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Deram-me cabo da perna, mas e o que lembrarão os violentados desta campanha eleitoral?

Ontem choveu em Lisboa. Tudo o que me vem aos olhos são as lágrimas que inundam o buraco no qual aquela criança se contorce. Amanhã é Outono. Eu sei que já te contei isto, mas deixa-me contar, custa-me, mas deixa-me contar-te que só assim enxugo aquelas lágrimas. Hoje estou de cama. A temperatura mudou e, como sempre, apanho com isto no corpo. Sinto a mudança bem aqui no fundo. Há anos que no meu corpo a mudança de temperatura é anunciada por meio de dores.

Estou febril, dói-me o corpo todo, mas deixa-me contar-te.

Muito mais que minutos de silêncio precisamos de acções. Não digo isto porque quero, mas porque a temperatura mudou e os alertas ressoam na minha carne. O meu corpo ardendo em febre e os gritos das dores da minha perna direita superam todas as sirenes do mundo. Isto sempre me faz retornar àquele dia. Nunca se esquece algo como aquilo. Desculpa-me, mas eu tenho de te contar.

A campainha ecoa na escola. Que se dissipem as dúvidas para quem ainda bailava nesse pêndulo, é mesmo hora do recreio. O pátio da escola ganha cor e vida com as centenas de alunos que saem das salas. Frequentam todos a sexta e a sétima classes, a média da idade deles é de doze anos. O sol já estava quase no lado de lá e depois daquele intervalo viria a última aula do dia. As centenas de vozes se aliavam aos sons da natureza e executavam a ópera típica do recreio de uma escola do ensino primário.

As crianças pulam, gritam, vão trocando chalaças e riem entre sim. Todas brincam. O intervalo vai quase ao fim e uma delas corre (não me pergunta o motivo). Traz no corpo calças azuis escuras, um camisa azul do céu e sapatos pretos. A corrida não vai até muito longe, é interrompida por um empurrão e o rapaz cai numa cova que se encontra ali pertinho. Nunca se soube quem o empurrou, nenhuma criança se denunciaria ao se dar conta da gravidade do problema gerado.  

A dor que senti naquela cova continua aqui comigo e as lágrimas que despontaram destes meus olhinhos desde o momento que não consegui mexer a perna direita até o dia seguinte ainda inundam aquele buraco.

Deixa-me contar-te, deixa.

Não tardou e aos poucos aquele lugar ficou cheio de crianças com aquele uniforme azul que nos obrigavam a usar. Os meus colegas foram comunicar aos meus professores o que tinha sucedido. Precisei de ajuda para sair daquela cova. Os meus professores apareceram no lugar onde tudo tinha acontecido. Todos não paravam de fazer perguntas como «onde dói, Miguel? Como te sentes, Miguel?». Aquelas lágrimas onduladas que jorravam dos meus olhos eram as únicas respostas que eu conseguia formular.

A minha escola, como a de quase todos os moçambicanos, não tinha uma enfermaria para primeiros socorros e nenhum dos meus professores tinha carro. Não havia como me levarem ao hospital. Acabou decidindo-se que era melhor me levarem para minha casa. Coube aos meus colegas mais velhos e com estatura um pouco mais robusta me carregarem até lá. As lágrimas em catadupa inundavam as ruas, nasciam rios suspensos na minha dor. Naquele dia não houve mais aula e uma multidão de colegas me acompanhou até a casa. 

Isto nunca passa. Estou febril, mas deixa-me contar-te.

A minha mãe não queria acreditar no que tinha acontecido. Ainda lembro do teu ar preocupado, mamã. Lembro de tudo. Felizmente naquele dia meu pai estava em casa e tinha trazido com ele o carro do serviço no qual me transportou até ao Hospital Central de Maputo, onde um hora depois eu estava deitado numa maca com a perna direita toda engessada.

Sempre que a temperatura muda, a minha perna dói e a memória despeja-me tudo de novo. Deram-me cabo da perna. Isto não se apaga. Deram-me cabo da perna e me pergunto, mas e o que lembrarão os violentados desta campanha eleitoral? Não me venham com merdas. Façam quantos minutos de silêncio quiserem. Isto nunca passa. Hoje estou de cama. Amanhã é Outono.  Choveu em Lisboa ontem.

 

 

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