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O lugar da nação em KaMutxukêti

Tanto a miséria como a riqueza corrompem embora por causas diferentes.

A miséria pela necessidade, a riqueza pelo prazer.

In Tchova, tchova, de Eduardo Paixão

 

Os projectos teatrais em que Vítor Gonçalves se envolve são, geralmente, interessantíssimos. Ao nível do conceito, da produção ou do encadeamento de ideias, as iniciativas do artista tanto surpreendem quanto comovem.

Quando está a conceber um grande espectáculo, Vítor Gonçalves não se reduz a nenhuma austeridade. Pelo contrário, sempre encontra no poder da imaginação um elemento para quebrar barreiras, alcançando, por isso, níveis imprevisíveis da criatividade. Os mais atentos devem lembrar-se da ópera Mwango e Mwanga ou da peça Chovem amores na Rua do Matador; os mais atentos vão, certamente, lembrar-se d’A amarrada chuva de KaMutxukêti, peça teatral que estreou no dia 16 de Março, em palco todas as sextas-feiras, sábados e domingos, às 18 horas, no Cine Scala, em Maputo, até 20 de Maio.

Adaptada por Evaristo Abreu, do livro de Teodoro Waty, com efeito, A amarrada chuva de KaMutxukêti junta Vítor Gonçalves e Maria Atália na encenação. Coube aos dois artistas dar sentido ao texto e personificar angústias sociais que muitas vezes dividem os homens e as mulheres deste mundo ingrato.

Em primeiro lugar, A amarrada chuva de KaMutxukêti deslumbra-nos pelo cenário. Ao entrar no Scala, mesmo antes do espectáculo iniciar, ali ficamos perdidos em algum lugar ideal, mas sem pressa de voltar à realidade. No palco paira uma imagem de aldeia agreste, onde os códigos sociais confundem-se com a supremacia de certos poderes transcendentes. Desse ponto de vista, há ali um misticismo tipicamente africano, com ângulos de abordagem que, inclusivamente, conduzem a história por territórios sombrios, estranhos ou fantásticos. Com a excepção do que se vê, nada é bem como parece e isso ajuda na construção de um enredo complexo, mas inteligível o suficiente para manter o público agradado e atento a cada acontecimento.

A peça começa como se fosse um bailado, explorando essa percepção assertiva de que a dança acompanha os africanos em todos os momentos da sua vida: na alegria e na tristeza. A dança está em diferentes momentos da peça, com algum destaque para o xigubo, o tufo e o mapiko; a dança é emoção, vibração, o intervalo entre o verbo e a conjugação; é o fragmento da totalidade que torna possível explorar ainda mais o movimento das personagens principais, secundárias e figurantes. E com a dança, a interdisciplinaridade artística preenche KaMutxukêti de outros condimentos sonoros oportunos à leitura do espectáculo.

Ora, em geral, A amarrada chuva de KaMutxukêti é uma peça sobre a instabilidade social causada pela falta da precipitação. Sendo o reino de Baba Hosi (Dadivo José) dependente da chuva, sem esse evento natural o lugar da união transforma-se numa situação dúbia e perigosa. O reino, por falta da chuva, divide-se. Logo, a busca da água faz de algumas personagens egocêntricas e narcisistas. A busca da água torna-se um factor da desunião, bem a lembrar a novela rural Água, de João Paulo Borges Coelho, na qual a seca também corrompe os que deveriam amar mais, ao invés de destruir.

Para o rei Baba Hosi, o cenário da crise é uma situação difícil. Pois, em toda sua vida, nunca se tinha deparado com um problema tão grave e globalmente tão incompreendido quanto é a seca. Porém, perspicaz como é, Baba Hosi sabe que a chuva é a bênção e a seca a maldição para quem governa. Por isso mesmo, depois de ouvir gente próxima, decide enviar três emissários à procura da chuva. A missão de Ngovene (Horácio Guiamba), Mapswanganhe (Adelino Branquinho) e Simbia (Edu All Talents) é deveras espinhosa. Primeiro, porque não sabem bem ao certo por onde começar. Segundo, porque partem para lugares forasteiros, com poderes inimagináveis a intrometerem-se em ocasiões em que se encontram fisicamente débeis e moralmente desvalorizados. É a essa altura que a missão dos três mensageiros lembra-nos Manicusse, a personagem de “A árvore sagrada”, do livro Balada dos deuses, de Marcelo Panguana. Com uma diferença: enquanto naquele conto o protagonista não consegue chegar ao destino auspicioso, por não acreditar em si e nos seus antepassados, na peça encenada por Vítor Gonçalves e Maria Atália os três emissários vencem as adversidades e, consequentemente, encontram a solução nas terras distantes do norte. Uma vez mais, em contacto com o além.

Não obstante ser um lugar absolutamente fictício, em KaMutxukêti a chuva representa as maiores aspirações da sociedade moçambicana. A chuva é estabilidade, a esperança, o bem-estar e a preservação de um espaço colectivo e abrangente. Quando a chuva cai, a unidade é certa e os murmúrios populares ininteligíveis. Entretanto, quando escasseia, não só aparecem vozes a questionar a legitimidade do rei, igualmente, vêem-se na peça comportamentos degradantes e personagens a perderem o sentido da importância da partilha. Portanto, A amarrada chuva de KaMutxukêti diverte-nos e lembra-nos que o lugar da nação, quando a crise chega, deve ser proporcional à mesma condição na fartura. A nação é o bem para todos, partilhável, e não a metade das riquezas nacionais no bolso de um par de gente. A nação é o amor ao povo, o cuidado com os pobres e a resposta sensata aos protestos dos que sofrem ou tornam audíveis os sofrimentos dos outros, de facto, num contexto em que “tanto a miséria como a riqueza corrompem embora por causas diferentes. A miséria pela necessidade, a riqueza pelo prazer”.

Em algumas circunstâncias, A amarrada chuva de KaMutxukêti explora essa dimensão hilariante característica à comédia, em outras, não ignora a fatalidade da tragédia especial em Sófocles ou em William Shakespeare. Lá está, a morte faz parte do jogo e o reino de Baba Hosi apresenta-se à semelhança de um tabuleiro de xadrez em que um simples peão pode decidir o fim do seu próprio rei. Quer dizer, do ponto de vista da coerência, da lucidez, do raciocínio das personagens e da analogia, KaMutxukêti é um lugar onde se revelam os pilares que suportam qualquer país: o cidadão comum (se quiser, o povo) e a sua relação com os símbolos do poder e vice-versa. Se pensar o país através dessa relação muitas vezes vertical é árduo e complexo, através da adaptação de Evaristo Abreu é divertido e leve, pois as doses de humor estão equilibradas à gravidade do problema que agita o reino.

A amarrada chuva de KaMutxukêti tem hora e meia de duração, mas a dinâmica das cenas faz o tempo voar. Aliado a isso, impressiona o cruzamento de diferentes gerações de actores e a forma como tantas estrelas do teatro moçambicano são geridas no núcleo da história que se está a tecer. Por um lado, Josefina Massango, Adelino Branquinho e Lucrécia Paco. Por outro, Dadivo José, Horácio Guiamba, Violeta Mbilana e Fernando Macamo. Em outros contextos, dois desses actores já fazem um espectáulo teatral credível. Mas, em KaMutxukêti, Vítor Gonçalves e Maria Atália conseguiram respeitar a longevidade artística dos actores há muitos anos consagrados e a pujante ascensão dos actores que actualmente contribuem para vivacidade de um teatro moçambicano que apenas peca pela quantidade de espectáculos.

Outro aspecto a considerar e que merece atenção é a trilha sonora na responsabilidade de Lenna Bahule, o figurino e a cenografia de Sara Machado e a iluminação de Francisco Baloi. Esse trio faz d’A amarrada chuva de KaMutxukêti uma experiência capaz, de facto, de transportar o público para uma excelente viagem de ida e volta só ao preço de 300 meticais.

 

Os motores de KaMutxukêti

A qualidade estética de A amarrada chuva de KaMutxukêti, claro está, deve-se à totalidade dos elementos integrados. Talvez não seja uma peça para ver com a sogra, há ali umas cenas que podem chocar os mais conservadores; talvez aja alguns aspecos a melhorar, há ali umas duas actrizes com o ar demasiado adolescente para certas cenas sensuais. Em todo o caso, sempre se vêem actores que se notabilizaram de forma particular. Por exemplo:

Lucrécia Paco

Já não tem nada a provar a ninguém. Durante anos, foi a diva do Mutumbela Gogo e ajudou a tornar o Teatro Avenida um lugar sagrado. Por motivos pessoais, desapareceu dos palcos por algum tempo e encontrou na encenação a possibilidade de continuar a expressar-se. Mas em A amarrada chuva de KaMutxukêti, esta sexta-feira, Lucrécia Paco foi brutal. Como se estivesse no início da carreira e ainda precisasse de conquistar o seu lugar, a actriz imprimiu na sua personagem uma performance muito além da sua própria média de actuação. Lucrécia Paco voltou e, no regresso, trouxe aquela qualidade de outros tempos.

Na peça, Lucrécia Paco interpreta o papel de Mayothase, uma das três mulheres do rei Baba Hosi. É a rainha mais bela, mais vaidosa e menos preocupada com o sofrimento do povo. Para ela, basta a atenção de Baba Hosi e o bem-estar da família, mesmo que isso faça sofrer os mutxuketenses. Ao contrário da rainha mais velha, Maripodina (Josefina Massango), o papel de Mayothase é mais rigoroso porque exige reacções diferentes em cada circunstância. Num momento, Mayothase é uma ardilosa víbora. Noutro, é uma mulher dócil para o seu rei. Quer isto dizer que o papel exige pelo menos duas personalidades para a mesma personagem. Nos dois casos, Lucrécia Paco aparece no seu melhor, com detalhes nos gestos, no olhar, no riso, nos gritos e nos movimentos. Que saudade, Lucrécia!

 

Violeta Mbilana

Em KaMutxukêti, Violeta Mbilana interpreta o papel de Dalena, a outra mulher de Baba Hosi. Se Maripodina é a mais esclarecida e ponderada e Mayothase a mais expansiva, Dalena é o meio-termo entre as três rainhas. Ama o rei com vigor e deseja-o permanentemente. Ao rei é submissa, mas irrequieta às estravagâncias de Mayothase. Portanto, esse também é um papel com variações. Todavia, Violeta Mbilana, essa actriz que até pouco tempo era desconhecida, mostrou-se à altura de contracenar com Josefina Massango, Adelino Branquinho e Lucrécia Paco.

Em Chovem amores na Rua do Matador, Violeta Mbilana já se tinha apresentado em grande nível. Mas em A amarrada chuva de KaMutxukêti a actriz é imperial, representando uma geração de mulheres moçambicanas que no teatro sabem muito bem o que fazem. Numa palavra, Violeta Mbilana, essa mulher cheia de cor, foi natural. É uma actriz a sério, inquieta, com o teatro nas veias. A maneira como a sua personagem afronta as outras rainhas e submete-se ao rei no mesmo contexto é realmente convincente. Mbilana parece ter sido inventada para A amarrada chuva de KaMutxukêti e a actriz aproveita a oportunidade para se mostrar a um nível elevado. Violeta Mbilana, um nome a reter.

 

Fernando Macamo

Já o tínhamos visto em várias peças teatrais, mas nunca numa super produção. Como se soubesse disso, Fernando Macamo apropriou-se dos seus dois papéis, a de Sigaúque, conselheiro do rei, e a de um curandeiro. Nos dois casos, o actor é categórico e equilibrado. Parte das gargalhadas do público, devem-se às intervenções das duas personagens de Fernando Macamo. A escolha do actor para os dois papéis foi assertiva até do ponto de vista da gestão do número do elenco.

 

Horácio Guiamba

A capacidade interpretativa de Horácio Guiamba é qualquer coisa do outro mundo. É dos poucos actores da nova geração que consegue estar em grande nível em alguns papéis que só Adelino Branquinho interpreta melhor (Branquinho é o topo da pirâmide, mas o seu papel, à semelhança do papel de Josefina Massango, não o permite explodir em KaMutxukêti). Há gestos que nunca estariam num script, mas Horácio Guiamba consegue inventá-los e dá-los sentidos. E não é apenas isso, na pele de Ngovene, um dos emissários do rei que parte à procura da chuva, é a dicção, o semblante, a espontaneidade e a claridade interpretativa que comovem. Como Horácio Guiamba há muito poucos!

 

Dadivo José

O gajo que faz tanta coisa (música, teatro, aulas, Maxaquene e etc.), desta vez, apareceu feito um rei. É como no xadrez, muitas vezes, os reis não têm muita mobilidade. Dão um passo de cada vez. Mas as rainhas de Baba Hosi, sim, essas conseguem movimentar-se para todas as direcções sem que o rei consiga prever as consequências ulteriores. Ainda assim, Dadivo José encarna Baba Hosi com a devida majestade. Dadivo mantém o ar sisudo de um rei, a serenidade e a altivez. Pena que, como diria Maquiavel, os reis mais duradouros são os mais temidos do que amados.

 

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