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Angústias de um “Madjoni-joni” ressuscitadas por Nuno Silas e Xenofobia contra famílias moçambicanas

Por Domingos Mucambe

As vezes que tenho uma visita guiada nas artes minguam quase nunca acontece, e, contra todas possibilidades e probabilidades, aconteceu: e, imersos num cenário onde preto e branco, cores predominantes, nos escureciam o presente nas sombras do passado, eu me revelava um inexperiente nessa coisa de ser guiado e, paralelamente nos desconhecimentos, quem me guiava também tombava nas suas explicações inexistentes, e, levados pela melancolia dos Madjoni-joni, partilhávamos mais silêncios que palavras. É nesse entremeio que nasce a vontade de escrever esse ensaio, para, num lado, dizer o quão gostei desse passeio nas histórias de muitas famílias moçambicanas e, do outro lado, reagir a obra de Nuno Silas, exposta no Centro Cultural Franco-Moçambicano.

De longe, apenas o preto e o branco lampiscavam, numa dança coordenada, mas também adversativa: uma cor tentava levar o lugar do outro, e, no final, os dois conquistavam a atenção mesmo nesse infinito pelejo. São duas cores que, convencionalmente, têm sido usados para retratar todos os sentimentos ligados a sofrencia de vários tipos, até mesmo o desfavorável luto, por exemplo. E é bem isso que se sente, se vislumbra e se imagina naquelas grandes telas: as dolorosas angústias de um pretérito muito presente, e em prontidão de acontecer,  acompanhado também por luto: se não é luto por um querido que se tornou ente naquele trabalho mineiro, era luto porque as pessoas perdiam um pouco de si naquelas covas, ora a sua saúde, a sua sanidade, e outras vezes outras coisas indescritíveis, e que somente as histórias que traziam dentro dos seus peitos podiam desenhar esse panorama. Não é apenas uma angústia que nos nasce ao vislumbrar essas lutas, são muitas que nos perpassam onde se resguarda uma memória colectivamente vivida, por isso é que, de um modo, são ressuscitadas, se andam vivas como que nunca morreram, então foram trazidas ao diálogo. Falando em diálogo e discurso, a exposição “Madjoni-joni: retratos de mineiros e famílias moçambicanas na África do sul” traz uma intermidialidade quando junta, num mesmo espaço, a fotografia, o vídeo e o desenho em grandes telas. Em breves trechos, a intermidialidade é a “relação que se estabelece entre dois ou mais produtos de mídia e de estabelecer uma categoria analítica” (Kogawa, Ghirardhi et Dos Santos, 2022 (disponível em https://doi.org/10.1590/2176-457353511)).

Além desses três “produtos de mídia”, essa exposição tem algo de incomum, nas galerias moçambicanas, que é o jogo dialógico/dialéctico entre os desenhos (e outras artes) e alguns textos. Essa interacção entre o texto e o desenho, por exemplo, essa intermidialidade, faz-nos não termos saudades dos títulos das obras. Em algum modo, sente-se que o texto, em inglês, na primeira exposição, por exemplo, contextualiza, clarifica e, para o nosso bel prazer, aprofunda a degustação. Apesar de haver essa contextualização e clarificação, surge, nos ares, que as mesmas são parciais, o que faz com que a outra parte da interpretação ainda se resguarde no ofício individual e subjectivo. Aliado a essa questão, a ausência de títulos abre um campo de significações que fica ao encargo do próprio observador, apreciador.

Em telas, Nuno Silas conseguiu reunir variadas angústias de Gado Mapara Magaiza, denunciado por José Craveirinha, isolamento forçado pela apartheid até a xenofobia. Há aqui uma conversa entre as telas, todas trazem-nos na tez as dificuldades, o sofrimento e, no meio disso tudo uma única possibilidade, a resiliência de famílias moçambicanas nas terras do rand. Metaforicou o trabalho braçal com os capacetes usados pelos trabalhadores das minas, e, nesse jogo entre

palavra e figuras, Nuno Silas escreve “Slave labour on mines” [trad.: Trabalho escravo nas minas] que nos oferece balizas concretas, essas que nos permitem relacionar esse quadro com o contexto “Gado Mapara Magaiza”, onde se retrata o trabalho desumano (animal), desigualdades e outras injustiças sofridas por moçambicanos. “Mamparra Magaiza” assim surgiu para glosar com homens que eram explorados não só por ignorância, como também por falta de protecção das autoridades.” – Luís Loforte (2007, correio da manhã). É essa falta de protecção que os fazia gado. Num outro quadro, sinto que o Silas sugere a ideia do apartheid e o isolamento dos negros (em particular, as famílias moçambicanas) com o arame farpado atrás de um pai, mãe e filho.

Nesse trabalho coordenado de significações, está lá uma estória desenhada que nos chama atenção, a todos, que é a questão da xenofobia. Cecília de la Garza (2011, disponível em https://doi.org/10.4000/laboreal.7924), na tentativa de definir esse conceito, refere que “pode dizer-se que este tipo de discriminação se baseia em preconceitos históricos, religiosos, culturais e nacionais, que levam o xenófobo a justificar a segregação entre diferentes grupos étnicos com o fim de não perder a própria identidade”. É, à luz dessa pequena definição ou tentativa de se situar esse conceito, o caso de dizer que os moçambicanos sofrem preconceitos e discriminação constantes nas terras sul-africanas que leva os mesmos a estarem isolados e segregados. Contudo, a própria autora acrescenta que “por outro lado, muitas vezes acrescenta-se um preconceito económico que vê nos imigrantes competidores pelos recursos disponíveis no seio de uma nação” (ibidem). Esse por outro lado revela muito aquilo que é a problemática do moçambicano nas terras do rand, que é, simplesmente, uma migração económica. E isso é justificado na transcrição “I came to Joni because of poverty, indeed!” [trad.: Vim para Joni por causa da pobreza, de verdade], e, com falta de protecção e ignorância, coloca-o numa posição de fragilidade.

O quadro é simples: um grupo de pessoas rodeando uma outra pessoa numa posição, imagina-se, de resignação e sendo apedrejado. Essa obra revela muito desse comportamento hostil contra os estrangeiros na África do Sul direccionado aos moçambicanos, em geral. É uma imagem que é reveladora, não precisa de muitas palavras. Essa tinta-da-china sobre papel em 150 X 196 cm, datada de 2024, abre feridas que ainda vertem grãos de pus e, de um outro modo, intensificam o já intenso drama de ser um moçambicano pobre naquelas terras: o terror e o medo de, a qualquer momento, eclodir qualquer fissura económico social e a corda rebentar-se pelo lado mais fraco.

Por conta da sua fraqueza, esses pagam com vida, em mortes mais dolorosas que qualquer acto de sacrifício, paus e pedradas até a respiração perder-se entre o ar, contaminado por sua exploração.

Essa exposição traz isso, em geral, as angústias que temos como moçambicanos: dos muitos gados mapara magaiza, dos isolamentos em bairros de lata e, em particular, a xenofobia, que acaba sendo o demonstração mais que evidente do sofrimento dos moçambicanos na terra de Mandela.

 

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