Por: Aurélio Ginja
Ó música.
Em tuas profundezas
Depositamos nossos corações e almas.
Tu nos ensinaste a ver com os ouvidos
E a ouvir com os corações.
Khalil Gibran
In “A Voz do Mestre”
Há algo de divino na música, que a torna inseparável da voz sagrada da poesia! Por isso, Falso Poeta, vestindo a alma de Rudêncio Morais, cidadão mundano apaixonado pela música e Rudêncio Morais encarnado em Falso Poeta, lavrador da palavra, decidiram juntos e com identidades distintas, mas em comunhão fraternal, embarcar nesta aventura lírica em que a pena literária e a tecla musical de diversos autores se juntam, a beira da paisagem de letras e sons que este livro sugere. Assim, temos uma parte inicial onde o Falso Poeta em jeito de prelúdio, celebra poeticamente a sua existência no Reino Interior de Rudêncio Morais, e uma segunda parte onde Rudêncio Morais, ele próprio traz a lume os pensamentos que lhe afloram à pele da alma, quando se depara com certas melodias que lhe permitem entrar em comunhão espiritual com os seus compositores e/ou intérpretes!
Nas longas conversas estabelecidas com Rudêncio Morais, com a aparelhagem musical ligada como pano de fundo, foram frequentes as ocasiões em que a inacreditável beleza de uma cancão deixou-nos, subitamente, de lábios emudecidos, pontuando a nossa fala de etéreos pontos de exclamação ou místicas reticências.
A música tal como a concebe Rudêncio Morais é filha, mas também mãe do silêncio. Toda a palavra, depois de uma música sublime, é profanação, porque uma vez ouvidas, é no coração do silêncio, que as músicas mais sublimes desatam gentilmente os nós dos nossos mais secretos sentimentos. Neste sentido, uma vez que a música, incluindo a instrumental, muitas vezes anda de mãos dadas com a poesia, entrelaçando som e silêncio, confinantes e confidentes estas duas artes remendam a linguagem dos que se amam fazendo desabrochar segredos sem os revelar totalmente, enredando artistas, leitores e ouvintes, nas confidências secretas dos seus acordes, ou nas entrelinhas encantadas dos seus versos!
Por isso em algum momento: “Dei por mim pensando em nós, e no silêncio das lembranças que me remetiam a nós, decidi regressar, prender o tempo e roubar de nós uma foto, percorri no transpirar da alma as picadas sinuosas do nosso começo, amaciei a profundidade do nosso primeiro beijo, toquei-te quando ainda sonhava sugar-te a essência, balanças-te a minha estrutura e juntos sonhamos o amor, regressei ao luar das descobertas… “ Falso Poeta
Há algo de fortalecedor na música, que inspira as almas a fazer acrobacias sobre o abismo e a enfrentar com destemor os mais ingremes promontórios! Há algo de transcendente na música que liquefaz a alma em oceanos de ternura e as faz desaguar rios de perdão! Assim o revela o impacto de muitas das músicas e dos poemas alvos dos comentários emocionados do cidadão Rudêncio de Morais, tomando de empréstimo, as empreitadas literárias do Falso Poeta!
Assim , as analogias entre estas duas manifestações artísticas, poesia e música, fundem-se numa relação de intima conexão, porque ao fim e ao cabo o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e metros e rimas não passam de correspondências, ecos, da harmonia universal, como diria o genial poeta Octávio Paz.
Por isso, no nosso meio, em Eduardo White, por exemplo, o eu-lírico de Dormir com Deus e um navio na língua, ao reflectir metapoeticamente sobre o seu próprio percurso, embebido de sons e sonoridades que desabrocham da sua criação literária, proclama enfaticamente: «A música aprofunda-nos, eleva-nos para dentro, para os ilimites que somos e não nos apercebemos. Azul e quente, amarela e doce, verde e fresca. A música a arder toda como se vinda de tudo. Da língua na música e da música da língua.» (p. 27)
O Falso Poeta encarnado em Rudêncio Morais e vice-Versa, nos faz sair do nosso mundo confinado (para empregar um termo que a pandemia dos últimos tempos carimbou) para entrar num outro, que afinal, legitimamente, nos pertence, um mundo de beleza, formas e fronteiras fugazes, fugidias e expansivas: o mundo da música desfraldada pela alma de alguns dos nossos músicos mais significativos. Nesse outro mundo, tomando-nos pela mão e tendo como bússolas orientadoras as letras, ritmos e melodias de Twenty Fingers, Constâncio, Carlos Gove, Deltino Guerreiro, Assa Matusse, para dar uns exemplos apenas, nos libertar da pequenez do nosso quotidiano e experimentar, ainda que momentaneamente, uma felicidade sublime. O Falso Poeta fá-lo através de um percurso que transmite a essência do seu ser existencial, porque a música é parte do seu eu poético, ciente que para o conhecer e o amar, torna-se vital conhecer e amar as músicas que ama. Como canta Rui Veloso: não se ama alguém que não ouve a mesma canção. São músicas moçambicanas que nos marcaram e diante das quais ele nos convida a abeirarmo-nos do altar da beleza . Terminada a escuta das mesmas Rudêncio Morais, através dos seus textos evocativos, oferta-as novamente aos autores e aos ouvintes, emoldurando-as com a linguagem poética da sua inspiração. Por isso, diante deste Ecoar Musical da Gente, termino com uma oração, que aprendi de um frei amigo: Deus Todo-Poderoso, que nos destes a vida, os sons da natureza, o dom do ritmo, do compasso e da afinação das notas musicais, continua a conferir aos nossos músicos a graça de conseguir técnica aprimorada nas suas vozes, a fim de que os sons por eles emitidos continuem a manter a virtude de acalmar nossos irmãos perturbados, curar doentes e animar os deprimidos, que sejam brilhantes como as estrelas e suaves como o veludo. Permita, Senhor, que todo ser que ouvir o som dos nossos instrumentos, sinta-se bem e pressinta a vossa presença.
Parabéns, Rudêncio Morais, parabéns Falso Poeta, por esta aliança magistral em que a poesia e a música moçambicana se irmanam nesta obra e nos nossos corações, porque, tal como o diz Rudêncio Morais: “A música, por vezes, se nos é intemporal, e com ela, tecemos os lábios da voz na qual a língua ganha forma e expressão. Somos também isso, o mosaico cultural e multilingue, que se nos é apresentado de forma transcendental a cada número dos nossos músicos, buscando mensurar o tempo.”
Atenciosamente.