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Ghorwane e os 40 anos de um lago que inspira e não seca

Quando a amiga Zena Bacar do Eyuphuro, vitimada pelas armadilhas da vida, seguiu para o infinito das estrelas, para cantar nos palcos da consagração, quis dedicar algumas palavras de afecto que exaltasse o seu carisma. A sensualidade e beleza inigualável das jovens mulheres Emakuwa. Retomar ao colorido da capulana, a vaidade dos corpos franzinos, enfim, queria ter feito jus à profunda, melancólica e, quase sempre, soberba voz da Zena que roubou do Tufo. Exuberante e, poucas vezes, lacónica, Zena Bacar era vaidosa e esbanjava sorrisos que espalhavam a magia e o poder do feitiço dos seus gestos sensuais. Ela, na sua majestosa variação de tons musicais, viveu para atrapalhar os espíritos e equivocar corações.

Os jovens da minha geração, agora de cabelo grisalho, ficarão, eternamente, associados à sua Muara ya N´ rake (esposa do Senhor N´Rake). O icónico hino que atravessou tempos e espaços, do norte de Moçambique, dessa voluntariosa etnia Emakuwa, espalhada por África e pelo mundo. Nunca me perdoei por não ter feito esse elogio. Chorei, no silêncio da dor, a sua partida. Zena Bacar nem deve repousar. Continua activa e cantarola para os anjos. Completaria, neste Agosto, 74 anos. Procuro, ainda, explicações para esta manifesta omissão. Apenas as emoções poderiam ter paralisado os meus dedos e silenciado a minha consciência. Testemunhar o nosso tempo e revisitar a trajectória de uma voz que viveu para lá do seu tempo, e que permanece, incomparável, como uma das mais conhecidas intérpretes femininas do cancioneiro moçambicano.

Neste exercício de remissão e indulto reencontro esta janela entreaberta, para cruzar Zena Bacar e os iconoclastas Ghorwane. Eles, os bons rapazes de Samora Machel – agora, igualmente, celebrando os 90 anos do seu nascimento – coincidem com a celebração dos seus 40 anos. As bodas de esmeralda duma monumental carreira, do inimaginável impacto social, e da irrepreensível matriz que souberam gerar e preservar. Os Ghorwane são uma decorrência de um tempo revolucionário conturbado, de um período de afirmação e aporias, mas, e sobretudo, dessa inolvidável geração do 8 de Março que assegurou um país sonhado socialista e moldado capitalista.

Ghorwane e Zena Bacar ou Eyuphuro do Gimo Abdulremane foram os pioneiros moçambicanos do bem conhecido World Music. Para além deles, só o Conjunto RM ou Marrabenta Star e a CNCD alcançaram patamares tão visíveis no exterior.

Teríamos de revisitar o músico britânico Peter Gabriel, afortunado compositor, progressista e activista de diferentes causas sociais, para entender este percurso. Peter Gabriel foi, originalmente, vocalista dos Genesis. Em 1975 inicia uma carreia a solo, abandonando os Genesis. Vira activista em diferentes áreas sociais, incluindo políticas. Combate o apartheid sem tréguas. Abre um espaço privilegiado para promover ritmos e sons de outros países em desenvolvimento. Cria vários álbuns que são designados pela crítica como Eponymous. O último ficou conhecido como Jogos sem fronteiras. Pegou na luta de Steve Biko, líder do ANC, e deu voz à luta contra o regime racista. Impacta o mundo com uma postura que mostra maturidade e consciência política.

Esse apoio declarado a Steve Biko conta com a colaboração de Youssour N´Dour. Ambos lançam a última tentação de Cristo. Os artistas convidados são africanos. Peter Gabriel sempre advogou pelo princípio de aglutinar artistas da Ásia e América Latina. Vence o Grammy e outras distinções em 1992 e 1993 e se afirma, em definitivo, como o maior promotor musical e cuja tecnologia já superava a música da época. Terá sido nos CDs XPLORA e OVO que colocou os nossos compatriotas Zena Bacar e Ghorwane. Esta saga pela exposição dos artistas africanos ainda o levou a vencer um prémio especial da Amnistia Internacional e outras distinções honrosas.

Convenhamos que a World Music foi, então, responsável pela gravação de uma incontável e selecta nata de artistas africanos, incluindo o congolês Tabu Ley Rochereau, da famosa Kwassa Kwassa e esposo da Mbilia Bel, que tanto agitou as nossas ancas, e ainda o tanzaniano Remmy Ongala, Salif Keita do Mali, Toure Kunda, Papa Wemba. Um naipe inesgotável.

A World Music foi uma forma erudita e genuína de promover as interpretações dos africanos. Convenhamos, uma forma de escapulir das ortodoxas regras do mercado musical mundial. Todavia, não isento da armadilha de penetração num mercado que obrigava a esconder a linha da originalidade e identidade. Apesar de tudo, Peter Gabriel tem o mérito e o crédito de ter aberto essa frente de divulgação.

Os Ghorwane sucederam a Zena Bacar e Gimo Abdulremane. Majurugenta foi o cartão de visita. Voltaremos lá. Estas bodas de esmeralda do Ghorwane acontecem quando eles voltam a incendiar palcos e plateias, aquecem esses verões europeus, já de si com as temperaturas inconfortavelmente quentes. Não admira, pois, que neste libelo contra o meu próprio esquecimento, auxilie a reavivar algumas facetas. Ninguém tem o direto de se alhear destes bons rapazes, parte do património musical mundial.

Quando, em 1978, a decisão do governo de colocar jovens, de todo o país, para se formarem e preencherem as vagas deixadas pela debandada colonial, não poderíamos imaginar que a história musical, deste país, estaria sendo escrita com letras douradas. O projecto de unidade nacional dinamizou a música. De norte a sul de Moçambique, houve uma verdadeira explosão musical. Grupos e cantores como o eterno Alexandre Langa, Fanny Pfumu, e Orquestra Dambu, eram expressão exponencial. Pedro Ben e Wazimbo vinham do Chibuto para ferver as plateias musicais. Pelo centro e norte, a esquerda e direita, a música parecia andar na contramão da revolução. Era progressista e evolucionária.

Misturavam-se ritmos e cores. Era preciso cantar, como dizia o poeta Kalungano, o herói nacional Marcelino dos Santos. A minha geração ainda teve o ensejo de desfrutar de exímias bandas musicais. Com saudades me recordo da banda Primeiro de Maio (1º de Maio de Armindo Salato e Pedro Machado), de Quelimane, que tanto furor fez com verdes campos. A letra continua tão actual e vital para os dias que correm. Zambézia, aliás, foi terra de Lalarita e tantos outros. Nampula tinha Chico da Conceição e João Júlio Patinho no topo das preferências. Cantaram contra o que era imposto pelo sistema com linguagem camuflada. Aliás, Lázaro Vinho, de Tete, seguiu as suas pegadas.

Foram destaques, ainda, as vozes inimitáveis de David Mazembe, Madala e Romualdo, na região centro. O Eyuphuro de Gimo Abdulremane e Jaimito Matapa, na cidade de Nampula. O sul tinha outros pergaminhos. Desde o Alambique, de Hortêncio, Arão Litsure e João Cabaço, passando pelo Hokolokwe, os Galtons, José Mucavel, Guegue, Mingas, Willy e Aníbal, Fernando Luís, Bill Cuca, Chico António e Elsa Mangue – esses vencedores do prémio Rádio França Internacional – José Guimarães, Elsa Mangue, Filipe Nhassavele, Elvira Viegas e tantos outros, que gravaram na Rádio Moçambique (RM). A RM, diga-se de passagem, foi a catedral da produção e divulgação deste vasto património musical.

A RM foi o respaldo de tudo que aconteceu. Todavia, a música não desperdiçou outras oportunidades. Os estúdios da EME, de Eduardo Mondlane Júnior, irmão de Chud Mondlane – também ela, com voz dourada – emprestaram à música deste país uma tonalidade cativante. Deveria ser obrigatório a cidadãos como Eduardo Mondlane Júnior regressarem a música. Ajudar a recriar o talento juvenil. Stewart Sukuma fala, com saudade, do concurso da EME para a descoberta de talentos. A sua fornalha iniciou nesta época que, também, foi a base do Ghorwane. Mas existe, igualmente, mérito que deve ser estendido ao empresário e revolucionário Aurelio Lê Bon.

Privei com o Pedro Langa. Uma relação que me empurrou para a simpatia pelos Ghorwane. Pedro chegava do Chibuto, esse espaço musical incontornável. Filho de enfermeiros e de uma família musicada pelos irmãos mais velhos. Hortêncio Langa e Milagre Langa. Conceituados. No alto dos seus sapatos de tacão alto, calças boca de sino, cabelo a Jimmy Hendrix, chegava, por equívoco, para fazer professorado. Eu chegava pela mesma imposição. Também, de uma família de enfermeiros, mas sem músicos para embalar as noites de luar. Pedro tentou incutir a ideia de sermos todos músicos. Queria que todos os seus amigos tocassem violão.

A vida nos empurrou, depois, para desconfortantes situações. Rebuscávamos o sentido de missão. As tarefas revolucionárias eram irrecusáveis. Pedro não se ajustou e não escondeu ser avesso. Uma boa parte do nosso grupo aceitou, com reservas, e mesmo sem vocação ou motivação, seguiu a única carreira disponível.

Pedro não se alheou dos seus sonhos. Indomesticável, não cogitou, nunca, abandonar o seu violão. Qualquer sintoma de música incendiava o seu espírito musical. Cantava melodias conceituadas. Criava músicas em tudo que tocava. Cantamos algumas músicas que nunca foram gravadas. Essa força dos sonhos que nenhum tempo conseguiu afastar. Queria viver de uma forma diferente. O sonho da vocação que se opunha ao da revolução. O que o tipificou e fez dele melhor do que todos nós, foi mesmo a coragem. Enfrentou tudo e todos. Um sistema. Muitos dos colegas desertaram das fileiras e abandonaram o país. Os prosélitos não perdoaram. Outros sofreram as sevícias.

As revoluções se fazem de diferentes formas, episódios e epopeias. O nosso grupo aprendeu a fazer amizade com os compositores revolucionários. Calisto Mijico e Lindolondolo escreveram os hinos da revolução moçambicana. Aprenderam a compor na Coreia do Norte. Era a bandeira musical de tantos temas cantados na época. Aprendemos deles os ritmos ensaiados nos campos de Tunduru, Bagamoyo e Nachingwea. As canções que Eduardo Mondlane escutou, deixou-se encantar e cantou, tantas vezes, no clamor da sua revolução.

Toda a disciplina criou alguma saturação. Cansava a exigente disciplina e rigorosidade dos tempos iniciais. Isto fez com que se criassem focos de revolta. Próximo do corredor dos nossos quartos foram escritas, nas paredes, frases inimagináveis. Os serviços castrenses não toleraram. Condicionaram a expulsão de todos. Sem apelo e nem agravo. Perdíamos colegas e amigos cuja empatia não esmoreceu. O Pedro foi incorporado e foi cumprir o Serviço Militar Obrigatório. Para muitos de nós, pela primeiríssima vez, depois da independência, dialogávamos com um caminho da contra-revolução. Outros valores e exigências. Aprendemos que o pensar diferente era proibido. Não seguir a linha da ordem era proibido. Perigoso. Não se atentava contra a revolução. Não tardou e o centro do país voltou a escutar o ruído das balas e a ausência de paz. Não deu, sequer, para nos reconciliarmos como irmãos. Nem como irmãs. As notícias eram de ataques e destruição. A intransigência não encontrou antídoto que tivesse evitado a catástrofe.

Antes da sua expulsão, Pedro Langa, José Chambe e outros, ainda subiram por alguns palcos. Levava sons originais experimentados entre os colegas de curso. Sentíamo-nos representados. Eram, igualmente, os nossos sons. Apoiamos e preenchemos muitos dos lugares da plateia. Queríamos, também, saber como se comportaria o grande público. Muito aplausos, mas, também, desconfianças e alguma desaprovação.

Nelson Saúte escreve, no seu Planisfério Moçambicano, que a primeira apresentação pública de Pedro Langa, em 1979, no Teatro Scala e na companhia dos Hokolokwe, foi sofrida. Das duas canções originais que apresentou, nem por isso foi bem-sucedido. A plateia não queria, apenas, ritmos originais. Preferiam as músicas do estrangeiro. Sons mais quentes e que faziam as noites de festa. A despeito da adversidade, como refere Saúte, os verdadeiros criadores não são entendidos pelos seus contemporâneos. Todavia, eles estão muito a frente do seu próprio tempo. Parece que vivem em galáxias diferentes e funcionam como satélites fora do comum.

Anos mais tarde, soube que o Pedro Langa se juntara ao conjunto Mbila. Um grupo que tocava no edifício do Clube da Juventude, e que alegrava as mentes que procuravam entender a revolução sem desperdiçar a sua juventude. Nós deambulávamos um pouco por todo o país. As escolas caiam nas nossas mãos. Pedro Langa não chegou a entrar para nenhuma escola; porém, com agrado, sabia do paradeiro de todos. Vibrava com o empenho de todos. Nós retribuímos com cartas que ele nunca respondeu em detalhe.

Igualmente, soubemos que ele se aliara ao compositor e cantor Simão Mazuze. Simão, um músico de outras referências e valências, havia feito o serviço militar em Portugal, na força aérea, e já por lá, além-fronteiras, provara aos cidadãos portugueses a magia do seu talento. Simão Mazuze era irredutível, com toques de rebeldia no que fazia, cantava e dizia. Era igual a si próprio. Até de nome mudou e virou Salimo Mohammed.

O regime nunca o compreendeu. Foi enviado para Bilibiza, Cabo de Delgado. Longe de o silenciarem, ele regressou mais forte e mais convicto. Já não era apenas Mamana Maria a sua canção mais conhecida e forte, mas a sua famosa Bilibiza. Pedro e Simão Mazuze formam o Xigutsa Vuma. Um grupo e músicas de contestação, rebeldes e avessas ao que de pior o projecto de revolução oferecia ao país.

O Xigutsa Vuma, com Pedro Langa e Salimo Mohammed, ainda foi a tempo de conquistar o prémio de melhor composição nesses dificílimos anos 80. Eram os tempos da tenebrosa Operação Produção, que todos tentamos esquecer e perdoar, como moçambicanos, e os reflexos de uma política que correu com pouca feição e originou outros problemas transversais. Associadas à fome que começava a grassar um pouco pelo país, às arbitrariedades das guias de marcha e à guerra de desestabilização, existiam razões de sobra para escrever e cantar temas que marcariam os seguidores. Já conhecidos como controversos na abordagem das suas letras, o grupo tinha de tudo para singrar. Porém, terminou cedo e dois galos no mesmo poleiro não poderiam conviver por muito tempo.

Por volta de 1984, e fazendo eco nas memórias de Stewart Sukuma e do Roberto Chitsondzo, esse professor-músico, ou melhor, músico-professor de Educação Física, os concursos musicais de novos talentos lançados pela EME de Eduardo Mondlane Júnior, auxiliaram que os novos talentos surgissem pela praça.

Roberto Chitsondzo aproveitou a estadia em Inhambane para escrever alguns versos. Pouco depois, voltou a Maputo depois de ter sido transferido, por razões de saúde da sua filha primogénita, Neusa Chitsondzo, e ficou a leccionar na Escola Secundária Josina Machel. Nesse desiderato, Chitsondzo foi introduzir os Ghorwane para as gravações na RM, pois anteriormente haviam sido chumbados pela censura. Perdíamos um professor com habilidade desportiva, para um exímio tocador. Usava a destreza dos seus dedos para recriar sonhos e verdades escondidas. Da sua voz seriam extraídos ritmos assombrados. Palmilhou a cidade e se experimentou com vários músicos. Os Ghorwane, que estavam em banho maria, ganharam força. 1983 marcava, então, as pernas e o arcabouço para seguir pelo mundo dos sons que encantam e exaltam os céus. A música moçambicana agradeceu. O mundo também.

Um selectivo conjunto de músicos esteve associado aos Gorwhane, com realce para o saxofonista e vocalista Zeca Alage. Se o Pedro Langa era a alma, Zeca Alage era o espírito e a força que comandava o barco. Juntavam-se, também o baixista Lot, o baterista Hilário, e ainda o guitarrista Tchika. Para os sopros, Júlio Baza assumia as responsabilidades e garantia que os ritmos tinham um factor diferenciador. Ao grupo inicial juntaram-se David Macuácua, o Carlos Gove e o percussionista Dingo.

As letras e os conteúdos iniciais que estiveram a cargo de Pedro Langa e Zeca Alage eram de arromba. Para aqueles tempos eram mesmo de muita virulência. Cantavam o que o povo e os seus seguidores mais queriam escutar, a crítica social, o desacerto político, a guerra que dilacerava o país e o mercado negro que crescia a olhos vistos. Pedro Langa e, de alguma forma, Zeca Alage, conheciam muitos dos dissabores dessa oposição às políticas económicas e sociais do regime. Cantavam o que a alma os recomendava e faziam o delírio das plateias. O público apoiou e virou um aliado natural.

Roberto Chitsondzo toma a decisão, junta ao grupo e, a 23 de Junho de 1984, fazem o primeiro espectáculo, denominado Raízes e promovido pela EME, no cinema África, hoje tão descuidado e tão votado ao esquecimento. Hoje, os Ghorwane persistem e o cinema definha. Uma pena ter uma catedral musical tão voltada ao abandono.

Retorno ao Nelson Saúte, que tão bem os soube tipificar e glorificar num texto de homenagem escrito há cinco anos. Os Ghorwane, segundo ele, souberam transformar o sofrimento e a dor em alegria. E vai mais longe, não se limitavam a lamentar, como acontece tantos nos tempos actuais, e como muito se ouve do cancioneiro moçambicano, mas pautavam pela inovação e pela busca de ritmos tradicionais para os incorporar nas suas músicas e dar essa roupagem que fazia da sua música prístina, delicada e de uma agradável suavidade para os ouvidos dos seguidores. Mas, o mais importante, a meio de tanta agitação e ausência de consensos, era aproveitar o quadro da realidade social e fazer disso a moldura da tela para eternizar a natureza e beleza infindáveis das suas canções.

Era a profissão e a profecia de fé e de amor a um país e um povo, que eles tinham a missão de apoiar, entreter, educar e informar. Países com tantos problemas sociais precisam de um escape. Eram essas temáticas que invadiam a cabeça de qualquer compositor. Temática insubstituível. E se, desde o período da independência, a promessa da revolução eram a liberdade, a paz e o progresso, isso era, precisamente, aquilo que todos queriam cantar e escutar.

A crítica nunca é bem recebida por quem tem responsabilidades de governação. Na época, ainda, com os campos de reeducação vigentes, os serviçais do regime se assustaram com o desalento da classe. A crítica vinha de todos os lados. A guerra chegava às barbas da cidade e dos cidadãos. Não tardou que, para todos os espectáculos públicos, fossem enviados grupos de sequazes e seguranças à paisana, com o intuito, único, de captar os conteúdos, a apreciação do público e as mensagens. Uma espécie de avaliação do sucesso e uma medição do que tentava ser atirado para baixo do tapete e permanecia tão evidente como destapado. Foram tempos desafiadores. Cantar parecia ser a única forma de espantar os males. Moçambique, tão jovem, submetia-se aos pés da sua própria juventude e se assustava com uma faixa etária que sonhava, aspirava e queria outros rumos. Na realidade, queriam paz, desenvolvimento e liberdade. As promessas de um processo que não dependeria apenas de si e da sua conjuntura para prover estes meios todos às pessoas. Até o Presidente Samora Machel se assustou com a profundidade das músicas e versos dos Ghorwane. Presumimos, todos, que foram as informações deturpadas que foi recebendo e consumindo. O tempo ajudou. Escutou com a atenção do seu coração e sensibilidade. Depois, gerou a empatia, como a graciosidade que brincava com a sua própria alma. Virou adepto incondicional. Não tardou para que fossem convidados para os banquetes de Estado. Recebia as suas visitas no Polana e fazia do empenhado e rejuvenescido Ghorwane um aliado musical e um símbolo da própria moçambicanidade.

O presidente Samora Machel tatuou o grupo com a mecânica que a própria música criou. Queria continuar como um líder que se assumia como mestre. Nessa condição, entendeu que as obras sagradas dos seus jovens músicos representavam os valores de um povo que ele deveria liderar e saber escutar. Queria que os Ghorwane fossem a banda de referência e a realização da perfeição musical. Aliás, soube, nos últimos tempos, que o Presidente Machel ofereceu, igualmente, equipamento musical à Banda dos Massucos, lá do longínquo Niassa. Os Massucos nunca desapontaram. Transportam toda a mestria e a simbiose dos sons Yao, o ritmo cadenciado dos Nyanja, ambos adornados pela glória do Chioda e Nganda, as mais célebres danças do norte. O Mestre Santos, líder dos Massucos, ainda mantem esse violão presenteado e não se desfaz dele, em nenhum momento. Virou talismã.

A nossa alma é composta por harmonia, e a harmonia só pode ser gerada nos momentos em que as proporções do bem e do mal são desequilibradas pela própria vida e os seus sons. Os Ghorwane livraram-se da cerrada perseguição, sem que para o efeito tivessem de mudar a sua forma de cantar e vibrar. A música não deve ter outro nome que não seja a irmã da pintura. Assim, pelos ritmos e conteúdos dessa injustificada perseguição, passaram a ser apelidados por Bons Rapazes. Um nome improvável, mas apropriado e que quase assenta no original. Lagoa que nunca seca. A criatividade deu corpo à liberdade e algo bem mais supremo. Liberdade de criar. Com esta liberdade se criam as oportunidades para que as próprias liberdades individuais se corporizem e a sociedade se livre de amarras. Os direitos humanos entravam pela porta mais democrática da vida. O sentido que a humanidade sempre prezou. A dignidade que satisfaz o sentido mais digno.

Dois anos depois da criação da banda, Pedro Langa abandona os Ghorwane. Recordei aqui do temperamento do Pedro, mente brilhante, todavia, muito preso às suas convicções. Uma teimosia que era quase casmurrice. Não admira, por conseguinte que se tenham desentendido por alguma abordagem, ou pelo rumo, menos consentido, que a banda deveria seguir. Roberto Chitsondzo e Zeca Alage firmam-se como líderes substitutos. Ao grupo se junta David Macuácua. As canções continuaram impressivamente pungentes. Jamais deixaram de interpretar essa dor dos moçambicanos. Massotcha de Zeca Alage, o tema que dizia que a guerra não era solução e tinha custos demasiado elevados. Os investimentos, se ainda existissem, deveriam ser encaminhados para a aquisição de comida para a população. As armas, que eram caras, bem mais caras do que sacos de arroz, não serviam. Os Ghorwane mantinham a força do paradigma do quotidiano. Os recados eram para todos os envolvidos no conflito que fez milhares de mortes e milhões de deslocados.

O primeiro disco dos Ghorwane foi quase que uma encomenda da Real World. 1991. Majurugenta foi o nome do álbum de estreia. Com tantas outras canções, de inegável beleza e sempre com um substracto de mutimba, gravam este álbum na perspectiva de incluírem as músicas no World Music. Peter Gabriel está por detrás e tem a garantia que seria um sucesso. Pela segunda vez, Moçambique chegava ao topo da música internacional. Agora, eram dois os nomes mais sonantes. Eyuphuro e Ghorwane. O disco foi lançado em 1993.

Nem Pedro Langa e muito menos Zeca Alage estiveram presentes, em 1993, e levou algum tempo até que o disco tivesse sido finalizado, para testemunhar o sabor do seu sucesso, daquele que foi um muito celebrado e apetecido lançamento. É neste período que entra para o grupo João Schwalbach, para o lançamento do primeiro disco em Londres. Zeca Alage foi barbaramente assassinado. Foi, inexplicavelmente, retirada a vida de quem só tinha vida para dar e revelar. Com a sua partida desaparecia, na mesma proporção, toda a cor, beleza e magia dos sopros do seu indomável saxofone. Esse genial sopro metálico e que tanto ritmou dezenas de canções, surpreendeu os ouvidos mais exigentes e penetrou fundo no coração dos seguidores. Um sentimento de comoção tomou conta do país. A Televisão de Moçambique (TVM), estação de televisão pública, iniciou o serviço noticioso com o anúncio da sua partida. O triângulo que fez as fundações destes clássicos sofria um revés. Um furacão que parecia destinado a assombrar o que está escrito nas estrelas como parte dos sons deste Moçambique.

Ao longo dos anos, os Ghorwane continuaram a actuar para o público local e internacional com regularidade. Como qualquer banda no mundo, passam por períodos mais ou menos complexos e difíceis. A corajosa crítica social se manteve presente. As vicissitudes sugeriram mudanças. Entradas e saídas. Ainda assim, se reinventam. Pedro Langa partiu em 2001, igualmente, de forma misteriosa, ainda no calor de uma juventude que teria tudo para oferecer à música ligeira moçambicana. Mesmo não estando com o grupo, esta partida impacta. As honras lhe foram feitas em diferentes momentos. Depois, saiu do grupo David Macuácua, numa viagem para as Europas.

Roberto tem uma memória de elefante. Marcou a saída de Costa Neto do grupo. Uma digressão por Portugal e, simplesmente, não regressou ao país. Nada que estivesse nos planos, mas a conjuntura forçou e extremou estas posições. Carlitos Gove, Paíto e Jojo Moisés, também, em momentos separados. Marcou a saída de Jorge César. Mas as saídas, por vezes, se acompanham de reentradas. Chegou, também, sangue novo importante. Como o próprio Roberto coloca, o que ele mais gosta é chegar sem planos e fazer parte de um plano que estava traçado. Esses são os dois lados da mesma viagem. Tiveram músicos que chegaram para ficar e outros que partiram para nunca mais voltar.

As recordações não são cronológicas, muito menos por ordem de categorias e importância. Fez parte da banda a Tsala Tina Cândido. Eventualmente, a primeira mulher que emprestou a voz e trouxe uma forma diferente de estar. Nos anos 90, juntaram-se aos Ghorwane a Cindinha e a Betinha. Faziam coros e coreografias. Betinha seguiu para o infinito. Todavia, foi importante na performance. O bailado dela encantou Londres. Soberbas e memoráveis actuações.

Esse movimento de equilíbrios e reequilíbrios continua perenal e perpétuo. Por vezes, mais oportuno, e por outros momentos, com menos sabor e profundidade apresentados no conteúdo; todavia, marcadamente, na coloração dos efeitos especiais que as composições foram ganhando. Ao grupo se juntou Karen Boswell, uma artista que havia estudado música na infância e juventude.

Agradável surpresa também foi a Sheila, que integrou a banda e tocou flauta. Essa tonalidade que desperta todas as almas. Emigrou mais tarde para a Europa e por lá continuou os seus estudos. João “Joni” Schwalbach chega em 1993. Eram os primeiros 10 anos da banda. Trazia um som refinado pela tecnologia. Continua como coração da banda, com uma forma mais pausada de ser, a serenidade que sabe respeitar o caminho, mas que não se coíbe de impor um pouco da sua marca e do seu estilo. Assim o grupo se reergue. Faz da dor das partidas a forçaa da sua resiliência e do querer perpetuar um som que agrada diferentes gerações e prazeres.

40 anos de esmeralda e muito ouro à mistura. Ghorwane e os seus versáteis músicos e compositores podem não ser os mesmos, ou não manter a originalidade dos ritmos, mas continuam a não aceitar a resignação e a criticar de forma obstinada o exercício da cidadania. São 40 anos de uma música que revela a forma de viver e de estar dos moçambicanos. Uma prova contra a intolerância e a estupefacção. A manifestação mais viva de um povo que se libertou e que escolheu os seus caminhos. 40 anos e três álbuns que ficarão nos nossos corações – Majurugenta, Kudumba e Vana Va Ndota. São álbuns inesquecíveis e sublimes. Decénios de recriar o DNA, manter a fidelidade à poesia, ao ritmo e ao balanço. Essa caminhada que aborda as assimetrias sociais, das contradições do quotidiano, e a manutenção da fidelidade aos sons do nosso tempo. Dignidade e honra, num som espantosamente agradável e delirante. (X)

 

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