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A professora Sónia

O menino André tem sede. Sede de voltar à escola. Sede de aprender. Sede de ouvir a incisiva voz da professora Sónia. Sede de voltar a abraçar a longa caminhada em busca da luz que iluminará o seu poço de sonhos. 

Passou dias e noites empoleirado numa árvore na infinita espera pelo tempo. Passou fome. Passou frio. Esperou que o vento ciclónico abrandasse. Esperou que as nuvens parassem de gotejar. Esperou que a água assassina voltasse ao seu leito e que devolvesse a luz e alegria à aldeia. Esperou pela glória de voltar à sala de aulas, para enfrentar o olhar, sempre inquisitivo, da professora Sónia. Quer alimentar a sua sede de aprender.

O menino André foi arrancado do cimo de uma árvore como se de fruta se tratasse. Foi escoado numa barcaça de borracha pilotada por um homem branco com vestes militares e que falava uma língua estranha. Tudo muito rápido. Ao ritmo do piscar de um olho. Seus pais ficaram para trás. Seus amigos ficaram para trás. Sua aldeia ficou para trás. Sua escola ficou para trás. A sede de voltar a beber da aritmética cravada nas feições da professora Sónia é que não ficou. Continuou presa aos seus anseios.

O menino André foi parar a um enorme aldeamento. Cheio de gente de todas as idades. As tendas brancas diferentes das palhotas da sua aldeia. A quantidade de pessoas por cada tenda muito maior que na palhota que partilhava com os pais e irmãos. O espaço para brincar diminuto em relação às planícies sem fim da sua aldeia. Os panelões de cozinha muito diferentes da minúscula panela de barro usada pela mãe. A bicha e os horários das refeições muito diferentes da rotina deixada na aldeia. O que sempre foi igual é a sede. A sede de voltar a ser o primeiro aluno da turma a responder acertadamente, e de braço bem levantado, às sempre difíceis perguntas da professora Sónia.

Semanas depois, o rio da aldeia voltou ao leito. O menino não regressou na barcaça. Tal como o camião em que viajou, a mente de André voltou cheia. Cheia de esperança. Cheia de vontade de respirar o amor dos pais, abraçar a aldeia e tactear o ar da sua escola.

Por cada solavanco, o camião esculpiu um traço de alegria na face do menino André. Uma voz do amanhã afagou a sua alma e inculcou na sua minúscula cabeça a crença de que o nevoeiro iria se dissipar do horizonte e que a sua escola seria de novo o sol da sua vida.  

Na aldeia, o menino André reencontrou os pais e os irmãos. Estavam perdidos algures, num outro aldeamento de tendas brancas. Hoje, os sorrisos habitam os corações de todos. Os abraços e choros exaltam a força divina que, contra a estúpida vontade do ciclone, conseguiu reunir a família.

Para celebrar, não se mata galinha porque a água levou todas, mas dança-se e canta-se. As vozes de alegria pairam pelos ares da aldeia. Nesta e naquela casa festeja-se a reunificação das famílias. Em algumas a esperança reside nos camiões que ainda estão por chegar.

O menino André quer reunificar-se não só com os seus de sangue, mas também com a escola e com a professora Sónia. Pela manhã prepara-se. Não tem uniforme, porque a água levou. Não tem cadernos, porque o vento ciclónico rasgou. Mas tem a vontade de ir à escola. Quer abraçar o seu sonho. A sua sede. Quer abrir os caminhos do amanhã.

É o único aluno que se faz presente numa escola totalmente fustigada pela tempestade. Os tectos evaporaram-se todos. A maioria das paredes desabou. A água voltou ao rio, mas deixou, a espaços, pequenas poças que pontificam aqui e acolá, sendo o seu epicentro precisamente no que sobra da sala de aulas do menino André. 

As carteiras já não existem, mas o corpo do menino é atravessado por uma corrente de emoção quando ele descobre que o quadro preto resistiu e continua intacto. Sorri. Puxa por um pedaço de bloco queimado que se estilhaçou na queda de uma parede e senta-se. Para não molhar os pés, empoleira-os num outro pequeno bloco e espera.

O menino André fecha os olhos e mentalmente ensaia as justificações a dar à professora Sónia: pelos vários dias de ausência das aulas; por não ter livro; por não ter caderno; e por apenas trazer um pedaço de lápis de carvão e uma amarrotada folha de papel nas mãos. Repete várias vezes, até se convencer de ter achado o antídoto certo para que a professora Sónia não se zangue.

Agora aguarda pelo reencontro com o sonho. Espera pela chegada de mais colegas. Pelo toque do sino. Pela chegada da professora. Quer satisfazer a sua sede! O que ele não sabe é que a professora Sónia jamais chegará. O ciclone transformou-a num anjo. 

 

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