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O Princípio da Razão Suficiente na canção “Xikona” do artista moçambicano Xidiminguana – uma breve análise

A expressão latina “ex nihilo, nihil fit” do filósofo naturalista Parménides que, em português, se traduz em “nada surge do nada” configura-se um imperioso pressuposto do Princípio da Razão Suficiente cunhado por Leibniz, mas reclamado por Spinoza. De forma sucinta, com base no livro de Baruch Spinoza “Principia philosophiae cartesianae” o Princípio da Razão Suficiente formula-se na ideia de que “nada existe do qual não se possa perguntar a causa ou a razão de existência”. Ou seja, para este filósofo holandês do séc. XVII, tudo o que existe no cosmos tem de ter uma causa e motivo para existir, e, ademais, mesmo aquilo que não existe demanda explicação de como e porquê não existir. Assim sendo, todo aquele que aceita este princípio filosófico deve assumir a responsabilidade de considerar o mundo como uma rede complexa de fenómenos concebíveis e explicáveis e, jamais, aceitar a existência de factos ou actos brutos, sem precedentes. A expressão de Leibinz “não há efeito, sem causa” formula melhor a ideia do princípio da razão suficiente e é uma assumpção de que a realidade é uma ocorrência de factos interligados entre si de forma necessária e não aleatória. Portanto, tudo que acontece é passível duma explicação, significando que houve uma razão e causa que levou a tal acontecimento. Deste modo, para Leibinz, os milagres e mistérios não constituem uma violação das leis da razão ou lógica, mas sim são mal entendidas pela fraca faculdade cognitiva do ser humano.

Posto de lado a fundamentação do princípio da razão suficiente, passemos ao exercício de correlação existente entre este princípio filosófico e a produção artística “xikona” do cantor moçambicano Xidiminguana. A canção “xikona” cujo álbum leva o mesmo nome retrata, de forma sucinta, uma separação conjugal cujos motivos são desconhecidos pelos terceiros, mas ainda assim há uma absoluta certeza de ter havido uma razão suficiente que levou um dos parceiros a romper a relação. Para uma fiel compreensão, passo a transcrever e traduzir livremente o refrão que constitui a essência da canção, deixando de lado as “apóstrofes”, partes em que o cantor faz censuras ao comportamento da sua mulher e ao do amante dela.

 

A canção segue da seguinte maneira:

Xikona, xikona mpela lexi anga xi vona lwehi wa papai/2X

Alguma coisa aquele senhor teria visto

Loku wa nuna abaleka wansati nambi o’ xonga

Quando um homem abandona uma mulher, mesmo sendo bonita

Loku wa nuna abaleka wansati nambi a ni makwembe

Quando um homem abandona uma mulher, mesmo tendo bumbum

Kuza wa nuna atsukula wansati nambi a ni makwembe djani

Ao ponto de um homem desistir duma mulher mesmo tendo grande bumbum

Xikona, xikona anga xi vona lwehi wa papai/

Alguma coisa aquele senhor teria visto

Animu hembele, xikona anga xi vona lwehi wa papai

Não estou a mentir, alguma coisa aquele senhor teria visto

Kuza wa nuna adlwigwa a wansati nambi o’dhô

Ao ponto de um homem deixar uma mulher, mesmo sendo sexy.

A wanuna atsukula wansati nambi a li bonita

Um homem desistir duma mulher, mesmo sendo bonita

Xikona, xikona anga xi vona lwehi wa papai/

Alguma coisa aquele senhor teria visto

Ni ye wansati atsukula wa nuna nambi a ganhi ngopfu

E a mulher desistiu dum homem mesmo sendo muito rico

Ni ye wansati atsukula wa nuna nambi ani mimova

E a mulher desistiu dum homem, mesmo tendo automóveis

Ni ye wansati atsukula wa nuna nambi ani swi bhomba

E a mulher desistiu dum homem mesmo dispondo de autocarros

Xikona, xikona anga xi vona lwehi wa senhora/2x

Alguma coisa aquela senhora teria visto

 

A partir deste refrão, descobre-se uma clara intenção de o cantor fazer-nos entender que, nas relações amorosas, não há separações absurdas, há sempre um princípio de razão suficiente. Todo o divórcio ou o fim do relacionamento é movido obviamente por alguma razão ou causa que se mostra suficiente – para não dizer convincente – aos olhos de quem se separa. Usando o critério de beleza supostamente aprovado pela sociedade como um factor atractivo para os homens se unir às mulheres, Xidiminguana introduz-nos um cenário onde, mesmo a mulher sendo linda e sexy, é abandonada pelo homem por uma razão que, apesar de ser desconhecida pelos terceiros, teria sido suficiente para romper a relação. O mesmo cenário verifica-se numa perspectiva de mulher para o homem em que, apesar de o homem ser proprietário de várias riquezas, ele chega a ser abandonado pela sua esposa por alguma razão.

Desta clássica canção de marrabenta, desprende-se-nos uma lição da vida: evitemos julgar ou condenar as separações conjugais. Isto porque, por trás das separações, há sempre uma razão suficiente que levou o casal àquele destino. No lugar de procedermos com o exercício de julgamento, torna-se sensato limitarmo-nos à aceitação de que houve, sim, uma razão suficiente para ambos se desligarem, tal como nos sugere a canção de Xidimimguana. Pautando pelo princípio da razão suficiente, tornamo-nos mais condescendentes a casos de divórcios e mais abertos para busca do devido esclarecimento, caso nos seja necessário. Na base do princípio da razão suficiente, colocamo-nos à disposição de conhecer a real causa dos factos e, por conseguinte, adoptamos uma atitude de escutar para compreender. E para compreender as razões de qualquer discussão conjugal é deveras imperioso saber escutar ambas as partes e discernir sobre as duas versões.

Uma nota não menos importante. A razão que leva um indivíduo a decidir por uma separação não tem de ser convincente para os terceiros, pois a sensibilidade dos homens para com os problemas nunca é a mesma. Há quem seja demasiado sensível à violência emocional em forma de um insulto ao ponto de considerar a sua relação abusiva, mas há quem consiga tolera-la, mas não admitir violência física ou adultério. Isto pode significar que, em discussões conjugais, a coisa mais importante que os terceiros possam lograr é a compreensão dos factos e não a razoabilidade das decisões. Aquele terceiro que pautar pela razoabilidade das decisões incorre no risco de ridicularizar ou superestimar uma parte em detrimento doutra. Ademais, é crucial que em reuniões familiares em busca de reconciliação dos casais, os terceiros tenham o cuidado de não tomar decisões finais pelo casal, mas que deixem ficar as suas sugestões sobre o destino do casal e, por fim, deem palavra aos parceiros para que tomem uma decisão final sobre o seu futuro. Quando não se respeitam as vontades do casal, ocorrem dois trágicos cenários que são uma reconciliação à força ou uma separação apoiada. A primeira alternativa leva a relação a um futuro sombrio marcado de mais abusos, violência e eventuais assassinatos. A segunda alternativa gera remorsos, ressentimentos e vitimizações. Reiterando o princípio da razão suficiente, por trás de qualquer separação ou divórcio há sempre uma razão ou causa determinantes. Assim sendo, a aceitação e a disposição dos terceiros para compreender os factos é a coisa primeira e mais sensata a se ter, ao invés de proceder-se com a culpabilidade, condenação ou vitimização duma das partes na relação.

 

Hélder Tsemba

tsembah@gmail.com

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