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Vai para casa, menino

– Vai casa, menino.
A velha pronunciou “minino”, como falam por aqui os que têm por língua mãe a língua das suas mães.
– Vai.
Primeiro foram as vozes, distantes, e a poeira que subia por cima das copas das árvores, das casas, do entrelaçado de fios urbanos, de tudo…
– Vai, menino. É perigoso – disse “pirigoso”.
O chão estremecia. Era a multidão que dobrava a esquina, martelando decididamente os passos.
A multidão gritava. Com os gritos, um cão interrompeu a preguiça, levantou-se, recolheu a cauda entre as pernas e retirou-se. O chão estremecia e ratos assustados abandonaram o chassis duma camioneta avariada, chiaram de emergência para o esgoto. Nas árvores, das folhas sacudidas os pássaros debandaram.
– Vai menino – disse “minino”.
Do outro lado da avenida, um bloqueio. Eram homens e veículos que lembravam os filmes de guerra do tempo dos soviéticos.
– Vai.
A velha, imóvel como uma estátua vendedeira, estava sentada num banco improvisado. Tinha duas caixas de papelão à frente, onde expunha frutas e legumes devidamente amontoados. Voltou-se para mim:
– Hiii. Esse menino… é teimoso – disse “timoso”
A precaução já me tinha mandado arrumar a minha loja improvisada: os meus fios, os meus alicates, as minhas chaves de fenda, os minhas capas de celular, as minhas baterias velhas e outras coisas que garantem à minha banca charme de loja de reparação de telemóveis.
– Menino… não ouve?
O menino, com uma mão na cintura e outra à altura do ombro, segurando uma bacia de amendoins torrados à venda, prestava atenção aos gritos da multidão que se aproximava. Agora ouvia-se melhor e percebia-se: Povo no poder! Povo no poder! Povo no poder!…
– É repe vovó. Estão a cantar repe. Povo no poder…
incomodados, os dos filmes de guerra soviéticos agitavam-se. Começavam a ensaiar poses teatralmente intimidatórias.
– Vai, menino. Não fica aqui. Vai para casa. Esses vão lutar. Os polícias vão disparar.
– Vão lutar por quê, vovó.
– É por causa de eleicões – disse “ilessonje”.
– O que é eleições?
– Menino não vai entender. Menino não entende política – pronunciou “pulítica”
Eu, já arrumado, pronto para me entrincheirar na entrada traseira dum edifício por ali, parei. Se estivéssemos em outras paragens e em outros tempos, depois daquela frase, poderia jurar que aquela vovó era a velha Chica do Valdemar Bastos, a dizer “Xe minino não fala política”.
– Vai
Ouviu-se um estalido, aquela ameaça de quem quer avisar que tem a arma carregada.
– Vai, menino – disse “minino”
Uma pedra maior do que a mão que a lançou sobrevoou tudo, ricocheteou em algo, quase quebrou a vidraça duma montra, e veio-nos cair bem próximo. O miúdo assustou-se.
– Vai.
Um tiro fez pah!
– Vovó não vem? Vai ficar aí? É perigoso, vovó.
A Velha não respondeu. Ficou em silêncio. Aquele silêncio expressivo da velha Chica. A velha Chica do Valdemar Bastos. A multidão gritava “Povo no poder”. Ouvia-se mais tiros. Fugia-se. Via-se mais pedras. Havia fumaça. Respirava-se gás. Gás lacrimogéneo. Povo no poder. A vovó em silêncio. Aquele silêncio da Velha Chica do Valdemar Bastos.
– Vovó não tem medo? Vamos vovó.
Naquele silêncio, a resposta poderia ser aquela parte em que o Valdemar Bastos cantava que a velha Chica dizia: “Xe minino posso morrer…”
– Vai para casa, menino – pronunciou “mínino”, enquanto desabrochava o rosto num sorriso.

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