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Vovó Lina e “Mabulo hiku yakana”

Nasci num domingo. Sem descorar de todos os acontecimentos importantes que foram ganhando existência ao domingo, este foi sempre, para mim, o melhor dia da semana. Desde que me desloquei do ambiente familiar, a importância deste dia da semana avolumou-se. Tenho as tardes de domingo reservadas para tornar irrisória a distância que se alojou entre Maputo e Lisboa. Falo, mas nada digo, nem? Explico-me: Nas tardes de domingo, a minha família em Maputo se junta ao redor do telemóvel. A euforia lhes faz companhia. E conversando ridicularizamos a distância que nos separa.

O tempo é um fio suspenso no qual vidas acontecem e ao se negarem cadentes tecem memórias.

Neste domingo tive uma conversa muito alegre com a minha avó materna, a vovó Lina. Minha avó materna e eu sempre nos tratamos por nkata, que significa esposa ou esposo. Por isso, como uma mulher ciumenta que vive longe do esposo passou toda a chamada a me cobrar satisfações sobre as supostas raparigas brancas com as quais a traio. Foi uma conversa deveras alegre, ponho-me a rir só de lembrar. O tema da conversa tornou-nos demasiado ocupados para evocar o passado, cabendo a mim agora fazê-lo sozinho.

Quando comecei a frequentar o meu ensino primário fui viver para casa da minha avó, tinha ainda quatro anos de idade, quase cinco, e saía de uma casa onde morava com cinco pessoas para outra onde moraria com mais de oito pessoas. Viviam na casa da minha avó alguns dos meus tios e primos, o meu irmão mais velho, Feliz, e com tempo se juntaram a nós mais tios, primos e o meu irmão mais novo, Filmão. Era sem dúvida um ambiente de uma família alargada. No início tivera muita dificuldade para me enquadrar. Era tanta timidez num só menino. Todos me dedicavam atenção especial, sobretudo a minha avó. Tornei-me bebé de vovó naquele período e com imensa gratidão reconheço que os meus tios e a minha avó se tornaram naqueles anos muitos dos pais que esta vida me tem dado.

Quando a sexta-feira trazia o fim das aulas voltava à casa dos meus pais para junto deles passar o fim-de-semana. Passava tudo tão rápido e nas tardes de domingo fazia o caminho de volta para casa da minha avó, onde passava vibrantes semanas. Ao início da noite daqueles domingos, minha avó punha-se muito atenta a escutar um programa da Rádio Moçambique. Ao longo do tempo foi convidando aos seus netos e à sua filha mais nova, a tia Melita, a lhe fazerem companhia naquela escuta que mesclava lazer e aprendizagens.

O programa em causa era uma novela radiofónica que se chama "Mabulo hiku yakana". Em cada episódio uma estória em changana, inspirada em temas sociais do quotidiano, se desenrolava. Ficar ali sentado com a família a ouvir aquelas estórias causava-me cócegas à alma, eu ria tanto. Era um dos momentos mais alegres da semana, e agora lembrando, digo, tornaram-se da vida. Não me lembro de haver televisão na casa da minha avó naquele período, muito menos energia eléctrica, por isso o rádio que funcionava a pilhas e jogos como txotxotxo (esconde-esconde), neca, zoto, papa e mamã e tantas outras brincadeiras que nos punham sujos era tudo o que tínhamos para passar o tempo. Desprovidos dessas modernices da actualidade eramos mais felizes, mais disponíveis a viver uns para os outros.

Vovó Lina, uma mulher de pouca escola (como tantas da idade dela em Moçambique), mas muito sábia, humilde e grande guerreira, nunca foi de contar muitas estórias. Sentar-se com os seus netos para ouvir as estórias que nos chegavam pela rádio foi, talvez, o jeitinho que ela encontrou para colmatar aquela lacuna. Sem dúvida, uma solução salomónica.

Quando criança declamava poesia na escolinha e agora iluminado pela luz desse halo que gira em torno de uma memória, como se completasse um puzzle que há muito me vencia, reconheço um gosto pela arte de narrar e ser narrado que me nasceu naquelas noites de domingo.

"Mabulo hiku yakana", para além de ser um clássico das novelas radiofónicas Moçambicanas, é um dos mais expressivos exemplos de como a literatura e a tradição oral sempre andaram de mãos dadas. Inspirado no meu exemplo, num tempo em que se fala de dar livros aos mais novos como forma de incentivar o gosto pela leitura, concordo com quem defende que o incentivo à leitura passa também por contar estórias aos mais novos, e, mais importante ainda, ler com eles os livros que lhes damos.

No presente fica a família ao redor do telemóvel para ridicularizarmos a distância, outrora ficávamos todos ao redor do rádio para escutar a radionovela e construir esta memória da qual sobejam amor, carinho, saudade e tantos outros sentimentos nobres. Ao viver de forma pública esta memória, expresso, desprovido de qualquer pudor, o meu agradecimento e orgulho por te ter por avó, nkata.

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