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Artigo 51: A longa e inevitável marcha para o povo no poder – breve análise sobre a obra musical do Azagaia

Podemos escutar-lhe as músicas, entretermo-nos com as suas reflexões, repetirmos-lhes os versos, mas se não ousarmos protestar por um Moçambique mais justo, definitivamente, não o teremos compreendido. A marcha consagrada no artigo 51 da nossa Constituição da República é o mais importante direito democrático que o rapper moçambicano Azagaia nos apontou para o cumprimento daquilo que é o combinado “Povo No Poder”. E não foi uma escolha aleatória ou que resultasse do calor da emoção do jovem rapper moçambicano, foi uma decisão cuidadosamente ponderada e que levou em consideração o “sujo” histórico das práticas democráticas em Moçambique.

Em sua produção musical, Azagaia foi categórico e reiterativo na exposição da grande fraude dos mecanismos democráticos que são usados em Moçambique para legitimar o poder e manipular a participação política. Tal descrédito fundamenta-se no nosso sistema eleitoral defeituoso, na precariedade das políticas públicas, na fraca oposição política, na inércia do activismo social, na parcialidade da imprensa, na alienação das ONGs e noutras práticas democráticas corrompidas que caracterizam o Estado moçambicano. Os seguintes versos do Azagaia atestam a hipocrisia democrática supracitada:

“Se eu dissesse que Moçambique não é tão pobre como parece

São falsas estatísticas de alguém que enriquece

Com dinheiro de FMI, OMS, UNICEF

Depois faz o povo crer que a economia é que não cresce

E se eu dissesse que a oposição neste país não tem esperança

Porque o povo foi ensinado a ter medo da mudança

Mas se eu dissesse que a oposição e o governo não se diferem

Comem no mesmo prato, e tudo está como eles querem”

 

(…)

“E se eu dissesse que há canais de televisão comprometidos

Com o governo só abordam os assuntos prometidos

Esses telejornais já foram todos vendidos

Vocês só ouvem o que eles querem, eles querem vossos sorrisos

E se eu dissesse que o ensino em Moçambique é um negócio

ONGs olham o governo como sócio”

In (As Mentiras da Verdade)

 

Mediante estas denúncias de encenação da participação política e liberdade de expressão que transcorrerem inúmeras músicas do Mano Azagaia, como se pode desfazer este teatro democrático que se vive no país? Servindo-se da música, o rapper moçambicano foi eloquentemente capaz de mostrar caminhos de resistência e emancipação contra forças políticas internas e externas que atentam, vezes sem conta, os pilares da democracia e prosperidade da nossa nação através da dependência económica, corrupção, racismo e perseguição política.

Temas como Emboscada, Cães de Raça, Maçonaria, M.I.R, Países do Medo e Vendem o País são a melhor expressão do mais cru neo-colonialismo, abuso do poder e intolerância política em Moçambique. Entretanto, uma das primeiras soluções propaladas por Mano Azagaia para resistir-se a tentáculos duma política maquiavélica é uma mente crítica e imbuída de integridade moral. E é obviamente justo que se diga que todas as músicas do rapper Azagaia, desde as do álbum Babalaze, passando pelo Cubaliwa à EP é Só Dever visam este intento: provocar reflexão em todo e qualquer ouvinte sobre as condições sociopolíticas do seu país.

Porque o Azagaia nunca se quis confundir com aquele crítico que só censura, sem sugerir o dever ser, a canção intitulada “As verdades” afigura-se um acervo de propostas convincentes tanto para o desenvolvimento intelectual como para o desenvolvimento económico do nosso país. Os seguintes excertos elucidam esse propósito:

 

“Eu recuso-me a ser boneco animado

Programado para consumir tudo que é importado

Enlatado, costurado ou digitalizado

Embalado, endereçado para o nosso mercado

Não! Não enquanto tiver braços para trabalhar

Pernas para caminhar e cérebro para pensar

Sim! Nós só vamos criar a nossa economia

Quando começarmos a acreditar na nossa autonomia

Eu explico: o capital circula dentro dum círculo

E só comprando o que é nosso nós fechamos o ciclo

O capital volta para nós, porque investimos em nós,

Por nós e para nós, torna o país rico e são”

 

Está claro, nesta letra, que precisamos acreditar nas nossas capacidades físico-mentais, assim como temos de valorizar o que é nosso e começarmos a pensar o país de nós para nós. Precisamos aprender a caminhar como líderes dos nossos destinos e mantermos uma consciência viva de que a revolução deve ser “lúcida, atenta e exigente, permanente até vivermos numa África Independente” (Azagaia in Revolução Já). E para que a revolução ou uma grande mudança social ocorra no nosso país, não nos bastará a integridade moral e pensamento crítico dos cidadãos. É preciso união e acção colectivas. Toda e qualquer mudança social premeditada requer sempre um pensar e uma acção comum. É com este senso que o Mano Azagaia produziu a canção “A Marcha”, um convite conveniente para as pessoas sair às ruas e, num só colectivo, gritar em uníssono:

 

“Ladrões… fora. Corruptos… fora. Assassinos… fora”

 

E afigura-se-me não existir outra maneira mais impactante de clamar pela justiça e lutar pelos seus direitos num Estado que se intitula democrático, senão o direito à manifestação consagrado no artigo 51 da Constituição da República. Unir-se e sair à rua tem uma força relativamente maior que os debates televisivos, ensaios políticos e indagações nas redes sociais. As ruas são o verdadeiro palco da democracia onde as minorias ou maioria encontram um meio de ressonar o seu protesto, captando a atenção imediata daquele que governa. Dir-se-ia que a manifestação representa, da melhor forma, a democracia directa entre o povo e o governo. Aqueles que decidem sair à rua procuram, de forma directa, serem ouvidos, propor decisões e obterem respostas das suas indignações ao vivo. Ao contrário de canais dos Media, redes sociais, tratados e ensaios que constituem meios distantes de comunicar uma ideia, a manifestação é o meio mais directo e flexível de interagir com o governo, sendo que o segundo são as ditas eleições. Mas, porque em Moçambique, as eleições não se afiguram livres e transparentes, o grande meio que nos resta para exercer a nossa liberdade de expressão é o direito à manifestação. Talvez, seja por isso, que este direito tem sido um dos mais reprimidos por governos ditatoriais. A ditadura como uma máquina política que funciona na base de autoritarismo tem como inimigo número um a liberdade de expressão dum povo, por isso, serve-se de todos os tentáculos de opressão para sufoca-la.

Porém, para um povo que anseia pelo poder, a marcha é um caminho difícil, violento, mas imprescindível e impactante num Estado ditatorial. O mais sincero grito do povo só pode ganhar a sua liberdade nas ruas, pois é onde o governante e governado não se podem evitar ou ignorar. Ambos usam os mesmos caminhos para mover-se. Dai que um governo que queira escapar à afronta do povo, às suas responsabilidades, à prestação de contas, acaba recorrendo à violência policial para expulsar das ruas um povo unido, ao invés de buscar pelo diálogo e negociações. É deste modo que uma marcha, ainda que pacífica, deteriora-se em violência em Moçambique, pois o visado é o primeiro a servir-se inapropriadamente dos instrumentos de violência. Mas uma coisa é certa, a violência seja no Estado ou numa esfera menor de organização somente semeia mais violência como bem observou o revolucionário venezuelano Hugo Chávez.

“Los que le cierran el camino a la revolución pacífica le abren al mismo tiempo el camino a la revolución violenta”

Tradução livre: Aqueles que fecham o caminho à revolução pacífica abrem, ao mesmo tempo, o caminho para revolução violenta.

E qual seria outro resultado da violência, senão mais opressão e violência?! E de que modo o povo deve responder à repressão policial e à indiferença do governo, senão recorrendo à mesma violência traduzida, amiúde, em uso de instrumentos contundentes e vandalismo?! O rapper Azagaia foi bravo suficiente em declarar essa conclusão trágica de que a violência ou vandalismo pode ser o único meio – incivilizado – de chamar a atenção ou a responsabilidade dum governo violento ou indiferente ao sofrimento do povo. As canções “Povo no Poder” e “Liricismo do vândalo” são a melhor tradução do seu ponto de vista no que concerne a estratégia de criar pressão sobre um governo que ignora o sofrimento do seu povo. Ele repou:

(…)

Barricamos as estradas, paralisamos esses chapas

Aqui ninguém passa, as lojas estão fechadas

Se a polícia é violenta, respondemos com a violência

Muda a causa para mudar a consequência

(…) baixa a tarifa do transporte, sobe o salário mínimo

Isso é o que deves fazer no mínimo

A não ser que queiras fogo nas bombas de gasolina

Assaltos à padaria, ministérios imagina

Destruir bancos comerciais, a vossa mina

Governação irracional parece que contamina

In (Povo no Poder)

 

Entretanto, os espíritos vacilantes, inconsequentes e excessivamente mansos costumam olhar para esse tipo de revolta popular com desdém e oposição, chegando a considerar tais actos produto de irracionalidade, libertinagem e marginalidade de massas incultas. A estes mini-burgueses, o Mano Azagaia responde:

 

(…) Não me venha com esse discurso marginalista

Marginais existem porque alguém marginaliza

Para Sommerschield, 16 apartamentos de luxo

Para Xipamanischield, 16 amontoamentos de lixo

E ainda perguntas por que é que eu falo sujo

Para que eu te respeite, dá-me o respeito que exijo

In (liricismo do vândalo)

 

É verdade que, em manifestações, possa haver indivíduos infiltrados sem interesse algum com a causa, e só com objectivo de vandalizar propriedades privadas, ao invés de focar-se na máquina estatal. Isso é censurável. Entretanto, esta não deve ser uma razão suficiente para limitar-se o direito de protestar tampouco idiotizar-se à insubmissão e rebelião dos jovens que lutam por uma causa justa. Tais discursos de censura normalmente têm sido propalados por gente que se arroga demasiado letrada e, ao mesmo tempo, se mostra imune ao sufoco das medidas de austeridade e do custo elevado de vida. É típico dessa gente com ar burguês que, em dias tranquilos, apoia a revolução, mas quando é hora de agir, tem medo de envolver-se como bem observou o Azagaia na música “Filhos da…”. E é na mesma canção em que o rapper Azagaia se refere a eles, dizendo que “cobardes quando morrem nem serve para estrume”. E, de facto, não servem, pois nenhum ser humano é capaz de inspirar-se com a morte de alguém que se mostrou cobarde. Nenhum.

A propósito, a morte não é um fenómeno do qual se possa ter certeza de estar a fugir-se ao ponto de abdicar duma luta justa, pois mesmo temendo encontra-la nas manifestações, ela pode encontrar-te em casa, numa rua da zona, no serviço, no transporte, numa festa, etc. Então, a certeza é que todos nós vamos morrer. Quando? Ninguém sabe. Por quê? Importa muito. Uma morte por adultério é deveras ignóbil. Uma morte por justiça social é definitivamente louvável. A escolha é tua se decides viver uma vida insignificante e cobarde ou fazer da tua existência uma energia positiva para o seu país e para o mundo à semelhança do Mano Azagaia. A escolha é sempre tua.

Porém, se algures na tua consciência, reside a ideia de que a boa governação consiste no respeito pelos direitos humanos, ampliação e baratização dos serviços públicos, contudo, no seu país, o governo do dia tem rumado no sentido contrário, no sentido de corrupção, injustiça social e miséria, então, devias aceitar os convites do Mano Azagaia: VEM PARA MARCHA! Ou adira à greve:

 

“Estão convocados para a grave todos os funcionários de Estado

Paralisem o comércio, mandem fechar os mercados

Fechem todas as fronteiras, desactivem as alfândegas

Ferro-portuários desliguem essas máquinas, abandonem os escritórios

Interrompem os campeonatos

Moçambicanos estão a morrer longe dos relvados

Os camponeses já estão em greve, fugiram das aldeias

Alunos estão em greve, fugiram das carteiras

Quanta gente vai fugir até paralisarem o país?

Toda gente sabe que a Guerra vai paralisar o país

Paremos o país agora, antes que morra mais civis

Sem o aparelho do estado o que o governo diz?”

 

(in Declaração de Paz)

 

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