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Vovó Nely – “U ma”?

“Eu nasci em KaTembe, a 2 de Novembro de 1920, um Domingo, às 11 horas da manhã. A minha mãe chamava-se Jinita Libombo e o meu pai Jeremia Dick Nyaka. Os meus pais conheceram-se em KaTembe, onde ambos cresceram e frequentavam a mesma Igreja. Foi lá que eles se casaram, e tiveram os primeiros dois filhos: o meu irmão Daniel e eu. Tiveram ao todo sete filhos, quatro rapazes e três meninas.”

Nely Nyaka (in “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade”)

 

Amadou Hampâté Bâ disse um dia uma daquelas máximas que nos perseguem sempre que há óbitos que devem constar no livro de assentos da nossa memória colectiva: “Quando um ancião morre, é uma biblioteca que queima”.  Quis a fortuna que hoje, 6 de Abril de 2024, a Vovó Nely registasse o seu epílogo aos 103 anos. Em 2018, Nely Nyaka, no entanto, desmentiu o fatalismo que encerra o anátema do historiador maliano e legou-nos uma obra decisiva e exemplar: “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade”). Nela está o testemunho e testamento da sua soberba vida e obra.

A Vovó Nely foi toda a vida uma activista social. O seu activismo social começou cedo, primeiro no seio da Igreja Metodista Wesleyana e, mais tarde, no Instituto Negrófilo (que depois assumiu a designação de Centro Associativo dos Negros da Colónia de Moçambique), organização de que o seu pai foi sócio-fundador. Recentemente, esteve na criação e é uma das mais notáveis dinamizadoras da associação Pfuna, dedicada a mitigar a pobreza e a miséria de crianças órfãs.

No seu livro “Mahanyela, A Vida na Periferia da Grande Cidade” está inscrita a sua longa experiência de vida. O livro é um testamento. Um manancial de valores. Nesta obra ela cartografa não só a sua trajectória individual, mas estabelece um atlas de um tempo e de uma sociedade, a começar pelos seus pais, Jinita e Jeremia, na KaTembe, passando pela então Lourenço Marques (KaMpfumo), fala-nos da vida na periferia (mahanyela: xitiki, bajiyas, machambas e outras formas para ganhar a vida), da casa e os rituais (o namoro, o casamento, a gravidez e parto, o falecimento).

A Moamba e a vida adulta lá nas terras do Sabié. Casara aos 19 anos com Raúl Bernardo Honwana. Raúl, que militou no Grémio Africano nos tempos de Karel Pott, escreveu, em 1984, um livro de memórias. Inspirada pelo exemplo do seu marido, que faleceu em 1994, Nely decidiu também deixar por escrito o seu legado. Nele fala do nascimento dos filhos. A cegueira do filho Raúl. Os tempos duros. Os tempos sombrios. A prisão do marido Raúl. O retorno à Lourenço Marques, a casa de Ximphamanine. A prisão do filho Luís pela PIDE. Os assassinatos políticos. A sordidez do colonialismo no seu estertor.

O livro relata-nos os alvores da Independência, do 7 de Setembro, o Governo de Transição, fala-nos do entusiasmo e da euforia desses tempos, de Samora Machel, dos erros e dos excessos da revolução, como a nacionalização das barracas e casas de madeira e zinco, da Operação Produção, do seu tempo como Juíza eleita, das transformações sociais, da língua e cultura, das novas práticas e das narrativas e brincadeiras da nonagenária com o seus netos e bisnetos. Nessas lengalengas, preferidas pelos netos e bisnetos, cada frase contém uma pergunta (“U ma?” –  Quem és tu?), e uma resposta (“Ni Nwamatxola-Txolana” – Sou o Nwamatxola-Txolana”) e o jogo prossegue entre perguntas e respostas do mesmo género.

Estas memórias percorrem uma longa e enriquecida vida de uma extraordinária personagem deste século moçambicano, mulher dotada de uma memória prodigiosa, exemplo de probidade e repositório de valores. A sua maior obra é o exemplo e o repositório desses valores que nos deixa como dádiva. Esse foi o grande dom da sua vida. O seu génio. O seu grande mérito. Uma vida árdua, laboriosa, dura. Mas ela, sempre obstinada. Perseverante, tenaz.

Profunda conhecedora de Lourenço Marques (Maputo) e, mais particularmente, dos seus bairros periféricos, onde cresceu, Nely Nyaka fala-nos, em “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, dos marcos geográficos e sociológicos da sua cidade, das famílias que a habitavam, das práticas e dos costumes da comunidade e dos artifícios a que se recorria para mitigar a pobreza, e para vencer as enormes barreiras criadas pelo poder colonial a todos os que não fossem brancos.

Aqui está o espólio de uma vida plena, não isenta de provações, contudo absolutamente instigante. Impressiona, neste livro, sobretudo o seu olhar. A perspicácia do seu olhar. A candura do seu olhar.  O seu acerbo espírito crítico e o poder de observação. A filha Gita Honwana Welch, que ajudou na fixação do texto e é autora do prefácio, fala da “candura da observação” uma expressão felicíssima.

O extraordinário livro de contos “Nós Matámos o Cão Tinhoso” (1964), de Luís Bernardo Honwana, as incontornáveis “Memórias” (1985), de Raúl Bernardo Honwana, ou ainda os escritos de Raúl Honwana (filho), autor da obra “O Algodão e o Ouro” (1995), cruzam-se com este “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade” (de Nely Nyaka), e denunciam, se quisermos, uma estética que lhes é comum: uma mesma ética. O supremo valor da ética. A ética é, aqui e sempre, uma espécie de estética da responsabilidade, individual e colectiva. No fundo, estão imbuídos de uma mesma poética. Aliás, num intrépido discurso que fez aquando do lançamento da sua obra, em 2018, a Vovó Nely foi cortante quanto às anomias sociais e aos desvios éticos que abundam e minam a nossa sociedade. Um discurso memorável e exemplar.

Vivemos um contexto adverso, onde a cultura e os valores, onde a ética e a estética, onde o património e o acervo cultural, onde tudo isto perdeu a centralidade. A grande violência das últimas décadas é, para além do aniquilamento de vidas que se perderam, esta degenerescência de valores em que nos atolamos. Ao ouvi-la, com a autoridade da sua idade, rodeada de filhos, netos, bisnetos, amigos, familiares, admiradores, pronunciar-se sobre a sua vida e experiência e sagacidade, foi um momento profundo, uma oração profunda e acutilante, assombrosa e generosa, lúcida e corajosa.

A oração foi feita em ronga, transcrevo parte da tradução:

 

“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo

…os três nomes que nos dão a medida da tua grandeza.

Agradeço-te Deus nesta hora, agradeço-te meu Deus as bênçãos que derramas sobre a minha vida e a generosidade de teres permitido que eu escrevesse este livro.

Escrevi este livro, sim, meu Deus, porque tu abriste a minha mente para que eu tivesse a ideia de o escrever.

Move-me a vontade de tentar explicar a maneira como se vivia antigamente. Sempre ansiei por contribuir para que os mais novos tivessem consciência de como eram as coisas nesta terra, muito antes de eles nascerem.

No meu dizer, meu Deus, é um pouco da história de Moçambique o que quero contar àqueles que me rodeiam.

Agradeço-te meu Deus por teres permitido o tempo e a força para que eu pudesse fazer o que tanto desejava fazer.

E é por isso que uma vez mais rogo que tu estejas connosco também neste momento e neste lugar para que o nosso trabalho de hoje se cumpra em boa ordem.

Sem me esquecer meu Deus de orar pela nossa terra.

Quero orar pela nossa terra.

A nossa terra vive tempos muito atribulados.”

 

Volto a essas palavras hoje no dia do seu declínio. Recordo-a aqui, nesta breve memoração, como uma das mais notáveis personagens do devir moçambicano e um dos grandes vultos da nossa sociedade, história e cultura. Uma figura assombrosa, personagem forte, matriarca exemplar, inspiradora, mulher de uma lucidez implacável e dona de uma memória prodigiosamente lendária.

Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, é uma obra notável, surpreendente e generosa. Disse-o e aqui repito: testemunho e testamento majestoso, sumptuoso, soberbo. A Vovó Nely cumpriu o seu dever e nesta obra está a sua vida, o seu exemplo e os seus valores. Talvez ela quisesse desmentir o aforismo do historiador maliano. A sua experiência não se incinera. Permanece naquelas belas e luminosas páginas. Viveu 103 anos e 115 dias! Uma vida jubilosa. Deus deu-lhe o tempo e a força que fez da sua vida uma lição. Provavelmente ainda não chegaram as suas prédicas, as palavras de consolo ou o lenitivo que nos falta quanto à nossa terra e quanto a estes tempos atribulados que vivemos.

 

Cidade do Cabo, 6 de Abril de 2024

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