O País – A verdade como notícia

A poesia do espaço, do silêncio e da memória*

Não quero mais esta dor

Novamente na mão

A medir

O aroma do silêncio.

In Vestígios do silêncio, Amosse Mucavele

 

Caros amigos, inicio esta intervenção, como tem sido habitual neste tipo de ocasiões, em primeiro lugar, agradecendo ao Camões, pela recepção e generosidade, e à Alcance, por mais uma vez investir na divulgação da literatura moçambicana. É sempre bom, para os autores, escreverem sabendo que terão como publicar os seus textos.

Em segundo lugar, quero, sobretudo, felicitar ao Amosse pela coragem de lançar o seu terceiro livro, escrito entre Moçambique e Portugal. Sem dúvidas, este Vestígios do silêncio é a prova de que as residências literárias funcionam e, inclusivamente, são determinantes para a criatividade dos autores.

À parte os agradecimentos, se me permitem, partilho convosco o que, nos bastidores, contribuiu para que cá viesse cumprir esta tarefa de apresentar o livro do Amosse.

Na verdade, recebi o convite para apresentar Vestígios do silêncio há 10 dias desta sessão. Na ocasião, encontrava-me a escrever “O silêncio como estética na obra de Languana”, um ensaio a uma belíssima exposição individual que esteve patente no Núcleo d’Arte.

Mal recebi o convite, o que me ocorreu foi o seguinte: O Amosse deve ter convidado alguém que, por um motivo qualquer, desistiu de apresentar o livro. Então, com certeza, deve estar a fazer-me de bombeiro. Logo eu, que de apagar incêndios não entendo absolutamente nada.

Tendo pensado dessa maneira, o meu primeiro instinto foi o seguinte: Não, não vou apresentar esse livro. 10 dias de antecedência é pouca coisa e eu tenho tantos outros assuntos por resolver.

Sinceramente, essa pareceu-me uma saída fácil e acertada, até porque tinha argumentos a meu favor para recusar a apresentação. Mas achei muito curioso receber o convite para apresentar Vestígios do silêncio numa altura em que analisava a exposição Conversando com o silêncio, de Aldino Languana. Além disso, pode não parecer, mas tive um peso de consciência. O Amosse é meu amigo há tantos anos e pressenti que tinha de me sentir privilegiado por me ter escolhido para apresentar o seu novo título, ainda que na condição desse bombeiro que não sabe nadar ou que tem medo de fogo.

Não prolonguei mais a hesitação. Em menos de dois minutos respondi ao nosso poeta por SMS, dizendo-lhe que aceitava apresentar o livro desde que me entregasse um exemplar no dia seguinte. Foi uma forma dura de pressionar o homem, porque o conheço muito bem. Quantas vezes já combinei coisas com o Amosse e fiquei a ver navios? Várias. Então tinha de o encostar à parede e, conforme a minha previsão, comprometeu-se e garantiu que no dia seguinte eu teria o livro. Coitado de mim! Há nove, oito e sete dias do evento, nenhum sinal do Sr. Amosse Mucavele. Nada de nada. Faltando seis dias, garanti aos meus botões: Não apresento mais nenhum Vestígios do silêncio. Entretanto, parece que os meus botões não conseguem guardar segredos, e puseram-se logo a informar ao Camões sobre a minha decisão. Consequentemente, no dia seguinte, faltando cinco dias para esta cerimónia, vejo o cartaz no Facebook, no qual, inevitavelmente, constava o meu nome.

Tenho de vos dizer que aí fiquei encurralado. A partir do momento em que o nosso nome aparece num cartaz, parece que assinamos algum compromisso com o público em geral. No entanto, o nosso poeta continuava sereno e desaparecido. Reapareceu há quatro dias. Ligou-me com aquele sorry lá de quem diz Fique calmo. Não há aqui problema nenhum. Disse-me assim: Remédios, não te batas. O Nick vai-te passar o livro.

E graças ao meu amigo Nick do Rosário, presente nesta cerimónia, recebi o livro e cá estou eu para partilhar convosco algumas leituras. Amosse, espero que te tenha deixado muito mal na fita.

***

Eu intitulei esta minha intervenção da seguinte maneira: A poesia do espaço, do silêncio e da memória, porque, conforme observa Nuno Júdice, na nota de apresentação, constato que “Este é um livro em que o silêncio se converte em imagens nascidas da memória histórica dos lugares e da sua impressão no olhar do poeta” (p. 5).  

De facto, desde o seu primeiro livro, Geografia do olhar, incluído o segundo, A pedagogia da ausência, o tema da cidade, em Amosse Mucavele, é algo constante e premeditado. Por isso mesmo, num artigo que intitulei “Amosse Mucavele: o poeta urbano”, desenvolvo essa ideia de afirmação poética por via da relação com um lugar de pertença, o lugar das luzes, do betão armado e do efémero.

Maputo é assumidamente o berço do Amosse, todavia, na sua conexão com a cidade de Lisboa. É como se tivéssemos, já a partir de Geografia do olhar, uma espécie de premunição. Quer dizer, há uns anos Amosse estreia-se em livro com a versificação do espaço urbano pertencente às capitais moçambicana e portuguesa e, hoje, volta a lançar um título fruto de uma residência literária em Portugal. Coincidência ou não, Vestígios do silêncio fortalece essa predisposição para aproximar o que os mares ou as fronteiras separam. Aqui, nestes jogos semióticos sobre a imagem e a sugestão, o nosso poeta, que não cumpriu o compromisso de me entregar um exemplar do seu livro a tempo, pelo menos revela-se comprometido com o lado invisível e simbólico das coisas.

Em outras palavras, estou a querer dizer que a reivindicação poética pelo território urbano, em Amosse Mucavele, quer no seu primeiro livro, quer neste, não é algo fechado. Pelo contrário, a atmosfera da cidade resume essa tendência para os sujeitos textuais servirem de elementos de união entre países, paisagens distantes, épocas distintas e memórias históricas que se vão diluindo pela profunda e casmurra amnésia colectiva.

Aliás, quem também observa a orientação estética conexa ao território, nestes Vestígios do silêncio, é Carmen Lucia Tindó Secco. No seu prefácio, a ensaísta brasileira diz o seguinte: “É constante, na poesia de Amosse, uma inquietação em relação ao espaço, aos prédios de Maputo, muitos dos quais envoltos em sombras e esquecimentos, mesmo os arquitectados com arte” (p. 7).

Entre os vários poemas resultantes do olhar comprometido do nosso poeta urbano, destaca-se, neste seu terceiro livro, “Karel Pott”, na página 22. Leio a partir da segunda estrofe à última:

Permanece

O sopro do miserável ícone

Mudo por estes dias

A anunciar o fuzilamento da história

 

Estes

São os habitantes sem secto

Aqueles que com a inércia abrem

As portas da dor irreparável

 

Há no prédio Karel Pott

Murmúrios soterrados

Escritos em letras vazias

Envelhecidas entornam “O Brado Africano”

 

Uma longa ruína

Pedaço de um coração enferrujado

A inundar a avenida

De longe habitamo-la na morte

Como uma espada soterrada

Quando rasga o ódio

 

E no silêncio, indiferente abalroam as lágrimas

Quando a vontade de cantar o presságio

Se inclina na floração do tempo (p. 22)

 

Julgo que, sem muito esforço, facilmente captamos nuances projectas pelo texto de Amosse Mucavele. Afinal, partindo de uma construção, a poesia projecta-nos para o passado, do qual sempre necessitamos de aprender a definir significados como património, História, cultura e, claro está, memória.

“Karel Pott” é uma desculpa para lembrarmos Karel Pott e relermos as páginas d’O Brado Africano. Mas como lembrar e reler o que esta sociedade ignora ou finge não fazer sentido? Se preferirmos colocar a questão nos seguintes termos, de que somos feitos, quando atropelamos elementos históricos e identitários?

Neste Vestígios do silêncio, além de títulos de poemas, “Karel Pott”, “Pancho Guedes”, “Cinema Império” e “Cinema Olímpia” são referências à uma cidade que, conforme se pretende, se deve permitir o direito de se desenvolver com as suas gentes e acções. Há-de ser por isso que em Amosse Mucavele temos o centro e a periferia. E a periferia é tão importante que atrai uma estrela da Hollywood, segundo revela a segunda estrofe da página 25:

Já velho, Clint Eastwood faz compras no Xipamanine

Como um maestro abandonado pela orquestra

Desatento passa no guião por ele escrito

 

Há sempre um mistério por destras de cada comprador

 

Aqui, podemos pensar que o subúrbio maputense é o espaço de confluências interculturais e sociais, onde nacionais e estrangeiros rodam filmes reais da Humanidade. Pena que nesse meu Xipamanine, onde cresci, facilmente se transformam centros de arte e cultura em lojas. Primeiro, foi o Ntsindya. Há uns anos, alguém se lembrou que fazia sentido o sacrilégio de matar a História dos moçambicanos por causa de um “Rei do Chinelo”. Agora, o Cinema Olímpia, sagrado para muitos de nós, é um supermercado. E nem me vou referir ao Matchedje. Nesta onda consumista, qualquer dia abriremos matadouros nos museus, nos teatros e nas galerias de arte.

Talvez por ser uma excepção, numa sociedade que vive o agora com a mesma dedicação com que nunca pensa nas questões essências do passado, generalizo, Amosse Mucavele faz da sua poesia um vector da resistência, porque o que vivemos noutra vida continuará a importar.

Na sua fixação pela cidade, entendo que Amosse Mucavele faz na poesia o que a obra de Aldino Muianga encerra na ficção. Ou seja, quando nos referimos aos autores que melhor configuram o espaço físico e social de Maputo, Aldino Muianga é um nome obrigatório. No caso da poesia, penso que Amosse está a colocar-se na vanguarda nesse sentido. E eu diria mais. Do mesmo jeito que, por exemplo, a Ilha de Moçambique é um lugar místico e/ou fascinante para Sónia Sultuane, em O lugar das ilhas, ou para Luís Carlos Patraquim, em O cão na margem, em Amosse Mucavele a fascinação resume-se à Cidade de Maputo, pois, tal como em Muhipiti, das ruinas da capital moçambicana se vê o mundo.

Concluindo, no artigo “A comparação poética: ensaio de sistemática”, Jean Cohen afirma que “A unidade mística da natureza, da mulher e do tempo é captada pela intuição do poeta”.

Bem, nos três livros de Amosse Mucavele, a natureza, no sentido paisagístico do termo, com flores e odores, não é um registo característico. Quanto à mulher, embora a capa do seu segundo livro tenha uma sugestão erótica, a conduzir-nos para os contornos femininos, definitivamente, também não é o elemento condutor do poema. Amosse não é o poeta dos sujeitos líricos que sofrem ou enaltecem o amor às musas. No lugar da mulher e da natureza nos sentidos aqui referenciados, o poeta escolhe a unidade mística do tempo e das suas representações na totalidade dos objectos visualizados.

Enfim, mesmo para terminar, e considerando toda a nossa indiferença em relação ao património, à História e à memória, a vocês e ao Amosse, deixo-vos a seguinte pergunta: “Quanto custa o silêncio?”.

 

 

*Texto escrito na sequência da apresentação do livro Vestígios do silêncio, de Amosse Mucavele, lançado a 4 de Julho de 2023, no Camões – Centro Cultural Português em Maputo.

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