O País – A verdade como notícia

Zubeida

(inspirado numa velha lenda urbana da minha cidade)
A regularização de sua conta bancária era o último empecilho para que a direcção de finanças do seu emprego desembolsasse o seu primeiro e muito aguardado salário.
Para dar conta da resolução do estorvo para o seu recebimento salarial, Lucas Chitato pediu dispensa ao departamento dos recursos humanos para tratar do assunto.
Ficou, aguardou espetado na fila desde das primeiras horas da manhã no balcão de uma das maiores instituições bancárias do país, sucursal localizada na cidade de Quelimane.
Posicionou-se em diversas poses que a sua mente concebia, cansou-se, sentou-se, levantou-se, acedeu às diversas plataformas das redes sociais até o telemóvel ficar sem carga, antes de ser atendido, nas vésperas do fechamento, finalmente atenderam-no.
Na manhã seguinte, quinta-feira, apresentou o comprovativo da regularização da conta, e esperou que o salário caísse, os colegas já desfrutavam das benesses providas pelos niqueis do ordenado.
Lucas, jovem recém licenciado em economia, teve que pagar, aliás pagou-o o pai para conseguir obter uma vaga numa instituição pública da cidade. E nos dias que se sucederam ao pagamento da vaga o remanescente salarial do pai só deu para o básico, as iguarias mensais a que estavam habituados a degustar desaguou num riacho de saudades.
A ânsia pelo recebimento do seu primeiro vencimento governava as suas emoções, queria ter a sua desejada independência financeira, os pais haviam feito todo o sacrifício para que ele tivesse uma boa educação, e ele estava deveras grato, queria também constituir sua própria prole.
Sexta feira ao meio da tarde o seu telemóvel dançou sob o tampo da sua secretária, olhou para tela descobriu a mensagem de texto enviado pelo banco com alerta de creditação na sua conta com o valor do salário.
Dançou na cadeira animado pelo ritmo vibratório que a mensagem produziu na sua mente, tamborilou o tampo da sua mesa, sem se aperceber que perturbava os colegas, quando percebeu da anomalia que protagonizava, desculpou-se.
Olhava obcecado o relógio, o tempo parecia ter parado, colegas veteranos já se preparavam para sair, eram 14:50h.
Não queria precipitar-se para a saída como faziam muitos dos seus colegas, precisava ser um trabalhador exemplar, aliás a educação que recebera conspirava para tal.
Finalmente chegou a hora, saiu para a rua, foi logo engolido pelo alvoroço, parou um táxi bicicleta, correu para o balcão do banco que ainda estaria aberto.
Levantou todo o seu salário, usando o mesmo táxi bicicleta, pediu que o conduzisse para casa.
O crepúsculo vespertino ia engolindo a cidade, as pessoas regressavam as suas casas, um tráfego de táxi-bicicletas impunha-se desafiando os automobilistas que tinham que finta-los para não se colidirem.
Candeeiros espetados nas ruas e avenidas derramavam seu de feixe emprestando um brilho artificial a cidade e periferia.
Chegou a casa, encontrou os pais abrigados no velho sofá, embriagando-se com notícias destiladas por uma estação de TV local.
Instantes depois Lucas juntou-se aos pais, quebrou o vínculo que vinham tendo com a TV, ganhou completa atenção deles e de seguida entregou o envelope que continha o seu primeiro salário.
O pai pegou no valor e sem conferir dividiu de forma aleatória, entregou uma parte do valor a Lucas enquanto fazia um discurso retórico e a sua mãe meneava a cabeça em gesto de concordância.
Sentiu-se impelido a celebrar aquele momento ímpar da sua vida, aperaltou-se, passou uma loção na sua tez de tom de jambire e fez o pente desbravar o cabelo encarapinhado, viu-se no espelho, sentiu que ultrapassava os seus 1.79m, largou um sorriso correspondido prontamente pelo seu duplo.
Tomou emprestada a motorizada de seu pai, emitiu uma mensagem de texto e enviou para o seu melhor amigo.
A rua pavimentada do bairro continuava movimentada, principalmente pelos táxis bicicletas, as barracas clonadas onde se salientava as cores vermelho, amarelo e verde, hospedavam clientes que vociferavam competindo com o som dos alto-falantes cantantes.
Lucas encontrou o amigo já na companhia de uma garrafa de cerveja, conversaram animados pelos novos rumos de suas vidas, o tempo ia sendo confiscado pela noite. A dona da barraca anunciou que a qualquer momento fecharia, pois as autoridades reguladoras estavam atentas aos descumpridores das normas.
Etilicamente energizado Lucas depois de se despedir do amigo dirigiu-se para a discoteca mais propalada da cidade.
Os únicos dançarinos que ocupavam a pista era a luz cromática, alguns clientes apeados no balcão que bebericavam e trocavam conversa, a medida que o tempo passava os fregueses multiplicavam-se.
Quando Lucas segurou o seu copo para dar um gole, um feixe de luz atingiu o rosto maquiado de uma rapariga que se sentava num canto da sala e emanava uma áurea arrebatadora.
Olhou, enlaçado no seu charme, estabeleceu-se um canal encriptado onde os dois falavam uma língua que o ruído da sala não perturbava. Caminhou sereno na direcção dela, e sem nada dizer pediu para dançar, aliás estendeu a sua mão e logo rodopiaram na pista.
Ao compasso rítmico, dançavam, entraram para um redoma isolando-se dos demais, Lucas acariciava-a estimulado pela coragem que o álcool produzia na sua pessoa.
A mudança rítmica protagonizada pelo “disco Joker” rompeu abruptamente o elo que se  estabelecera, o casal soltou-se, trocaram sorrisos, e foram acomodar-se em pequenas poltronas na esplanada da discoteca.
Conversaram informalmente como um velho casal de namorados, falava mais Lucas e ela limitava-se a responder ao seu inquérito.
A luz eléctrica da cidade continuava intensa mas não desarmava a noite que se adensava.
– Nunca te vi por aqui? – afirmou Lucas.
– Raramente apareço – confessou serena.
Continuaram a conversar por mais duas horas, até finalmente decidirem ir-se embora, era já madrugada de sábado.
Levo-a na garupa da sua motorizada, o motor roncou, engrenou e partiram, a brisa fina da madrugada fê-la estremecer, largou um calafrio, abraçou-o mais intensamente, Lucas parou a motorizada, tirou o casaco que usava e entrego-a, reiniciaram a partida.
Deixou-a na porta de casa.
– Quando posso voltar a ver-te?
-Quando quiseres. – respondeu ela com um sorriso.
– Ligo-te amanhã. – disse Lucas.
– Estou sem telefone.
– Como faço então para te contactar? – questionou ele.
– Vem ter comigo a minha casa. – disse ela.
– Os teus pais?
– Eles são muito compreensivos. – afirmou ela convicta.
– Certo, então até amanhã, aliás até logo.
Na despedida, beijaram-se, ele ainda a viu entrar e instantes depois foi-se embora.
Lucas só despertou quando eram 9:30h da manhã de sábado, com uma desagradável “babalaza”.
Depois de um banho fresco, correu para a barraca da dona “mimi” onde tudo começou, socorreu-se de um petisco e bebeu umas duas cervejas bem geladas, recuperou o episódio da noite passada com ênfase na moça que conhecera e se apaixonara. Precisava, logo revê-la.
Abandonou a barraca, parou um táxi bicicleta e embarcou.
– Para onde patrão? – questionou o taxista.
– Torrone velho. – asseverou Lucas.
A pedalada iniciou, a velocidade aumentou e a distância encurtou-se, chegou ao destino.
Ensaiou a abordagem correcta que devia praticar consoante a pessoa que lhe atenderia, pensou em desistir, um ímpeto encorajou-o, bateu a porta, esperou um bom tempo, ninguém atendia, quando pensava em desistir assomou a porta uma adolescente com parecença irrefutável com a moça que conhecera e se apaixonara na noite passada.
Trocaram olhares antes de Lucas pronunciar-se.
– Sim! – disse a menina.
– Posso falar com Zubeida? – articulou por fim Lucas.
Ela ficou petrificada sem saber o que dizer, dilatou as pupilas de seus olhos grandes, suspirou, mudou de posição dos pés para se reequilibrar, dos olhos nasceram lágrimas que transitavam pelo rosto, deixando-a completamente pálida, carpiu estrondosamente.
– O que se passa, filha? – questionou a mãe com voz profunda.
A mãe juntou-se à filha, soube das pretensões de Lucas. Conteve-se antes de responder e corajosamente disse:
– Minha filha faleceu, faz exactamente hoje um ano. – conferiu a senhora para depois soltar lágrimas que logo inundaram-lhe o rosto.
“Só podia estar a haver algum equívoco” – cogitou Lucas, arrependido, por bater a porta naquela moradia.
– Lamento imenso, minha senhora, talvez enganei-me na casa. – disse.
Lucas lembrou-se de algo que podia dissipar qualquer equívoco. Socorreu-se do seu telefone, acedeu a galaria e exibiu a foto que tirara com Zubeida.
– É, é minha filha. – afirmou a senhora com a voz entrecortada. –  Quando a conheceu? – questionou serena.
– Estava com ela ontem à noite.
Mãe e filha prantearam copiosamente.
O senhor Matias chegou, foi adentrando quando deu-se conta do celeuma que decorria na sua casa, procurou inteirar-se do que estava a acontecer.
Convidou Lucas a entrar e sentar-se e então tratou de explicar que não era possível que a pessoa que estivera com ele fosse Zubeida pois ela falecera, e ele vinha buscar a mulher e a filha para irem visitar a campa da falecida em celebração de um ano desde que ela partira.
Lucas manteve-se incrédulo, e então o senhor Matias decidiu convida-lo a acompanha-los ao cemitério.
Não demoraram para alcançar o cemitério que ficava na periferia da cidade, foram adentrando em direcção a ala leste, depois seguiram por uma vereda entre campas até alcançarem a sepulcro que buscavam.
Incrustada na lápide vertical estava inscrito palavras de ternura, mas a que mais saltou a vista de Lucas foi o nome “Zubeida António Chipenda” e a foto da falecida. Um baque sacudiu-lhe o peito e o medo tomou conta de si. “Estaria a enlouquecer?”
Quando dona Marta mãe da falecida, agachou-se para iniciar a limpeza da campa, eis que se depara com algo aveludado sobre a laje. Tomou em suas mãos o estranho objecto.
Todos olharam para o casaco mas foi Lucas quem ficou completamente petrificado com a descoberta.
– Esse é o casaco que emprestei para a Zubeida esta madrugada.

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