já muito limpa. Voltei o olhar para as quatro torneiras fumegantes de gelo, sobre as quais seis faróis, engastados no porta-copos de madeira um metro acima do balcão, derramavam luzes amarelas, verdes e vermelhas. Que maravilha!, disse o Chico em voz alta. É das luzes, adverti eu, mas sem deixar de meter goela abaixo um fino imaginado e esperado. Aquilo só podia ser obra de algum Sabazius de nacionalidade moçambicano. Esta ideia fez-me esquecer as mesuras que o Traquina detesta no meu comportamento e pedi como quem ordena:

‒ Dois malucos…

O homem das torneiras mirou-nos e disse simplesmente:

‒ Apenas aos Domingos… ‒ e afastou-se na direcção da garrafeira de vinhos atrás de si.

Será que Germantino tinha razão?, pensei.

‒ Mas então não estão abertos?!

O barman respondeu-nos de costas enquanto limpava os vinhos, mas percebemos perfeitamente que o estúpido sorria:

‒ Estamos abertos aos Domingos…

‒ E aquelas portas ali abertas?!

‒ Os bares não foram feitos para ficarem fechados ‒ disse de forma incompreensivelmente arrogante.

O Chico Traquina gostava de dizer que o álcool nunca nos pode aborrecer, por isso puxou-me pelo braço e disse «Não estamos aqui para mendigar favores a um empregado». Eu ainda lhe disse que, a ponto de nos impedir de beber, ele bem podia ser dono daquilo tudo, «Dono uma ova, só se eu for primo de Platão». De seguida arrastou-me para fora enquanto garantia em voz alta que voltaríamos no tal Domingo, porque aquele bairro era nosso, e ameaçou: quisessem fazer negócio na nossa república, perguntassem primeiro aos concorrentes como se afinavam as toneiras por ali. E fomos sentar no Tio Tchonado, o nosso velho e bom bar de todos os tempos, a dois quarteirões dali, onde inclusive podíamos encontrar todas as prostitutas do mundo. Mas, ainda que tentássemos evitar, ficamos todo o dia a mastigar aquele insulto.

No Domingo seguinte, fui acordar o Chico para irmos ao único bar no mundo onde só se bebe em dia sagrado. Ele ainda se mostrou indisposto, preferia ir ver as miúdas dele no Tchonado, mas eu disse que o novo bar era bom para lavar a alma, porque, pensando bem, não era um bar qualquer, e prometi pagar a conta. Ele aceitou, não porque eu pagaria a conta, mas porque custava-lhe admitir aquele insulto ainda grudado aos nervos, disse-me. E disse também que era urgente resolver o caso, porque aquele bairro era muito nosso. Aliás, para beber de borla todos tínhamos o Tchonado. «Essa cevada deve ser muito milagrosa», ainda o ouvi dizer aos seus botões.

Quando chegamos ao bar havia bêbados do mundo inteiro a abarrotar a antiga oficina que não podíamos acreditar, mas o Traquina observou imediatamente e certeiro:

‒ Estes bêbados não conheço. Quem são?

E tinha razão o meu amigo. Não havia uma cara sequer do nosso bairro. Entramos às cotoveladas por entre o mar de gente para poder chegar ao balcão, ao mesmo balcão que na terça-feira tínhamos alcançado tranquilamente. «Esta dificuldade é sinal de que hoje não morremos na praia», disse o Chico a gritar para se fazer ouvir no meio das gargalhadas, dos brindes e das inconfidências desconhecidas. Quando finalmente alcançámos o balcão, lá estava o mesmo homem sem graça das torneiras.

‒ Algo me diz que tu és capaz de não só ser primo de Platão, como também um dos melhores amigos de Sócrates… ‒ disse eu no ouvido do Traquina, mas ele nem respondeu, fez imediatamente soar uma buzina que na terça não a descobrimos junto a uma das torneiras e gritou como quem exige um ajuste de contas:

‒ Dois malucos…

‒ Apenas aos Domingos…

‒ Mas hoje é Domingo, porra. Dá lá cerveja…

Quando o Traquina parou de gritar, os bêbados pendurados no balcão desataram a rir. Dois que estavam bem ao nosso lado abriram as carteiras e mostraram-nos os bilhetes de identidade: Domingos Bartolomeu Xavier, um, e Domingos Nasceu Ontem, o outro. Apercebendo-se da exibição, um terceiro sujeito, já a soluçar pedidos de mais um fino, também tirou o seu bilhete e apresentou-se: Sonto de Jesus Gomate. Nisto ainda caiu uma senhorita nas minhas costas, virou-se atrapalhada, pediu-me desculpas a sorrir de bêbada e disse enquanto tentava disciplinar uma saia curta:

‒ Eu sou Domingas, qualquer coisa estou aqui…

Foi então que percebemos as identidades daqueles estrangeiros e doeu-nos saber que éramos mais estrangeiros que todos eles. Uma casa pode ser um lugar estranho, por isso saímos. Lá fora, esperava-nos o mano Germantino:

‒ Então, aí nesse bar que tal são as cevadas, alguma novidade? Cá por mim tomávamos um sumo de…

‒ Fecha essa boca, Germantino ‒ disse o Chico nervoso e encaminhou-se rapidamente em direcção ao Tio Tchonado, mas ainda o pudemos ouvir a murmurar pelo menos três vezes: «só precisávamos de uns bilhetes alternativos, porra!», «precisamos de uns bilhetes alternativos!», «só preciso de um bilhete bem alternativo!»…

 

 

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