Desde princípios de Maio estou como estagiário e assistente de encenação de Fernando Mora Ramos, na mais recente produção do Teatro da Rainha, na cidade das Caldas da Rainha em Portugal. O espectáculo é “A cidade dos Pássaros” de Beranard Chartreux, dramaturgo contemporâneo francês, que vai buscar em as “Aves” de Aristófanes, um dos grandes nomes do teatro grego, um bom pretexto para discutir a degradação da democracia dos nossos dias.
Evélpidos e Pistetero, dois Atenienses revoltados com a falência da democracia da sua cidade, que já não passava dum antro de corrupção, clientelismo e outras ilicitudes, atravessam o deserto à procura de Tereu Poupa, um rei transformado em pássaro pelos deuses como paga dos seus crimes conjugais. Há nesta peça permanente diálogo com personagens da mitologia grega. Chegados ao país dos pássaros livres, Pistetero ao se aperceber da inexistência de um governo (o que justificava a harmonia e liberdade vivida naquele lugar), serve-se da sua astúcia política para manipular o povo dos pássaros livres, que de ferozes inimigos dos homens passam a ser seus escravos fieis. Pistetero de imigrante passa a ser o pai da nação. Será disso que a Europa tem medo ao fechar as comportas do mediterrâneo?
A ditadura não tarda ganhar asas e envenenar o ar. Passado um bocado Homens e deuses curvam-se aos pés do imperador. O bloqueio dos fumos sacrificiais altera radicalmente a lógica do universo. Agora são os pássaros que mandam. Ou melhor é o seu imperador quem detém todo poder da terra, do ar e do céu. Homofóbico, xenófobo e bastante centrado no seu umbigo revela-se como fiel protótipo dos líderes mundiais. Facilmente nos remete a Trump ou Bolsonaro. O resto não é difícil de imaginar. O nosso quotidiano é deveras esclarecedor.
Trabalhar nesta peça para além de servir de extensão para o meu aprendizado teatral, aprofundar meus conhecimentos em relação à encenação, dramaturgia e produção de espectáculos. Tem sido um momento de grande reflexão sobre questões políticas e sociais com as quais o nosso país se debate actualmente, por me possibilitar um olhar exterior e consequentemente mais lúcido. Diz-se que o caos só pode ser percebido melhor à distância, pois quanto mais perto estivermos mais risco corremos de nos confundir com ele. Nunca compreendi tão bem Moçambique, quanto agora. Eis a vantagem dos estrangeiros.
Nos ensaios, os olhos de águia de Fernando Mora Ramos atiram-se contra a acena como uma picareta na caça das pedras preciosas. A cada dia uma nova descoberta. Vão ficando cada vez mais significativas as falas, os gestos e movimentações dos actores que projectam no espaço a narrativa dramática. Para melhor conduzir as acções dos actores, o encenador faz questão de nomear cada estado de espírito das personagens, assim como o sentido das situações. Por exemplo chama de vocação da vénia a atitude do Arauto, – uma personagem que rompe a cena cheia de salamaleques para entregar ao novo tirano do universo, Pistetero, uma coroa enviada pelos Homens, em reconhecimento do seu poder.
Apesar de, no decorrer da peça existirem muitas cenas que satirizam e põem a nu o teatro obsceno da política, principalmente no que diz respeito à manipulação e opressão das massas. Evoco aqui a cena do Arauto por ser uma boa demostração do lambe botismo, que assaltou o nosso país. Pela sua massificação e aprimoramento arisco-me a dizer que há quem nasça com tal vocação. Não é novidade para ninguém que há gente que ganha a vida engraxando com a língua as botas imundas dos chefes. Suas excelências estão sempre certas, mesmo quando há provas claras de que empurram o país para o precipício. Com a ficha do pensamento crítico desligada dizem sim, senhor, a tudo. Como pode haver democracia num país de seguidismo?
O mais grave é a juventude que quando não se deixa embriagar pela infinita promoção da cerveja, engravata-se, acerca o chefe e de joelhos esmera-se para que lhe seja reconhecida a vocação da vénia. Faz vista grossa aos escândalos de corrupção envolvendo figuras graúdas do nosso governo. Ignora a antiga doença dos transportes e das estradas. O salário mínimo nunca chega para encher o saco no dumbanengue, muito menos para pagar água e luz, mas não faz mal. O chefe tem dado o melhor de si, merece hurras e kulungwanas. Eis o que se chama vocação da vénia!