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“Asas para voar, raízes para onde voltar”

Estou a ler um excelente livro de José Paulo da Fonseca Pinto Lobo. Mistura vários géneros, desde crónicas, reflexões, notas biográficas até mesmo análise política. É uma interessante viagem aos primeiros anos da independência, um convite aos bastidores de gente que serviu este país longe dos holofotes com a sua entrega à causa da construção duma nação.

Um dia esta história terá de ser contada com todo o pormenor para que o exemplo desses heróis não celebrados sirva de referência para os mais novos. São os símbolos duma geração que se entregou ao serviço público tendo como orientação a integridade, o brio profissional e, naturalmente, uma entrega genuína a um projecto político (por mais que a gente não concorde com ele). É a geração de técnicos antes da famosa geração 8 de Março, gente que construiu o Estado com a sua abnegação.

Recomendo o livro sobretudo aos mais novos para terem uma ideia do que já foi possível em Moçambique. A distância que separa a Frelimo de então – com todas as reservas em relação ao projecto político – e a de hoje são gritantes. Queria rir quando li esse post dum jovem que declara ter medo da Frelimo por causa daquilo que a vê fazer. Mas não consegui. Como estou a ler este livro aqui apenas senti um aperto no coração. O membro da Frelimo que não sente o mesmo ao ler isso não deve ter jamais compreendido o sentido da sua militância.

Na página 60, José Paulo da Fonseca Pinto Lobo cita um psicólogo austro-húngaro, Viktor Frankl, fundador da logoterapia, que insistia muito na necessidade de encarar a vida como uma afirmação: “A vida significa, em última instância, assumir a responsabilidade de encontrar a resposta adequada aos seus problemas e ultrapassar os desafios que constantemente apresenta a cada indivíduo. Esses desafios e, portanto, o sentido da vida, variam de pessoa para pessoa e de momento para momento”. José Paulo Pinto Lobo inspira-se nessas linhas para escrever: “Penso então que é o dever dos educadores dar as ferramentas necessárias para que as crianças possam fazer escolhas, assumir responsabilidades e encontrar as suas respostas e o direito destas de errarem para que possam construir o seu próprio caminho”. E remata: “Temos de dar asas para voar e raízes para onde voltar”.

Se alguém ainda precisava duma boa definição do que significa governar hoje em dia, sobretudo em Moçambique, aí está ela. Numa altura em que quem governa – ou dele está próximo – pensa que governar é simplesmente exercer o poder sobre as pessoas, o que sobressai nesta definição é a ideia da atrofia e asfixia de quem é governado. Ao contrário do que algumas pessoas pensam, sobretudo as que morrem de amores por regimes autoritários, a democracia não é um simples conjunto de procedimentos (eleições, constituição “democrática”, “separação” de poderes, etc.). Democracia é um processo, isto é um trabalho constante na criação de condições para que se voe e se saiba onde voltar.

A nossa dificuldade em apreciar isto vem da nossa incapacidade de nos livrarmos do espírito autoritário que se apossou de nós durante a história. A essência do autoritarismo está na ideia segundo a qual um país se definiria com base numa única vontade. A luta pela independência nutriu essa convicção, principalmente com a necessidade de dar coerência à ideia duma luta “nacional”. Foi lá onde se enraizou a convicção de que tudo o que não corresponde a esta vontade única constitui uma ameaça a ser eliminada. Foi esta convicção que, mais do que o Apartheid, Bandidos Armados e o Imperialismo ocidental, inviabilizou o projecto “revolucionário”, pois fomentou a intolerância ao mesmo que nutriu a ideia duma verdade acima de tudo.

O autoritarismo é por definição hostil ao pluralismo. Quando um partido absolutamente dominante vislumbra o perigo dum “golpe de estado” apenas porque há manifestações de insatisfação com a sua governação o que isso documenta é justamente a hostilidade ao pluralismo que se traduz no medo de se perder o poder a favor de gente que não representa a vontade única porque essa é prerrogativa de apenas um partido. A ideia de que Moçambique, interpretando livremente a citação de Viktor Frankl, possa ser a manifestação da variação individual do sentido da vida, apresenta-se como um perigo à prerrogativa de poder, razão pela qual a repressão constitui a única forma de fazer política.

Não cabe, na mente autoritária, a ideia de que o descontentamento popular possa ser genuíno e que, por isso, não basta procurar inimigos invisíveis, infiltrados ou golpistas. A resposta tem que ser política e deve consistir em saber porque há descontentamento e que condições devem ser criadas para que ele não se transforme em radicalização. Cabo Delgado acena silenciosamente. Não cabe, na mente autoritária, a ideia de que onde aparentemente as ideias se esgotaram seja legítimo que se ensaiem outras. Portanto, aproveitamento político é algo positivo, pois indica a possibilidade de se ensaiarem outras ideias já que o pluralismo é a essência duma ordem política democrática.

Tudo isto é difícil de entender porque as referências da nossa elite política são autoritárias. O que os EUA de Trump, a Turquia de Erdogan, o Brasil de Bolsonaro, a Rússia de Putin, a Índia de Mody, a Hungria de Órban, etc., etc. têm em comum é justamente a ideia da vontade única e hostilidade ao pluralismo. É assim, também, como a nossa elite política pensa, razão pela qual ela se sente mais à vontade na companhia deste tipo de regimes. O autoritarismo é o caminho certo para o totalitarismo (a China de Xi Jinping), algo que acontece já no interior do partido no poder onde todos estão sujeitos ao controlo total dessa vontade única representada pelo chefe infalível. 100% de votos para o líder e mesmo assim há infiltrados que querem destruir o partido…

Vai ser difícil termos asas para voar e raízes para onde voltar quando temos uma elite que não vê o mérito de criar condições para que os moçambicanos façam escolhas, assumam responsabilidades, encontrem as suas respostas e, acima de tudo, usufruam do direito de errarem para que possam construir o seu próprio caminho. Estava a parafrasear José Paulo Pinto Lobo.

Uma elite política com espírito autoritário esgrime a democracia contra o seu próprio povo fazendo exactamente a mesma coisa ao seu povo que o inimigo externo, o “Ocidente”, faz contra o resto do mundo. Um dos nossos maiores problemas em Moçambique é a nossa elite política.

 

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