XI-Cau Cau
O sistema existia e o combate na frente desportiva, à medida que a luta anti-colonial crescia, ia sendo assumido e enquadrada no processo mais vasto de libertação das pessoas e sua dignificação, como seres iguais e pensantes.
Justiça seja feita, numa realidade de puro amadorismo, a maior parte da elite que dirigia o desporto no “tempo da outra senhora” fazia-o com paixão, nos seus tempos livres. E disso se beneficiava uma franja de jovens que, pelo talento indiscutível, eram integrados no desporto do “xilunguine” e aí, facilmente, marcavam diferenças, pela positiva.
Recuando ao “meu” mundo
Vou recuar a 1961, altura em que eu vivia onde nasci, a Cidade de Quelimane. Tinha 12 anos, tudo começava e terminava no meu bairro, Sinacura, onde jogava nos tempos livres, assistindo amiúde ao campeonato de futebol no campo da Sagrada Família. Só nos “dias grandes” ia às partidas da cidade. Era o que a realidade me permitia sonhar, pois o meu Mundo estava limitado a esse espaço e horizonte.
Nas peladas suburbanas, recordo-me, a ideia prevalecente, era a de que “o branco não sabe jogar futebol”. Porém, havia sempre que se fazer uma cedência, pois só o filho do cantineiro tinha uma bola de borracha. Isso garantia-lhe um lugar cativo.
Jogávamos nos terrenos baldios, sonhando com os craques da cidade. Lá, as regras estavam bem definidas. Ferroviário e Sporting eram rivais, batiam-se forte e feio, por razões desportivas, mas não só. É que, até finais da década 60, os leões não admitiam jogadores não-brancos. Nem nas suas equipas e muito menos a frequentarem as suas instalações. Excepção para os mulatos de certas famílias, cujo estatuto permitia “fazer vista grossa” à questão da cor da pele.
Recordo-me perfeitamente do dia em que o campo do Sporting de Quelimane registou uma anormal enchente nas bancadas e cujo motivo central era ver o primeiro negro a vestir a camisola “leonina”: chamava-se Rolando, vinha da então Rodésia. Jogava que se fartava, mas o motivo da curiosidade centrava-se no facto de ver como assentava num negro, a camisola dos “leões”!
Talento venceu segregação
Para além do Sporting, o futebol da urbe quelimanense era dominado pelo Ferroviário, que escolhia os melhores jovens da cidade e lhes proporcionava emprego, o Benfica, enquadrando o extracto social intermédio e a Associação Africana, dominada pelos mestiços, também ela conduzida pela estractificação: admitia os chamados “mulatos de segunda e os cafre-metade”.
Desta forma, as disputas transportavam toda a carga de diferenças e as vitórias ou derrotas representavam oportunidades para afirmação ou humilhação de uns para com os outros.
Na verdade, pela realização permanente de jogos “muda aos cinco e acaba aos dez” nas zonas suburbanas, a ascensão dos mais talentosos da “temba” aos clubes da cidade que se pretendiam manter fortes, rapidamente passaram a algo natural.
Foi assim em Quelimane, mas sei que na Beira, pela proximidade e influência da Rodésia, este processo foi bem mais difícil.
E em Lourenço Marques? No Sporting, o clube dos polícias, as integrações até finais da década 60 eram restritas e tinham o seu quê de cosméticas. Felizmente, quando vim para a capital, em 1964, havia dois clubes que desde a sua raiz se posicionaram como anti-racistas: Desportivo de LM e 1.º de Maio, conhecidos como Nações Unidas, por integrarem negros, mestiços, brancos, asiáticos, chineses e de outras raças, sem quaisquer reservas. O que “mandava” era o talento. O Sporting de LM, já então havia acordado para essa realidade, a tempo de “exportar” alguns dos jogadores que eram os melhores do espaço português de então. Exemplos? Eusébio, Hilário, Madala Gaíza, Maurício, Satar, Armando Manhiça e muitos outros.
É verdade! Sem ter recorrido a armas, o desporto foi um importante factor de combate ao racismo e de aproximação entre os cidadãos.