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Mundial de Futebol no Grupo Dinamizador

O primeiro Mundial de Futebol a que assisti, pela televisão, foi o de Espanha em 1982. Tinha quinze anos e era assíduo frequentador do Grupo Dinamizador, ali entre as avenidas Ahmed Sekou Touré e Filipe Samuel Magaia, nos dias dos jogos. Ganhou-o a Itália de Paolo Rossi, o melhor goleador com 6 golos e melhor jogador daquela copa. Diz a lenda que este estripador italiano (que o diga o Brasil) saiu da cadeia para levar a squadra azzurra aos ombros. Não sei se isto é verdade ou não. Mas, como aprendi há muitos anos, numa vetusta película de John Ford, um daqueles westerns inolvidáveis – O Homem que Matou Liberty Valence -, entre a lenda e a verdade, quando a verdade emerge, o melhor é manter a lenda. Mantenho, por conseguinte, a lenda.

A Argentina chegara a Espanha para defender o título de campeã do Mundo, mas soçobrou. Contudo, foi um jogador argentino, de seu nome Mario Kempes, que me haveria de empolgar. Ponho de parte os meus indeclináveis brasileiros, entre eles o Dr. Sócrates, que era mesmo médico: Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira. Não houve outro com semelhante garbo. Nem o caçula Raí. Mas lá iremos ao Brasil e aos desgostos que me tem dado. Falava de Kempes. Tornou-se célebre por comandar a Argentina na conquista do Mundial de 1978 em casa. Era um miúdo de 23 anos. Não brilhara em 1974, o seu primeiro Mundial. Haveria de fazê-lo em Espanha. Era o número 10, o predecessor de Diego Armando.  

O Brasil deu samba mas não teve glória. O escrete canarinho: Waldir, Leandro, Oscar, Luizinho, Toninho Cerezzo, Júnior, Paulo Isodoro, Sócrates, Serginho Chulapa, Zico, Éder, Falcão, entre outros. Curiosamente, da Alemanha, a vice-campeã, lembro-me de Karl-Heinz Rummenigge. Conhecia o mítico Franz Beckenbauer. Ainda vi remotamente um filme com ele a jogar. A França tinha Michel Platini, Jean Tigana e Manuel Amoros, que foi o melhor jogador jovem do torneio. A arqui-inimiga Argentina tinha, para além de Mario Kempes, Daniel Passarella, Osvaldo Ardiles ou o promissor Diego Armando. Os italianos campeões: Dino Zoff, Marco Tardelli, Claudio Gentile, Antonio Cabrini e aquele que desfez o Brasil com três golos: Paolo Rossi.

Eu assistia aos jogos numa caixinha pequeníssima, presa a uma gaiola no canto superior esquerdo da sala do Grupo Dinamizador do meu bairro, o Bairro Central. As cadeiras brancas de plástico não ofereciam nenhum conforto. Mas éramos tão magros que não as partíamos a cada vez que exultávamos. Naquela época julgo que pouquíssimos moçambicanos tinham televisão em casa. O Mundial e o Europeu eram vistos por alguns na Rádio Marconi, num prédio da baixa.

Vi depois o Mundial do México, em 1986, as coisas tinham mudado. Muitas casas tinham televisão. Ainda com antena portátil, que era necessário direccionar para obter o sinal que chegava, quase sempre, com pingos, depois de um exercício de paciência e com o concurso de todos a dizer qual era a melhor posição. Este foi o Mundial do Maradona. Nos quartos-de-final, no jogo contra a Inglaterra, no Estádio Azteca, contra uma equipa inglesa revoltada, o árbitro Ali Bin Nasser validou “a mão de Deus” de Diego. Maradona iria repetir a trapaça – para ser generoso no substantivo -, no Mundial seguinte, em Itália, 1990, usando a sua mão, não para marcar um golo, mas para impedi-lo à Rússia. O árbitro não viu nada.

José Craveirinha: “Será boato meus beiços a babarem os verdejantes relvados mexicanos/ enquanto o povo gasta os dentes em subjectivas bolas de farinha?/ Ou no México são reais as roliças nádegas de um Diego Maradona/ o presunto mais caro do mais recente futebolismo internacional?// Ligo o televisor e oiço um fulano a perder o fôlego no delírio do gôôô…lo!/ tudo via satélite no interior da minha casa sem eu lhe abrir a porta/ com medo dos fleumáticos anglo-saxónicos chefes de zaragatas/ e por causa das guapas moças de “shorts” a abanarem as mamas/ no centro do ecrã e sem que o árbitro assinale a falta.”

Quando este poema “«Mundial» de Futebol no México (em directo)”, do José Craveirinha, surgiu, foi um murro no estômago. Creio que o li em 1987 apenas, quando, na companhia da Fátima Mendonça, frequentava poetas para arregimentá-los para a causa da antologia que então preparávamos. Foi numa dessas visitas à casa do Craveirinha, ali na Mafalala, que este poema nos deslumbrou. Havia um célebre apresentador da TVE reincidente a dar caneladas na língua portuguesa. O Zé foi implacável com ele: “Quem autorizou o hirsuto “stopper” da semântica em riste/ a agredir impunemente o triste e indefeso Luís de Camões?” Lembro-me de comentar estes versos com a Fátima. Neste poema estava o melhor do Craveirinha, estava o poeta de finíssima estirpe.

José Craveirinha: “Aqui onde as crianças adeptas do Futebol Clube Tuberculose/ roem mandiocas fatais com a tal força anímica/ porquê a prioritária urgência em admirar/ um lírico Sócrates a falhar platonicamente/ um golo mais do que certo?

Como disse, li o poema depois do Mundial. Este poema foi um importante alerta, um despertar, um libelo contra a alienação. Começava, na mesma altura, o meu meu percurso como publicista e o acirrar de uma consciência crítica.  Mas antes  – recordo-me – sofri verdadeiramente com o jogo Brasil-França. Terminou a 1 a 1. Foi nos quartos-de-final. Primeiro foi o Zico, que viu, ainda durante o tempo de jogo, um penalti defendido por Bats e, depois, na sorte nas grandes penalidades, Júlio César e sobretudo Sócrates falharam. O meu ídolo da fita na cabeça.  Seus companheiros: Carlos, Júlio César, Edinho, Elzo, Branco, Júnior, Careca, Alemão, Edson e Casagrande. A França passou, chegaria ao terceiro lugar. Os franceses tinham Tigana e Platini e ainda Amoros. Karl-Heinz Rummenigge, Lothar Mattaus  ou Rudi Voller (Alemanha), equipa vice-campeã. Os argentinos, onde pontificavam Jorge Valdano ou Jorge Burruchaga, para além do astro Diego, foram campeões.

José Craveirinha: “Mas porquê esta fortuita indigestão de futebóis de dólares/ saboreados nos olhos via satélite e nas enfermarias/ o drama das ampolas de penicilina que não temos? // Quem autorizou o hirsuto “stopper” da semântica em riste/ a agredir impunemente o triste e indefeso Luís de Camões?// Com as hábeis botas do sr. Diego Maradona a chutar-nos/ quantos sapatos calçariam os pés dos Meninos/ infutebolizados pelo malfazejo júbilo/ das hienas soltas nas matas?

Não me recordo de acompanhar depois um Mundial da mesma maneira como  fiz entre 1982 e 86. Creio que o meu entusiasmo esmoreceu com o Mundial de 90. Recordo-me da Laranja Mecânica com Frank Rijkaard, Marco Van Basten ou Ruud Gullit. Aquela equipa holandesa era impressionante. Lembro-me da Alemanhã campeã com Brehme, Mattahaus, Voller ou Klinsmann. Ou ainda do Diego Maradona. Recordo-me do Roberto Baggio que fez um grande mundial. Em 1993 seria eleito o melhor jogador do mundo. Ainda vi, displicentemente, o Mundial de 1994 e o vi a falhar, na final, o penalti que daria o título ao Brasil. Mas já não me empolgava tanto, nem o Brasil, nem o Mundial. Daí para a frente, lembro-me muito pouco. Lembro de alguns nomes: Ronaldo, Bebeto, Rivaldo, Cafu, Roberto Carlos, ou Taffarel. Ronaldinho Gaúcho brilharia em 2002, mas em 2006 não esteve à altura. Hoje mal conheço a seleção brasileira. O Neymar não me convence. Ainda gosto de ver Marcelo. Pouco mais.  

José Craveirinha: “Nesta jogada de comida intelevisível/ 60 xambocadas indemocráticas de massas em directo/ mais outras 60 xambocadas em diferido no adiposo/ rabiosque fútil do idolatrado “desporto-rei”/ com dólares “cash” pagos em Maputo/ deliciando o anónimo dono do satélite.”

O futebol tornou-se-me indigesto. O excesso de futebol. O ópio do povo.  Algures no final da adolescência e na entrada da idade adulta percebi que o futebol, a telenovela brasileira e a própria televisão eram lenitivos contra a consciência social e crítica e que, em sociedades como as nossas, com défice de educação e cultura, poderia ter efeitos perversos. É claro que este tipo de avatares ajudam um certo tipo de poderes. Quer isto dizer que não vejo de todo futebol? Não vejo televisão ou não assisto a telenovelas? Vejo o mínimo. Falo de futebol com os meus filhos, mas falo-lhes para além do próprio jogo e dos valores e dos grandes gestos ou das misérias do futebol. Não diabolizo. Não frequento telenovelas – fui um adicto do Bem Amado e do Roque Santeiro -, mas já me deixei disso. A minha droga são os livros. A música. A pintura. A cultura.

A televisão tornou-se um lugar irrespirável: ou política ou futebol. Não há mais nada. Há estações de um país que nos é próximo que ficam semanas com um presidente pária de um clube. Outras tantas cultivam o reino da estupidez. Revoltei-me contra isso aos vinte e poucos anos: as televisões foram invadidas pelo futebolismo. E o desporto? A importância do desporto? O desporto pode ser um instrumento poderoso de inclusão, mas também pode ser de exclusão e de alienação. Vejo com cautela, para não me viciar, um ou outro jogo: Champions, finais de um Mundial, pouco mais. Quando foi do Mundial da África do Sul andei com uma turba amiga a divertir-me por Joanesburgo, Durban e Cidade do Cabo. Não me lembro do que vi em campo, mas dos momentos de cumplicidade e da alegria de levar o meu filho Irati a ver um Mundial. Também me recordo das prodigiosas mamas da Larissa Riquelme, fervorosa adepta do Paraguai, que trazia sempre um voluptuoso telemóvel entre os seus seios.

José Craveirinha terminava aquele seu belíssimo poema dizendo: “Zezé (Um ex-futebolista arrependido)”. Isto por conta dos paradoxais dólares gastos a alugar o sinal de satélite num país com muitas urgências. Muitas vezes me interrogo: quantas bibliotecas se fariam com aquilo que se gasta na incongruência do futebol? Eu não sou contra o futebol, até o acho um espectáculo extraordinário. Só contra um país alienado e pouco educado, um país pouco lido e preparado, um país ululante e nada crítico da realidade circundante. Bem sei que isso não é politicamente correcto. Preferia que se investisse no desporto, incluindo o futebol, nas camadas infanto-juvenis, e não se desperdiçasse dinheiro em clubes insanos, alguns dos quais acreditam que o curandeiro os pode ajudar a ganhar campeonatos. Daí esta minha quezília com o imperialismo do futebol. Porque ele parece ser uma única escolha. Não sou a favor da censura, sou a favor da sociedade aberta. Mas isso implica que eduquemos mais, leiamos mais, cultivemos mais. Quero um país que estime e se reveja na sua cultura, nos seus autores, nos seus escritores, nos seus músicos, nos seus artistas e criadores. Um país que saiba matemática e saiba discernir, um país que consiga destrinçar o essencial do “desimportante.” Um país mais educado e mais exigente. Que tenha no futebol ou lá o que for os seus momentos de lazer e de fruição, mas depois da saúde, educação e cultura.  
Não vejo o Mundial por isso? Vejo-o quando me dá na gana. Não tenho nenhum excessivo entusiasmo e nem me interessa muito. Outro dia um amigo disse que tinha uma aplicação no telemóvel com os jogos e queria passar-ma. Para quê? Não percebeu o meu desinteresse. Não sou nenhum fundamentalista anti-futebol. Nem extremista anti-televisão. Nem anti esses novos instrumentos de comunicação que tanto ocupam boa gente que nem sequer vai perder alguns minutos a ler este meu longo arrazoado a favor da cultura. Os meus momentos de fruição acontecem a ler ou a ouvir música.  Ou entre amigos, dos poucos que cultivo. Por fim, sou capaz de asseverar, a despeito, de que não tenho nada contra o menino que fui aos 15 anos e que comparecia, pontual e religiosamente, no Grupo Dinamizador, ali do Bairro Central, para se deixar exultar com as actuações inolvidáveis de Mario Kempes.

 

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