O País – A verdade como notícia

Quando eu era menino…

Por qualquer motivo, que não me ocorre agora, envolvi-me numa disputa com a minha irmã Raquel. Foi um finca-pé daqueles. Amuados, cada um partiu para fazer-se mudo num canto da casa. Três dias passaram e não trocávamos palavra. Minha mãe, dona Clementina, sempre de olhar vigilante ao comportamento dos filhos, não tardou intervir de um modo que me transmitiu uma lição que carrego até hoje.

Quando  publiquei o romance Saga d’Ouro, um crustáceo literário daqueles que crescem puxando os outros para o fundo, entrincheirou-se e incorporou coro à sua voz para retirar o meu livro da lista das obras candidatas ao Prémio de literatura BCI/AEMO. Nessa altura, o caranguejo camuflou a bílis que o caracteriza, na alegação de ser eu colaborador da AEMO (mas dois anos antes, um Secretário-geral da AEMO havia ganho o mesmo galardão e ninguém levantou tais alegações de probidade). Como os meus livros não se valem pelos prémios literários, solicitei ao júri a retirada da minha obra do rol das candidatas. Todavia, isso não é o que importa agora, tirando o facto de tal episódio ter ocasionado um debate entre José dos Remédios e mim.  Por quase duas semanas andamos às turras no jornal O País, cada um a esgrimir argumentos e causticidades. Algo curioso nisso é que dos Remédios trabalhava ou trabalha no jornal que acolhia o debate. Aliás, foi a partir desse caloroso debate que a minha admiração por ele ganhou motivos para apreciá-lo muito mais do que antes. Ainda no decurso do debate trocávamos chamadas telefónicas. Assim que terminava um texto, em resposta a qualquer que ele tivesse publicado, eu lho ligava:
– Companheiro, enviei-lhe um texto por Email!
– Já vi. Vou publicar. – respondia dos Remédios antes de advertir-me – Mas, vou responder!

De facto, em um dos dias seguintes dos Remédios ripostava com toda a carga verbal que pode. Assim seguimos com o debate até ao ponto em que o mesmo morreu de morte natural, sem mágoas nem rancores. Lembro-me de uma vez encontrarmo-nos num evento literário e aí entabularmos uma conversa. Um indivíduo cujo nome não merece registo, vendo os risos que trocávamos, curioso, acercou-se para certificar-se do que via: “Pensei que vocês dois já não se falassem!” Olhei para ele e não encontrei palavra para respondê-lo, senão hoje: Sim ainda falo com o dos Remédios!

Não será também por acaso que hoje trago essas duas memórias. As últimas eleições da AEMO abriram chagas para algumas almas despreparadas para o jogo democrático. Nelas, como houvesse duas listas concorrentes, naturalmente, cada membro tomou partido. No final da eleição ganhou a lista que melhor estratégia traçou. Nisso, tais almas escolheram como reacção a minha pessoa para culpar pelo desaire eleitoral obtido e deixaram de falar comigo, sob inconfessáveis pretextos. Até aí, nada me aflige, água encima de pato.

Espero que o leitor desta ainda não se tenha esquecido da estória que contei sobre a intervenção da minha mãe na disputa que tive na infância com a minha irmã Raquel. Depois de três dias sem nos falarmos, a dona clementina interveio:
– Manuel, por que não falas com a tua irmã?
Não respondi e dona Clementina torceu o pescoço, de modo a virar-se, assim, para a minha irmã, e colocar a mesma questão:
– Manuel me provocou! – respondeu ela.
– E nós outros, o que temos a ver com isso? – retorquiu a minha mãe – Vocês dois estão a criar um mau ambiente aqui em casa.

Estou certo de que cada um vem da sua casa, sua cidade ou província, cada um com a sua própria matriz. Nesse dia a minha saudosa mãe seguiu explicando que vivia-se um grande constrangimento  no seio dos restantes membros da família. Pois, sentados a mesa, por exemplo, não sabiam para que lado pender entre os dois bringuentos e eram forçados a evitar conversar à vontade ou rir-se caso fossem interpelados por mim ou pela minha irmã. Pois, não queriam ser confundidos com quem tomava partido na contenda alheia. Minha mãe asseverou ainda que não tínhamos esse direito constranger. Hoje cresci e não me outorgo em memória desse ensinamento materno. Tentei há dias praticar a licção com dois indivíduos que escolheram viver sem me dirigir palavra. Parece que confundiram as estações. Pessoalmente, esse blackout em si não incomoda. Sou muito superior a isso. Mas, também penso no colectivo e entendo que não devo fazer parte desse circo constrangedor aos demais. É feio. Desrespeitoso para quem está a mesa e é obrigado a viver esse clima de tensão. Nos territórios sociais que frequentamos no dia-a-dia, cada um partilha com os demais a educação que tem. Não é por fraqueza que escolho manter diálogo. Falo abertamente porque não sou fofoqueiro e nunca procuro assassinar o carácter dos outros. Se interpelei alguem para sairmos desse blackout foi pelos demais que devo respeito. Não é fraqueza. É por educação que não deve ser confundida com arrependimento que leve a um pedido de desculpas. Não pedi desculas a ninguém, e quem assim espalha tende apenas a entumescer o seu proóprio ego.

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