A felicidade não tem história, com uma vida feliz não se faz romance
Jorge Amado
– Hakuna maguezi (do rhonga, não há luz). Foram estas as primeiras palavras que ouvimos, quando, nesta quarta-feira, manifestamos o interesse de apreciar a nova exposição de Sebastião Matsinhe, patente no Museu Nacional de Arte até 30 de Abril. Como se aquilo pudesse ser uma interdição, não deixou de nos chamar atenção, afinal teríamos de ver “Mistérios da noite” – e esse é o título da mostra do artista plástico – num ambiente, digamos, com efeitos nocturnos, já que as salas com as obras estavam escuras, uma mais do que a outra. Ainda bem que os chineses inventaram uma lanterna tão capaz quanto aquela de um Huawei que a empresa soube e bem oferecer. Assim, houve maguezi, por um instante, o tempo necessário para ver, avaliar e intrometermo-nos na dimensão ou no imaginário do autor que, enquanto fervíamos os miolos, devia estar a gozar a precipitação da chuva miúda no hotel Santa Cruz. Poderíamos ter-lhe ligado naquela altura, rematando-lhe a perplexidade ou algo assim. Mas não, que os mistérios tinham de ser desvendados em silêncio num pacto perpétuo.
Então seguiu-se a odisseia, a qual, logo à partida, deu-nos a emoção e a razão, num nível subtil, em que a primavera anímica dizia-se ser viagem. E tudo aquilo resumia-se na frase do autor baiano: “A felicidade não tem história, com uma vida feliz não se faz romance”. E nem artes plásticas, eventualmente, se nos guiarmos pela presunção de apenas ter a mostra de Matsinhe como modelo. Porque essa obra surge oportunamente para exprimir o sentimento de que a melancolia impõem-se como uma ferramenta distinta na tessitura de qualquer enredo. Isso, misturado com suspense, intriga e mistério, de facto, torna uma obra digna de ser e existir.
Estas telas de Sebastião Matsinhe conseguem conter um impacto acutilante na ordem do pensamento de quem as contempla ou deixa-se levar a um patamar em que a fantasia mistura-se com o impulso gerido pela inquietude interior do autor, arrogante por exigir existência material num paralelismo harmónico com a subjectividade do que se sugere por via da pintura.
Com efeito, “Mistérios da noite” revela-se como veículo que em si transporta várias imagens: a tradição e a natureza, e as suas derivações. Nisso encontramos a mulher, que bem pode estar, igualmente – acreditamos nisso –, a representar o pecado e a terra. No primeiro caso, com tudo o que a inferniza. No segundo, usando das transferências metafóricas já projectadas por Craveirinha naquele velho texto: “Mãe” – na mostra, disfarçado em “Mãe e filho” (2013), por exemplo, pintada, adivinha-se, com sentimentos profundos, daí as cores com tonalidades deveras acentuadas.
Mesmo a propósito de sentimentos, “Mistérios da noite” junta vários afectos, com primazia para o amor que liberta um farol suficiente para iluminar a noite que aqui também sugere o lado sombrio do Homem, incapaz de respeitar a espécie e o meio que a sustenta. Por isso temos, nas seis dezenas de telas aproximadamente, uma com o título “Violência contra a natureza” (2012), colocada com destaque para chamar atenção, com um stop, a conduzir uma introspecção voluntaria. Essa é das telas mais bem concebidas do ponto de vista temático, actual. Na companhia, aparecem as mais belas, como: “Máscara” (2007) – simples e simpática –; “O baptismo da avó” (2016) – uma espécie de passagem de testemunho que conduz à sabedoria agora ignorada por tudo –; “Figura central” (2014) – das mais complexas e incómodas, e bem localizada ao lado de “A riqueza” (2010), com mesmas cores e múltiplas sugestões. Essas merecem lá estar. Existem as que não merecem? Na nossa opinião, certamente. Por exemplo, a tela “A beleza da natureza” (2017), banal, machista e vulgar, por colocar a imagem feminina cruelmente desnudada, de tal modo que nem inspiraria a garrafa de Laurentina Preta. “A biquiri” (2016) é outra descartável.
Contudo, nesta exposição, feita de acrílico sobre tela, Sebastião Matsinhe leva-nos consigo rumo a um diálogo com o nosso mundo interior, em momentos em que somos dia, por conseguirmos nos manter completamente sisudos, bem como em momentos em que somos noite, pedaços de uma escolha que gera “Fome” (2014) e, depois, uma “Tempestade” (2014) generalizante, como se “Mistérios da noite” quisesse ser um farol, e é, mostrando quem somos e quem poderemos ser.
Título: “Mistérios da noite”
Autor: Sebastião Matsinhe
Exposição de Artes Plásticas
Classificação: 13