O artista é o instigador da revolta dos objectos.
V. Chklovski
M. Eikhenbaum entende que “o romance é um problema de regras diversas que se resolve com a ajuda de um sistema de equações a várias incógnitas, sendo as construções intermediárias mais importantes do que a resposta final”. Até à vírgula, nessa citação, a ideia do estudioso russo parece tratar-se de um ensaio matemático. Mas o que está implícito é a percepção de que o romance é um género literário resultante da combinação de elementos plurais, cuja vocação consiste em gerar enredos consequentes. Por isso mesmo, muito além do desfecho, importa o processo que nos pode levar a algum lugar onde possamos morar por tempo indeterminado.
Tendo vivido entre 1886 e 1959, claro está, B. M. Eikhenbaum não leu Geba, onde o Tâmega desaguou no Índico, livro de Miguel César lançado mês passado, em Maputo. No entanto, ainda assim, o pensamento daquele Historiador de Literatura quase é premonitório em relação aos mecanismos de concepção estética e temática do mais recente romance chancelado pela Fundação Fernando Leite Couto. Isto é, na hierarquia do romance, B. M. Eikhenbaum coloca o processo narrativo no topo da pirâmide, relativamente ao que podemos considerar o fim da história. Nesse aspecto, a teoria, digamos assim, coincide com a prática, pois, ao escrever sobre uma história de amor, entre Augusto e Alice, Miguel César investe na fortificação dos elementos construtores do romance. Aliás, o seu esmero na conjugação da narração com o movimento das personagens nos espaços percorridos revela uma certa rigorosidade sobre o tal processo da construção intermediária do que sobre o derradeiro momento da história: menos impactante ou um pouco precipitado.
Em todo o caso, Geba é, paradoxalmente, um ponto de luz crítico, lugar recôndito, mas suficientemente à altura de atrair um casal de portugueses que, nos anos 50 do século XX, resolve aventurar-se numa viagem de dois meses no navio Pátria, sempre à procura de esperança. Temos aqui uma história sobre as crises humanas e humanitárias do nosso tempo, as quais começam com a incapacidade política na resolução dos problemas sociais e terminam com incerteza na emigração.
Quando partem da sua terra, Augusto e Alice apenas deixam para trás um espaço afectivo. São jovens, mas sabem como a vida é feita de algumas realizações. Assim, em Geba encontram o lugar onde podem começar a elevar um lar focados nas coisas importantes.
Ao fixar a narrativa em Geba, Memba, Nacala ou Nampula dos anos 50, uma das consequências é a activação do período colonial em Moçambique, o que instaura no romance alguma intertextualidade com Zambeziana: cenas da vida colonial (1927), de Emílio de San Bruno. Nos dois casos, revêm-se peripécias raciais e perniciosas na relação entre povos diferentes, igualmente ficcionadas em Sehura (1944), de Rodrigues Júnior, cuja história também se passa em Nampula (Ilha de Moçambique, Iapala).
Por um lado, há na escrita de Miguel César um exercício de memória. Por outro, Geba, onde o Tâmega desaguou no Índico é um ensaio sobre a lucidez, contra o que torna os homens inferiores, contra a autoridade imposta e ilegítima, contra a exploração do Homem, contra a ganância e a barbaridade a repetirem-se num mundo cada vez mais narcisista.
No campo visual de Augusto e Alice, a trama é uma experiência dura e cíclica, sobretudo quando se está do lado ingrato da História. Essas duas personagens até são correctas nas suas adversidades. Todavia, são colocadas pelo autor num meio atroz, onde nem sequer existem escolas para matricularem os seus dois filhos com idade escolar. Pior, têm de aprender a conviver com um homem imbecil, o administrador Pedro de Alenquer. É um símbolo da intransigência; de tudo o que o mundo não precisa, mas teima em preservar com extremas direitas espalhadas por aí; é um símbolo da injustiça, o chicote que subverte a ordem natural das coisas; é o rosto que faz de Geba um espaço onde a vida evapora num ápice conforme a vontade da força, do poder e da arrogância. Como diria V. V. Chklovski, Augusto e Alice servem para o escritor instigar a revolta dos objectos, dando-os humanidade e racionalidade.
Não obstante os universos paralelos entre a ficção de Miguel César e a realidade, o seu romance transparece a situação de um contexto no qual a razão é ofuscada por aqueles que se julgam dignos de explorar, magoar ou condenar os outros à miséria. Em Geba quase não há meio-termo: ou ferre-se o próximo ou deixa-se levar pela dor causada pela compaixão. Tudo é uma escolha e quanto mais sensata é a escolha menor é a possibilidade de sobrevivência. Logo, o espaço crítico do enredo corrompe as personagens de modo a tornarem-se capatazes ou subservientes. Nisso há um pouco de “Os índios da meia-praia”, quando Zeca Afonso conclui cantando naquele tom único: “Dizem que o mundo só anda tendo à frente um capaz”.
À semelhança do momento histórico em que vivemos, em Geba a injustiça é para a maioria e a esperança para muito poucos. Portanto, a justiça é apenas um lapso fugaz, que nunca abala o vilão da história por este encontrar-se, como se tem dito, “alinhado” ao um regime político. Veja-se a seguinte passagem:
– Recebi uma carta de um amigo que vive em Nampula. Jornalista de profissão. Regozijo-me com o que nela vem escrito. O representante do governador depois de ter ouvido vários homens de negócios influentes, desta região, incluindo o Doutor Sequeira decidiu e passo a ler porque esta é a melhor parte «exonerar do cargo Pedro de Alenquer e substitui-lo de imediato por um administrador interino até nova nomeação» (p. 204).
A novidade é contada por Gustavo, um amigo de Augusto e Alice. Todos gostam da surpresa, entretanto, depois se desiludem ao perceber que, ao invés de um castigo pelos crimes cometidos contra a população local, Pedro de Alenquer é transferido para São Tomé e Príncipe, para assumir as mesmas funções desempenhadas em Moçambique. Atitudes como essas e personagens como o administrador de Geba degeneram o espaço da narrativa, no qual a esperança é principalmente reservada aos protagonistas.
Nesta aventura pela escrita de Miguel César não se observa, portanto, uma história extraordinária ou uma técnica de escrita fenomenal. O que se revela, e isso é importante, é esse cuidado no retrato das questões sobre as quais o Homem sempre descobre motivos para dividir o que deveria estar socialmente unido. Apesar de se fixar nos meados do século XX, principalmente em Geba, onde o Tâmega desaguou no Índico, no romance cristalizam-se problemas colectivos de um mundo moderno, mas com desvarios injustificáveis ainda intransponíveis. Há-de ser essa uma das razões de Milan Kundera julgar o infinito da alma, se é que isso existe, um apêndice quase inútil do Homem, pois, até hoje, continuamos a investir em motivos para oprimir, separar e matar.
Enfim, ao lermos Miguel César, de facto, lembramo-nos de que “somos todos viajantes do tempo e encontramo-nos sempre entre o passado e o futuro” (p. 20), conforme assegura o narrador da história.
Título: Geba, onde o Tâmega desaguou no Índico
Autor: Miguel César
Editora: Fundação Fernando Leite Couto
Classificação: 13