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Por que premiar Os pintores de sonhos, de Carlos dos Santos?

A arte, a literatura, em especial, enquanto culto da palavra e das linguagens, é um dos palcos, por excelência, privilegiado pela humanidade na busca interminável de respostas ou do aprofundamento das questões sempre movediças e desconcertantes inerentes à identidade e à existência.

In Além do túnel, de Francisco Noa.

 

No dia 16 deste mês de Junho, os membros do júri da primeira edição do Prémio Nacional de Literatura Infanto-juvenil (Alberto da Barca, Angelina Neves e Marcelo Panguana) revelaram aos leitores por que deliberaram a favor do livro Os pintores de sonhos, de Carlos dos Santos. Entre os vários argumentos, constam os seguintes:

Mensagem bonita, importante e muito actual, dada de uma forma muito didáctica e animada e o conto funciona como base de aprendizagem na preservação do ambiente. A história é cativante, desperta a curiosidade, lidou bem com o mistério, a imprevisibilidade, e o ritmo cria suspense em cada página. O livro está escrito de forma clara, e é interessante a ideia do sublinhar de algumas palavras e haver um dicionário no fim do livro. As ilustrações, singelas, apoiam bem o texto.

Até ao pronunciamento acima, eu não havia lido Os pintores de sonhos, de Carlos dos Santos, embora tenha o livro desde 9 de Outubro de 2021, portanto, há aproximadamente dois anos. Então, logo a seguir ao anúncio do primeiro vencedor do prémio instituído pela Kulemba (associação que há anos tem feito, de facto, do activismo um factor de consciencialização das crianças, dos adolescentes e dos jovens), fui retirar da minha prateleira de livros esses pintores de sonhos e pus-me a lê-los, expectante porque entre os cinco finalistas do concurso encontrava-se Lamura, de Suzy Bila, outro belíssimo livro: https://opais.co.mz/lamura-o-possivel-universo-da-liberdade/.

A leitura do infanto-juvenil de Carlos dos Santos deve ter durado, com algumas interrupções, 90 minutos. A ideia inicial nem era de ler para escrever este texto, até porque o fim-de-semana longo fez-me prometer dar mais abraços à minha mulher e jogar sei lá quantas partidas de xadrez com o nosso campeão de 5 anos de idade lá de casa. Entretanto, no intervalo entre a promessa e a ansiedade, lá inventei um argumento qualquer e, como levo muito jeito nestas coisas de matrecar a minha família, coitada, comecei a ler Os pintores de sonhos, com a excepção de algumas páginas, livro bem ilustrado por Rajau de Carvalho.

Logo no princípio da leitura, primeiras três de um total de 72 páginas, percebi o vigor de uma história muito bem contada. Do ponto de vista do discurso, irrepreensível. Realmente, Carlos dos Santos é dos autores moçambicanos que melhor trabalha a densidade semântica e da mensagem que pretende transmitir nas suas histórias. Por exemplo, quando se lê os seus infanto-juvenis, O caçador de ossos (2013), Os pastores de letras (2016), Na esteira das estrelas (2018), ou a sua ficção científica, A quinta dimensão (2006), O pastor de ondas (2011), O eco das sombras (2016) e Histórias do outro mundo (2021), facilmente se capta na conjugação verbal, e no que daí advém, um autor competente na escrita de uma história consequente. Muitas vezes, incluindo na sua narrativa conhecimentos científicos que são novidades para muitos de nós.

Ler Carlos dos Santos é uma verdadeira aprendizagem, pouco importa se se trata de infanto-juvenil ou ficção científica. O escritor, em cada publicação, consegue erguer algo novo num substracto literário particular e que ao seu nível ainda não há igual em Moçambique. Dito de outro modo, até para dissipar eventuais enganos, quando se trata de literatura inerente à ficção especulativa, Carlos dos Santos é a maior referência que temos, e, nos infantis, também se encontra na linha da frente. Além disso, num país em que se vão revelando egos estranhos no universo literário, muitas vezes a tentarmos manchar as boas iniciativas dos outros, ao invés de nos aliarmos, Carlos dos Santos é uma voz que precisamos ouvir com muita atenção, pois, na sua discrição, concilia a inteligência e a assertividade do seu pensamento. Aliado a isso, claro está, acresce-se a arte literária que carrega nas veias, afinal, filho de escritor, no caso, escritor é.

No outro dia, um amigo disse-me o seguinte: “Há prémios que dão credibilidade aos livros, mas também há livros que dão autenticidade aos prémios”. A ser verdade, neste contexto, encontramo-nos diante de uma situação em que o Prémio Nacional de Literatura Infanto-juvenil e Os pintores de sonhos se beneficiam reciprocamente. Para uma primeira edição do concurso, que uns e outros olharam de soslaio, com alguma desconfiança ou desprezo até, talvez por ser da Beira e não da capital, que essas mesquinhices ainda existem entre nós, o Prémio Nacional de Literatura Infanto-juvenil cumpriu essa sugestiva tarefa de reconhecer as produções para os mais novos. Assim, se for consensual que é de pequeno que se torce o pepino, poderemos ter, nos próximos anos, mais investimentos em literatura para crianças, quer dos autores e editores, quer dos leitores e pais/encarregados de educação. Afinal, conforme propõe Francisco Noa, a arte literária, “enquanto culto da palavra e das linguagens, é um dos palcos, por excelência, privilegiado pela humanidade na busca interminável de respostas ou do aprofundamento das questões sempre movediças e desconcertantes inerentes à identidade e à existência”.

Só por corresponder a esse pensamento de Noa, Os pintores de sonhos merece ser lido, distribuído nas escolas, comentado e, obviamente, ser premiado. É um livro excepcional, no qual a narratividade conquista o leitor desde o princípio, com dinâmica, suspense, mistério e intensidade.

A história do conto de Carlos dos Santos é sobre dois irmãos, o Zua e a Mwedzi. Através deles, a história põe-nos a pensar sobre as consequências nefastas do abate indiscriminado de árvores, em Moçambique, em África e no mundo. O tema principal do livro é grave, mas o que se destaca mais é o cuidado da narração. Cada palavra conta e foi escolhida por alguma razão. Nada é dito ou introduzido por acaso. Logo, a trama facilmente conduz a imaginação a uma aldeia onde os dois protagonistas e o cão Musodzi descobrem uma misteriosa caixa enterrada.

Na verdade, há aqui duas histórias que desaguam na mesma foz: a história da caixa misteriosa e a história das calamidades naturais causadas pelo Homem. Na segunda variável, o conto personifica a dor por que passam os moçambicanos mais vulneráveis às tempestades ou aos ciclones tropicais. É um conto sobre o horror e a esperança, a cumplicidade e amizade de dois irmãos, sobre a ideia de que, para ser culpado, não é necessário que sejamos descobertos. Nas nossas acções, antes dos outros, a nossa consciência é que nos deve vigiar e guiar. Vejamos o seguinte desabafo de Zua para com os seus botões num momento em que a personagem acredita ter causado uma tempestade ao desenterrar uma caixa misteriosa:

“Felizmente, ninguém me viu a desenterrar a caixa, por isso, ninguém me irá culpar” – pensou o Zua, a tentar confortar-se a si mesmo. Mas sem sucesso. Culpa é culpa, quer alguém saiba, quer não. E quanto mais escondida for, maior ela se torna (p. 19).

Se os nossos políticos e gestores da coisa pública lessem livros ou passagens como essas, talvez, 48 anos depois, não culparíamos o colonialismo, a guerra dos 16 anos, as calamidades naturais e sanitárias por sermos tão empobrecidos. Pois, o sentimento prévio de culpa sempre concorreria para uma sábia e responsável tomada de decisão. Ou seja, é preciso eliminarmos esse pensamento de que os culpados são sempre os outros ou os fenómenos à nossa volta, e nós somos vítimas; é necessário desconstruirmos o pensamento de que só somos culpados quando apanhados em flagrante delito. O sentimento de culpa tem de estar permanentemente em nós de modo a não sermos sujeitos culpados das nossas e das desgraças dos outros. Mas não tratemos do impossível. Não hoje, um dia depois à fraquíssima comemoração dos nossos 48 anos de independência. Só uma deposição de flores na Praça dos Heróis é coisa pouca. Até por que já dizia White: “Quando a morte me chegar, não me dêem flores e nem discursos para moldar”. Mas nós teimamos em só oferecer flores aos mortos, quando os podemos eternizar numa verdadeira celebração: com artes, desporto, olimpíadas académicas e visitas guiadas a museus como da Revolução, que agora só existe no último romance de João Paulo Borges Coelho. Como moçambicano, sinto-me triste pela maneira como celebramos a nossa independência. Tenho um familiar morto enquanto lutava por Moçambique, em 1966, e acho que as suas acções e a de tantos outros bravos libertadores da pátria podiam ser honradas, tornando o 25 de Junho um dia especial para todos.

À parte o desabafo, em Os pintores de sonhos, Carlos dos Santos demonstra ser um bom observador dos comportamentos, dos diálogos, das relações, dos afectos e dos receios das crianças. Deve ser por isso que o seu narrador omnisciente tem o domínio sobre os eventos por si revelados, inclusivamente, os que se passam quando Zua e Mwedzi estão a sonhar. Até nisso o livro é oportuno para aprendermos a observar como as nossas crianças dormem, porque na maneira como elas sonham também se revelam, por exemplo, pavores da sua vida acordada.

Um dos momentos bonitos do infanto-juvenil encontra-se na página 30, quando o narrador introduz uma nova personagem: Ranguisse. Trata-se de um menino que se locomove através de um carinho de rodas. Este tipo de representatividade não é comum nos nossos contos para crianças e até nos nossos romances. Também por isso, Carlos dos Santos perdeu uma oportunidade de dar mais vida àquela personagem. Por exemplo, Ranguisse poderia ter tido espaço privilegiado para aparecer numa certa aula na escola, na qual o jogo da argumentação no debate entre os alunos é algo absolutamente contagiante. Sem isso, a sua passagem é efémera quando se revela muito necessária para pensarmos na condição das “crianças portadoras de deficiência”.

Outra passagem interessante é protagonizada pela professora primária, num contexto de aula em que os seus alunos, mesmo diante de boas ideias partilhadas por Zua e Mwedzi, tentam desvaloriza-las:

Quando vocês depararem com uma ideia que achem boa, talvez mesmo melhor do que a que vocês próprios tenham tido, não tenham vergonha de a aceitarem e a apoiarem. Porque nós não estamos a discutir uns contra os outros, estamos todos, juntos, a discutir contra os problemas. À procura daquela que for melhor ideia. E as ideias não têm dono. Quando acharem que uma ideia é boa, não lutem contra ela. Adoptem-na e melhorem-na. Vão ver que, depois, a ideia final, tem um bocadinho de cada um de vós (p. 43).

Se os deputados lessem livros e esse tipo de excerto, certamente, não só valorizariam a ideia da outra bancada nas unânimes discussões sobre os seus salários.

Enfim, apropriando-me de Roland Barthes, o que eu mais aprecio em Os pintores de sonhos, de Carlos dos Santos, não é directamente o seu conteúdo nem mesmo a sua estrutura, mas sim a coerência e a densidade de um enredo que nos confronta com as nossas imperfeições, ora atacando problemas, ora apresentando soluções para um mundo livre, já agora, de uma iminente implosão catastrófica.

 

Título: Os pintores de sonhos

Autor: Carlos dos Santos

Editora: Alcance

Classificação: 17

 

 

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