O Livro do Desassossego e da Engenharia da Morte
As nossas guerras têm feito uma sociedade de loucura, medo e paranóia. Ainda continuamos a ter razões que substanciam esta propensão de resolver os diferendos por via das armas? Vai passar a fazer parte do nosso DNA? Estamos preparados para um dia saber conviver pacificamente? Os efeitos das guerras não são, apenas, deslocados, mas, os traumatizados que nunca ninguém contabiliza e nem se está preparado para o fazer e para os cuidar. Ainda assim, devemos ser francos: existem motivos para conflitos tão prolongados, cada vez mais violentos e desumanos?
A guerra deixa cicatrizes profundas e lembranças sombrias, onde a violência ultrapassa todas razões. A destruição cria um vazio existencial, apagando noções de certo e errado. “Ali eu matei por amor”, afirma o ex-combatente, revelando a ironia cruel de distorcer o valor da vida. Ele descreve, sem remorso, actos brutais que desumanizam vítimas e algozes. “Não há oração que purifique”, admite. A guerra não destrói penas corpos, mas também o espírito, deixando marcas permanentes em quem busca um perdão que parece inalcançável.
Estas são, por conseguinte, as histórias do medo e temor, morte e carnificina, desprezo pela vida e matança gratuita. Diálogos que recriados e que personificam esta triste realidade. Alguns dos nossos melhores escritores já se socorreram da guerra para escrever seus livros e estes foram bem recebidos e acalentados pelo público. Aliás, até a arte cinematográfica já se guiou por estas narrativas que convidam à imersão num imaginário que todos queremos esquecer todos os dias. “Comboio de Sal e Açúcar” é um destes.
Tive acesso ao texto do apresentador do livro, António Cabrita, que é também ensaísta e poeta. Em sua análise profunda e perspicaz, ele descreve o livro como uma reflexão sobre o mal — a maldade genuína e pura, a maldade humana. Esse mal é apresentado como algo que define a condição humana e, especificamente, a realidade dos moçambicanos. Cabrita vai além, e faz um recorte sobre a loucura da guerra, descrevendo-a de maneira extremamente apropriada, assim como a crueldade que a acompanha. No entanto, o texto também tem um carácter introspectivo, forçando-nos a reconhecer que nossas guerras e
conflitos armados geram muito mais vítimas do que apenas aqueles que morrem. Enquanto os mortos não sentem mais, os vivos tornam-se “cadáveres viventes”, que perambulam pelas ruas, matas e manicómios, carregando o peso da dor e da perda.
A narrativa sobre a morte de Cantinho, apresentada no livro, é um dos momentos mais marcantes e pungentes da obra. A descrição da cena, onde uma bala interrompe brutalmente a vida de um companheiro, carrega uma simbologia que vai além da perda individual. Suas palavras finais, “Não me meta em teus sonhos, com-pan-hei-ro”, ressoam como um grito de humanidade em meio ao caos da guerra. A imposição de registrar a experiência em diários revela a tensão entre a necessidade de registrar e o desejo de esquecer, uma contradição que culmina no acto de destruição desses cadernos. No entanto, a memória permanece, assim como o questionamento sobre quem, de facto, era o inimigo. A obra nos confronta com a desumanização da guerra e a busca incessante por significado em um cenário de morte e destruição, ressoando a verdade amarga de que a guerra deixa marcas que nenhum tempo consegue apagar.
Enquanto lia e relia “Névoa na Sala”, recordei-me de outro livro de Daniela Arbex, “Holocausto Brasileiro”. Neste livro, a autora retracta a tragédia dos 60 mil mortos no maior hospital psiquiátrico do Brasil. Durante décadas, milhares de pacientes foram internados à força, sem qualquer diagnóstico de doença mental, em um imenso hospício na cidade de Barbacena, em Minas Gerais. Lá, foram submetidos à torturas, violência e mortes, sem que ninguém se preocupasse com seu destino.
Eram tratados como casos de epilepsia, alcoolismo, homossexualidade, prostituição, meninas grávidas pelos patrões, mulheres confinadas pelos maridos, ou moças que haviam perdido a virgindade antes do casamento. Seus gritos permaneceram sem resposta.
Mélio Tinga tem neste livro, para além de uma semelhança na narrativa, os horrores desses manicómios e, no nosso caso, como os antigos beligerantes são levados para o manicómio e ninguém sem importa com eles. São as outras vítimas de uma guerra tão descabida e injusta, como cruel e inusitada. Creio que ninguém ainda havia feito este diálogo entre personagens de um manicómio como o próprio “Névoa na Sala”. Mélio Tinga não precisa de falar em genocídio, todavia, não tem dúvidas que estamos à beira de um abismo e que as guerras nos conduzem para lá, com a conivência das forças que estão no terreno e daqueles que facilitam na aquisição de equipamentos militares e bélicos que bem poderiam ser substituídos por outros elementos de cariz social e que tanta falta fazem a sociedade.
Tive o privilégio de ler esta obra – digo bem, obra e não livro – pois ela tem o condão de ostentar este gabarito, bem antes do seu lançamento. Uma leitura densa e tensa, uma confrontação permanente entre as sequelas da guerra e dos conflitos e a sensualidade própria de seres humanos, em qualquer tempo e espaço. Uma viagem por protagonistas e antigos membros de facções militares que lutaram, muito sem saber porquê, viraram beligerantes e mataram seus irmãos, sem saber porquê, e que substrato suportou sua bravura.
O livro apresenta três personagens bem definidos: o Analiza, que aparentemente é morto e retorna para pedir desculpas pelos seus actos, demonstrando uma surpreendente sensatez; Lili, que descobre que não pode ter filhos, o que a conduz à depressão; e Cantinho, cujo papel parece mais secundário, desaparecendo frequentemente da narrativa e deixando de ser mencionado. Mas, pode ser que este personagem perca a sua identidade ao longo do texto. Existem médicos cubanos e esta opção, igualmente, parece muito curiosa, fazendo acreditar que eles dominam a arte de cura nos auspícios. De outra forma, porque razão não foram escolhidos outros médicos?
Os diálogos e as descrições são, sem dúvida, intensos e, por vezes, violentos. São livros que revelam todo o trauma, mas que deixam em aberto a origem e a força que impulsiona a loucura humana, sem oferecer respostas sobre como lidar com ela. Ao reler Mélio Tinga, somos tomados pela sensação de que estamos diante de um escritor moldado em ambientes adversos e hostis.
Mas, isso é, apenas, a sua capacidade criativa que se revela em cada página e em todos os momentos. Aliás, nestas obras experimentais devem gravitar, necessariamente, diferentes facetas dessa loucura humana, do amor, do sexo, dos sonhos, para que o leitor navegue nesse mar de fantasia e delírio.
Conheço Mélio Tinga desde que obtive uma copia do livro “O Voo dos Fantasmas”. Esses Xipocos de ontem, hoje e de sempre, como diria Ruth Rendell, são os únicos sobrenaturais que, de algum modo, podem ser permitidos a nós, modernos. E este Moçambique é feito de fantasmas de toda a espécie e em todos os lugares. Mélio já era bem familiar pelo que, antes, publicou na Antologia de artes criminais moçambicanas de 2017. O texto era nada mais nada menos que “O hambúrguer que matou Jorge”.
No livro “O Voo dos Fantasmas”, escrevi dois parágrafos, em jeito de critica ou sugestão de leitura que, posteriormente, serviram de texto de contracapa. Defendia algo que virou profecia. Mélio Tinga tinha todas as condições para se tornar um dos autores mais completos e bem-sucedidos de Moçambique. Na verdade, o texto da contracapa destacava que o jovem escritor, por meio de sua escrita, apresentava uma forma refinada e única de retractar os fantasmas que nos atormentam como seres sociais e cidadãos preocupados com a falta de paz e estabilidade. Seus contos permitiam explorar o exótico, as assombrações dos demónios e dos anjos, que, na tradição africana, se resumem em um único conceito: a Maledicência.
Mélio Tinga teve a oportunidade de fazer algumas residências literárias e não admira que essa experiência o tenha ajudado a ganhar tarimba e o estofo necessário para usar como ninguém a anáfora. O texto tem dezenas de exemplos que se confundem com momentos de pausa e de avanço. A anáfora pode ser resumida como um processo de repetição ou retoma de palavras que fazem a estrutura de base da ideia que se apresenta. Algo que a nossa literatura, infelizmente, explora pouco.
Ao descrever o livro “A Engenharia da Morte”, Ubiratã Sousa, mestre e doutor em Literaturas Africanas pela Universidade de São Paulo, como considerou-o, como uma síntese de contemplação, inspiração, trabalho e transpiração, o que parece transitar para este romance, “Névoa na Sala”.
Mélio Tinga tem a possibilidade de apresentar e segurar os leitores, mesmo considerando seu jeito tímido, e de quem só consegue falar por via de seus textos, deambulando entre o questionamento e frustração, assumindo que os humanos têm toda a incapacidade de assegurar que os seus entes queridos continuem vivendo, quando o além bate à porta. Esta é a sua forma de exprimir o poder que a morte tem em desfazer
relacionamentos quando bem entende. Mas, em “Névoa na Sala”, ele revive esse drama com amor e confere um novo elemento à sua narrativa.
Alguma critica faz questão de mencionar que Mélio Tinga estabelece um paralelo entre o drama aqui descrito com a guerra em Cabo delgado. Creio que essa descrição mais do Norte ainda vai chegar. Naquele paralelo não se pedem desculpas e não existe amor que resista este drama de hoje e agora em todo o país.
Este livro não é apenas um candidato natural para vários prémios de literatura, como defende Cabrita, mas, também, para uma boa obra cinematográfica, com o Licínio Azevedo rescrevendo o guião.