O País – A verdade como notícia

ARTIGOS DE OPINIÃO

Como consequência das mazelas contraídas durante “a batalha do Beira-Mar”, o Garrincha permaneceu em casa a convalescer durante uma semana. Embora homem de largo arcaboiço e de força taurina, os jogadores do Gazense e seus apoiantes  inflingiram-lhe uma sova de que guardará recordações pelas temporadas mais próximas. Obviamente que naquele evento houve muitas vítimas, com registo de traumatismos em ambas as facções, uns mais graves do que outros, segundo testemunhos dos enfermeiros do Hospital da Missão de S. José.

A época era de produção e de consumo de canhu e de sumo de cajú, bebidas redentoras dos aflitos e pretexto principal para encontros de confraternização entre amigos e familiares. Aquelas chegavam à cidade provenientes de várias localidades, situadas nos arredores da cidade, como Mahlanguene, Minchafutene, Boquisso, Mahotas e doutras com semelhante tradição, transportadas pelas carreiras de “Teresa Lino & Filhos” e da “Companhia de Transportes de Moçambique”. Alguns residentes aventuravam-se em viagens aos locais de produção para, pessoalmente, carregarem e transportarem as encomendas para venda nos quintais das suas residências. Outros desafiavam a sanha das autoridades e mercavam-nas nas vizinhanças dos bazares. Assim sucedia no Xipamanine, no Diamantino, no Adelino, no Vulcano. Era sempre com ansiedade que se aguardava pelos fornecimentos. Muitos dirigiam-se para esses locais a fim de adquirirem a sua quota-parte do mesmo.

O Garrinha levou o igualmente combalido Valgi ao bazar do Xipamanine para a compra de cinco litros de cajú. A manhã daquele sábado ia meio quando o autocarro da “Teresa Lino” acostou ao lado do mercado. A chegada matutina da carreira foi saudada com alegria e ululações. Trazia no tejadilho embalagens de garrafões de vinte litros camufladas em capulanas e sacos de serapilheira. Alguns cabritos, frangos e coelhos encarcerados em gaiolas formavam o resto das mercadorias que atulhavam o tejadilho do veículo. Era a promessa de um fim-de-semana festivo. Doutro modo nem poderia ser. Com a quadra festiva mesmo à porta a ocasião propiciava-se para umas entradas  em grande estilo.

Durante o descarregamento da consignação dos garrafões registou-se a habitual  barafunda. Cada cliente  queria todo o descarregamento para si.

“ Esta encomenda é minha”, esbracejava uma grossista de nome tia Xi-Guindatxe que tinha em casa  fregueses à espera, a empurrar os outros clientes.

“ Mentira! Esses três garrafões são meus; fiz a encomenda na semana passada. Pergunta aquela mamã ali”, dizia uma outra mulher, que respondia pelo nome de tia Xi-Kwakwati, dona de uns braços cheios duma  gordura empapuçada, pendular, e uma barriga dilatada que não deixava dúvidas sobre os níveis da sua gula digestiva. Nisso, a Xi-Kwakkwate emparceirava com outras gladiadoras que respondiam pelos nomes de Halima e Mingindatche, também presentes no ajuntamento.

“ Eh, tu mamã, cala masé a boca. Se lutam ninguém não vai apanhar nada”, dizia o ajudante-carregador do autocarro que também era um dos proprietários de parte da mercadoria, a apontar um dedo ameaçador a uma terceira cliente de nome Halima, interveniente em muitas bulhas que se registavam naquele tipo de concentrações.

Como a procura fosse enorme, os fornecedores imediatamente subiram os preços.

“ Cada garrafão de vinte litros custa sessenta escudos. É pegar ou largar. Clientes não faltam”, diziam aqueles com os olhos a luzir de cobiça.

Um burburinho de vozes de protesto subiu na atmofera da aglomeração.

Dos garrafões o sumo de cajú espumava e derramava-se ao longo dos gargalos. Era a prova de frescura e do excelente paladar que ninguém, sob nenhum pretexto, tinha intenção de perder.

Embora abstémio, o Valgi não resistiu em concordar com a sugestão do “Garrincha” em adquirir dois garrafões para consumo de ambos e seus amigos, vizinhos da Eva. Seria esse o seu baptismo de consumo dalguma bebida alcoólica, porque até aí contentava-se com o maheu e a Tombazana.

“ Ó Valgi, não sei qual é o teu problema. O cajú só se bebe uma vez por ano. Aliás, vais consumi-lo ainda doce. Faz de conta que é refresco”, assim o “Garrincha” aliciava o amigo a provar aquele sumo sacro-santo, uma dádiva dos deuses, tão benevolentes que lhes davam à boca aquele líquido para sua fruição. Mesmo assim o Valgi desconfiou. Não ia dar-se o caso de o fermentado provocar-lhe os efeitos semelhantes aos do canhu, dos quais já ouvira falar.

Todos foram servidos a contento. Cada qual carregou à cabeça ou pela mão a sua encomenda. Mas eis que, da varanda duma loja destaca-se um pequeno contingente de agentes da polícia municipal e de sipaios à paisana.

“ Todos os que carregam garrafões de cajú parem onde estão!”, vociferou o caudilhodo grupo que era, nem mais nem menos, o já historicamente odiado pelas populações, João Mulato!

Tudo à volta estremeceu. Ia suceder, e sucedeu o habitual.

Numa voz, os agentes tomaram de assalto as encomendas de garrafões de cajú à vista. Sobre elas desferiram golpes com mocas, pontapés e cassetêtes, com uma ferocidade de soldados em combate. Estilhaços de vidro voavam para todos os cantos. O líquido cremoso e fresco do sumo de cajú derramava-se no chão e o solo seco tragava-o com rapidez, sem apelo nem agravo, sem nenhuma possibilidade de salvação.

Os que presenciaram o espectáculo da destruição mal conseguiam conter a fúria, o  profundo desapontamento por tão maldosa acção das autoridades que assim privavam muita gente de uma oportunidade para celebrar uma época de confraternização com algum divertimento e dignidade. Aquele fora, como muitos outros o foram, o esvaziamento de um esforço colectivo, o furto de momentos de convivência e descontração em nome da saúde pública. Era mais uma manifestação da prepotência da polícia que não entendia quão importante era para muita gente a prestação de um tributo de agradecimento aos deuses e à natureza pela dádiva do fruto e do sumo que lhes era concedido.

Se lhos tivessem contado, o Valgi não poderia crer que aqueles actos tão bárbaros quão desumanos fossem reais.

“ Porque razão fazem isto?”, perguntou ao atónito “Garrincha”.

“Dizem que é por causa da higiene. Que o cajú está contaminada por micróbios e  provoca muitas diarreias na população”, foi a resposta que aquele achou, e fê-lo com tremuras na voz. Conseguiram escapulir-se da vista dos agentes e cada um segurava  o seu garrafão com discrição e notáveis cuidados.

Durante a retirada ainda conseguiram assistir ao espectáculo do “Sebastião”, um doente mental frequentador da zona, agachado sobre uma mancha de líquido derramado, a lamber o chão com gosto e gula. E gargalhava alto, divertido por saciar aquela sede de xikadju que a tantos esmagava.

 

Portugal exerce neste semestre, pela quarta vez desde a sua adesão à Comunidade Económica Europeia, em 1986, a Presidência do Conselho da União Europeia. Trata-se de uma responsabilidade que sempre assumimos com convicção, com espírito de compromisso e com forte dedicação às causas da Europa.

No contexto desta Presidência, elegemos, uma vez mais, o aprofundamento da parceria entre a Europa e África – uma parceria entre iguais – como prioridade de política externa, num momento a todos os níveis importante, incluindo nas vertentes económica, de paz e segurança, digitalização e transição verde.

Tínhamos, à partida, como objetivo crucial, a renovação do quadro de parceria entre a UE e os países de África, das Caraíbas e do Pacífico (ACP), atendendo a que o Acordo de Cotonu – essa pedra angular de parceria entre 79 países de três continentes distintos – havia terminado a sua vigência. Noto, aliás, com singular apreço, que foi também durante uma outra Presidência Portuguesa da UE que, em 2000, se assinou o Acordo de Cotonu, abrindo então campo a duas décadas de esforço conjugado em prol do desenvolvimento económico, cultural e social dos países envolvidos.

Foi, pois, com grande satisfação que rubricámos, no passado dia 15 de abril, o Acordo “pós-Cotonu” com os países da Organização de Estados de África, Caraíbas e Pacífico (OEACP), concluindo com sucesso dois anos de laboriosas negociações. Ao abrigo deste novo Acordo, a UE continuará a aprofundar a cooperação com estas três importantes regiões, consolidando uma agenda cada vez mais sólida no plano económico, político e comercial.

Realço a cooperação no plano económico e comercial porque se tornou bem evidente, ao longo dos últimos anos, que, para ser bem-sucedido, o crescimento sustentável reclama cada vez mais a ativa participação do setor privado: é ele que cria empregos, é ele que produz riqueza e, no fim da linha, é ele o verdadeiro motor da sustentabilidade do crescimento económico, não só no espaço e no tempo, mas também nas dimensões social e ambiental.

Tal correlação foi, aliás, o mote do Fórum de Alto Nível UE-África sobre Investimento Verde, que organizámos em Lisboa, em parceria com o Banco Europeu de Investimento (BEI), no passado dia 23 de abril, tendo como pano de fundo a crescente interdependência entre as dimensões económica e ecológica do desenvolvimento e o efeito potenciador do digital na transição verde, clarificando, nesse contexto, o papel do setor privado bem como o contributo das instituições financeiras internacionais.

É também a nossa esperança que este evento contribua para a consolidação de uma agenda substantiva para a próxima Cimeira UE-UA, a qual confluirá com outros desenvolvimentos de grande impacto, como a referida implementação do acordo Pós-Cotonu e a operacionalização Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA) – esta última em vigor desde o passado dia 1 de janeiro.

Se no plano europeu as prioridades desta Presidência Portuguesa (PPUE) são a promoção da recuperação económica e a transição verde e digital, a par da concretização do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, no plano externo tais preocupações refletem-se numa agenda orientada para o desenvolvimento social sustentável, para uma agenda climática comum e para o reforço da parceria económica com África.

Com olhos postos no futuro, Portugal congratula-se, naturalmente, com a aprovação, este semestre, do novo Instrumento de Vizinhança, Desenvolvimento e Cooperação Internacional (IVDCI) da União Europeia – um poderoso mecanismo de apoio ao crescimento das economias africanas, munido da maior dotação financeira de sempre, cerca de 80 mil milhões de euros para o horizonte temporal de 2021-2027, dos quais quase 30 mil milhões destinados à África Subsariana.

Uma fatia importante deste envelope financeiro destinar-se-á a apoiar os setores da saúde e da educação, enquanto que 30% terão de ser alocados a projetos de mitigação e adaptação climática – ambos, como se sabe, absolutamente prioritários para um país como Moçambique, vulnerável às alterações climáticas e a catástrofes naturais.

O IVDCI é, simultaneamente, inovador na forma como associa o setor privado, através de instrumentos de apoio que permitirão a criação de emprego local, a industrialização, o comércio e a internacionalização das economias dos países parceiros, gerando e multiplicando impactos positivos.

Estes são severos desafios que se colocam à capacidade de resistência das nossas economias, no rescaldo do terrível impacto da pandemia Covid-19, tão destrutiva de vidas e tão perturbadora do nosso dia-a-dia. O combate coletivo que se impõe, tanto na aceleração da vacinação como na recuperação económica dos países africanos, é, assim, de importância crucial para a UE e têm constituído preocupação constante da Presidência Portuguesa.

Muito já se fez. Mas, juntos, muito mais continuaremos a fazer nesta Presidência Portuguesa, na certeza de que a relação de África com a UE está e sempre estará no centro das prioridades de Portugal, constante, leal e convicto Estado-membro.

António Costa Moura

Embaixador de Portugal em Moçambique

Por: Gerson Monjane

 

É importante, antes de mais, expressar meu sentimento de apreço pelo espaço partilhado com grandes pensadores da nossa literatura, do qual me sinto intruso, em partilhar ínfimas reflexões sobre o fenómeno literário.

A ocasião de consagração do poeta Armando Artur, a concessão do Prémio de Literatura José Craveirinha a esta figura, na quarta-feira passada, coincidiu com o instante em que me encontrava a folhear os volumes de arquivo do Jornal Savana, correspondentes ao ano dois mil e três (2003). Essa coincidência consubstancia agora uma actualização de factos que interligam um debate dessa época à recente premiação.

No processo de consulta em que me encontrava, deparei-me com um texto, onde Luís Nhachote, editor da página cultural, no último semanário daquele ano, afirma que a partida (a morte) de José Craveirinha e o Debate da morte da literatura foram eventos que marcaram o ano de 2003. Factos que na minha opinião, dezoito (18) anos depois, a cada premiação, confirmam a vida da literatura Moçambicana, assim como, a homenagem ao Craveirinha, o imortaliza e responsabiliza os escritores laureados a não defraudar o signo de qualidade que marcara o exercício da escrita craveiriniana, conhecida principalmente, pelos infalíveis vaticínios.

É sabido por literatas e não só, que a concessão de prémios literários é uma das práticas que asseguram o fenómeno literário a sua feição de estabilidade e de notoriedade pública, portanto, os prémios literários têm um objectivo legitimador. Sendo Moçambique um país onde a obra de um escritor é quase sempre valorizada em post mortem, haverá agora muita ou pouca certeza sobre a obra de Armando Artur? Disso até podem teimar algumas dúvidas, mas com certeza, a qualidade literária, essa é legitimada pela concessão. Passo assim, a comentar sobre o Júri para sustentar a minha posição, segundo a qual, a obra de Armando Artur, sem dúvida, é validada, sem com isso significar que não fosse válida, mas que agora passa a ganhar outra e maior notoriedade pública.

O Júri

Sobre o júri, muito pode se expressar, todavia, no júri composto por Manuel Tomé, Adelino Timóteo, José Castiano, Ungulani Ba Ka Khosa e Teresa Manjate, não encontro objecções, uma vez que, todos respeitam a teoria dos jurados, isto é, relacionam uma autoridade que se deseja aceite pela comunidade literária, a diversidade das personalidades que constituem o jurado, estudiosos da literatura, criadores e/ ou produtores da própria Arte literária, filósofos, que unânimes julgaram e decidiram tendo em conta critérios, facto que robustece um dos instrumentos de institucionalização da literatura, o júri, que por conseguinte, valida a obra do consagrado. Ideia realçada por Vergílio Ferreira, citado por Reis (1999), ao declarar o seguinte:

Um prémio, para lá de várias outras compensações, confere ao premiado um pouco de certeza sobre o que realizou […] se um júri tem qualidade, uma consagração significa alguma coisa que importa à confiança em nós mesmos.

É essa postura acima descrita, que o laureado pelo maior prémio literário no país, o Prémio de Literatura José Craveirinha, Armando Artur deve assumir, reformulando a sua expressão «Nenhum prémio faz um grande ou pequeno escritor» para «o maior prémio de literatura Moçambicana, Prémio de Literatura José Craveirinha fez-me grande escritor».

As compensações

É lógico que uma bolacha não tem o mesmo valor que um carro, uma casa, uma obra literária, entre outros bens. Será verdade que montar-se-ia uma plateia, em tempos de pandemia, de dirigentes, gestores e académicos para laurear um imerecido, com um cheque de vinte e cinco mil dólares? Acredito que não, e que a recompensa no caso da obra de Armando Artur é proporcional ao valor do mesmo, até porque este, é um dos mais complexos processos «Fazer um livro» na lista dos feitos que a sociedade julga que tornam um homem importante, ao conseguir os seguintes três feitos cumulativamente: fazer um filho, plantar uma árvore e escrever um livro, acrescento, um conjunto de livros representativos.

Atitudes de despeito ao laureado no universo literário não faltarão, é preciso assumir que se trata do melhor, por outras palavras, do escolhido para representar na literatura Moçambicana à luz dos preceitos do prémio.

Portanto, o júri (com base em critérios, credibilidade em matérias literárias e não só, confirmado pelo repertório de conhecimento, experiência comprovada) e as recompensas constituem elementos importantes para a continuidade dos prémios literários, consequentemente, garantir o carácter institucional da literatura moçambicana, pois, por tal razão, estendo a minha imensa estima em jeito de realce de papéis de alguns envolvidos, (in) directamente na consagração de Armando Artur, isto é, nessa coisa vivificar a literatura Moçambicana.

O papel do júri, em repetição; à prestigiada instituição: Hidroeléctrica de Cahora Bassa (HCB) pelo continuado patrocínio, que significa acreditamos na nossa cultura e por isso a valorizamos. À Associação dos Escritores Moçambicanos, uma casa bastante frequentada por novos literatos, não pode haver dúvidas desta estar a conseguir a assumir o papel de agremiação-mãe das associações artísticas.

Culturais nacionais, pois para além de congregar escritores, aglutina fazedores doutras modalidades artísticas, que a par dos poetas, acolhe músicos, actores, artistas plásticos e outros. A animação cultural havida na cerimónia de divulgação do vencedor do Prémio de Literatura José Craveirinha, evidencia esse facto, começando pela valorização dos nossos escultores, pois o troféu do galardão é uma escultura em formato de livro, em pau-preto, diante de uma abertura do evento a cargo da Yolanda Chicane, uma voz interpretando músicas inspiradas nos poemas de autores moçambicanos e, quando se podia pensar que o ápice da animação tivesse sido atingido, a plateia foi brindada por um envolvente jogral, uma adaptação de Aurélio Furdela, na sua veia de dramaturgia a fundir textos de Fátima Mendonça, José Craveirinha, Calane da Silva, Luís Bernardo Honwana, Lília Momplé e Ungulani Ba Ka Khosa, com interpretação de Lucrécia Paco, Iracema de Sousa, Sangare Okapi, Eduardo Quive e Cheny Wa Guni, vestidos pela marca Quaqua, na sonoridade da nossa Timbila: uma distinta interdisciplinaridade das artes.

Um facto que não nos pode passar despercebido, é a valorização que a TVM e a RM deram ao evento, um evento cultural que mereceu uma transmissão em directo nesses dois canais, que só se pode enaltecer o grande préstimo à divulgação e valorização da nossa literatura.

À Ministra da Cultura e Turismo, Eldevina Materula, e todas aquelas entidades, entre Reitores e PCAS, merecem destaque, por salvaguardar a literatura, apresentando-se no maior galardão literário do país, que reconhece e consagra o conjunto de obras literárias, dos melhores criadores, o Prémio de Literatura José Craveirinha que, com apoio da nossa HCB, vivifica a literatura, ou seja, premiar é podar/manter viva a literatura Moçambicana.

 

A Eva tinha um vizinho de lado que era doido por futebol. Seu nome era Samuel Garrincha por causa de um ligeiro entortamento da perna esquerda, o que não lhe diminuía nem o gosto nem as habilidades para a prática daquela modalidade desportiva.

O Garrinha conheceu o Valgi em casa da Eva. Fizeram-se amigos e eis que num dia qualquer aquele atreveu-se a convidar o novo camarada para assistir a uma a partida de futebol a que ele próprio, o Garrincha, ia participar.

“Valgi, queres ir ao futebol comigo?”, perguntou.

“ Não sou lá muito dado a futebóis, mas prontos! Irei contigo se a Eva me deixar”, foi a resposta.

Claro que a Eva deixou, dava lastro ao amigo porque era outra forma de familiarizá-lo com os hábitos da comunidade.

“ Você, Garrincha, leva o Valgi, mas quero-o de volta, inteirinho”, recomendou a Eva.

Todos riram-se com a brincadeira.

O campo do Beira-Mar estava “superlotado”, se assim se pode dizer, porque primava pela ausência de bancadas. Os espectadores agitavam-se, nervosos, junto ao perímetro das quatro linhas do campo. O sol das duas horas da tarde abrasava. Chapéus multicores, ou mesmo as mãos em pala filtravam a luz que coloria o ambiente. Vendedores de amendoim torrado e tangerinas acotovelavam os assistentes e ofereciam os seus serviços.

Em contenda: o Clube Desportivo Gazense contra o Inhambanense Futebol Clube. Um derby do futebol ultramarino, uma espécie de Benfica-Sporting metropolitano. Era um tira-teimas eterno entre as duas agremiações. Diziam esses assimilados armados em políticos que estes dois grupos, mais do que por rivalidades desportivas, degladiavam-se por questões de “natureza étnica”. Mas esse era problema deles. O que o público queria era assistir a uma partida de futebol a valer. E essa só tendo em campo estes dois “inimigos”.

O Garrincha jogava na posição de médio direito pelo, claro, Inhambanense. Oriundo da Maxixe, nem por sonhos iria jogar por outra equipa que não fosse a da sua terra de origem. Da equipa do Inhambanense destacavam-se estelas como o defesa-central Carlos Guitungo (carpinteiro nas obras de construção civil); o Alfredo “Diploma” Di Stefano (jovem no aprendizado da arte no talhe de madeira); o Rafael Maluleque, o capitão da equipa (pedreiro de profissão) e detentor de um cadastro de três fracturas de tíbias inflingidas aos avançados adversários; o habilidoso avançado-centro Sebastião Rungo (pintor na construção civil) e o guarda-redes Julião Fai-Khokho regressado à equipa, da qual esteve afastado quase meia temporada em virtude duma comoção cerebral contraída numa colisão cabeça-com-cabeça com um jogador duma equipa adversária. Estas eram as pedras-chaves da equipa do Garrincha.

Por obrigação e por fidelidade ao convite, o Valgi deveria apoiar a equipa do Inhambanense. Esta envergava camisolas de cor amarelo-torrado com mangas em branco. Nas costas das mesmas figuravam algarismos que identificavam os jogadores. Cada qual escolhia o seu. E em virtude dessa liberalidade, uma vez registou-se o caso duma coincidência de números nas camisolas de dois jogadores em campo, o que foi uma dor de cabeça para o árbitro da partida. Cada qual vestia calções que variavam na cor e na qualidade de tecido. Uns preferiam o caqui, outros a ganga, outros ainda a cor preta ou branca com barras de cor oposta, conforme as preferências de cada um. Não poderia falar-se de uniformização no calçado. Aqui também a agremiação denunciava os seus fracassos financeiros. Uns calçavam botas convencionais, outros contentavam-se com sapatilhas, as mesmas que calçavam no dia-a-dia; os restantes, nem umas nem outras: jogavam descalços!

O Clube Gazense não ficava atrás dos rivais de Inhambane. Tinha o mesmo que os outros: carência de fundos para dar uma apresentação condigna aos seus representantes naquelas partidas tão populares como prestigiantes. Envergavam camisolas duma cor que poderia ser a fusão de um verde com castanho, muito desbotadas, com mangas amarelas. Do mesmo modo que os rivais, a cor e o corte dos calções dependia do livre arbítrio do seu proprietário, e aquelas variavam entre o caqui, a ganga, ou qualquer outro tecido.

Do elenco de jogadores figuravam, primeiro, o guarda-redes José Mavecanhane, reformado da actividade de bandido e servia como cozinheiro num restaurante da Polana; o Titos Xingove “o Gato”, canhoto exímio em fintas, sempre “à mama”, estafeta numa empresa de um conhecido advogado da cidade; o extremo direito Pedro Xicabeçane, com um cadastro pessoal de três crânios de adversários fracturados em lances de bola no ar; o defesa-central Augusto Mataque, natural de Chibuto e serviçal doméstico dum lisboeta. Apenas um parêntesis para tecer algumas considerações acerca desta personagem: o Mataque ficou com a alcunha de Mata-Aqui porque, conforme ele dizia e disso orgulhava-se ”se a bola passa, tu não passas; se tu passas, a bola não passa. Eu mata aqui mesmo!”, dizia todo impante de orgulho. Outros ases que se destacavam no plantel gazense eram o Domingo Mabulukwane, pasteleiro de profissão e que envergava uma camisola em cujas costas figurava um hieróglifo que dificilmente se poderia catalogar como um três ou um oito, dadas as imprecisões nas curvaturas do sinal; o extremo-esquerdo Jaime Xiphuko-Phuko, mainato na messe dos oficias da Marinha, tornado famoso pela sua velocidade e pela capacidade de falhar noventa e nove por cento dos remates que fazia à baliza adversária. Daí a alcunha de xiphuko-phuko, “ o maluco”, que os companheiros lhe atribuíram; o capitão Djossiane Marrime, o comando em pessoa, temido por colegas, adversários e pelos árbitros, pelo sentido de justiça que os seus punhos podiam e sabiam impor. Não que fosse um executante por aí além, mas a sua presença sempre valia pela inspiração e pela confiança que espalhava no seio da equipa, e, finalmente o Ngungunhane, que outro nome não possuía senão este, era o marcador de serviço do grupo; não tinha lugar certo no terreno do jogo, ora era visto como defensivo ora como atacante, um jogador vagabundo. Mas a verdade manda dizer que, onde quer que ele estivesse era um patrão que deixava muita canela adversária a necessitar de cuidados dos massagistas.

Relatar aquela partida seria fastidioso e ocupar-nos ia muito espaço e tempo, do que não dispomos. Por outro lado, carecemos do engenho e da arte para tarefa tão grandiosa, como detêm profisssionais como o locutor Paulo Terra, da secção desportiva do Rádio Clube de Moçambique. Basta apenas declarar, porque testemunhado por todos os que presenciaram, que aquela partida foi uma batalha campal, que ficou na memória dos residentes como “ a batalha do Beira-Mar”. A mesma terminou com um empate a duas bolas para cada lado. A dado momento da partida, registou-se um incidente que exigiu a intervenção da Polícia de Choque. Esta, por sua vez, fez dezenas de feridos entre espectadores e jogadores. O início da confusão teve lugar quando o guarda-redes do Inhambanense sofreu um golo_um frango_! dum remate frontal do expedito Xiphuko-Phuko. Depois do lance de conversão o guarda-redes do Inhambanense, o Fai-Khokho, precipitou-se sobre a bola e pôs-se aos gritos, a sacudi-la no ar: “dentro desta bola tem um pintainho, eu ouvi; tem um pintainho aqui dentro!”.

“Qual pintaínho, qual carapuça, dá cá masé a bola e vamos retomar a partida”, disse o árbitro, o senhor Ismael Osman, homem imparcial e competente nestes mesteres de dirigir partidas de futebol. “Levaste tanta bolada na cabeça que agora só te dá para ouvires pios de pintainhos. É golo sim, senhor! Dá cá masé a bola.”

Os do Inhambanense discordaram e não se ficaram pelos ajustes; o golo era inválido porque “estes mashanganas estão a jogar com cuche-cuche; é só ver que dentro da bola tem um pintainho. Nada!, o golo não vale!”. O árbitro não era pessoa para muitas contemplações. Tirou a bola ao Fai-Khokho e sobraçou-a sob um sovaco. Dirigiu-se ao centro do terreno para reiniciar a partida. Mas não chegou ao destino, nem logrou os seus intentos. O “Di Stefano” interceptou-o e agarrou-o pelos colarinhos, para em seguida derrubá-lo no chão. Foi a faúlha que iniciou o incêndio. Os gazenses não eram rapazes de deixar o pobre homenzinho à mercê daqueles bárbaros. Os adversários pegaram-se pelos pescoços. Cenas de pugilato multiplicaram-se. Dezenas de espectadores invadiram o terreno e envolveram-se na confrontação. Um dos alvos foi o senhor Osman que, na comoção ficou sem os calções e com a camisola feita em farrapos, embora à sua conta tenha distribuído o seu quinhão de pontapés e murros. Valha-nos Deus!, não ia deixar-se esmurrar como uma estátua ou como um paralítico. Rendeu-se à superioridade numérica dos oponentes. Na ocorrência perdeu o apito e dois dentes incisivos inferiores. Muitas testemunhas juraram ter visto os fiscais-de-linha em galope muito acelerado em direcção ao aglomerado das cabanas vizinhas ao campo, onde tiveram refúgio temporário até ao retorno da tranquilidade nas imediações.

Os presidentes de ambas as agremiações, o senhor Isaac Cuamba pelo Gazense e o senhor Sebastião Nhassengo pelo Inhambanense, foram detidos pela Polícia por incitamento à violência e encarcerados nos calabouços da esquadra da Brigada Montada. Aí as hostilidades prosseguiram. Acusações mútuas colidiram na atmofera da cela: “…seus batotoeiros…você comprou o árbitro… quem joga com cuche-cuche não são vocês?…”. E por aí adiante. Empurras tu, empurro eu. Pegaram-se pelas patilhas, que as tinham frondosas, e teve então início a segunda fase daquela batalha que opunha adversários empedernidos, sempre com algum pretexto para se combaterem. Na movimentação da peleja o representante do Gazense aplicou as célebres joelhadas e cabeçadas _ chimbhutso muzaya_ ao adversário. Este, pouco ou quase nada equipado com tácticas combativas, utilizou o único recurso defensivo que possuía: enterrou uma profunda dentada ao peito do gazense. Quando os agentes do piquete acudiram, alarmados com os ruídos da contenda, encontraram o presidente Cuamba a sangrar duma ferida no peito, como resultado duma amputação do mamilo direito.

“ Eu não morda, dá com este!”, ufanava-se o Cuamba e brandia o punho direito no ar, mesmo junto aos narizes dos polícias.

O senhor Nhassengo deu-se conta da presença dos agentes na cela pelo sentido de audição porque tinha os olhos cerrados, muito tumefactos, trabalho e arte dos golpes do adversário.

“ Estes tipos não podem mesmo uns com os outros, xiça! Se quiserem matar-se vão fazê-lo muito longe daqui. Sipaio, abre a cela e tira-me já estes animais daqui!”, berrou o comandante da esquadra, o tenente Júlio Sampaio, exasperado com tanta violência.

E foi deste modo que o Valgi se estreou na área do desporto na cidade de Lourenço Marques, com algumas escoriações no corpo e muitas memórias para narrar.

 

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

Era uma vez, sonhei que era um professor do ensino primário. Na minha turma tinha uma menina, acho que devia ter entre 9 a 11 anos de idade, acho que ela não me disse a idade dela no meu sonho.

Um dia pedi que os meus alunos escrevessem uma redacção a contar um pouco sobre a casa deles, como vivem e o que fazem. Essa menina que não me lembro do nome dela, escreveu um texto de uma página de caderno, mas no meio da redacção algo me deixou intrigado.

Ela disse que vivia com o tio da mãe e que não gostava dele.

Bem, corrigi o texto e no final da aula chamei a menina para conversar com ela e saber porquê não gostava do tio da mãe e respondeu apenas que não gostava porque durante a noite, ele tinha o hábito de levantar a saia dela.

Aquilo me deixou aterrorizado e tratei de ligar para a mãe da menina e pedi que e viesse a escola para ter uma conversa franca com ela sobre o que a criança me contou. Mas, instantes depois o meu despertador tocou e eu despertei.

Despertei sem conseguir conversar com a mãe da criança. Despertei sem saber ao certo o que estava a acontecer com a criança. Despertei sem conseguir ao menos ajudar a criança. Despertei sem saber o que mais o tio fazia além de levantar a saia da sobrinha de noite. Foi apenas um sonho, mas isso me dói a alma.

Fico me perguntando quantos tios levantam a saia das suas sobrinhas e quantos vão além disso? Quantas crianças são molestadas por pessoas próximas a elas, muitas até por parentes directos?

Quantas crianças são usadas como escravas sexuais de pessoas sem escrúpulos que usam a capa de família para as violar?

Qual é a nossa responsabilidade como pais na protecção das nossas crianças. Será que conversamos abertamente com elas para deixa-las avontade em falar connosco caso algo de errado aconteça?

Temos visto todos os dias histórias de crianças que são violentada sexualmente ppr pessoas com quem partilham o mesmo teto. Então. Por favor, não permita que a sua filha seja mais uma vítima de violência sexual, sobretudo se é praticada por alguém da sua família. Converse com a sua filha, vigie-a e corte pela raiz qualquer sinal de violência que possa ver, quer com a sua filha ou com a filha de outra pessoa.

Denuncie todas as formas de violência contra as crianças

Camarada Celso,

acabo de ler o seu Prémio Literário José Craveirinha 2021. Não me surpreendi. Percebi que continuas convicto, como eu, que Luís Carlos Patraquim, Mia Couto e Francisco Noa, como se fossem uma santíssima trindade, merecem tal distinção. Penso que os teus argumentos são autênticos. Os três autores contribuem verdadeiramente para a arte literária moçambicana. E não é de hoje, conforme observas, lá vão boas décadas que os temos como garimpeiros da palavra neste trajecto tão difícil e tão cheio de armadilhas.

Concordo contigo. “Ainda bem que nestes tempos pandémicos e incertos a HCB não apanhou Covid”. Há alguns meses, comentei sobre o HCB com amigos e manifestei o receio de o prémio ser cancelado. Contra as minhas expectativas, Dom Celso, eis que num zás, eu todo distraído, lá vens tu a dizer-me que amanhã iremos conhecer o próximo autor agraciado. Boa notícia! Logo que a recebi, pus-me a lembrar da cobertura que há dois anos e meio fiz na belíssima Vila do Songo. Nessa altura, acertei o prognóstico, embora não tenha sido algo público. Os amigos de sempre ouviram-me sustentar a minha posição. Quem venceu em 2018? Ungulani Ba Khosa, o que, salvo o erro, o permitiu estar entre os membros do júri da edição 2020.

Conforme dizia, camarada Celso, que já estou aqui a pensar em Tete, a província que me fez homem, estás certo quando sustentas que o Patraquim, o Mia e o Noa são altos candidatos ao prémio. Só quem não estuda, não acompanha e não compreende os passos da história literária moçambicana pode ter reservas em relação ao teu palpite. Não é o meu caso. Eu até sou distraído, mas sempre acerto qualquer coisa. Por exemplo, sei que antes de Ungulani, venceu o HCB Fátima Mendonça. Lembro-me que algumas pessoas fizeram caso disso, na altura. Mas eu me identifiquei com a decisão dos membros do júri. A consagração à professora Fátima foi feita em boa hora. Ela é um dos pilares da nossa literatura. Então, foi bonito! E este ano, será? Bem, Dom Celso, sabes que o país literário, nos últimos anos, vibra quando o assunto é premiação. Logo, imagino que não teremos uma escolha inquestionável.

Despois de sustentar a tua tese, Dom Celso, estendes a tua lista e lá colocas outros nomes: Paulina Chiziane, João Paulo Borges Coelho, Suleiman Cassamo, Nelson Saúte e Fernando Manuel. Na minha percepção, nem os três primeiros autores e nem estes cincos serão distinguidos com o Craveirinha, amanhã. Sei lá. Chame a isso intuição. Falível. Logo, não coloques a mão no fogo por mim, que eu também desconfio das minhas ideias. Às vezes. Será este o caso? Achas que sim? Eh pa, O País está para fechar a edição desta quarta-feira e o editor do jornal está aqui a pressionar-me para entregar as minhas páginas. Além disso, há uma peça minha que vai ao Jornal da Noite e tenho de a montar. São 19h41, agora, e já não me resta muito tempo. Por isso, tenho de terminar esta conversa que foi uma tentativa de te contrariar, a ti, um editor tão iluminado e que muito aprecio.

Camarada Celso,

sim, oiço-te perguntar quem vencerá o Prémio Literário José Craveirinha 2020, na minha percepção. Na verdade, bem, nem se trata de percepção, mas de observação. Não vou sustentar nada, como tu o fizeste. Tanto posso acertar como errar. Se errar, será a primeira vez que isso acontece desde que comecei a fazer prognósticos públicos. Nada grave. A vida, muitas vezes, parece um erro mesmo… Então pronto. Sem querer discutir se é justo ou injusto, adio essa discussão para mais tarde, acho que o grande vencedor do Prémio Literário José Craveirinha 2020, nesta quarta-feira, dia 12 de Maio de 2021, será… Não. Se contasse, não votaria nele neste momento. Porquê? Penso que o timing é importantíssimo considerar.

Bem, tenho mesmo de encerrar este assunto. Depois falamos dos erros e dos acertos. Sim, isso mesmo, camarada Celso: Armando Artur.

Enquanto me perdia no meu mundo de fantasias, ouvi os passos sorrateiros do Milano. Nesse instante, pensei que ele me quisesse pregar uma partida, como sempre faz, então fingi que estava a dormir para depois o surpreender. Mas, daquela vez, senti uma vibração estranha, senti que ele estava para baixo, afinal decidimos fazer a viajem de última hora porque ele precisava estar com os seus em um ambiente diferente.

Abriu a porta do meu quarto como se quisesse roubar algo; acendeu a luz para se certificar que eu estava a dormir; deu passos em direcção à cabeceira e disse:

– Eu sei que estás acordada. Eu estou muito bêbado e sinto vontades.

Continuei a fingir que estava a dormir. Ele foi desligar a luz, veio a cama, deitou-se, colocou as pernas na cabeceira e disse:

– Eu estou todo fodido! Espero que realmente estejas a dormir, assim é mais fácil, para mim, contar isso. Se estás a dormir, responderás com um peido daqui a um minuto.

Soltei uma gargalhada e disse:

– Apanhaste-me.

– Sabia que não estavas a dormir. Eu disse que estou com vontades.

– Tem sorvete e salada de frutas na geleira. Sobraram chamussas que a tua pita trouxe.

– Hummm, minha pita desde quando?

– Achas, achas que não sei que vocês costumavam se comer na casa de banho do bar quando vínhamos para cá? Assim és o namorado da cidade grande?

– Não sei do que estás a falar.

– Ah então estou a confundir a camisa azul com riscas brancas que comprei em para ti?

– Pode ser uma outra pessoa.

– Aham, que usa exatamente o mesmo perfume que eu e a tua gravidíssima noiva, quer dizer, ex-noiva, escolhemos para te dar presente quando defendeste?

– Sabe, eu estou com vontades.

– Aló, chamussas?

– Não quero comer.

– Então são vontades de quê mais?

-A minha vontade é de desaparecer.

– E deixar esse Napolitano só para mim?

– Cleide, desde que meu pai morreu, só acontecem azares na minha vida.

– Para alem da suspensão no trabalho, o que mais aconteceu?

– Engravidei a sobrinha da Célia e fiz sexo com a esposa do meu chefe. Tirando o acidente que provoquei por causa de conduzir bêbado, investi em vão 90 mil que pagaria pedreiros da obra no Crowd-1 e agora mesmo só falta o meu corpo ir porque a minha alma já bazou.

– Estás mesmo na bad Milanhonho.

– Porras, estás a me chamar esse nome porquê? Estou todo fobado

– O pior é que te fiz fugir da clínica de reabilitação.

– Ah ah ah ah.

– Milano!

– Mamã.

– Vai ficar tudo bem, nós estamos aqui para ti.

“Nós estamos aquí para ti, eu disse”. Ele deu tantos sinais, e nós simplismente os ignoramos.

– Tia, ele me contou, eu não fiz nada.

– Tu não tens culpa, Cleide, não tens culpa.

– Poderia ser diferente.

– Como?

– Sinceramente, não sei. Sei lá… Acho que eu devia ter percebido. Imagina, ele perdeu o único membro de sangue da sua família, e simplismente perdeu o seu equilíbrio mental.

– Podes-me contar com mais detalhes sobre o dia?

– Como sabe, pedi dispensa de tarde, no trabalho, para visitar Milano na Clínica de reabilitação. Comprei o nosso sabor de sorvete favorito, preparei uma salada de frutas para o dar de presente, pois, segundo a Célia, ele estava a se recuperar bem. Logo que cheguei, ele arrancou-me o telemóvel e mandou mensagens para a sobrinha da Célia. Pareceu-me estar bem, tanto que estávamos a falar sobre a minha despedida de solteira, onde supostamente ele seria o único homem porque ainda acreditava que o meu noivo não gosta dele. Do nada, ele sugeriu uma viajem, “Tal como quando éramos jovens, sem responsabilidades e felizes, vamos a casa de Praia do meu pai, esse será o meu último adeus ao álcool”, ele disse. Estava a sofrer com a suspensão no trabalho, mal sabia como pagaria a multa do acidente e eu senti que finalmente o meu amigo está a tomar juízo. Tia, já tiveste uma conexão tão forte, tão intensa, tão única que nem você mesma acredita que isso é possível? Já olhaste para alguém e disseste “essa pessoa é a pessoa da minha vida”? Já paraste para pensar no número de passageiros no teu autocarro que se chama vida e quem é o teu fiel ajudante, que está contigo em todas as viagens mesmo não estando no autocarro, que em todos os acidentes está lá para te ajudar a fazer o autocarro voltar a pegar e continuar com a viajem? Do nada, o teu autocarro da vida já parou e a tia simplismente não sabia como fazer arrancar. Então o teu fiel ajudante virou motorista? Acho que me perdi um pouco com a metáfora, mas creio que tenha entendido. Isso já aconteceu consigo?

– Eu..

– Milano era a pessoa, ele é quem eu levei comigo de outras vidas. Como eu poderia negar uma despedida ao meu? Como eu poderia dizer não? Eu sabia que ele estava a falar a verdade, que era para ele a sua última loucura embriagado. Também sabia que ele sentia muita falta do pai, que precisava se reconectar com ele de alguma maneira, que ele precisava de equilíbrio. Sabia que aquela casa seria a sua versão funcional, mas o facto de ele ter descoberto que a casa seria vendida o machucou bastante.

Fizemos o nosso plano de fuga. Como pode perceber, deu certo. Fomos buscar os gémeos no ginásio e partimos para Angoche, claro que não demorámos chegar, pois tudo que nós queríamos era ver o lindo pôr-do-sol na praia. Fomos só com a roupa do corpo, estávamos todos animados e cheios de energia, pois fazia tempo que não estávamos todos juntos. Durante o caminho, comentei sobre como a Célia é uma grávida linda e que os casamentos têm que acelerar, pois, se o bebé for parecido com o pai, e nascer antes do casamento, vai fazer-lhes umas perguntas muito assanhadas que não saberão o que responder.

– A criança que a Célia espera não é minha – disse.

– Como assim? – perguntou Deny.

– Ela me deixou depois do acidente, descobriu que estava grávida de outro.

– Como assim? – perguntou Deny, novamente.

– Eeeh, vamos ao bar, quero beber – disse Milano.

– Espera, espera Cleide, como assim a criança que a Célia está a espera não é do Milano?

– Então, a Célia tinha um caso há muito tempo, e engravidou.

– Mas…?

– Sim, tia, ela virá conversar consigo sobre isso.

– Desculpa-me a interrupção, sobrinha, peço que continue.

– Sim, eu e o Dany ficamos espantados pois acreditávamos que ele seria pai do filho da Célia. Entretanto, fomos comprar umas garrafas de bebidas alcoólicas. Ele mal bebeu, assim que passeamos pela vila decidimos fazer uma festa em casa. Convidamos todas as pessoas que encontrámos na rua. Foi uma longa e muito louca a noite. Como nos velhos tempos. Do nada vi o Deny e o Milano a discutir. “Talvez seja por causa de alguma coisa que o Milano fez”, pensamos. Do nada, o Milano expulsa toda gente de casa porque queria dormir em sua casa antes que fosse vendida. Os convidados foram-se, como já estava tarde. Cada um de nós foi para o seu quarto. Foi aí que ele veio me contar sobre o que se passava com ele.

Eu disse-lhe:

– Nós vamos superar isso, já passamos por tanta coisa juntos, vamos sair desta.

– Desta vez é diferente. Desta vez é muito diferente.

– Vamos pensar em alguma coisa juntos.

– Sabes, quando mais jovens, nunca imaginei que ser adulto é esta merda: ser dono das suas próprias decisões, ter responsabilidades, assumir os erros, a cena mais fudida é aceitar levar desaforo para casa, a maldade das pessoas à tua volta, é estupidamente insano. É impressionante como as pessoas não te deixam ser feliz, elas fazem questão de te sabotar, e eu que já me saboto. Estou todo acabado.

– Realmente, vamos então pensar em soluções. Vai ficar tudo bem.

– O que eu vou fazer? Aquela menina não quer fazer aborto, os pais já lhe expulsaram de casa. Meu chefe sabe que eu lambi a esposa, então a suspensão pode passar para demissão e a minha suposta noiva largou-me quando eu senti que mais precisava dela. Ainda não é oficial que já não estamos juntos, mas man? Essa vida. Eu acho que não tenho forças.

– Não faz mal não ter forças.

Virei-me para o lado dele, abracei-o que nem um bebé. Ele chorou e disse-me que acabou de saber que o Deny é o pai da criança que a Célia espera. Eles estão juntos desde que o Milano a fez o pedido. Ele só ficou com a sobrinha dela por vingança. Disse também que a ama do fundo do seu coração. No dia do acidente, ele bebeu muito só porque não conseguia aguentar dor de acabar de perder o pai e logo em seguida perder a mulher que ele ama.

– Porquê? Porquê eu? Porquê comigo?

– Vai ficar tudo bem.

Não vai, Cleide, não vai. O nosso melhor amigo, de infância, ficou com a mulher que eu amo. Eu quase matei alguém, eu estou perdido. Que porcaria de adulto eu sou? Qual é o meu propósito? Para quê acordo todos os dias? Meu pai tinha razão, eu sou uma merdinha mesmo.

– Não faz isso contigo, você é uma pessoa incrível.

– Para com isso. Posso dormir contigo? Como quando aramos mais novos?

– Pensavas que dormirias em outro lugar?

– Só não me bufa.

Naquele momento, as coisas começaram a fazer mais sentido para mim: “queria que as minhas paranoias estivessem todas erradas”. Infelizmente, estavam certas. E então dormimos.

Quando o sol começou a nascer, senti uma mão apalpando-me. Com a sua mão esquerda, ele começou a roçar a minha perna direita, endireitou-se e a mão direita dele começou a passear pela minha coxa esquerda em direcção às nádegas. “Será que ainda está bêbado? Será que é o que eu estou a pensar que é? Não é possível, devo estar a confundir. Vou deixar e ver até aonde ele vai”. Lentamente, começou a subir as suas mãos em direcção aos meus seios.

– O que estás a fazer?

– O que você está a fazer?

– Humm.

– Deixa eu te sentir pouco.

– Não.

– Isso vai fortalecer a nossa amizade! Não me perguntes se estou maluco, porque sabes que não estou. Vai ser só uma vez.

– Não.

– Se alguém descobrir diremos que estávamos bêbados ou negaremos até a morte.

– Mas, tens noção do que me estás a pedir.

– Só uma vez. Só uma.

– Isso pode estragar a nossa amizade.

– Mas também pode fortalecer.

– Milano, há mais de 20 anos que somos amigos, e quando mais novos isso nos passou pela cabeça, mas nós decidimos não o fazer pois somos muito mais que os nossos corpos “essas coisas carnais não nos podem separar” nós dissemos. E agora podem? As nossas almas?

– Pouco só, só uma vez, um pouquito, deixa o Milanhonho te sentir.

Começou a dar-me beijinhos no pescoço, dizendo que seria uma única vez. Só o sexo faria tudo ficar bem e que ninguém saberia: “as nossas almas precisam se tocar através dos nossos corpos, só elas saberão”.  As mãos dele sabiam aonde ir, como ir, ele sabia exactamente onde me tocar, e, principalmente, como. “Coitadinho, está a sofrer tanto, vou-lhe dar uma súper vitória e assim pelo menos recupera forças” pensei.

Afastou as minhas pernas, colocou-se entre elas, olhou-me nos olhos, deu duas reboladinhas só para me atiçar e mostrar que me desejava.

– Queres que te beije?

– Queres-me beijar?

– Depende de ti.

Xiei-lhe, aproximou-se ao meu ouvido, sussurrando, disse: “será a primeira e a última vez, prometo”.

– Então vamos fazer que valha a pena – Eu disse.

É como se as minhas palavras dessem início a uma música muito bem afinada, composta por Mozart, cantada pelo Luciano Pavarotti e dançada por Anna Pavolva. “Ele me deu um aqui e agora e eu lhe dei um amanhã será melhor que hoje”. Foi o que eu pensei, pois senti cada segundo e milésimo em que ele esteve dentro de mim, em cada suave, lento e profundo ir e vir eu senti suas fragilidades, seus medos, sua vontade de desistir do mundo, seu corpo me disse que ele estava tão desesperado, tão acabado, tão impotente. Sei também que ele sentiu que eu estava ali para ele, sentiu a minha força de vontade, sentiu o meu aconchego, o meu “tudo vai ficar bem”, mas ele ter sentido isso não foi o suficiente.

No momento em que me entreguei a ele, tive a certeza que ele carregava um peso enorme dentro dele, e a tal clínica de reabilitação apenas tirou o álcool do sangue dele. As nossas almas ficaram mais conectadas ainda, mas, infelizmente, não consegui o barrar. Assim que nós nos satisfizemos, ele saiu do meu quarto com a promessa de que aquilo nunca mais aconteceria. Adormeci.

– Clara, chama ambulância.

– Milanooo, Milanoooo, acorda. – Deny grita de desesperando sacudindo-lhe.

– Carrega-lhe e põe-lhe no carro. – Dany diz tremendo

– As chaves estão com a Clara – Deny Responde.

– Claraaa, chaves. – Grita Dany.

– Milanoooooooooo, acorda, acorda Milano. Clara estás parada, ele está a morrer Clara – Deny grita com toda a sua força.

– Clara, Milano está morto. Chama ambulância – grita Dany

– Milanoooo acorda. Milanooo – continua a sacudindo-lhe no desespero com a esperança dele estar vivo.

De repente, parei de ouvir as coisas. O mundo ficou muito lento, levantei-me numa velocidade, peguei nas chaves, fui a correr ao quintal, liguei o carro, os rapazes trouxeram-no, eu não consegui ouvir nada do que eles estavam a dizer. Assim que chegamos ao hospital, fomos atendidos.

Ele sentia-se tão vazio, tão impotente, tão não merecedor de viver, ele tentou ser forte, lutou, mas tudo que ele queria era deixar de sentir a dor. Lá estavam os sinais e eu não soube interpretá-los. Eu estava tão preocupada com os preparativos do meu casamento, com o trabalho, com as coisas do meu mundo, enquanto ele estava numa grande batalha com a depressão. Eu, que era sua alma gémea, a sua Cleidanhonho, o meu estou aqui para ti chegou tão tarde, foi tão insuficiente, me sinto tão impotente. Tia, eu sei que é a madrasta dele, que cuidou dele desde pequeno, que as coisas estão apertadas para vocês desde que o seu marido morreu, mas não venda a casa da praia, aquela casa é um dos poucos lugares que ele mais ama estar.

– Sobrin..

– O médico chegou.

– Vocês são familiares do Milano?

– Sim somos.

– Como ele está doutor?

– Não precisamos de nenhuma formalidade.

– Diga-la, então.

– A depressão é apontada como uma das principais causas do suicídio. Esta tentativa é não só um pedido de ajuda e um aviso para nos mantermos atentos, mas também é um questionamento. Têm vocês cuidado da vossa saúde metal? E a dos seus? Têm vocês prestado atenção nos seus sinais e nos sinais dos seus? Têm vocês olhado para vós mesmos e se entendido? Como profissional de saúde, aconselho que todos façam consultas para saber sobre o estado da vossa saúde mental, e conheçam formas de se manter mentalmente sãos. Bem conseguimos tirar as substâncias por ele ingeridas a tempo, graças à vossa rápida reação à situação. Como já foram prestados os primeiros socorros, já podemos fazer a transferência do paciente para o Hospital Central.

– De quê me valeu ser a pessoa mais conectada a ele. O meu ajudante quase se foi, o meu estou aquí para ti não valeu de nada, porque chegou tarde, doutor. O que podemos fazer agora?

– Cleide, não te culpes pelo que aconteceu. Agora é hora de receber a nossa pessoa, o teu ajudante. Quanto à Célia e ao Deny, marcaremos uma reunião de família e resolveremos em família.

– Está bem Tia.

– Agora descansa, que o dia também será longo.

“Do mal ficam as mágoas na lembrança,

E do bem, se algum houve, as saudades”, Luís de Camões

  

Torna-se definitivamente inelutável aquela curiosidade, uma vez, expressa por Sebastião Alba que é “onde estava e como se sentia o autor quando escreveu isto?” em referência a alguma mensagem que a gente lê e bate-nos no âmago. Sobre a obra de Pedro Pereira Lopes, a (in)exacta resposta para tal curiosidade é que o poeta, quando escreveu a poesia, se encontrava algures num mundo carregado de blue (azul), uma cor que, por excelência, inspira saudades, solidão, o inverno, o abandono e a estranha quietude.

O livro, especificamente, a primeira parte dele “à beira da ilha: choviam meteoritos no mar” proporciona-nos uma viagem menos quente possível pelos lugares mais belos e menos alegres do mundo do poeta. É um livro que, mesmo lendo-se numa tarde de verão, o ambiente à volta começa a esfriar a cada verso do mundo blue.

Uma vez, Fernando Pessoa sugeriu que houvesse um distanciamento temporal entre o poeta e o acontecimento, de tal maneira que o poeta dêsse uma expressão madura dos seus sentimentos e pensamentos sobre o acontecido. Entretanto, Lopes parece ter quebrado esse princípio de momento de pausa cauteloso para que uma escrita não se transforme num veículo de pieguices, assim como deliberadamente não respeita as imposições gramaticais do uso das letras maíusculas em nomes próprios e em início de parágrafos ou períodos.

Ou seja, não houve um momento propedêutico. O poeta foi obrigado a escrever ao mesmo tempo que era acometido pelas saudades “à sua própria língua” que deve ser de ausências ou mesmo do silêncio. Se calhar fosse uma forma de o poeta buscar pela catarse, enganar a própria saudade, tendo confessado, em algum momento da sua expiação que “é preciso escrever para não adoecer”. Todavia, uma lição existencial que se pode vislumbrar na poesia de Lopes é que a saudade é sempre algo inexorável, imponente e repentino. Ela recusa-se a receber ordens de esquecimento e não tem bons modos, porquanto não costuma anunciar a sua chegada. Vem invadindo.

Esta rebeldia e petulância das saudades é que dominam os versos da primeira parte do livro. Este poeta mostra-nos uma estranha forma de começar e terminar um poema. Introduz-nos um assunto e, no meio do nada, desvia-nos a lembraças da sua amada, como se uma força incontrolável o domasse. Porque tal força incontrolável causa distração ao poeta sobre o que estava a escrever, levando-o repetinamente a concentrar-se na sua amada, essa força só pode ter o nome de saudades, pois é da sua natureza criar-nos tais transições ou transcendências em momentos inesperados. Vejamos este poema ilustrativo sobre essa questão:

os escritores são raça estranha

mas enfadonha seria a vida sem eduardo white

sangare okapi ou álvaro taruma

disse-me um filósofo – “os poetas são mais humanos”

(…)

refiz a nossa visita última ao mar

escalei pedregulhos e ofereci teu nome às águas

num voto afecto náufrago

está a fartar-me a surdez da academia

o resto conto-te quando cá estiveres

apeteceu-me um sorvete – como sempre – às segundas

o teu ficou embalsamado

com duas lambidelas de ternura.

 

Neste poema, o autor começa por retratar a existência excêntrica dos poetas e as suas funções surreais, mas que tornam a vida sustentável. Entretanto, o poema muda de objecto repetinamente e passa a concentrar-se na ausência da sua amada como ilustra a parte amarelada. Houve distração e concentração no poema, ou vice-versa. O certo é que o arquê dessa transição dum objecto para outro tem o nome de saudades.

Outro poema com o mesmo descuido é o que segue:

hoje foi o dia do bêbado: ministério da cultura

a classe do jat e munhuanense azar onde estrela o brilho

a tarefa do escritor exige do silêncio e – talvez

mais ainda da memória

o déjà vu mais sincero consentido ao homem

conheci zeferino coelho – o editor do saramango

emoção nenhuma. Sonhos literários? Não os tenho!

pensei em ti tantas ocasiões – igual ao inúmero

de vezes de revisitação esdrúxula

como põe omar khayyam – o céu é incompleto sem um

romance divino”

hoje faz frio no manual do nosso edílio.

 

O sujeito lírico fala do silêncio, a melhor companhia do génio poético e dum encontro não comovente com um editor do Saramango. E, inopinadamente, mergulha nos pensamentos da sua amada, duma maneira descontextualizada do espírito iniciante do poema. Esta transição poética é algo intrínseco da saudade no sentido empírico-existencial. Quem ama e amou vive nesse campo escorregadio de, a qualquer momento e inesperadamente, ver-se mergulhado na memória flutuante com o objecto do seu amor, não importando onde se encontre e o que esteja a fazer. E, várias vezes, não é preciso a ocorrência dum sinal para despertar-nos a memória da coisa amada. Basta viver para lembrar.

Os poemas 6, 7, 9, 11 e 12 da primeira parte do livro são o reflexo deste poder maníaco exercido pelas saudades. Nesta condição de maus tratos nostálgicos, o abandono do sujeito lírico no mundo blue é vísivel através das imagens metafóricas bem conjugadas pelo poeta que são, por exemplo, de (dois) sorvetes que derretem “sobre a mesa/ entre a pilha de louça suja e o tecto sem vida/. Outra imagem profunda, bela e triste vê-se na confissão do poeta que diz “rir sozinho é ruína de graça”.

A inexorabilidade desta saudade que acomete o autor é provada no poema 15: saudade não me falta porém desfez-se com/ excessiva pena o nutriente destas linhas que/ sempre importariam a priori a mim/ uma espécie de libertação áfona. Nestes versos, o poeta aceita a inexorabilidade das saudades, porém insinua que a a sua intensidade possa diminuir com escrita – ou, se calhar, o tempo.

Entretanto, a saudade é deveras severa que não se rende à distância e, se dependesse da vontade do autor, ele preferiria preterir a viagem a Lilongwe por um quarto com a sua amada: agora estou noutro buraco da minhoca/ melhor decisão não teria – se estivesse/ no nosso quarto/ ainda impregnado de ti – jamais pararia de escrever-te. (quantas vezes, amor, já te esqueci,/ para mais doidamente me lembrar./ mas doidamente me lembrar de ti?)

Como se a única forma de curar-se das mazelas do amor fosse buscar outro novo amor, o poeta tenta provocar a sua amada, dizendo “conheci alguém como tu. Terás tu ciúme?” Porém, no fundo, ele é abatido pela ideia de que “o amor não se desvanece fácil/ é como fé”, e por fim o sujeito lírico escolhe parar de escrever qualquer coisa que diz respeito à sua amada, como se isso fosse mais um meio controverso de salvar-se dessa saudade inexorável e repentina que o acompanha em todos os lugares do seu mundo blue. É deveras um processo árduo de cura, porém, provavelmente eficaz como prova a segunda parte do livro “névoa seca”.

Os cerca de 20 poemas que compõe a segunda parte da obra não fazem nenhuma referência à amada nem a saudades. Eles discorrem em vários assuntos, denunciando-nos um poeta que resolveu fazer pazes com o seu passado, aliás com a própria vida, – o palco de acontecimentos – tal como se adivinha no poema 7:

 

(“de tal maneira a vida nos excede”)

a vida não me roubou estrelas

nem mar ou canto dos pássaros

 

a vida não me roubou cores

nem sons ou ainda o pasmo

 

a vida não me roubou quase nada

deu-me dentes e um par de calças

 

amor utopias e palavras também

foi tudo lucro e nada mais

(…)

 

No poema supracitado, pode verificar-se o sentimento de gratidão em relação a todas as vicissitudes que acometeram o poeta bem como aceitação da vida como ela é. No fundo, o autor mostra-se consciente sobre a importância de abraçar-se o amor fati como fonte da construção e alimentação do seu sujeito poético.  O testemunho desta aceitação e assunção do amor fati sob o pretexto de ser algo indispensável para construção do ser poeta é deixado pelo próprio autor nos seguintes versos:

 

(…)

gente há que viveu

gente há que amou

uns mais outros menos

fizeram-se poetas

(…)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A minha pátria é a língua portuguesa

Fernando Pessoa.

 

Bom dia a todos!

Antes de me aventurar pelos artifícios da palavra, começo esta intervenção com um agradecimento prévio: à professora Paula Cruz e à Universidade Pedagógica de Maputo, afinal depositaram em mim mérito que almejo alcançar. É um enorme privilégio estar aqui, romper fronteiras da impossibilidade para, em harmonia, celebrarmos parte das nossas conquistas comuns, do que somos e do que nos representa. Ainda assim, receio frustrar expectativas. Ao invés de uma comunicação digna de um estudante de letras, de educação ou ensino de português, nos próximos 15 minutos irei apresentar uma reflexão apenas à altura de um aspirante, quiçá no intervalo entre o conhecimento e a ignorância. Portanto, não trago o resultado de um estudo científico baseado em análise de dados, inquéritos ou métodos quantitativos. Longe disso, antes preferi partilhar convosco uma certa percepção sobre o que realmente nos une, a nós, integrantes desta comunidade intercontinental, chamada CPLP.

Encerrado o intróito, neste simbólico dia 5 de Maio, penso na língua portuguesa como um lugar de pertença e de partilha, uma ponte de afectos que aproxima as nossas singularidades ou, se preferirmos, as nossas multiplicidades. A isso Samora chamou ‘língua de unidade nacional’ e o primeiro presidente moçambicano utilizou-a para construir num território uma nação africana. Desde esse episódio, e até muito antes, a língua portuguesa está enraizada na nossa cultura, ora transformando-se, ora transformando-nos também. Veio de longe, numa longa viagem pelo espaço-líquido. E, quando chegou ao continente, encontrou uma terra arável e germinou. Coube-nos a nós regá-la até vermos as primeiras vagens brotar; coube-nos a nós assumi-la e usá-la como instrumento da emancipação intelectual e, depois, da liberdade. Uma língua assim não se pode resumir apenas ao adjectivo ‘oficial’, pois, nas suas especificidades, aglutina contextos históricos sempre plurais. Esta língua viu Portugal nascer e libertar-se, acompanhou Brasil ao Grito de Ipiranga, uniu a mais audaz geração de africanos dos PALOP e hoje somos todos parte desses movimentos cronológicos que adicionam ao tempo sentidos particulares de co-existência colectiva.

Não há dúvidas de que o português nos posiciona no mapa mundo, ao contrário das línguas bantu faladas em Moçambique, infelizmente. Aliás, na impossibilidade de termos línguas bantu nacionais, é a oficial a principal ligação possível entre os moçambicanos de todas as regiões. Ou deveria ser. Afinal, num universo de 28 milhões de habitantes, pouco mais de 10 milhões falam a língua portuguesa. Muito pouco para um país que encontra no ensino o mais importante factor de desenvolvimento social e de verdadeira unidade nacional.

A diferença existente entre a densidade populacional e o número de fluentes na língua de ensino no país lembra-me um episódio. Em 2007, terminei o curso de formação de professores, no Instituto do Magistério Primário de Chibututuine, na Manhiça, Província de Maputo. Uns meses depois de me formar, tive a oportunidade de escolher a província onde gostaria de leccionar. Optei por Tete e viajei pela primeira vez ao Centro do país. Ainda imberbe, parti convicto de que as aulas iriam decorrer conforme o estágio realizado na Vila da Manhiça. Perspectiva frustrada. Eu e muitos dos meus colegas ficámos a saber que há um Moçambique real por descobrir.

24 horas depois de aterrarmos no Aeroporto de Chingozi, uma vez mais tivemos de escolher onde gostaríamos de dar aulas. Entre Zumbo, Tsangano e Marávia, optei por Macanga, mas não fiquei na Vila de Furancungo. Calhou-me então a localidade de Namadende, na altura, a mais ou menos uma hora da sede, de carro. Escusado é dizer que foi uma experiência incrível, sinceramente, das melhores da minha vida. No entanto, nem tudo foi um mar de rosas. Como professores recém-formados, queríamos transformar vidas, contribuir, formar e desenvolver. No primeiro ano a Direcção Pedagógica da EPC de Namadende atribuiu-me a 5ª classe, a última do segundo ciclo.

Lembro-me de que num daqueles dias de Fevereiro de 2008, apresentei-me aos alunos que, logo à minha entrada na sala de aula, cumpriram o protocolo: levantaram-se para me saudar. Retribuí com um “bom dia, como estão?”. Em coro, responderam: “estamos bem, muito obrigado!”. É sempre assim. Eles dizem que estão bem mesmo quando têm um dente a condicionar a fala. Feitas as apresentações, de seguida, a aula começou, mas, meus senhores, foi improdutiva. Os alunos que apenas falavam cinyanja não me compreenderam e nem eu a eles. Impasse! Afinal a língua portuguesa não é de unidade nacional?! Na teoria, sem dúvidas que é! Na prática, a realidade muitas vezes é outra. A pergunta que me podem colocar é: como dei aulas àquelas crianças de Camuiqueni, Xinxefu, Ximunda e Namadende?

Bem, na verdade, decidi partilhar este episódio porque é esclarecedor. Se quisermos que a língua portuguesa seja realmente de unidade nacional, devemos, de forma concreta, audaz, investir em cada aldeia moçambicana. A escola deve estar em nós e nos outros. Isso significa que os institutos de formação de professores devem adaptar-se aos contextos mais desfavorecidos e não o inverso. Não faz sentido que docentes e alunos sejam colocados na mesma sala de aula sem condições para se compreenderem. É contraproducente, e esta ocorrência contribui significativamente para as desistências escolares nos nossos distritos. Quem ficaria na sala de aula horas a fio sem compreender o que o professor diz?! Então, ao invés de aulas, os nossos alunos lá vão apascentar o gado ou ajudar os pais no cultivo. E as alunas, desapontadas com uma escola na qual não se revêem, caem nas armadilhas dos casamentos prematuros.

A língua portuguesa pode mudar estes cenários nas nossas aldeias; pode integrar ao invés de excluir, projectar futuros no lugar de amputar horizontes; pode construir e ser um veículo de viagem virtual pelo país para todos aqueles meninos que completam 10, 12 ou 15 anos de idade sem nunca terem experimentado o prazer de viajar à boleia de um carro.

Se quem aprende qualquer língua apreende um conjunto de códigos, de regras e de saberes, com o português, em Moçambique, primeiro, as crianças ampliam o número de pessoas com as quais podem comunicar. Segundo, aproximam-se da ciência e tornam-se protagonistas dos seus próprios destinos. Não pretendo sustentar que a língua portuguesa, no contexto moçambicano, é garantia de sucesso, mas que é uma base indispensável na busca de conhecimentos estruturados pelo Sistema Nacional de Educação e não só. A língua é o veículo, a azagaia, o anzol; é o caminho, o que somos e onde podemos chegar. Por isso, entendo eu, é urgente que as políticas curriculares sejam mais ousadas na definição do tipo de adulto almejado em cada criança por formar.

Num ensaio intitulado Os modelos curriculares para o ensino de português no nível básico, por publicar, defendo o seguinte:

A maneira como ensinamos uma criança pode determinar que tipo de adulto a mesma criança vai se tornar. Ensinar não é apenas um verbo, é uma missão, um modo de prever o futuro mediante as convicções que nos movem no utópico compromisso de gerar um ‘homem novo’. No domínio escolar, o acto de ensinar exige do professor uma formação e orientação particulares sobre como manipular as suas ferramentas pedagógicas. Porém, existem no processo de ensino e aprendizagem tantas outras questões exteriores à sala de aula, dependentes de decisões políticas do que consideramos nível macro.

Assumindo que não é certo ensinar a crianças de contextos e com necessidades diferentes da mesma maneira, conforme sustentei no ensaio há pouco referido, claro está, as políticas curriculares têm a função de contribuir para que no contexto da sala de aulas não triunfem as desigualdades sociais.

Em Chibututuine, Distrito da Manhiça, a uma hora da Cidade de Maputo, de carro, conheci alunos, na 4ª classe, que mal sabiam escrever o próprio nome. Vi essa situação replicada em Kombomuni Rio, Distrito de Mabalane, em Gaza. Para ser sincero, este retrato repete-se em todas as províncias moçambicanas. Será que é o problema dos alunos, dos professores ou do currículo? Mais do que encontrar culpados, depois de muito pensar nisto, apresentei possíveis soluções numa reflexão intitulada Propostas curriculares ao ensino da língua em Moçambique. A questão de fundo é: e se reintroduzíssemos o ensino pré-escolar, pelo menos nas regiões recônditas ou para aquelas crianças cujos encarregados de educação não têm condições de as levar às creches? Por exemplo, para quem tivesse uma língua materna bantu, aprenderia exclusivamente a falar português e as lições essenciais para se integrar sem dificuldades na 1ª classe. Se reunirmos especialistas, sistematizarmos a proposta e investirmos, pode dar certo e mais crianças poderão aprender a ler e a escrever logo no primeiro ano escolar. Afinal, quem cedo aprende, rapidamente define o seu futuro.

O pré-escolar é um dos desafios para que a língua portuguesa seja um objecto de inserção social e de progresso à larga escala no país. Mas há outros desafios. Por exemplo, a aposta na literatura inserida na disciplina de Português, no ensino primário.

No passado, a arte literária iniciou um percurso de consciencialização contra as atrocidades coloniais e envolveu-se com impacto nos projectos de libertação nacional. Actualmente, continua a ser um objecto de cultura, propenso na edificação das melhores propostas de nação. Como todas as artes, a literatura tem de ser a aliada da escola, pois ao mesmo tempo que, por consequência, instiga sonhos, também move montanhas. Para que a arte literária exerça o seu papel, caso tenha algum, é necessário estar bem representada no ensino básico, o que significa levar aos livros dos alunos textos de referência de Moçambique e dos outros espaços geográficos, por exemplo, da CPLP. Não é o que acontece neste momento. Os livros de referência escritos em português não estão integrados no ensino básico. Logo, a escola até pode formar alunos inteligentes, mas isso de nada valerá se a inteligência não estar associada à cultura. Só para se ter uma ideia, dos vários livros infanto-juvenis editados pela Escola Portuguesa de Moçambique, quatro são Altamente Recomendáveis ao ensino no Brasil. Refiro-me a O pátio das sombras, de Mia Couto; Leona, a filha do silêncio, de Marcelo Panguana; Na aldeia dos crocodilos, de Adelino Timóteo; e O caçador de ossos, de Carlos dos Santos. Sobre os quatro livros, no ensino público em Moçambique, nenhum eco. Podemos aproveitar esses contos adaptados da tradição oral para pensar, inclusive, nas diferentes relações entre a língua portuguesa e o espaço geográfico. Assim, os contos da tradição oral do Vale do Zambeze podem ser lidos e compreendidos no Rovuma e os do Chiveve no Limpopo. Se isso é bom, então pensemos no que a literatura é capaz de fazer com as crianças, quando as leva a viajar naquela dimensão escrita por Almeida Garrett ou pelo universo da CPLP.

A propósito da CPLP, e deste 5 de Maio de 2021, a língua portuguesa é falada por mais de 265 milhões em todo mundo. Salvo o erro, é a mais falada no Hemisfério Sul. Há-de ser por essa amplitude que, de forma antecipada, Fernando Pessoa considerou a língua portuguesa sua pátria. Porquê nos limitamos a um território concreto, quando podemos ser cidadãos de cinco continentes? Podemos ser globais, cruzar mares e horizontes em prol de uma consciência pró-comunitária. Nesse sentido, parece-me urgente que os países integrantes da CPLP façam mais para que esta proposta de comunidade seja realmente feita de proximidade. Estamos longe uns dos outros, todavia, nada disso será distância significativa se se fizer mais pela mobilidade dos artistas, das obras, dos académicos, dos cidadãos, em geral, e do museu do pensamento, como diria Joana Bértholo.

Antes de encerrar esta comunicação, que já vai longa, deixo ficar aqui umas lindíssimas palavras de Fernando Pessoa. O poeta diz-nos assim:

A palavra falada é um fenómeno natural; a palavra escrita é um fenómeno cultural. O homem natural não pode viver perfeitamente sem ler nem escrever. Não pode o homem a que chamamos civilizado: por isso, como disse, a palavra escrita é um fenómeno cultural, não da natureza mas da civilização, da qual a cultura é a essência e o esteio.

Espero, sinceramente, que este 5 de Maio seja uma profícua oportunidade para todos pensarmos em nós próprios como cidadãos desta pátria vasta e intercontinental que é a língua portuguesa.

 

 

*Comunicação apresentada na Universidade Pedagógica de Maputo, no dia 5 de Maio de 2021, a propósito das celebrações do Dia Mundial da Língua Portuguesa.

Ao Valgi oprimia-se-lhe o coração de dor e de arrependimento. A história que contou enfurecera o agente de Braga e trouxera à tona da memória deste más recordações. E ele, o Valgi, ouvinte involuntário daquele drama conjugal, ia pagar as favas pela infidelidade da aludida Maria-Muchina. Apetecia gritar aos ouvidos daqueles homens que não era nenhum criminoso, que a Eva era solteira e bem solteira, que aventurara-se à rua porque era um homem responsável pelo seu trabalho, cumpridor dos seus deveres como cidadão. Apeteceu-lhe levantar a voz, para ela escutar e vir testemunhar a sua inocência, assim como fazer mea-culpa pela ousadia de introduzir-se no escuro da noite e desafiar os perigos aí escondidos. Agora estava ali, à mercê daqueles malfadados polícias, a ser encaminhado para os calabouços duma esquadra qualquer, para juntar-se a ladrões e assassinos, um bode expiatório pelas faltas cometidas por sacristãos e mulheres mistas-chinesas.

A sua era uma história que jamais contaria a ninguém lá em Porto Amélia, nem em nenhum outro lugar, um segredo que era preciso enterrar no fundo da consciência. O que diria a Mariana se um dia viesse a tomar conhecimento deste episódio de tão tristes recordações? Claro, as perguntas seriam as mesmas que as dos polícias: “…vinhas donde?…com quem estavas?…se te prenderam alguma razão tinham…essa Muchina era tua amante…porque é que estás a esconder?…fala a verdade…era ou não era tua amante?…”. Porque será que as pessoas passam a vida a fazer as mesmas perguntas, se antecipadamente conhecem as respostas e estas são sempre as mesmas? Mesmo confessando as verdades estas são distorcidas e transformadas em invenções, em mentiras, só mentiras _ dizem_  para salvaguardar conveniências. Essas é que são as respostas.  Por isso, o Valgi nunca no futuro perderá um minuto do seu tempo para relatar o que foi a noite mais longa da sua vida.

Os agentes da Polícia Montada deixaram-no à porta da cabana onde vivia. Aquela mphama gigantesca, crescida ao lado da cantina do Mussa, por detrás do “Botão Dourado”,  foi a testemunha da soltura, da sua devolução à liberdade.

Quando logo às oito horas em ponto ele apresentou-se ao trabalho, as companheiras acharam-no exausto e sonolento, nervoso e mal arranjado. A Mariazinha, naquela sua curiosidade tradicional, perguntou-lhe:

“ Donde vens assim tão moído, cheio de poeira e quase roto?”

“ Acabo de regressar de uma longa viagem por um país que nenhuma de vocês conhece”, foi a resposta. Compôs-se na máquina de costura e deu asas à imaginação.

As colegas encolheram os ombros e começaram duvidar da sua sanidade mental.

 

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

 

Há algumas semanas no grupo de whatsapp “PIONEIROS USTM” no qual faço parte, recebi um vídeo de uma senhora, aparentemente inteligente e sofisticada como a sua dicção e articulação indicavam. Pelo sotaque, acredito que seja moçambicana. No dito vídeo, dentre outras reclamações, a senhora fazia menção ao facto de não poder “manter gravidezes” durante 9 meses e que o problema estaria relacionado com a empresa em que trabalhava (sector bancário). Dizia ainda que teria engravidado 3 meses depois de ter tido o seu primeiro filho e diz, passo a citar: “se o trabalho tiver que parar, que pare”; “prioridade não é mais a empresa”; “na empresa ninguém quer saber de si” (neste caso, seus colegas).

As redes sociais tornaram-se  nos últimos tempos meios incontornáveis para a promoção da imagem profissional e pessoal. As redes sociais permitem-nos partilhar informações, ideias, eventos profissionais, momentos com amigos e familiares. As redes sociais são uma plataforma ideal para a “venda da imagem”, seja na procura de trabalho ou mesmo para a venda de um produto ou serviço. Mas estes impactos positivos na esfera do usuário somente  acontecem quando estas ferramentas são bem usadas, pois, por outro lado, as redes sociais podem arruinar a carreira profissional ou mesmo a vida de um indivíduo.

Ponto de vista de um recrutador de talentos

Num processo de recrutamento, um bom diploma tem sido cada vez menos relevante na selecção do melhor candidato, pois o mercado está abarrotado de candidatos formados/diplomados. Hoje em dia é fácil para uma empresa encontrar o especialista que deseja ou formar um candidato mesmo sem sair de casa num período muito curto. Mas se  falarmos de qualidades interpessoais, os famosos  soft skills, essas são muito difíceis de serem avaliadas a partir de CVs ou de entrevistas de trabalho e/ou mesmo formar um candidato para obtenção dessas qualidades. Não obstante serem as qualidades mais exigidas pelos empregadores actualmente, cada vez menos candidatos dispõem dessas qualidades.

Sendo os soft skills qualidades fundamentais para a performance das empresas, no entanto difíceis de avaliar e encontrar nos candidatos, os recrutadores assim como os empregadores usam cada vez mais as redes sociais para  obter mais informações sobre a vida pessoal e comportamental dos seus candidatos e colaboradores. É por estas e por várias outras razões que devemos reflectir antes de fazer qualquer comentário nas redes sociais.

Caso queiram fazer comentários nas redes sociais lembrem-se sempre de: não fazer comentários negativos sobre a empresa onde  trabalha/ou aonde trabalhou; não faça comentários racistas ou homofóbicos; não façam vídeos ou mensagens quando estão sobrecarregados de emoção; não critique seus (ex) colegas e clientes de qualquer forma que seja; evite ao máximo possível expor sua vida privada.

No mesmo vídeo a mesma senhora fala do sacrifício que fazia: “…passava noites no hospital a cuidar do meu filho recém nascido, depois de um dia inteiro no trabalho, passava para dar um beijinho ao meu filho mais velho, em casa, para depois poder voltar ao hospital”. Na altura tive vontade de dizer “Bravo!!!”. Pois são estas histórias que num processo de recrutamento, nós, recrutadores, gostamos de ouvir. Estas histórias mostram coragem, motivação, comprometimento e dedicação. Mas só são boas de serem ouvidas se forem contadas no sentido positivo, sem culpabilizar a nenhum terceiro ou entidade pela situação. Um bom profissional assume sempre a responsabilidade da sua situação; um bom profissional dialoga com os seus superiores sobre seus problemas (mesmo pessoais) e caso não haja entendimento, com classe, pode, por exemplo, pedir para mudar de departamento; em último caso, um bom profissional pode considerar um pedido de demissão, mas em circunstância alguma um bom profissional fala mal da empresa com a qual têm um vínculo profissional e nem termina mal, por sua iniciativa, qualquer relação profissional;  um bom profissional tem compromisso não apenas com a empresa, mas também com seus colegas que apreciam a empresa e com a sociedade que precisa ver a empresa prosperar para o bem da comunidade; um bom profissional não pode ser um  xiconhoca*.

Ponto de vista de um empreendedor

Só um empreendedor conhece a dor de passar horas sem dormir a trabalhar e não conseguir pagar seu próprio salário em detrimento dos seus colaboradores, só um empreendedor sabe o que é ter dívidas com a banca, com o Estado, e por vezes ter de fechar as portas. Eu conheço essa dor. Portanto, ver jovens que deviam estar a dar o seu melhor para prospecção de empresas no nosso país dizerem “o trabalho  que pare de novo”, “o médico que me dê atestado novamente para eu ficar em casa”, é muito triste. Estas atitudes são na minha opinião piores do que corrupção. Corrupção podemos qualificar como uma atitude egocêntrica que pode tentar a todos seres humanos em algum momento, movidos por uma ganância em enriquecer rápidamente. No entanto estas atitudes, igualmente ou mais gravosas, classifico de sabotagem gratuita.

Se o trabalho da banca parar, quem vai fazer a transação ao fornecedor de medicamentos que o HCM precisa para a criança?  Quem vai finalizar a transação do salário do enfermeiro que está a cuidar da criança ou do médico para dar o tal atestado?

Recentemente a Olam anunciou o encerramento da fábrica de processamento da castanha de caju em Moçambique, justificando  recorrentes dificuldades em aceder a matéria-prima de qualidade nos volumes necessários. São cerca de 1750 trabalhadores directa ou indirectamente  afectados.

A Total Exploration & Production Área 1, Limitada (“Total”)  disse no passado dia 23 de fevereiro na voz do seu Director Comercial, o Dr. Leonardo Nhavoto, que algumas empresas Moçambicanas não são aceites como provedoras de serviços para os projectos da Total, pois “os seus produtos não apresentam a qualidade requerida e/ou nos seus processos de produção não cumprem com os requisitos mínimos de HSE exigidos para a prestação dos seus serviços no contexto da indústria do Petróleo e Gás.

Gostava de perguntar: Quem são essas empresas? Quem são os responsáveis pela qualidade e quantidade exigidas pela Olam e a Total?

Somos nós, nós jovens moçambicanos. As empresas são na verdade uma ficção, sem as pessoas, mesmo tendo equipamentos modernos as empresas não produzem “nem qualidade” e “nem quantidade”. Mas nós não, nós não somos ficção. Nós somos uma realidade. Portanto, somos nós responsáveis pela qualidade e pela quantidade de trabalho exigido.

Em 1776 (The wealth of nation) Adam Smith dizia: “nossa necessidade individual de satisfazer o interesse próprio resulta em benefício para a sociedade, no que é conhecido como sua “mão invisível”, segue-se que um aumento nos lucros dos empresários privados que é a base para o aumento da riqueza e da prosperidade coletivas”. Adam Smith quis dizer com isso que ao participarmos na riqueza de um único indivíduo ou das empresas, estamos a contribuir para a prosperidade de um grupo alargado de indivíduos.  Façamos disto nossa missão.

O presidente Joaquim Chissano, assim como o Dr. Helder Martins deram a sua juventude engajados no processo de libertação da nossa nação. Ou seja, estes Madalas* deram boa parte da sua juventude para que hoje, nós jovens moçambicanos sejamos “parcialmente independentes”. É nossa responsabilidade lutar para que ganhemos a outra parte da independência, que é sem dúvidas essencialmente econômica. Ninguém fará  isso por nós. É única e exclusivamente nossa responsabilidade. Se individualmente formos comprometidos com a causa, colectivamente seremos imparáveis. EU ACREDITO EM NÓS.  

*Xiconhoca – Sabotador

*Madala –  Ancião

Recomendação de livro para o mês de Maio 2021: The Secret Letters of a Psychotherapist–“Sharlene Sema Raston”

Samuel Gerson Andrisse

Especialista em recrutamento

Autor do livro “Be ready for your next job interview”

www.kensyle-recruitment.com

O casamento é uma parceria e não uma democracia.
Nicholas Sparks.

Muitas vezes, a literatura infanto-juvenil moçambicana explora universos campesinos. Como se observa em O casamento misterioso de Mwidja, o campo e as suas circunstâncias são o motor da narrativa cujo alicerce é a tradição oral – aprofundo esta constatação num artigo a publicar brevemente. Assim, ao invés de prédios, congestionamentos de viaturas e movimentos acelerados, neste caso, o livro de Alexandre Dunduro implora uma história pausada, farta em lições cristalinas.

Mwidja, logo se vê, é uma rapariga que cresce numa família humilde e conservadora. Logo, o que a norteia são valores que a engrandecem o sentido de fraternidade, pelo menos enquanto as religiões do coração estão livres de delicadezas estranhas, como diria Émile Zola. Quando a menina torna-se mulher encantadora, em contrapartida, inicia um processo de resistência em relação à educação proporcionada pelos pais. Por isso, ao invés de se casar com um candidato da sua aldeia, conforme a tradição, a presunção alimentada pela beleza cega-a e aí é introduzido um problema a comprometer a paz inicial. “Eu quero casar-me com alguém que venha de longe, de um povoado longínquo. Aqui em Chimbitucula não vejo ninguém que me mereça pois não são bons caçadores nem bons pescadores” (p. 5).

A afirmação torna Mwidja uma personagem vulgar e um exemplo de desrespeito à decência. E esse confronto retira-a protecção familiar, comunitária e, portanto, espiritual. Atentos à vulnerabilidade consequente, rapidamente, os vilões do povoado de Nditoda aproveitam-se do intervalo de lucidez da protagonista para a propor um casamento afinal misterioso. O episódio faz do conto de Alexandre Dunduro um desempenho cheio de intencionalidade. Tomando Mwidja como modelo, as acções do universo diegético conspiram para que a escolha da personagem resulte em consequência perniciosa. Não obstante, por julgar os homens em função da sua bravura ou da sua origem, Mwidja perde o contacto com o seu chão e com isso o discernimento. Então, como se pretendesse corrigir comportamentos, o discurso do narrador esmera-se em esclarecer que as pessoas valem pelo que são e pelas relações que mantém com a família. Para esta posição vingar, a ovelha negra de Chimbitucula é conduzida à gruta das hienas, onde paira o pavor, a incerteza e a desumanidade.

Claro está, O casamento misterioso de Mwidja move relações de interdependência na estruturação de uma sociedade pacífica, daí o enredo iluminar zonas de perigo que se podem expandir se os integrantes de uma pequena aldeia resolverem fazer da sua vida um exílio, isto é, à margem dos interesses colectivos. Neste e em vários outros aspectos, o texto de Alexandre Dunduro institui uma relação intertextual com o conto Leona, a filha do silêncio, de Marcelo Panguana. Em ambos os casos, duas jovens personagens reivindicam o direito de escolher o noivo, aparentemente, por encontrarem na felicidade algo instantâneo. No primeiro caso, a escolha é decepcionante. No segundo, o tempo dá razão à Leona. À parte essa diferença, as duas histórias colocam a rapariga ou a mulher, por analogia, no centro do seu próprio destino. Mwidja e Leona são sujeitos activos da oração e ninguém as demove mesmo parecendo erradas, o que dilata perspectivas cruciais ao debate sobre sincero sobre a mulher moçambicana por educar.

Ora, bem diferente de Leona, ao activar o seu instinto perverso, Mwidja faz-se ponte entre o bem e o mal. Nessa aproximação, entretanto, não se adivinha nada de positivo. Pelo contrário, a arrogância da protagonista atrai a Chimbitucula os que, de outro modo, nunca colocariam vidas em risco. Há em tudo um perigo à espreita, logo o conto de Dunduro tanto pode ser usado na educação das crianças quanto na dos que se deixam iludir pelas aparências.

Num outro ângulo, ler a história de Mwidja pode motivar uma certa discussão sobre como, em determinadas circunstâncias, as populações humildes colocam-se em xeque ao abrirem portas do seu território a desconhecidos estrangeiros. Mbitisse, noivo de Mwidja, é esse estrangeiro disfarçado, com intenções estranhas, que chega e apropria-se do que a aldeia de Chimbitucula tem de melhor. Obviamente, isso não teria acontecido sem a colaboração ingénua de Mwidja. Esse tipo de episódio não se passa apenas na ficção. Aliás, nesse sentido, a literatura (e a escrita de Dunduro, em particular) cumpre essa tarefa de despertar leituras sobre esta actualidade confusa que Moçambique enfrenta.

Título: O casamento misterioso de Mwidja
Autor: Alexandre Dunduro
Editora: Escola Portuguesa
Classificação: 13

…através deste decreto designa-se Dirdapkov para o cargo de Vice-rei e, por deferência, são-lhe incumbidas as tarefas de Rei.

 

Estas foram as últimas linhas do decreto que mesmo sem tencioná-lo silenciara as más-línguas que já se faziam ecoar no reino de Iemicecénia quando os boatos de uma iminente sucessão eclodiram.

Bem nas imediações da floresta boreal enquanto a União Soviética vivia os seus mais memoriais dias de glórias, aninhara-se um reino ao qual os documentos históricos pouco se referiram por não se ter tonificado em conversas que ao belicismo dizem respeito nem à produção agrícola que eram os labores mais vangloriados naquelas latitudes. Dele apenas encontram-se dois parágrafos que os historiadores dedicaram ao labor comercial que se engendrara naquela época em todo o Hemisfério Norte. E, haja justiça, mesmo que não tenha sido o único reino a se dedicar nessas matérias, Imececénia merecera os parcos parágrafos da história daquela região por se ter evidenciado no trato com o comércio. Dizem as lendas cartográficas que a sua exclusão na configuração dos mapas mundiais não fora propositada mas fora obra de um insólito infortúnio que ocorrera por cima da escrivaninha de Ptolomeu (pai da cartografia) quando um rato roera parte dos seus desenhos bem na área em que se representava o vasto reino de Iemececénia. Vencido pelos ditames da idade nada condescendentes com a argúcia intelectual, Ptolomeu não conseguiu deter o famigerado rato, daí a unanimidade das lendas em concluir que, em termos cartográficos, Imececénia localiza-se no buraco do rato.

Pronto! Deixemos as divagações típicas de narradores para quem o tempo e a ansiedade dos leitores são fontes entretenimento e voltemos à investidura de Dirdapkov.

Naquela manhã as ruas pareciam tapetes feitos de folhas secas que cobriam todas as vias de acesso ao palácio real onde iria decorrer a cerimónia. Era outono. Os presentes já se haviam antecipado para ocupar os lugares mais cimeiros dos quais iriam satisfazer as suas dúvidas. Saciar as suas espectativas. Confirmar os seus prognósticos.

«Julgo que Dirdapkov será elevado ao cargo de Rei, é o mais indicado» diziam vozes doutros reinos que se informavam sobre Iemececénia como se do seu reino de tratasse. «Ah, não! Dirdapkov parece novo para os zelos diários de um reino daquela magnitude, suponho que com a crise que se vive noutros reinos o conselho de anciãos irá chamar a si as responsabilidades do reinado e Dirdapkov continuará exercendo as suas tarefas na condição de vice-rei» assim opinavam vozes de distantes reinos que pouco ou nada sabiam sobre o reino nem conheciam o Dirdapkov em actividades do reinado senão em vagos encontros dos cavalheiros após uma batalha vencida ou no fim de uma actividade de caça que era prosseguida por rios de vinho que se escoriam pela goela adentro e faziam dos estômagos dos cavalheiros uma espécie de foz de um rio farto.

Fosse por um ou outro caminho, a unanimidade entre os presentes só se escancarava numa só certeza: após nove anos de reinado, Matenin Azarikov tornar-se-ia num antecessor de qualquer que fosse o novo rei.

Não que se possa dizer que Azarikov não esperava que aquela fatídica manhã chegasse mas também não fazia ouvidos de mercador aos murmúrios maldizentes, que nunca se calam mesmo em momentos típicos de absoluto silêncio, para as quais a durabilidade do seu reinado era uma espécie de um quiz no qual a eternidade era a pontuação máxima e única provável.

Dirdapkov e Azarikov não eram estranhos e mesmo naquele momento de tamanha tensão a estranheza não lhes embateu o peito nem a alma: juntos laboravam haviam anos. Aguardando a chegada do conselho de anciãos, abriram o verbo sobre lugares-comuns numa conversa muito horizontal que não se lhes cabia ao relacionamento vertical que tinham até àquele instante e se rompeu com a leitura do decreto.

Sobre o curioso decreto, o conselho de anciãos deteve-se por cerca de dezasseis semanas, vinte e quatro reuniões das quais surgiram quarenta e oito esboços do documento que iria definir o novo e, diga-se, inédito figurino da liderança do reino. Nas prolongadas reuniões, o nó de estrangulamento em nada se aproximava à continuidade de Azarikov no reinado. A sua cessação era já uma sentença, à qual ele próprio se antecedera. Discutia-se sim a colocação de uma outra figura no cargo de rei e a substituição de Dirdapkov caso este ascendesse. A sua ascensão não colhia consensos no conselho devido à sua multiplicidade de tarefas naquela região, o que predizia contínuas ausências nos cuidados do reinado, argumento que era imediatamente escamoteado por outras vozes que se socorriam, com razão, do perfil de Azarikov, que era mesmo esse, para justificar a sua visão. Outras mais ortodoxas apontavam a juventude de Dirdapkov como sendo o calcanhar de Aquiles do seu perfil para aquele cargo, o que gerou uma inesperada, escaldante e duradoura discussão que dividiu os anciãos em ortodoxos e vanguardistas. Os primeiros já se haviam esgotado nos argumentos mas os últimos vincavam o despautério que tais posições denotavam porque (1) viam na idade algo muito além dos números, (2) a maturidade de Dirdapkov para os zelos do reinado podia até suplantar a de outros cujos números etários roçavam os cinquenta, (3) davam exemplos de outros reinos mais vanguardistas bem a leste de Iemececénia que tinham indivíduos na aura da juventude exercendo o reinado com algum zelo exemplar.

Passadas dezasseis semanas, vinte e quatro reuniões das quais surgiram quarenta e oito esboços do decreto, os argumentos das alas não se harmonizavam. Eis que naquela manhã publicou-se o curioso decreto cujo excerto epigrafa estas breves notas.

 

 

 

 

Para

Albino Macuácua

 

Meu primo Germantino falou-me do novo bar, mas eu não acreditei. Era simplesmente impossível, incompreensível de todo um bar abrir apenas aos Domingos. Não no nosso bairro, «…o bairro dos bebedores inveterados», como disse um dia a caixa de um extinto jornal, aludindo ao facto de as fábricas de cerveja recrutarem entre nós os seus provadores mais oficiais.

Isso então não pode ser um bar, disse-lhe, Deve haver algo muito sujo lá dentro. O Germantino garantiu-me entretanto que era, mas não um bar qualquer, e quando ele fez um nó com os dedos indicadores, beijou-o e disse xikwembu xihanyaka, aquela novidade transformou-se na minha curiosidade incontida.

‒ Então vamos lá tentar bater uma Laura…

O Germantino não podia aceitar o desafio, tinha parado de beber nem ele sabia porquê. Acordou um dia e disse simplesmente Já não bebo!

‒ Já não bebes?! ‒ saltei do banco de madeira onde me sentava, a ponto de atirá-lo na direcção da Maria, a mais velha servente do Tio Tchoinado que naquele momento ia a passar com umas cervejas. A Maria tropeçou no banco admirado e as canecas acabaram escaqueiradas no soalho do bar. O Germantino pôs-se a rir das despesas do meu espanto, porque logo a seguir ela colocou na nossa mesa a conta das oito canecas bem calculada, de um lado o conteúdo e do outro o recipiente.

Eu ia insistir com aquela do meu primo parar de beber, pois desde o seu regresso da Alemanha tinha inspirado tanta gente a acreditar nos benefícios da cevada que se tornou no engenhoso criador da fama do nosso bairro, mas uma malta juntou-se à nossa mesa e já não valia a pena, nem todos ali eram amigos do Germantino. As minhas cautelas foram entretanto água em cima de pato, pois o pessoal assustou-se à mesma quando ele pediu sumo de laranja. Se uns perguntavam se ele estava doente, outros ameaçavam abandonar a nossa mesa. A Maria respondeu assustada que não vendia sumos, mas ofereceu-se para comprar numa mercearia do lado e depois colocou a gelar nos seus frigoríficos. A Maria gostava do Germantino, eu sempre soube, mas essa é outra história. O facto é que aparentemente todos aceitamos a mudança do meu primo, porque até chamamos um rapaz que andava ali a vender amendoim torrado e pedimos para ir comprar mais à mercearia, e ninguém admirou quando ouvimos a ameaça contra o miúdo:

‒ Hei, puto, ver bem a validade, senão eu é que te vou expirar…

O Germantino bebeu muitos litros de sumo, a ponto de ter a incrível ideia de erguer um pomar algures para um negócio qualquer que já ninguém quis ouvir. A partir desse dia, deixamos de nos ver como era habitual, no bar. É que no fim eu tive mesmo que lhe dizer:

‒ Primo, não é nada pessoal, mas não andas mais connosco. Desculpa lá, mas assim também não dá.

Portanto, para resolver o caso do bar que só abria aos Domingos, eu devia procurar alguém que ainda jogasse na nossa liga. Mas não podia ser apenas um jogador, antes tinha de ser um adepto muito ferrenho, como o Filipe, o Alexandre ou o António Descoberto, mas estes também andavam com ideias esquisitas. O primeiro meteu-se numas secas que de tão molhadas via-se claramente que aquilo era uma forma de sair da liga à francesa. O tipo era capaz de adicionar dez cubos de gelo num simples de uísque. Ninguém entendia aonde o Filipe ia assim sorrateiramente.

O Alexandre disse-me que tinha bebido cerveja toda vida e que a morte devia encontrá-lo rejuvenescido, por isso passou a beber vinho. Eu viria a descobrir que essa decisão afinal tomou-a depois de perder o emprego. Nessa altura percebeu que com um único pacote de vinho era capaz de andar exilado de tanta miséria como quando emborcava 36 bazucas. Como disse um dia o Germantino no seu melhor humor, o caso do Alexandre era uma questão de gestão álcooleconómica.

Já o António Descoberto só queria saber de cuidar dos filhos, porque descobriu que a mulher rivalizava com ele. Aconteceu num 7 de Abril: ao invés de a senhora voltar das celebrações com lenços, rosas e capulanas, entrou em casa a tropeçar num canto esquecido:

Eu vou morrer na escolinha

Com copo de vinho na mão…

Mal ouviram a voz da mãe, os filhos foram a correr para a abraçar, mas o Descoberto, que não podia ouvir a outra parte da canção pueril, bloqueou-lhes a saudade e tratou imediatamente de esconder as crianças na casa de banho, e acusou-lhes de terem despachado o banho.

‒ Tomem de novo.

Quando regressou à sala, a mulher ressonava derrubada no velho sofá encardido, sem uma capulana nova para cobrir-lhe as vergonhas descobertas. Segurava entretanto, firme na mão direita, um copo descartável com uma réstia de vinho tinto. Talvez por causa dessa firmeza o António quis saber: «Onde deixaste a calcinha estavas com quem?» E abanou-a para ver se havia uma confissão, mas a única coisa que ouviu foi um roçagar metálico e o ruflar de um saco plástico que a mão esquerda deixava pender com o peso de três latas de cerveja, um maço de cigarros quase vazio, uma garrafinha de uísque, uma peruca desgrenhada e dois preservativos.

Não podia ser com nenhum dos três. Só me restava o Chico Traquina, um sujeito que eu não suportava desde que abandonou a minha irmã. Tínhamos entretanto ajustado as contas porque eu convenci a mana a meter o caso na Justiça e assim garantir a pensão do filho deles. Apresentei então o problema ao Chico, disse-lhe que tinha ficado na esquina oposta ao bar um dia inteiro e que como um detetive tinha detetado muitos detalhes. Mas em síntese o caso era o seguinte: apesar de estar aberto, ninguém ousava beber naquele bar, pois todos que eu tinha visto a entrar saiam imediatamente enquanto atiravam manguitos não sabia eu para quem.

‒ Vamos lá…

‒ Tu não entendeste: Aberto aos Domingos

‒ Ouve cá, no meu bairro nenhum bar abre apenas aos Domingos.

‒ É o que diz o letreiro…

‒ Que brincadeira é essa? Eu só quero provar a cerveja. E digo-te: se não prestar é porque o gajo vende merdas e o álcool é apenas um pretexto. Porra, ainda lhe fazemos um abaixo-assinado… Cerveja apenas aos Domingos, essa é que era boa!

O Chico ainda sugeriu que levássemos connosco a Joana Ajoelha, mas eu não concordei. A Joana tem um problema muito sério: a coitada até gosta de beber, mas não engrossa e assim não nos permite qualquer avanço sobre o seu peito bojudo. É muito bonita, a Joana, mas não ajoelha para ninguém. A única vez que isso aconteceu foi quando nós, eu, o Traquina, o Filipe e o Alexandre, sugerimos ao António Descoberto um amor sem sonhos nem desculpas, e até chamamos para ele uma prostituta que o Chico conhecia muito bem, porque a tinha amado incondicionalmente. Nós queríamos muito que ele se curasse das traições da mulher, mas nisto apareceu a Joana, menina-senhora sem amigas, boa conversadora e amiga de um grupo de bêbados poetas da vida. Ela, muito esperta, percebeu imediatamente a missão daquela rameira já sentada no colo do António.

‒ Então é assim que vocês resolvem os cornos do vosso amigo?!

A Joana mandou embora a jovem e pegou o António pelas goelas:

‒ Tu agora vens comigo!

Aquilo era tão inusitado que nós queríamos acreditar que pela primeira vez a Joana tinha apanhado uma bebedeira, mas também era-nos difícil aceitar esse ciúme sem procurar o sacana autor da proeza que era embriagar a nossa amiga, a nossa Joana. Vimos o António impotente, a ser arrastado por um corredor que ia dar às casas de banho do Tio Tchonado e esperamos atónitos. Passados exactos quinze minutos, o nosso amigo regressou exultante, parou no meio do salão, abriu os braços e gritou para os bêbados como quem acabava de marcar o golo da desforra:

‒ Afinal a Joana ajoelhaaaaaa!!!…

Nunca soubemos o que realmente aconteceu no fundo do corredor, mas a Joana saiu também muito feliz. Nunca mais soube se eles se meteram nalguma outra escuridão, mas também podia ser o caso de não quererem que soubéssemos que continuavam a iluminar-se. Esta é, na verdade, a principal razão por que neguei levar a Joana connosco: confesso que ela nunca ajoelhou para mim… Enfim:

‒ Não levamos a Joana e ponto final.

Quando chegámos o bar estava vazio. Era um pub bonito e ao mesmo tempo estranho, o que o tornava atraente. Tinha um estilo industrial um tanto antiquado: o espaço havia sido adaptado de uma oficina colonial fechada durante mais de trinta anos. O dono conservara o chão de cimento, dando-lhe apenas algumas pinceladas irregulares com tinta branca para limpar os óleos. O que mais me impressionou foi ver, suspenso bem no centro do salão, o chassi de um camião militar Mercedes Benz, que nós chamávamos de Matchedge. A estrutura militar mantinha-se imperturbável e confiante nas suas glórias, memórias entretanto disfarçadas pela arte de algum grafiteiro que se tinha empenhado em exorcizar nela os anos de guerra com o amarelo, o branco, o vermelho e o azul da sua juventude.

As luzes intermitentes entre piscas, presenças, máximos e emergências, eram distribuídas pelos cantos inferiores, rentes ao chão, e projectavam sobre o chassi do Matchedge e nas paredes um mundo alternativo. Entre as quatro paredes havia uma especial, onde desenhavam-se a carvão outros carros da História, um Lada, um Niva e um Whaz. Nas restantes três paredes o proprietário tinha chamado algum artista plástico para fazer coisas da sua cabeça pós-moderna.

Ao lado da parede oposta ao mural da História, erguia-se uma área restrita a quem quisesse beber uma cerveja aos bancos de um Lada amarelo impecável. As mesas do bar eram de paletes de madeira em bases de jantes grafitadas com cores quentes e os assentos feitos de eixos embutidos no chão, encimados por pneus cortados e ajustados à longa conversa da gente que sabe que a vida é bela. Para a música havia uma jukebox mesmo debaixo do Matchedge, mas apenas tocava para os amantes de jazz ou de blues.

Quando chegamos ao balcão vimos quatro torneiras muito bonitas e geladas. Aqueles finos de certeza não se bebiam em qualquer parte do mundo e como sairiam apetecíveis os dois malucos e a Dona Laura! Chico Traquina ficou tão sequioso que não quis esperar pelos meus salamaleques, pediu logo:

‒ Uma Laura…

De repente todos empregados suspenderam os gestos habituais e olharam para dois sujeitos que às dez horas de uma terça-feira queriam beber cerveja. O barman ignorou-nos e continuou a fingir que limpava umas serpentinas. E todos começaram a fingir estar a limpar qualquer coisa que devia estar já muito limpa. Voltei o olhar para as quatro torneiras fumegantes de gelo, sobre as quais seis faróis, engastados no porta-copos de madeira um metro acima do balcão, derramavam luzes amarelas, verdes e vermelhas. Que maravilha!, disse o Chico em voz alta. É das luzes, adverti eu, mas sem deixar de meter goela abaixo um fino imaginado e esperado. Aquilo só podia ser obra de algum Sabazius de nacionalidade moçambicano. Esta ideia fez-me esquecer as mesuras que o Traquina detesta no meu comportamento e pedi como quem ordena:

‒ Dois malucos…

O homem das torneiras mirou-nos e disse simplesmente:

‒ Apenas aos Domingos… ‒ e afastou-se na direcção da garrafeira de vinhos atrás de si.

Será que Germantino tinha razão?, pensei.

‒ Mas então não estão abertos?!

O barman respondeu-nos de costas enquanto limpava os vinhos, mas percebemos perfeitamente que o estúpido sorria:

‒ Estamos abertos aos Domingos…

‒ E aquelas portas ali abertas?!

‒ Os bares não foram feitos para ficarem fechados ‒ disse de forma incompreensivelmente arrogante.

O Chico Traquina gostava de dizer que o álcool nunca nos pode aborrecer, por isso puxou-me pelo braço e disse «Não estamos aqui para mendigar favores a um empregado». Eu ainda lhe disse que, a ponto de nos impedir de beber, ele bem podia ser dono daquilo tudo, «Dono uma ova, só se eu for primo de Platão». De seguida arrastou-me para fora enquanto garantia em voz alta que voltaríamos no tal Domingo, porque aquele bairro era nosso, e ameaçou: quisessem fazer negócio na nossa república, perguntassem primeiro aos concorrentes como se afinavam as toneiras por ali. E fomos sentar no Tio Tchonado, o nosso velho e bom bar de todos os tempos, a dois quarteirões dali, onde inclusive podíamos encontrar todas as prostitutas do mundo. Mas, ainda que tentássemos evitar, ficamos todo o dia a mastigar aquele insulto.

No Domingo seguinte, fui acordar o Chico para irmos ao único bar no mundo onde só se bebe em dia sagrado. Ele ainda se mostrou indisposto, preferia ir ver as miúdas dele no Tchonado, mas eu disse que o novo bar era bom para lavar a alma, porque, pensando bem, não era um bar qualquer, e prometi pagar a conta. Ele aceitou, não porque eu pagaria a conta, mas porque custava-lhe admitir aquele insulto ainda grudado aos nervos, disse-me. E disse também que era urgente resolver o caso, porque aquele bairro era muito nosso. Aliás, para beber de borla todos tínhamos o Tchonado. «Essa cevada deve ser muito milagrosa», ainda o ouvi dizer aos seus botões.

Quando chegamos ao bar havia bêbados do mundo inteiro a abarrotar a antiga oficina que não podíamos acreditar, mas o Traquina observou imediatamente e certeiro:

‒ Estes bêbados não conheço. Quem são?

E tinha razão o meu amigo. Não havia uma cara sequer do nosso bairro. Entramos às cotoveladas por entre o mar de gente para poder chegar ao balcão, ao mesmo balcão que na terça-feira tínhamos alcançado tranquilamente. «Esta dificuldade é sinal de que hoje não morremos na praia», disse o Chico a gritar para se fazer ouvir no meio das gargalhadas, dos brindes e das inconfidências desconhecidas. Quando finalmente alcançámos o balcão, lá estava o mesmo homem sem graça das torneiras.

‒ Algo me diz que tu és capaz de não só ser primo de Platão, como também um dos melhores amigos de Sócrates… ‒ disse eu no ouvido do Traquina, mas ele nem respondeu, fez imediatamente soar uma buzina que na terça não a descobrimos junto a uma das torneiras e gritou como quem exige um ajuste de contas:

‒ Dois malucos…

‒ Apenas aos Domingos…

‒ Mas hoje é Domingo, porra. Dá lá cerveja…

Quando o Traquina parou de gritar, os bêbados pendurados no balcão desataram a rir. Dois que estavam bem ao nosso lado abriram as carteiras e mostraram-nos os bilhetes de identidade: Domingos Bartolomeu Xavier, um, e Domingos Nasceu Ontem, o outro. Apercebendo-se da exibição, um terceiro sujeito, já a soluçar pedidos de mais um fino, também tirou o seu bilhete e apresentou-se: Sonto de Jesus Gomate. Nisto ainda caiu uma senhorita nas minhas costas, virou-se atrapalhada, pediu-me desculpas a sorrir de bêbada e disse enquanto tentava disciplinar uma saia curta:

‒ Eu sou Domingas, qualquer coisa estou aqui…

Foi então que percebemos as identidades daqueles estrangeiros e doeu-nos saber que éramos mais estrangeiros que todos eles. Uma casa pode ser um lugar estranho, por isso saímos. Lá fora, esperava-nos o mano Germantino:

‒ Então, aí nesse bar que tal são as cevadas, alguma novidade? Cá por mim tomávamos um sumo de…

‒ Fecha essa boca, Germantino ‒ disse o Chico nervoso e encaminhou-se rapidamente em direcção ao Tio Tchonado, mas ainda o pudemos ouvir a murmurar pelo menos três vezes: «só precisávamos de uns bilhetes alternativos, porra!», «precisamos de uns bilhetes alternativos!», «só preciso de um bilhete bem alternativo!»…

 

 

Horácio Gonçalves é, hoje por hoje, uma espécie de “menina dos olhos de todos”. Pudera, no “ad eternum” marco de uma nova era na bola indígena, foi indicado como novo timoneiro dos depreciados Mambas. Um campeonato nacional ganho em 2019, duas Supertaças Mário Coluna (ndr: o nível de desorganização evidenciada numa das edições não valoriza a lenda do futebol mundial) e um troféu no então sugestivo e apetecível Torneio Mavila Boy seduziram Feizal Sidat e seus semelhantes a apostar no técnico de 58 anos.

Com uma folha de serviço na qual se destaca a passagem por clubes de segundo plano do futebol português, Horácio Gonçalves sucede a Luís, despedido num processo com pernas para terminar em tribunal e com contornos de indemnização, caso este e a Federação Moçambicana de Futebol não cheguem a acordo de “cavalheiros”. Luís Gonçalves falhou o objectivo principal de levar os Mambas ao CAN 2022, nos Camarões, após derrota com Cabo Verde, por 1-0, no Estádio Nacional do Zimpeto, mas fala de outras “componentes” que regem o contrato rubricado com a FMF na era de Alberto Simango Jr.

Lapsos de comunicação á parte, Horácio Gonçalves foi o escolhido dentre um leque de treinadores nacionais e estrangeiros que piscavam o olho ao comando da selecção nacional. A sua escolha provocou, a mim, particularmente, quase um acesso de cólera porque esperava mais ousadia e rigor da Federação Moçambicana de Futebol na definição daquele que vai comandar a marcha da viragem na forma como abordamos os processos na modalidade rei, hoje a navegar na mediocridade e constante coro de lamentações. Esperava, sinceramente, que a Federação Moçambicana de Futebol definisse e tornasse público, antes de mais, o perfil do novo seleccionador nacional para que ficassem claros os critérios da sua escolha ou indicação. Como moçambicano, e cansado de tanta pancada a cada vez que os Mambas jogam, esperava por uma figura com qualidades reconhecida e curriculum inquestionável.

Não foi o que aconteceu.

Porca Madona.

Aristides: Como diria o outro.

Parece-me, neste capítulo, que a estratégia para o pesadelo de relações públicas há algum tempo foi definida: largar a bomba e esperar que a poeira assente. Voltando aos critérios, penso ser importante destacar o facto de ser fundamental para se operar qualquer mudança e avançar com um processo de renovação ter algum conhecimento profundo do futebol moçambicano. Ai, sem desprimor para os estrangeiros que até tem muita qualidade, penso existirem nomes nacionais com idoneidade, competência e obra feita para orientar os Mambas.

Sou claramente defensor de barro da aposta em treinadores com perfil e que conheçam as fundações do futebol moçambicano. E exemplos não faltam. Chiquinho Conde, por exemplo, já deu provas disso quando desenvolveu um bom trabalho no projecto “Locomotiva Esperança”.

Temos, e não hajam dúvidas disso, treinadores talhados como João Chissano e Artur Semedo cujo trabalho nos clubes que passaram evidenciam a qualidade de jogo das mesmas colectividades e potenciação de valores.

É preciso abandonar o oráculo de que os treinadores nacionais não servem e que a prioridade deve ser para os estrangeiros, supostamente melhor preparados. A experiência do passado já nos trouxe dissabores que bastam.

Já tivemos um ilustre desconhecido chamado Gert Engels que nada acrescentou de valor aos Mambas.

Esta política desorientada da Federação Moçambicana de Futebol e falta de visão clara das premissas para se dar o salto qualitativo, assusta. Afunda cada vez mais o futebol, decepciona os requisitantes (adeptos) de momentos para a posterioridade: sucesso dos Mambas. Feizal Sidat, meu caro, é preciso pensar alto. É preciso ser mais rigoroso e acertivo na escolha de treinadores. Precisamos de gente formada, sim, mas com capacidade reconhecida para significar os Mambas. Os processos de escolha devem ser claros, sob o risco de termos pessoas cujo valor que irão acrescentar ao futebol são zeros atrás de zeros nos seus números nas suas contas bancárias.

Já agora, e dentro dos resultados imediatos que anseamos para afogar as mágoas, foi definido que Horácio Gonçalves deve levar os Mambas ao CAN_2023, CHAN e fazer uma boa campanha no COSAFA. Para tal, claramente, é preciso que haja estrutura, cometimento, qualidade, competência e um alinhamento. A questão que não quer calar: temos estrutura e qualidade para atacar estas provas? A FMF criou condições para uma campanha tranquila, sem ruídos de comunicação e alheamento tal como aconteceu em alguns momentos da fase de qualificação para o CAN Camarões 2022? Estamos recordados do desalinhamento com Luís Gonçalves, pelo menos no aspecto da antecipação do jogo com Ruanda. Há garantias que não teremos interferência no trabalho de Horácio Gonçalves, particularmente, nas suas escolhas?

Num mundo desportivo cada vez mais aliado a ciência, os processos são estudados e ensaiados. Qual o modelo de jogo? Que trabalho sério de formação de novos valores (orientados por gente qualificada) é que a FMF tem na forja?

Ao nível de infraestruturas de qualidade e de apoio às selecções de formação, que investimento está a ser levado a cabo? E aqui, senhores, é preciso que haja clareza nos critérios de escolha dos recintos que passam a ostentar o nome de “casa das selecções de formação”? O que pesou, por exemplo, para a escolha do campo do Afrin em detrimento dos outros campos?

Há foco? Não nos vamos distrair com futilidades (com obj ectivos comerciais) quais a mudança de nome de guerra da selecção? Não nos vamos distrair com pretensões de mudar o patrocinador do equipamento, um compromisso assumido pelo elenco anterior? Não teremos atletas com reacções viscerais a queixarem-se de terem sido hospedados em pensões? É que, caros, as respostas a estas questões podem, a meu ver, ditar o sucesso ou não dos Mambas. Caso contrário, não se pode sonhar alto.

“Você está com cara de ontem, amigo. Que bicho o mordeu?”, perguntou um dos cavaleiros ao companheiro. Ambos formavam uma equipa de trabalho fazia seis meses e conheciam-se o melhor que seria possível. Partilharavam das aventuras nocturnas dos patrulhamentos e entre eles começara a nascer uma confiança mútua reforçada pela convivência quase diária. O interpelado sempre fora um indivíduo muito prolixo, sempre pronto a contar uma história, das muitas que testemunhava e recriava, para tornar a missão da noite mais leve e suportável. Nessa noite, porém, cavalgava sem a energia dos outros dias, fechado em si, um macambúzio a balançar sobre os lombos do muar. Melhor fizera se se tivesse deixado estar em casa, em vez de estar a maçar o colega com os seus silêncios.

“A vida muitas vezes prega-nos tamanhas surpresas que é quase impossível acreditar que estejamos acordados”, disse aquele num suspiro.

“ Desabafa, homem, tira isso cá para fora da caixa”, encorajou o primeiro.

Eram ambos homens na idade dos quarenta, escaldados da vida e muitos sonhos nas cabeças. Cada qual tinha a sua própria história singular e conturbada como o são as histórias de muitos cidadãos metropolitanos, emigrantes nesta s terras misteriosas de Africa. Haviam chegado ao encontro de sonhos que se recusavam a materializar-se. Perseguiam miragens de vidas estáveis e prometedoras doutros esplendores, porque foi isso o que lhes haviam dito lá nas terras de origem.

Contornavam a esquina da cantina do Mário quando o triste cavaleiro começou a narração da história assombrosa que o deprimia. E esta foi a seguinte:

“…Como já lhe contei, estou cá em Lourenço Marques há meia dúzia de anos. Suor sangue e lágrimas é que foram estes anos, digo-lhe aqui com o coração sentido.”

“ A quem o diz, meu amigo! A quem o diz! Também passei pelas brasas”, recordou o outro.

“ Pois o destino quis que conhecesse uma senhora que me pareceu muito recatada, pelo seu aspecto e pela postura. Aquilo sucedeu numa cerimónia de um baptizado do filho dum conterrâneo lá de Braga, o Brás das Foices, que é capataz da Construtora Integral, não sei se você o conhece”.

O outro limitou-se a um silêncio de sondagem pela memória. Rendeu-se e acabou por reconheceu que não conhecia nenhum Brás das Foices.

“ Fui lá para a casa onde ele vivia com a mulher, e vive até agora. Foi uma patuscada à moda da terra. Bebemos e comemos que nem em dia de boda. No meio da festa apercebi-me que uma cachopa mista-achinesada não tirava os olhos da minha pessoa. Não é para me gabar pela minha figura, mas a atenção dela despertou a minha. E claro, correspondi à mesma. Conversámos sobre as corriqueirices do costume e fiquei a saber que era professora na Escola Primária da Missão de São José. Ali deram-lhe uma alcunha que era a sua identificação pela raça e pelo estado civil: menina Maria-Muchina”.

“ Bonito nome, sim senhor. Esta gente nada têm a dever a nós os metropolitanos. Por dá cá aquela palha estão a dar nomes e alcunhas a toda a gente. A colonização chegou a esse ponto”.

“Tivemos vários encontros, tudo dava a entender que o noivado e o nosso casamento seriam os passos mais acertados. Casar não chegámos a casar por vários motivos, mas passámos a viver maritalmente. E digo-lhe com toda a sinceridade, eu amava aquela mulher”.

“ Esse foi o seu mal, amigo”, interveio o outro. Pelos vistos tinha razões de sobra para este seu particular posicionamento em relação a assuntos que envolvessem amor.

“ Mal ou não, a decisão ficou pendente. Inevitavelmente, tivemos um filho. A vida corria com as rotinas habituais, um dia mais alegre do que outro, eu no trabalho da construção e mais tarde neste, sempre sobre lombos de cavalos, em missões de patrulhamentos, durante noites, ao frio, à chuva. Um tipo a matar-se para dar algum conforto à família para depois sofrer os revezes que sofri”.

“Isso acontece a todos, ou pelo menos a muitos. Um tipo a malhar na parede que nem mouro, a desenrascar pela vida, mas eis que às tantas tudo dá um pinote de revés e vais parar à banda, sem perceberes como te atiraram ao chão”, resmungou o outro.

“ Foi assim mesmo. Às tantas, a mulher diz-me de caras que pretende sair de casa. Porquê, perguntei. A resposta dela foi que nem devia perguntar isso, mas sim tratar de arranjar um emprego que nos desse mais “folgadura”, que devia deixar de beber e bater-lhe sem motivos. É claro que uma vez e outra eu chegava-lhe o pêlo à pele e ela ia trabalhar com alguns inchaços na cara, coisa de pouca monta, sabe como é; bater mas não para magoar, apenas para deixar a lição de respeito e de obediência sempre viva. Lá na minha terra é assim”.

“ Qual é a mulher que não gosta de apanhar do marido? Ah, aquilo que me conta é o mesmo que pedir por outra sova, que o diga a minha Miquelina. Aquilo é assim mesmo: faz o que mando e bico calado, vou para onde me apetecer, com quem me apetecer e quando me apetecer. Essas modernices são boas nos filmes; em casa do Lopes não funcionam, nem nunca vão funcionar!”, disse outro, que afinal de contas respondia pelo nome que acabara de mencionar.

“ Pensei que a cisma de me abandonar lhe saísse apenas da língua. Qual quê? Cada dia que passava as nossas relações iam de mal a pior. E, por fim, numa noite em que estava numa festa com uns amigos ela abandonou o lar. Quando regressei a casa encontrei-a vazia. Levou a s mobílias e tudo quanto era utilidade”.

“ Se calhar foi melhor assim. Ela encontrou o remédio para os males que andava a praticar sem você saber”.

“Foi isso mesmo. Ao longo daquele tempo eu não desconfiava que nada daquilo pudesse suceder. Até que, por fim, caiu o embuço. Sabe o que aconteceu depois que ela saiu da minha casa? Pois então fique a saber: foi viver com um sujeito que se diz ser sacristão do padre ali da capela. E quando ela resolveu abandonar o lar estava grávida. Não passaram cinco meses depois disso e ela pariu. E pariu um preto!”.

O agente Lopes freou o cavalo, num gesto instintivo de surpresa. Este relinchou longamente a fazer coro ao espanto do cavaleiro.

“ Você acha que sou preto ou que sou branco?”, era uma pergunta dirigida a ninguém, porque ninguém era capaz de responder à mesma com precisão. Era mais do que óbvio que a Muchina traíra o companheiro e acabara por ter uma criança com o ajudante do pároco da missão de São José, o sacristão Bartolomeu, um negro retinto, nado e crescido nas matas cerradas de Ka-Ngovene, no posto administrativo de Boane.

“ Agora a pergunta que lhe faço é esta: porque razão você está ainda assim tão abalado, se isso sucedeu há mais de quatro anos, como disse?”

“ Porque lembrei-me da história que este tipo acaba de contar”, disse a referir-se ao Valgi.

“ Qual parte da história? Este pássaro contou muitas, a ver se se livra aqui das mordeduras da corda”.

“ A de que vem da casa duma amiga”, esclareceu o cavaleiro de Braga.

“ E se for verdade?”, perguntou o Lopes, sem achar nenhum nexo entre a história do prisioneiro e os problemas conjugais do colega.

“ A razão é que penso que enquanto eu estava nos patrulhamentos, como estamos aqui agora fazê-lo, o filho-da-puta do sacristão estava em minha casa, na minha cama a esfregar-se com a minha mulher. Foi na minha cama que fizeram aquele filho, foi na minha casa onde se divertiam à custa da minha cegueira e da minha ingenuidade. Nem sei como nunca desconfiei de nada, nem nunca ninguém me disse o que se passava”.

“ Marido enganado é sempre o último a saber e essas coisas não se contam nem ao melhor amigo”, aforismo que sempre deu razão a quem a tem; a sentença final do agente Lopes, cavaleiro galopando sobre os lombos escorregadios da vida. Tinha também as suas histórias para revelar; porém, as necessidades do patrulhamento exigiam outras urgências e mais atenção.

A galopada empreendida pelo pequeno veículo 970cc para vencer a elevação era enorme, sentia-se que todos os cavalos estavam laborando para serpentear os contornos de asfalto em direcção ao monte-mor. Preguei fundo no acelerador senti o carro bufar pelo tubo de escape, gasosa em combustão olhei para o painel, observei o quanto de combustível estava sendo consumida pela ingreme elevação. Queria chegar logo ao destino para rever a pequena vila.

Viajava na companhia de um amigo que tagarelava ofuscando a minha liberdade de descobrir a paisagem constituída por moitas acastanhadas, vegetação fulminada pelos raios solares, prova irrefutável que a estiagem habitava implacavelmente a região sul do país.

Aquiesço de vez quando para fazer perceber ao meu companheiro que não está em solilóquio.

Um declive ingreme confere a viatura mais velocidade, alivio o pé do acelerador, depois coloco o manípulo das mudanças em neutro e relaxo ambos o pés e poupo a gasosa.

Atingimos 100 km/h, um baque de ar fresco sacode-me o rosto e refresca viagem. Ainda estamos longe de alcançar o destino que fica a 70km da cidade de Maputo.

Ganhamos mais altitude em relação ao nível do mar, noutra galopada para vencer mais uma elevação acentuada, a velocidade caiu para 40km/h, o som da voz do meu colega impunha-se ao som libertado pelo motor do carro.

Galgamos a última subida com apoio do pequeno veículo, depois de um estrondoso potenciar do motor atingimos finalmente o cume do monte-mor.

Dois postos de tubo galvanizado de 1.50m de altura agarravam uma placa rectangular que hospedava em letras garrafais “ vila da Namaacha”.

Logo depois, descubro pequenos edifícios lambidos com poeira de areia saibrosa conferindo o tom avermelhado aos edifícios.

Vejo garotos suados empurrando carrinhos de mão com bidões de cor amarela e branco e mamanas segurando baldes e bidões.

Desembarcamos, alisei o capô do carro como se passasse a mão pela crina de um alazão que dirigia

a montada que puxava a charrote que nos levou até ao topo do monte. Senti pela sola do sapato que o amago do solo estava ao rubro.

Revi a igreja e lembrei-me dos crentes catolicos que durante do mês de Maio escalam a vila na sua peregrinação em busca benesses divinas no santuário da nossa senhora de Fátima, mas depois, durante o resto do ano esquecem a vila para usufruem dos auxílios angariados.

O alvoroço que outrora habitava a vila devido a movimentação transfronteiriça deixou de existir, passando aquele corredor a ser percorrido de forma esporádica.

Depois de uma breve visita à vila conferenciei com um residente que em jeito de desbafo vomitou o mal estar que a vila enfrentava.

“ Não temos água por conseguinte as machambas não produzem, a cascata esta seca, já não temos turistas, enfim vivemos entregues a nossa própria sorte”

Magiquei mil e uma soluções para os problemas que enfrentavam. Poderiam começar por proferir preces junto ao santuário, não precisavam peregrinar, já lá estavam. Poderiam pedir por um furo, aliás muitos furos para desaguar em todos bairros.

Visitamos um gigante da industria hoteleira ali implantado, quando transpusemos a soleira de acesso descobrimos que estavam numa penumbra não achámos nenhuma vivalma, fizemos soar as nossas vozes, só depois um funcionário meio ensonado atendeu-nos. Enteiramo-nos da funcionalidade do hotel, dos 64 quartos de todos os tipos não tinham nenhum hospede e possuíam cerca de 40 e tal funcionários.

Depois da breve visita efectuada aquela que outrora fora uma instancia turistica, partimos calcorreando pelas ruas da vila.

As palpitações aceleradas demostravam o cansaço adquirida pelo corpo, freei a caminhada e o meu amigo imitou, estavamos sedentos.

Olhei em meu redor e descobri uma barraca. Perguntei se vendiam água.

– Só temos água da Namaacha! – replicou a vendedeira.

– Peço duas.

Um sorriso irónico moldou o meu rosto, olhei para o meu companheiro este bebia inocentemente a sua água.

Olhei entristecido para a estatua da nossa senhora de Fátima e tacitamente pedi absolvição para a alma do povo da Namaacha e solicitei numa silenciosa oração.

“ Haja água nossa senhora” amém.

O dia nasceu com o céu limpo e uma temperatura amena na capital do país. Alzira despertou com o cantar dos galos lá fora, anunciando o amanhecer do dia. Levantou-se da cama e esticou-se para ganhar uma boa disposição. Caminhou lentamente até à janela do seu quarto, abriu a cortina e apreciou o ambiente de fora, como era de costume sempre que acordasse. Estava tudo normal como nos outros dias.

Alzira tinha 30 anos de idade e ainda não tinha filhos. Era uma mulher bonita, elegante e solteira, mas que arrasava os corações de toda a rapaziada da sua região e não só. Muitos desconheciam os motivos de ela estar solteira, mesmo tendo três décadas de vida. O relógio marcava pontualmente 5 horas, e, antes mesmo que o sol despontasse e a perturbasse nos seus afazeres domésticos, Alzira mergulhou-se na sua rotina de limpeza da casa. Pegou na sua vassoura, varreu o quintal em poucos minutos, tirou o lixo e colocou-o nos sacos. Carregou os seus sacos, feita uma louca, e dirigiu-se até ao único contentor de lixo existente no bairro, para depositar o lixo.

Passado alguns minutos, Alzira estava a escassos metros do contentor de lixo. Ela foi recebida por uns choros de um bebé vindos do interior do contentor. Aquilo chamou-lhe atenção. Parou por uns segundos e depois uma chuva de reflexões invadiu-lhe a mente. O que está a acontecer? Será mesmo um bebé ou estou a delirar? Não será uma brincadeira de mau gosto desses meninos malcriados da zona? Tudo aquilo estava totalmente estranho e confuso para a Alzira.

Imbuída pelo espírito de curiosidade, Alzira aproximou-se do contentor para desvendar tudo aquilo que aparentava ser apenas um mistério. Era um bebé recém-nascido que, pela sua aparência, devia ter entre uma ou duas semanas de vida. O bebé foi jogado naquele lugar, sem roupa e muito menos um cobertor, como se de uma galinha morta se tratasse. Todo o frio matinal brincou com corpo do menino recém-nascido. A criança inalou todo o cheiro nauseabundo libertado pelo contentor de lixo que estava numa imundice total.

Alzira entrou em choque e a preocupação tomou conta de si. Um conjunto de reflexões invadiu-lhe, novamente, a mente. Como é que uma mulher carrega um filho durante nove meses no seu ventre para depois de dar parto jogar fora? Será que essa mulher sabe que existem mulheres que choram dia e noite querendo ter um filho, mas não conseguem? Aliás, eu sou uma dessas pessoas infelizes da vida. Há anos tento engravidar, mas não consigo. Já dormi com vários homens na tentativa de engravidar, porém, todas as minhas tentativas redundaram em fracasso. Não me restam mais dúvidas, é o que o maldito destino me reservou. Desabafa Alzira, com a sua cara inundada de lágrimas.

Mergulhou nas suas memórias do passado e recordou-se de vários episódios tristonhos que vivera. Um rio de lágrimas assaltou-lhe as vistas. Movida pelo desejo e vontade de ter um filho e uma família saudável, Alzira já procurou a solução para seu problema em diversos lugares. Tentou pela medicina convencional, tendo gasto avultadas somas de dinheiro em tratamentos que não resultaram. Tentou pela medicina tradicional que também não sortiu nenhum efeito. Ela tomou raízes e raízes, mas não conseguiu conceber. Alzira via o seu sonho de ser mãe, frustrado. A mulher não via mais motivos para continuar viva nesta terra, sabendo que não era capaz de dar um filho a um homem.

Lembrou-se dos muitos lares que passara durante anos e não deram certo por não conseguir engravidar. Quase em todos os lares que passou, apenas viveu momentos de terrores conjugados com a violência. Recebeu nomes pejorativos por parte dos seus sogros porque não gerava filhos. A pressão por parte dos sogros chegou a atingir níveis insuportáveis. Alzira foi rejeitada, em muitos lares, pelos seus sogros alegando estar a acabar o arroz da família, não conseguindo lhes dar o tão esperado neto. O mundo de solidão tomou conta de si. A depressão passou a ser a sua melhor amiga.

Alzira regressou do passado triste que visitou através das suas memórias. Fixou o seu olhar nos olhos lindo do bebé que não parava de chorar. A mulher decidiu não tocar no bebé antes da intervenção da polícia, temendo que as suas impressões digitais pudessem prejudicar as investigações. Alzira regressou à casa com passos apressados e descoordenados, sustentados pelos choros de tristeza.

Quando a Alzira chegou no seu bairro, espalhou a notícia para toda vizinhança. A informação sobrevoou pelo bairro de boca em boca. O bairro todo acordou com a triste notícia do bebé jogado no lixo. Não tardaram as especulações da possível mão que o jogara no contentor de lixo. Todas mulheres que andavam grávidas nos últimos dias foram apontadas como vítimas, mas eram apenas especulações. Ninguém conhecia a mãe do bebé.

De seguida, Alzira dirigiu-se à esquadra que estava a escassos metros da sua casa para informar a polícia acerca do que vira no contentor de lixo. A polícia de protecção analisou o caso e achou melhor contactar a polícia de investigação criminal para que fizesse a devida remoção bebé que tremia devido ao frio que apanhou na madrugada daquele dia. Enquanto isso, muitas pessoas dirigiam-se àquele local, logo que recebiam a notícia, para averiguar a veracidade da informação que estava a ser propalada pelo bairro.

Minutos depois, Alzira retornou ao local onde o bebé foi jogado no lixo, mas desta vez com os polícias de investigação criminal. Quando lá chegaram, deram-se de cara com a multidão que repudiava aquele acto desumano. A polícia removeu o bebé daquele lugar imundo e, de seguida delegou-se uma parte da polícia para que levasse a criança ao hospital para recebesse cuidados médicos. A outra parte ficou e continuou com a investigação do caso. Afinal de contas, a responsável pelo acto merecia cadeia. Pelo caminho, a criança não resistiu ao frio que apanhara na madrugada do dia e perdeu a vida ainda a caminho do hospital.

Um grupo de cinco mulheres, que repudiavam aquele acto desumano, acompanhadas de uns dois polícias de investigação criminal, circulou pelo bairro, invadindo todas residências onde habitavam mulheres que estavam grávidas nos últimos dias, com vista a neutralizar a mãe do bebé que esteve jogado naquele contentor de lixo imundo.

Rosalina, uma jovem de apenas 18 anos, ouviu a notícia que circulava pelo bairro e ficou preocupada. Teve medo de ser presa, pois o filho de que tanto se falava em todo bairro era dela. Saiu do seu ventre. O medo de ser descoberta tomou conta de si. Veio-lhe o arrependimento pelo acto que cometera, porém, não havia como regressar ao passado para consertar tudo. Rosalina arrumou todas as suas malas para sumir daquele local antes que caísse nas malhas da polícia.

Minutos depois, a Rosalina já estava pronta para deixar tudo para trás e recomeçar uma nova vida num outro lugar que ainda não conhecia. Olhou para a vizinhança, mas ninguém a via. A mulher deu os primeiros passos, para um novo começo da vida, num lugar bem distante daquele bairro. De repente, com pouca nitidez, Rosalina vê umas pessoas caminhando em sua direcção. Continuo a sua caminhada a vontade, pois desconhecia aquelas pessoas. Quanto mais caminhava, mais nítidas ficavam aquelas pessoas. Apercebeu-se de que era a polícia acompanhada por algumas mulheres do seu bairro.

Rosalina ensaiou uma forma de esquivar os homens que vinham em sua direcção. Quando ainda tentava colocar em prática o seu plano, os homens já estavam a sua frente. Passou-lhe pela cabeça que aqueles homens estavam a sua procura por causa do bebé encontrado no lixo. Alzira viu-a e, de facto era a Rosalina. Olhou atentamente para ela e descobriu que já não ostentava mais a gravidez. Não restara-lhe mais dúvidas de que o bebé encontrado é da Rosalina. Alzira não se conteve e lançou uns gritos “É verdade! Ela é a mãe do bebé. Ela estava grávida até semana passada e nós ainda não a vimos com alguma criança até agora aqui no bairro. Para onde ela poderá estar a ir? Talvez esteja a fugir pelo crime que cometeu (…)”.

Rosalina entrou em pânico e viu todos os seus planos frustrados. Tentou empreender uma fuga sem sucesso. Ela não estava em condições de pular as espinhosas que serviam de muro. Os polícias aperceberam-se das manobras que a Rosalina tentava criar para escapar deles. Um dos agentes da polícia disparou para cima. O outro apontou para a Rosalina com a arma que trazia na mão. “Parada ai”, dizia o polícia com a sua arma na mão. A Rosalina viu-se num beco sem saída. Transpirou até ao ponto de molhar a roupa que vestira.

Rosalina perdeu todas as forças. A mulher caiu e ficou estatelada no chão. O local foi assaltado pelos gritos da Rosalina “Saiam da minha casa. O que vocês querem na minha casa? Não sou nenhum ladrão e muito menos cometi nenhum crime. Por favor, saiam da minha casa.”. A Rosalina estava totalmente descontrolada. Estava fora de si. Um rio de lágrimas inundou a sua cara.

Os polícias a colocaram as algemas nas mãos e depois seguiu-se um pequeno interrogatório improvisado. Naquele pequeno interrogatório, ficaram a saber que a Rosalina é, de facto, a mãe do bebé jogado no lixo. A polícia procurou saber dos reais motivos que a levaram a jogar o seu bebé, recém-nascido, num contentor de lixo imundo. Rosalina confessou ter perpetrado aquele acto desumano porque o seu namorado não assumiu a gravidez e ela não estava em condições de criar o bebé. Indignados com a atitude daquela mãe, a polícia levou-a para a esquadra. A jovem não parava de chorar pelo caminho.

O caso chegou na barra do tribunal. A Rosalina foi julgada e condenada a 6 anos de prisão pelo crime que cometera. Os dias seguintes, após a sua condenação, foram tenebrosos. A jovem tornou-se numa reclusa solitária. Não recebia nenhuma visita na cadeia. Ela apenas via as outras reclusas no memento das refeições.

Rosalina passou a ver o sol aos quadradinhos. Os dias pareciam caminhar feitos camaleões. Estava a pagar o preço do crime cometido. A consciência pesou-lhe a cabeça, mas ela estava num beco sem saída, a não ser cumprir a pena por detrás das grades.

Etdaniel21@gmail.com

 

Por: Martins JC-Mapera

lazifand@gmail.com

 

O simbolismo da arca, e o da navegação em geral, comporta vários aspectos que estão, no seu conjunto, interligados. O mais conhecido é o da Arca de Noé a navegar sobre as águas do dilúvio e transportando todos os elementos necessários à restauração cíclica (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, 2010).

A última vez que vi o Bento Baloi, presencialmente, foi na casa do artista, na cidade da Beira, quando apresentou o livro Recados da alma, no dia 2 de Agosto de 2017. A sua escrita e o seu estilo; as imagens dos seus recados parecem sinais de um tempo discernível na hermenêutica vétero-testamentária dos contos diluvianos de Genesis (6 a 9).

Este livro surge com características místicas inescrutavelmente lírico-escatológicas. É à luz da liricização dos acontecimentos que o narrador declara o seu afecto para com as vítimas do ciclone e das enxurradas: “homenagem às centenas de homens, mulheres e crianças que sucumbiram” (P. 11), em reivindicação da esperança e de um futuro colorido por sorrisos e abraços: “enquanto o sol raiar, o sorriso ainda é possível” (P. 11). Ainda que esse futuro seja platónico, parece evidente a força e a coragem das personagens perante essa luta contra as forças da natureza.

A crónica que abre o livro (“Jail house”) é antecedida por uma ilustração terrivelmente interessante do ponto de vista do significado efabulatório. Enquanto, por um lado, avulta a ruína inundada pela enxurrada, representando claramente a imagem de desolação, por outro, aparece a imagem do cão com “sinais de cinza” líquida, claramente discernível ao contemplar o espelho que a água faz com as sobras das árvores e dos edifícios submersos, parece estar a dialogar com o reflexo da ruína do seu próprio habitat. Esta leitura faz-nos concordar com Krir, citado por Jean Chevalier & Alain Greebrant, quando procura construir a imagem do cachorro. O simbolismo do cão reside na sua vocação de emitir mensagens que “[levam] para o céu as preces dos homens” (Krir apud Chevalier & Greerbrant, 2010, p. 153).

Parece haver um certo saudosismo materialista que nos lembra os tempos da civilização colonial, principalmente, ao descrever-se a força do vento e das águas, que entraram e saíram pelas várias fissuras do edifício: as grades rangeram, o tecto abanou, mas a estrutura permaneceu firme. Na óptica do narrador, esse facto aconteceu, porque “o colono fez (…) um bom trabalho” (cf. p. 19). Embora pareça anedótica, esta visão chama à atenção para a necessidade de erguer edifícios arquitectonicamente invulneráveis, num tempo ciclicamente marcado pelas hecatombes naturais.

A efabulação episódica do drama levou as personagens a recorrerem a alternativas mágico-tradicionais, sobretudo quando se narra a história do ladrão pilha-galinhas e mulherengo, que somente a polícia o salvou da morte. Há, neste croni-conto, uma contradição pragmática. Mas o paradoxo representa uma consciência no contexto de uma realidade em que as personagens sobrevivem à base de solidariedade recíproca.

A crónica intitulada “Nuvem de espuma” anuncia a aproximação do dilúvio: “A água chega com os mochos. Os pássaros da morte movem-se pelos ares sussurrando segredinhos apocalípticos aos ventos frios da madrugada” (P. 27). Este cenário foi visível, quando as águas se espraiaram pelo Rio Búzi, transbordando as suas argilosas margens, invadindo as povoações, pondo em risco vidas e engolindo casas, campos agrícolas, empreendimentos sociais, económicos e culturais: “O Búzi nega deixar-se comprimir por um par de margens já flácidas. Borbulha por aqui e por ali, galgando o interior de impotentes paredes da argila” (P. 27). Na verdade, a manifestação escatológica do ciclone e das enxurradas teve a sua incidência na povoação de Búzi, avaliando pelo número de mortes humanas. Mais de seiscentas pessoas perecidas.

Em 2001, foi publicada, em São Paulo, História do medo no Ocidente (1300-1800), em livro historiográfico, de todo o nível, magnífico. O autor do livro chama-se Jean Delumeau. Ao narrar a história do caos da civilização ocidental do século XIV ao século XVIII, o autor mostra que “nada é mais difícil de analisar do que o medo” (Delumeau, 2001, p. 22). Ao ler a obra de Bento Baloi, ficamos todos impotentes e a dificuldade aumenta mais ainda quando se trata de passar do indivíduo ao colectivo. Uma leitura colectiva da história do IDAI lembra-nos, de facto, o drama que horrorizou o mundo, mobilizando solidariedade das nações políticas, das nações religiosas e também das nações sócio-culturais de todo o planeta, por causa do caos meteorítico jamais antes conhecido.

Na Antiguidade greco-latina, o caos era a personificação do vazio primordial, anterior à criação, no tempo em que a ordem ainda não tinha sido imposta ao mundo (Grid apud Chevalier & Gheerbrant, 2010, p. 156). Convoco este conhecimento para relacionar Arca de não é com deambulismo grotesco das personagens da obra de Baloi, que, no geral, metaforizam o vazio desolador que as pessoas viveram duranta a ocorrência das cheias de 2019. Veja-se a passagem seguinte da crónica “Nuvem de espuma”: “O meio de subsistência é aqui que não se obtém. Em baixo é o caos. É o mar” (P. 29). Tanto há um vazio simbólico de esperança, como dos meios de sobrevivência, até do chão onde as pessoas possam pisar, andar, trabalhar e conviver. Há, cada vez mais, fome de coisas aparentemente simples. O prefaciador da obra, José dos Remédios, lembrou-se da música dos Queen para caracterizar o vazio greco-platónico causado pela falta de alguém para amar. A água separou famílias e sociedades; separou etnias e povos.

O estrago provocado pela chuva e pelo ciclone é, na minha opinião, sintetizado na terceira crónica do livro: “Zé das abelhas”. Vejamos o extracto seguinte que mostra o recurso de sobrevivência e as circunstâncias da morte das pessoas:

Ao quarto dia, o estado do tempo não dá sinais de tréguas. A chuva continua a cair e o homem continua sitiado no murmuché. São dias passados a baloiçar de um lado para o outro, em busca de equilíbrio e lutando pela vida. A fome fá-lo fraquejar. O risco de tombar e seguir o destino da água é uma realidade. O murmuché é a fortaleza das formigas. É aqui que elas buscam segurança, calor, conforto e espaço para procriar. A muralha está a ser corroída por baixo. A segurança e o conforto destes insectos são substituídos pela água que invade, paulatinamente, os espaços do seu mundo.

As formigas fazem o óbvio. Fogem do submundo do murmuché e sobem à superfície. Encontram um outro corpo estranho no topo do seu castelo: Zé das Abelhas. Frágil, cansado e esfomeado.

As formigas não são suas amigas. Zé é amigo de abelhas. As formigas não cantam, não dançam e nem voam. Também querem sobreviver e disputam o diminuto espaço com Zé das Abelhas. Elas partem para o ataque. Invadem o seu corpo. Quer repeli-las, mas falta-lhe força e energia. Os seus gestos são tão inofensivos que não impedem que os insectos percorram, em várias filas indianas, todas as avenidas do seu corpo. Primeiro são as pernas, depois a barriga, as costas, os braços e o pescoço. A primeira formiga ia atingir a cabeça, quando o castelo de areia, que é o murmuché, se desmoronou e, paulatinamente, se dissolveu na água.

Há quem diga que o corpo de Zé das Abelhas foi visto a navegar de bruços, totalmente coberto de enormes formigas negras, em direcção à foz do Púnguè (pp. 35-36).

É curioso que, em situações calamitosas, ocorram sempre episódios de nascimento de crianças em circunstâncias incomuns. Em 2000, nasceu a Rosita, em Gaza, concebida como mito de renascimento biológico e a continuidade da vida na terra. O livro de Baloi lembra-nos esse episódio, de uma criança nascida encima de uma árvore. A personagem Hanidjo é transportada por uma carroça de tração animal para ir ao hospital para o serviço do parto. É uma realidade que denuncia a precaridade da vida, a pobreza generalizada. Agravada por falta de “apoio médico” (p. 47), essa realidade chama à atenção a todos.

Apesar de tudo, no sofrimento há também espaço para alimentar sonhos e devaneios psicológicos. O texto “A menina que queria ser psicóloga” (pp. 101-105) tem uma intenção semântico-pragmática que contempla vários domínios de educação, como, por exemplo, a relação problemática entre a vida e as condições subjectivas da realidade, a necessidade de formação/educação científica, e, de forma lateral, os contornos sócio-económicos e ético-culturais a que as personagens cronistas se encontram envolvidas. Nisso tudo, o papel da família e da escola torna-se importante para a construção de uma geração que ajude a compreender os contornos do futuro. Vejamos o pensamento futurista de uma menina de 9 anos, ao tentar responder a uma pergunta que é comummente feita a crianças é desenvolvimento intelectual: “Eu, quando crescer, quero ser psicóloga […] Quero ajudar as pessoas a não se suicidarem”. Em poucas palavras, temos a referência à educação moral e, em defluência directa desse facto, a inscrição textual de conteúdos temáticos importantes: a importância ética e moralística que permite as pessoas compreenderem o valor da vida e dos fenómenos que a caracterizam; a educação formal e a necessidade de formação em áreas de natureza social.

É inteiramente pertinente o facto de o terceiro parágrafo da crónica referir os nomes originais e socialmente diminuidores, como “Urombo”, “Tsanguirai”, “Bininho”. Entre escritores moçambicanos que têm trabalhado temas desoladores como este, salienta-se o romancista Mia Couto que, no romance Terra sonâmbula, valoriza, com despreocupada lucidez, o estatuto social da personagem Kindzu que desencadeia uma série de episódios oníricos, ainda em terra idade, como, por exemplo, os conselhos que, em circunstâncias difíceis, foi dando ao velho Tuahir, face ao recrudescimento da guerra dos 16 anos em Moçambique.

As imagens que introduzem o texto que dá título ao livro ilustram com rara petulância a intencionalidade da escrita, assim como a sua eleição para o espaço que ocupa na colectânea.

O simbolismo da arca, e o da navegação em geral, comporta vários aspectos que estão, no seu conjunto, interligados. O mais conhecido é o da Arca de Noé a navegar sobre as águas do dilúvio e transportando todos os elementos necessários à restauração cíclica (Chevalier & Gheebrant, 2010, p. 80).

O simbolismo da Arca da Aliança dos Hebreus está mais próximo do que parece do anterior. Os Hebreus colocavam-na na parte mais retirada do tabernáculo; ela continha as duas tábuas da lei, a vara de Arão e um vaso cheio de iguaria que alimentara o povo no deserto. A arca era a garantia da protecção divina, e os Hebraus levavam-na nas suas expedições militares, Quando foi transferida, com grande pompa, para o palácio de David, os bois que puxavam o carro fizeram inclinar a arca; o homem que tocou nela para assegurar caiu logo morto no chão. Não se toca impunemente no sagrado, no divino, da tradição (Segundo livro de Samuel, 6).

Como vimos, Arca de não é configura uma falsa metáfora da Arca de Noé. Mas a criatividade linguístico-pragmática e a imaginação crítica, com que se intitulou a obra, têm uma relação artística muito forte no plano da literatura com as narrativas bíblicas. Em Arca de não é, temos referência ao dilúvio e, por consequência, à intertextualidade noética da filosofia bíblica, porque o recurso a uma expressão cuja deriva prosódica se assemelha à Arca de Noé, remete-nos directamente para a inscrição vétero-testamentária. Essa ideia torna-se mais forte, quando, no meio de tanto sofrimento, as personagens reconhecem a existência de Deus, como acontece na passagem seguinte: “Não é a minha perícia de navegador de ocasião que evita que a canoa se vire. É, sim, a força de Deus” (p. 111).

Importa, finalmente, referir que este livro é constituído por pequenos fragmentos contísticos, produzindo, no geral, as crónicas do quotidiano que vão hoje a público pela mão da Editora Índico.

Beira, 8 de Abril de 2021

Por: Celso Muianga

 

Em memória do jornalista Albino Moisés que me falou pela 1.ª vez da maior capulana de Moz!

 

Virou-se para mim com um olhar fulminante, até parecia perdidamente apaixonada. Pensei que ela me fosse dar mais uma daquelas suas lições, demoradas e chatas, apesar de apreciar-lhe o discurso. Falava como se estivesse a cantar. Mas quando ajeitou os óculos pela segunda vez, a minha avó, não sei como soltou um palavreado breve, incoerrente e vigoroso:
– Isto é absurdante.
– Vovó??? – atirei atónito!
– Não é possível que eu não esteja a sonhar, com esta minha idade, já a viver a prestações, meu neto!
– Mas vovó não está fora do prazo…
– Liga agora o rádio do teu chará, meu netinho.
Tratei de evacuar o ruído que vinha da televisão. Mas antes fui vi-me obrigado a correr e atravessar o quintal. E instantes depois regressei ao lugar de partida, para de novo juntar-me à minha querida avó. Ali, debaixo da mafurreira, a minha avozinha desfrutava da sombra do ar condicionado natural como ela apelidava aquele lugar. Um copo estava deitado sobre um pedaço de esteira. Ela nem se deu conta das gotas de aguardente que o meu avô deitara naquele chão, ao longos destes anos.

A emissão da Rádio Nacional de Moçambique estava em cadeia nacional com todos emissores provinciais, com a maioria das rádios comunitárias que aderiram massivamente às celebrações. Esta emissão espacial juntava a Televisão Nacional, o canal da TV Surdo e os canais de Professores e Médicos.
-A mulher moçambicana está em festa e, antes de mais, vamos brindar e reiterar o desejo de um feliz 7 para todas mulheres de Moçambique. Tenho sinal para entrar em linha com a nossa colega na cidade da Beira. Diga-nos, Anabela, como é o pulsar das cerimónias centrais que vão ter lugar aí nesse ponto do país?

*
-Alô, alô Anabela. Como vão as modas aí no Chiveve?
Olá, bom dia Glória. Falo-vos a partir do bairro da Munhava, onde daqui a pouco vai decorrer a cerimónia central deste Dia Nacional da Mulher. Tenho indicação de que a delegação oficial teve um embaraço no trânsito, à saída do aeroporto. Devolvo a palavra aos estúdios centrais, hoje em Quelimane, Glória
– Obrigada, Anabela. Tenho indicação de que a Rosa está em linha a partir do Songo. Venha daí, Rosa. O perfume é teu nesta nossa emissão. Estamos em festa hoje!
Viva, Glória. Respondo de Songo. Tenho comigo uma senhora que está a reagir pode aproximar-se do microfone, dona!
-Cuidado. Muito cuidado com o frio daqui do Songo. Tem mania de ficar muito frio. Muito muito de noite. Isso de dizer que ela não sente frio porque corre muito não vai prestar. Melhor vestirem a Menina de Ouro para não ficar entussiada….
Obrigada pelos conselhos, mamã!. Glória são estes os primeiros sinais assim que foi descerrada a capulana que cobria a nova estátua de 2.5 metros de altura da nossa campeã Maria de Lurdes Mutola
Obrigada, Rosa. Voltamos à cidade da Beira, creio que estão criadas todas as condições, Anabela.
Sim, Glória. Já estou junto da Doutora Joaquina. Doutora Joaquina, em directo para a nossa emissão de rádio e televisão que nos pode dizer neste 7 de Abril muito especial?
Aprecio e gosto que a senhora locutora Anabela me trate pelo nome completo. Afinal é preciso estimar as mulheres moçambicanas, não é verdade…»
« Não seja por isso, senhora Secretária Nacional da Mulher de Moçambique, Dra. Maria Joaquina Desdentada Moçambique tem a palavra neste dia muito especial para todas nós»
«Primeiro agradecer muito ao meu padrinho particular e a Deus. De facto, hoje vamos inaugurar os resultados do nosso xitique nacional, com a inauguração de 11 estátuas da nossa única campeã olímpica e mundial, Maria de Lurdes Mutola. As mulheres deste país merecem um reconhecimento bem maior, mas como diz o nosso hino nacional «pedra a pedra construimos novo dia. Milhões de braços, uma só força!» E também neste primeiro acto vamos, neste 7 de Abril, inaugurar três estátuas da heroína Josina Machel, em Nacala, na Matola e na Ponta Gêa. Para fechar este ciclo de homenangens a três das maiores figuras, bem as mais representativas, vamos inaugurar três estátuas da maior figura literária de Moçambique no feminino, que é a Mãe dos Poetas moçambicanos, a nossa querida Noémia de Sousa, por sinal a mais velha. Noémia de Sousa, há mais de 75 anos, junto com José Craveirinha, João Mendes e outros redigiram a primeira carta para a Independência de Moçambique onde hoje é chamado Jardim dos Namorados. São estes os nossos planos como Secretariado, a Mulher de Moçambique, mas devo referir que acabamos de aprovar quinhentas bolsas para raparigas por cada província. Para este primeiro lote, escolhemos como patronas desta 1.ª edição Janet Mondlane, Graça Machel e Marcelina Chissano. Nos próximos anos vamos escolher outras patronas para mais quinhentas raparigas por província. Como podem ver na nossa página do Facebook e do Instagram já divulgamos a lista das outras mulheres que correm o risco de ter estátuas neste país. Para terminar, desejo a todas mulheres de Moçambique, dentro e fora do país, que continuem a acreditar e a valorizar o seus sonhos. Muito obrigada!
-Muito obrigada, senhora Secretária-Geral. Devolvo a emissão aos estúdios. Não posso esconder a tamanha emoção…»
-Obrigado, Anabela. Responde a Hermínia dos estúdios da televisão nacional. Ficamos a saber, há pouco, que o nome da nossa colega Glória Muianga faz parte da lista referida pela Secretária Nacional.
De Maputo temos uma intervenção da Farida, já com o edil da capital:
– Sim, senhora. A decisão foi da Assembleia Municipal. A antiga avenida Marien Ngouabi passa a partir de hoje a chamar-se Noémia de Sousa. E por coincidência, a antiga rua Noémia de Sousa chama-se Marien Ngouabi. Estamos aqui a inaugurar a estátua de uma heroina de reconhecido mérito, junto ao entrocamento entre a Acordos de Lusala e a nova Noémia de Sousa. Uma alegria para todos nós do século XX e XXI que aprendemos a conhecer Moçabique na palavra desta grande senhora.
– Obrigadinha, Farida! Continuação de um dia muito feliz. Passo desde já a ler a lista das mulheres mais representativas, de acordo com a M.M:
Sabina Santos
Reinata Sadimba
Júlia Malizane
Rosária Tembe
Glória Muianga
Zena Bacar
Domingas Jamisse
Esperança Sambo
Ana Magaia
Afra Ndeve
Laura Nhavene
Josefa Macadona
Lucrécia Paco
Marta Bocoda Guebuza
Mariana Muianga Chissano
Paulina Chiziane
Lina Magaia
Angelina Daima
Clarisse Machanguana
Zaida Lhongo
Paulina Mateus
Deolinda Guezimane
Manuela Soeiro
Marina Pachinuapa

*
Quando repararei para a minha avó, apercebi-me que ela dormia, há mais de duas horas. Fiquei o resto da tarde a compor a minha lista para enviar por e-mail à MM!

Celso Muianga
(Editor e activista cultural)

Era uma cidade de gente triste, tristes até quando celebravam seja lá o que for, e esforçavam tanto a ser tristes, apesar da tristeza aguda que todos sentiam ninguém sabia ao certo do que tanto os entristecia, aliás, aquela tristeza era inconsciente, todos lamentavam-se e lamentação passou a ser uma forma de saudação, uns aos outros lamentavelmente se cumprimentavam.

Todos falavam de uma forma que a vida passou a ser sem conteúdo, ninguém sabia como e nem porquê vencer a tristeza. Os felizes foram declarados inimigos do povo, assim que alguém fosse identificado como um homem feliz era imediatamente aniquilado, mas antes era humilhado em hasta pública e só depois abatido, para servir de exemplo aos resistentes, havia um esquadrão da morte, uma força tarefa para tal, de tal forma que não haviam pessoas felizes na cidade, havia um decreto presidencial contra tudo e todos que se mostrassem felizes.

Era uma cidade de gente triste, os resistentes fingiam-se tristes para sobreviver. Era preciso ser infeliz para se integrar socialmente, ter acesso aos serviços, aos lugares, às pessoas, quanto mais infeliz mais popular era a pessoa, para isso, inventaram uma plataforma onde as pessoas exibiam a sua infelicidade, uma espécie de vitrine onde se expunha os estados de espírito das pessoas, aquilo era um festival de ostentação de tristeza.

Para se garantir a infelicidade colectiva, todos as livrarias foram fechadas e os livros destruídos, os cinemas transformados em lugares de culto à infelicidade, os espectáculos proibidos, havia um tipo ideal de música que se podia ouvir, uma música que exaltasse a tristeza, era uma cidade de homens tristes. Os mais tristes faziam cocktail de tristeza com álcool e alcoolizados seguiam o curso triste dos dias.

Para garantir um ambiente hostil e triste, todas as árvores da cidade foram cortadas e no lugar destas foram colocadas árvores plásticas, postiças, que nem se mexiam com o vento, o que fez com que os pássaros fossem extintos. As praias foram transformadas em lugares para jogar dejetos e outros resíduos sólidos, soldados haviam para garantir essa falta de limpeza à orla.

Era uma cidade de gente triste, uma felicidade, por mais curta que fosse, era considerado heresia, todos vestiam-se da mesma forma, aliás, ninguém deveria ser diferente do outro, aquela tristeza era perentoriamente oficial e oficializada até a falta de carácter das pessoas, quanto mais indisciplinados fossem melhor à práxis do dia, quanto mais maldade fizesse, mais promoção e distinções tinha o ilustre cidadão, não era por acaso que os dirigentes eram todos excelentes ladrões e corruptos incorrigíveis, uma prática necessária e digna de honra.

O sexo, a bruxaria, a roubalheira, malandragem, a morte, encontrava-se em qualquer esquina e a luz do dia, vendia-se de tudo e a todos, paradoxalmente todos sorriem, risos largos e rasgados, dignos da infelicidade que sentiam, as notícias eram todas sobre a tristeza, se houvesse uma notícia feliz era falsa, fake news era a moda e moldava a mente dos tristemente desinformados, as escolas e as universidade nada se ensinavam senão a prática da corrupção, não era por acaso que todos exibiam-se doutores sem nunca ter algo para mostrar.

Era uma cidade de gente triste, até que um dia, nasceu uma criança que, além do habitual choro, sorriu, sorriu escancaradamente que ao sorrir fez sorrir todos os que assistiam o parto, e partir daquele dia toda a cidade sorriu, e a sorrir viu-se o quão sujos e tristes estavam todos, o sorriso daquela criança despiu a nu toda incoerência que se vivia, aquele sorriso era do bem e da sabedoria, que expôs a nudez de todos e todos envergonhavam-se deles mesmos, então decretou-se um limpar obrigatório, era preciso limpar a vergonha, limpar das ruas à promiscuidade e a partir daquele dia todas as crianças sorriam ao nascer. ­­­­­­­

 

 

 

Já me foi perguntado o porquê de os profissionais que ocupam cargos de responsabilidade (c.r)  terem melhores condições de trabalho que os demais. A resposta à questão é relativamente simples: Os profissionais que ocupam cargos de responsabilidade têm melhores condições pois, de outras razões, têm responsabilidades acrescidas e representam a imagem da organização. Por este motivo, são obrigados a deixar de lado certos hábitos e a adquirir outros novos. E esses sacrifícios devem ser compensados.  Infelizmente, poucos profissionais que ocupam cargos de responsabilidade não estão dispostos a fazer esses sacrifícios, ou pior ainda, não sabem que tem de fazer esses sacrifícios em prol da organização.

 O que é necessariamente deixar de lado certos hábitos em prol da organização?

Em marketing diz-se comumente: “people don’t buy your product, people buy you”. Isto quer dizer que  ao vender um produto/serviço, o profissional deve representar o valor (imagem) que tenta transmitir do produto/serviço em causa. Ora vejamos, se eu e o Ziqo formos vender um projeto de criação de um Disco-Bar a um grupo de investidores, os investidores tenderão a optar pelo projeto do Ziqo, claro. A imagem que Ziqo nos transmite, à nós seus fãs, é de um homem das noites, um “beatmaker” e bonvivant . A construção desta imagem integra, desde os seus vídeos em discotecas, as habituais roupas de marca, os charutos, os escândalos, a troca “frequente” de mulheres (sempre lindas e/ou famosas) ou os videoclipes glamourosos. Tudo isto faz parte da marca @ZiqoMaboazuda e é credível para este tipo de negócio. Os investidores, com facilidade, conseguem projectar a imagem de uma discoteca abarrotada de clientes animados, frequentada por mulheres lindas, outros artistas famosos,  bons “beats” e um ambiente de constante e efusiva animação: O retorno ao investimento está garantido. Por outro lado, se Ziqo for vender um projeto de gabinete de recrutamento de talentos, os mesmos investidores provavelmente terão receios da lucidez, ou ausência da mesma, do proponente naquele momento. Assim também procedem as organizações. Elas precisam que os profissionais que ocupam os cargos de responsabilidade representem a imagem dos serviços que elas pretendem vender, caso contrário elas deixam de ser credíveis.

 Os cargos de responsabilidade concedem vários direitos. Cartões de visita com títulos pomposos; carro e combustível; planos de saúde “abrangentes”; horários de trabalho flexível, subsídios de performance, entre outros. Mas estes direitos, via de regra, também trazem acoplados um rol de obrigações. Ao aceitar um c.r, o profissional deve ter consciência, não só das generosas e apetecíveis remunerações oferecidas, como também, das obrigações que ao cargo estão adstritas. Os colaboradores que ocupam c.r são, via de regra, projecções da imagem que a organização tenta transmitir aos seus stakeholders. Assim que ocupa um c.r, o profissional deve cessar de utilizar sua linguagem para utilizar a linguagem (business) da organização; deve adaptar uma postura dentro e fora da organização ligadas a cultura da organização; deve estar disposto a sacrificar férias, aniversários da família em serviço da organização, mudar sua indumentária para se adequar à cultura da organização.

 “A melhor forma de liderar é com exemplo”

É nesta óptica que o profissional que ocupa cargo de responsabilidade deve prestar atenção à sua imagem e linguagem, pois as mesmas serão associadas ao seu comportamento profissional e  pode afetar a atitude dos colaboradores mas também descredibilizar os serviços que a organização oferece ao mercado.  Um dirigente que expõe sua própria vida privada ao mínimo detalhe, por exemplo, cria a percepção de que não terá dificuldades em expor os segredos de um cliente ou da organização. Que organização se relaciona com outra, cujo a direcção é susceptível de faltar com deontologia profissional?

Talvez, a este ponto do texto, alguns leitores já estejam a pensar: “mas então ó, ó, ó Gerson, e a liberdade de expressão aí? Será que ocupar c.r significa perder minha liberdade em favor da organização, ó Gerson?” Não, absolutamente não. Os que ocupam c.r podem livremente continuar gozar da sua liberdade de expressão e de se comportar como bem entenderem, afinal de contas estamos num país livre, não? No entanto, é preciso saber que não existe acção sem reação. Para cada acção existe uma reação, que por vezes pode ser boa e por outras má. Os profissionais devem apenas ter consciência disso e estarem dispostos a assumir as consequências das suas ações.

 Ponto de vista de um especialista em recrutamento

Muitos decisores, talvez por falta de conhecimento, negligenciam certos aspectos essenciais do processo de recrutamento de profissionais para cargos de responsabilidade. A minha experiência me permite dizer que esta é uma fase crucial de uma organização, é neste processo em que “se decidirá” a prosperidade da organização.

Diz Jim Rohn que se alguém lhe der um milhão de dólares, é melhor se precipitar e tornar-se milionário antes mesmo de tocar no dinheiro, caso contrário, pode perder o dinheiro no primeiro segundo que o tocar.  Isto quer dizer que é preciso estar preparado para certos cargos. Sim, todos nós podemos ser líderes, mas nem todos estamos dispostos a fazer os sacrifícios necessários para sermos líderes.

Yassin Amuji, um destacado jovem que trabalha na promoção do turismo em moçambique e que recentemente foi nomeado para o cargo de Vice-presidente para o pelouro de Turismo, Hotelaria e Restauração pela CTA, fez uma analogia nas últimas semanas nas redes sociais, onde a questão focal é onde temos falhado na direção das nossas organizações em Moçambique. Porquê ocorrem tantas falências?

Eu acho que erro de casting é uma das razões pelas quais muitas organizações não prosperam em Moçambique. Este é um processo muito delicado e deve ser confiado aos profissionais da área para o dirigirem.  Alguns decisores continuam a utilizar os mesmos critérios de selecção a cargos de responsabilidade que há muitos anos, tais como: anos de antiguidade na organização; anos de experiência; escolha pelo apelido; escolha baseado no critério partidário; escolha por afinidade.

Num processo de recrutamento ou de escolha para um c.r devemos lembrar que o profissional escolhido vai dirigir a vida de muitas famílias e por vezes de toda uma comunidade onde a organização está implantada e que de perto ou de longe a organização afecta a economia do nosso Moçambique.  Entre vários critérios de escolha de um profissional a c.r, os que presto particular atenção são: Coragem: Coragem permite a um dirigente assumir responsabilidade em todas as circunstâncias, saber enfrentar  o medo e fazer face às dificuldades.  Capacidade de se relacionar com outros:  durante o processo de escolha, gosto de convidar o candidato para um encontro informal, por exemplo, almoçar. Este exercício me permite perceber que tipo de conversa lhe interessa, que linguagem utiliza, como trata os garçons, quantas vezes agradece, analisar sua qualidade de escuta,  analisar qualidade das suas perguntas assim como atenção que presta as respostas,  e saber sobre seu plano de vida (um líder tem de ter lifestyle bem definido).  E por fim a  Cultura da empresa: um cândido até pode ser perfeito mas se a empresa ou sector não lhe convém, seu nível de performance será medíocre. Nós seres humanos somos menos atraídos por dinheiro que pelo prazer de sermos úteis. Quando trabalhamos num sector ou empresa cujos os valores são os mesmo que os nossos, somos fiéis à cultura organizacional e ao trabalho. Portanto, este casamento entre a cultura e os valores do candidato é importante.

 Os empreendedores, os líderes (CEO’s), os decisores políticos devem perceber que recrutamento é um processo de todos os dias. O recrutamento não termina no dia em que o profissional começa a trabalhar. O plano de gestão de carreira dos profissionais é outra parte do recrutamento. Esta fase permite que os profissionais tenham uma direção. Imaginem um navio sem bússola. É exatamente assim como muitos profissionais gerem suas carreiras, portanto, o coaching sobre a gestão de imagem como factor de sucesso na carreira deve ser privilegiado como parte basilar da formação destes profissionais. Este processo permite ainda a melhoria contínua dos profissionais, retenção dos melhores e redirecionar os outros. EU ACREDITO EM NÓS.

Recomendação de livro para o mês de Abril 2021: “Grab your seat: insight into becoming a human capital business leader– “Samuel Ernesto Maputso

Samuel Gerson Andrisse é especialista em recrutamento e autor do livro “Be ready for your next job interview”

Por: Celso Muianga

 

Meu confrade Nelson Lineu, saúde!

 

Acabei de ler o teu último livro. Fiquei com a sensação imediata que não me devia calar. Sou, mesmo que não demostre a todos, um defensor da nossa geração, talvez o que digo a ti nem merecerá algum interesse de jovens e novos autores. E muito gostaria que fôssemos uma geração competitiva. Temos ferramentas herdadas do passado que nos podem servir para deixarmos marcas sólidas e talento também abunda entre nós, apesar desse mesmo talento, tal como afivela o filósofo barbudo que matou Deus ser «um adorno».

Lineu, escrevo-te com o apelo deste teu «mano crescido», e roubo uma fala de uma das figuras inimitáveis do mercado Madruga, que no auge da sua pujança era capaz de carregar nove caixas de cerveja sobrepostas e caminhar mais 500 metros na cidade da Matola. Boca-Linda era de facto inimitável. Assim também é a tua lavra que está bem cotada, por isso alerto para alguma contenção no galope, que me parece acelerado. Não vamos cair na tentação dos outros, na pressa cega de publicar por publicar como uma forma de cumprirmos para justificar a agenda para comprar terreno e construir a casa, etc. Há muito que sabemos que a literatura não dá para muito. Mas lutar pela honra dos que nos antecederam, dos que ainda cá estão e daqueles que virão, isso não devemos descurar em momento algum. Estimo o teu empenho na poesia e, se quiseres, com dedicação que te reconheço, como já te disse doutra vez, depois daquela homenagem a eterna luz que é Calane da Silva na Feira do Livro de Maputo, ali no Mercado do Povo, com o Pedro, Léo, Lucimara e o Mélio. Todavia as tuas crónicas recentes despertaram em mim os demónios que aqui partilho. E até a voz da nossa mui querida Fernanda Angius, que os Anjos não baixem a guarda, gravitou sobre a minha memória, «há aqui alguém que anda a escrever crónicas, mas afinal é poeta». Sei que sabes que ela estava a referir-se a ti, Nelson Lineu. É mais do que sabido por nós que a Fernanda tinha razão. E agora, o que fazer deste namoro com as crónicas, descortar, pedir distras, com aquele pedido de desculpa e jura de mil facas na barriga? Penso que não. Mas «pouco a pouco», com o sentido crítico, com a vigilância que nos legaram os madalas Craveirinha e Knopfli naquele livro verde de crónicas CONTACTO E OUTRAS CRÓNICAS & A SECA E OUTROS TEXTOS e outras crónicas. Como vês, de mestres não temos falta: Areosa Pena, Albino Magaia, Mia Couto, Fernando Manuel, Luís Patraquim, Marcelo Panguana, Nelson Saúte, Suleiman Cassamo, Daniel da Costa, Hélder Faife, só para citar alguns. Não é preciso correr porque a medalha de campeã olímpica ainda só pertence à menina de Ouro, Maria de Lurdes Mutola.

Voltemos à oficina para lapidar a palavra, cortar o que for preciso. E, se for necessário, como disse Knopfli, «Esperar. Esperar em vão. Esperar. Esperar mais ainda. Esperar sempre». Os outros, até malta Saramago e Lobo Antunes, nem foi deles a iniciativa de publicar as colectâneas de crónicas dispersas em jornais e revistas. Falo destes para não tocar nos latinos, nem tão pouco nos norte-americanos.

Caso tenha acontecido o contrário no bureau do Literatas, estás perdoado. Mas alto aí, o perdão é lá diante do Senhor. Aqui somos nós, a malta das letras que não é dada aos ofícios celestiais de batina e de todos os Santos.

Fiquei com a impressão de que os apresentadores do livro optaram pelo distanciamento social, não foram muito à conversa com O PASSO CERTO NO CAMINHO ERRADO. Meteram-se na mata. Atravessaram-na em passo de corrida, a fugir de algum Nyongo, talvez. Vi-os dobrarem as calças até aos joelhos ao atravessarem o rio. E depois, chegados à outra margem, começaram a acenar-te com Czares, Voltaires, etc, ignorando os nossos trovadores, filósofos, como se não os tivéssemos. Há, por exemplo, o Doutor Mussa Rodrigues, Lázaro Vinho ou até mesmo Xidiminguana. Todos eles grandes cronistas que não saltaram para a publicação em livro. Assim, de seguida falaram-te de nomes de outros grandes cronistas. O recado estava ali. Fizeram aquelas questões sobre as 52 semanas e etc e tal. Não me lembro de os ver tocar na ferida. Fizeram a missa. Isto talvez seja sintomático de que qualquer coisa não andasse bem naquele quintal de crónicas, meu amigo. E eles sabem que és bom entendedor.

Voltemos aos textos e com urgência para reflectirmos: qual é a novidade? Passados 12 anos estes textos sobrevivem à erosão do tempo? E como é que o nosso cronista Nelson Lineu olha para eles? Será que o teu olhar é o mesmo hoje? Como te sentes? Como esperas voltar a ler estas crónicas no futuro? Será que fazem o leitor se sobressaltar como se fossem balas perdidas ou outras munições do paiol de Malhazine? Perdoa-me a referência às balas, mas acho-as inevitáveis. São nossas vizinhas de saia curta e atiradiças.

Vou só recordar um episódio caricato que aconteceu a um amigo jornalista que, na altura, trabalhava no matutino da Joe Slovo que depois de muitos apelos à sensibilidade de um ministro sobre a degradação do estado de saúde do grande músico Carlos Chongo e, quando já nada fazia esperar a ilustre excelência, este mandou anunciar a sua visita. Porque o tempo é mestre, a equipa de assessores teve de enviar SMS às pressas para alguns jornalistas para a cobertura oficial. E o meu amigo, quando recebeu a mensagem que mais-ou-menos dizia isto: «O excelentíssimo ministro vai visitar o músico Carlos Chongo no hospital central», ele não teve meias medidas e respondeu com um vibrante «E daí?».

Palpita-me que confiaste nas pedras e no capim alto à volta, que as chuvas das últimas semanas trataram de pôr entre os trilhos. E se não fosses tu, o Nelson Lineu que conheço, terias tropeçado. Aquele beco não te pertence. Volte, meu amigo à tua oficina. E ali, antes de meteres debaixo do camião, pondere, medite na palavra. Se um dia, assim entenderes, salte o arame com o exame PCR feito no bolso, até porque é de carácter obrigatório nestes tempos pandémicos e incertos. E força, mano! Arrisque um pouco mais e mais. E se for para reformular, não hesite. Se precisares de mim, já sabes disto há 50 anos, podes contar. Mas seja vigilante, camarada! Aí nessa fronteira da crónica há sabotadores, ainda te arrancam o telemóvel e a carteira que imagino-a cheia de anotações, cartões e dinheiro de chapa. Cuidado!

 

Um abraço amigo,

 

 

Reflictamos

A reedição do Jornal O Negro, 110 anos depois da publicação do primeiro número deste que é um dos principais percursores do pensamento pan-africanista, simboliza o ressurgimento da luta do povo africano pela reconquista da sua dignidade e soberania no quadro das nações.

Mais de um século depois, este manifesto pela liberdade da África e dos africanos não poderia ser tão atual e revelador do embuste social e político em que o mundo se encontra. O imperialismo não morreu com as independências das colónias, pelo contrário, refinou os seus métodos e hoje se nos apresenta em forma de progresso, democracia e globalização, só para citar alguns dos seus disfarces.

Nós, os negros, continuamos escravos desta secular subalternização que as instituições imperialistas se esforçam em perpetuar. A celebração dos 110 anos do mais significativo movimento de luta anti-imperialista coincidiu com a polémica do Caso Mamadou Ba, presidente do SOS Racismo em Portugal e representante de uma causa que uma parte da elite política portuguesa (para ser optimista) insiste em varrer para debaixo do tapete.

É de todo irrisório que o discurso de Mamadou em relação a existência de um racismo estrutural em Portugal choque a opinião pública num país, que se orgulha de ser pioneiro da expansão marítima (os ditos Descobrimentos) que levou a colonização e escravização da maior parte dos países do mundo. Como se explica que um país em que os grandes carrascos da história da humanidade ainda são reverenciados como heróis pode se considerar não racista?

Já em 1911 o grupo de estudantes africanos (João de Castro, José de Magalhães, Ayres de Menezes, Artur Monteiro de Castro e tantos outros), que fundou o jornal O Negro debatia-se com essa questão. A resposta só poderá ser obtida por via de uma reflexão profunda e consciente. Reflictamos, recomendavam-nos eles. E este é para mim o principal legado desta geração iluminada pelo Éter da esperança e comprometida com a revolução.

Este movimento, a semelhança da campanha política em curso para a expulsão de Mamadou Ba de Portugal, foi perseguido e silenciado pelo Estado Novo. Urge que continuemos a resistir e a intensificar a luta. O oprimido só se liberta do seu opressor por via da violência, já nos tinha avisado o cineasta brasileiro Glauber Rocha no seu manifesto sobre a Estética da Fome.

Queiram eles ou não, será por via de discursos e posicionamentos violentos que no passado encontramos nos números de O Negro e hoje em activistas sociais como Mamadou Ba que conseguiremos pôr fim a esta opressão secular e finalmente tomar as rédeas do nosso destino.

E concluo esta saudação à reedição do Jornal O Negro levada a cabo pela editora FALAS AFRIKANAS e pelos autores Cristina Roldão, José Augusto Pereira e Pedro Varela, com revisão e paginação de Carolina Freitas e Inês Ramos, respectivamente, com uma citação (traduzida para o português corrente) retirada do número I, datado de 09 de Março de 1911:

Expressamos com lealdade, mas também com audácia, nas suas linhas gerais as nossas convicções.

Não nos moveram nem ódios, nem ressentimentos, absolutamente incompatíveis com a nossa mocidade e sobretudo com a nossa compreensão da solidariedade.
Embora pertencentes à raça, por excelência escravizada, ao iniciarmos a nossa publicação, sentimo-nos no dever de salutar todas as raças do mundo, porque todas descendem da animalidade e ascendem à vasta fraternidade universal.

Ops: Pode ter acesso a reedição do Jornal O Negro através do download gratuito em https://archive.org/details/jornal-o-negro-110anos.

A versão impressa está a venda em livrarias dentro e fora de Portugal. De Norte a Sul:
Santiago de Compostela/Galiza: Espaço Espadela
Vila Real: Livraria Traga Mundos
Vila Nova de Cerveira: Porta Treze
Porto: Gato Vadio, Utopia, I2ads/Faculdade de Belas Artes
Amadora /Cova da Moura: Bazofu&Dentu Zona
Cascais: Galileu
Lisboa: Letra Livre, Tigre de Papel, Leituria, SNOB, Baobá, Papelaria Fonsecas, Papelaria Cevada
Setúbal: Uni Verso
Sines: A das Artes
Lisboa, 19/03/2021

Cofiou copiosamente toda a extensão do seu bigode que nas extremidades seguia em forma de espiral enquanto olhava taciturno para o céu luzidio de quinta-feira.
Meditabundo, matava o tempo que lhe parecia inanimado principalmente agora longe da azáfama do quotidiano de outrora, tudo por conta do inimigo invisível.
Sim, tinha saudades do tempo que laborava e no seu emprego dirigia uma turma de colegas que reconheciam a sua competência e autoridade.
Agora vivia a reclusão domiciliária por conta das autoridades governativas e carimbada pelo seu superior hierárquico que decidira que ele deveria ficar remetido no seu recanto para não ser atingido pela COVID-19.

– Januário, Januário! – chamava-o a mulher a partir da sala contígua.
Ele, absorto na sua viagem, não a escutava, procurava se comunicar além galáxia, para não sucumbir ao convívio familiar forçado. Agora estava sob a direcção de sua esposa, que impunha o seu feminismo outorgado pela liga de defesa da mulheres do país.
Leonor, quando percebeu que o marido não a escutava, decidiu incumbir o filho mais novo de o chamar.
– Sim, sim! – atendeu Januário ao insistente chamamento do filho.
Apresentou-se perante a sua esposa que se deleitava confortavelmente na poltrona segurando o remoto controlo de televisão.
– Chamaste? – inquiriu olhando para Leonor que meio distraída trocava de canal optando agora por um de ginástica aeróbica.
– Tens de ir deitar o lixo – conferiu com autoridade passiva.

A empregada doméstica havia sido dispensada unilateralmente pela patroa, pois representava um potencial risco de contrair o vírus por recorrer ao “chapa” nas suas deslocações.
Quando o conteúdo televisivo que assistia perdeu o interesse, ela percebeu que o seu marido ainda não tinha saído para cumprir com a missão.
Voltou a gritar pelo seu nome, mas este continuou silencioso. Depois de uma demora prolongada, Januário reapareceu.
– Já vou! – disse
Ela, ainda com os olhos fitos no televisor, não deu pela presença do marido, mas depois espreitou pelo canto do olho e encontrou-o prestes a partir.
– Chii, vais aonde assim mesmo! – Disse ela, estupefacta com o visual do marido.
– Deitar lixo como mandaste! – Conferiu convicto.
Januário trajava um terno azul, devidamente engomado e uma gravata vermelha, era a indumentária que mais confiava e a usava quando tinha reuniões de alto gabarito. Recuperou o seu traje favorito depois de mais de quarenta e cinco dias “aguardafatado” a propósito da nova ordem social, agora que o usava, sentia-se, outra vez, dono de si.

Quando alcançou a principal rua que dava acesso ao destino, uma brisa fina sacudiu seu rosto e ele despertou para lembranças de outrora, dos bons tempos. Atirou o saco e toda a sua depressão vôou com os resíduos domésticos e aterrou no interior da lixeira.

Alisou as lapelas do seu paletó e reiniciou a marcha para parar logo de seguida, recuperou um charuto inacabado, tesourou a parte superior, acendeu-o, deu uma longa chupada e, quando a outra extremidade atingiu o rubro, largou e expeliu uma pequena fumaça aromática.

Continuou sua caminhada sem muita pressa de voltar para casa, dava um e outro sorvo no seu charuto e a sensação de liberdade trazia-lhe felicidade. Adentrou para uma pastelaria e pediu um café, enquanto aguardava, recuperou a sua liberdade de expressão e decidiu ligar.- Querido como é bom ver-te e ouvir a tua voz depois destes dias todos! – gritou Elisa emocionada. – Estás lindo meu bem.
Evoluíram num paleio erótico protagonizado por Januário e, à medida que a sua eloquência se adensava, ela descobria as suas partes íntimas seduzindo-o.
Quando a vídeo reunião terminou, sentiu-se um homem novo e cogitou:
“ A humanidade, com destaque para os cientistas e curandeiros, devia encontrar uma cura a curto prazo para o desconvidado vindo do ano 2019”

 

Por Graça Machel

PCA da FDC e da Graça Machel Trus

Hoje, Dia de Acção Global da Vacina do Povo, comemoramos um ano desde que nós, como família global, enfrentamos a pandemia da COVID-19.

  • Juntos, a humanidade compartilhou o trauma colectivo de administrar uma magnitude insondável de doença e morte em nosso meio.
  • Juntos, em todos os cantos do globo, corajosos profissionais de saúde da linha da frente doaram sangue, suor e lágrimas para controlar a força maligna deste vírus.
  • Juntos, navegámos nas mudanças para um mundo virtual e na ruptura dos meios de subsistência e modos de vida que isso gerou, bem como as novas demandas da vida doméstica que exigiam que cuidássemos uns dos outros, educássemos nossos filhos e nos conectássemos com os nossos entes queridos de maneiras antes inimagináveis.
  • Juntos, aplicamos o melhor das nossas mentes médicas e científicas, bem como todas as facetas da nossa infraestrutura de saúde pública, para produzir vacinas que salvam vidas, numa velocidade e escala sem precedentes. Especialistas de alto nível e cidadãos comuns corajosos estão lado a lado nessa luta, enquanto os testes clínicos vão atravessando aldeias na África do Sul e comunidades no Brasil para laboratórios na Bélgica e na Índia. Olha, estamos todos juntos no campo de batalha.

Ainda assim!

Começamos a ver rachas perigosas e malignas emergindo no seio da nossa unidade e as divisões de desigualdades socio-económicas se tornando ainda mais nítidas. A ruptura económica e social causada pela pandemia continua a ser devastadora: centenas de milhões de pessoas correm o risco de cair na pobreza extrema, enquanto o número de pessoas subnutridas, atualmente estimado em quase 690 milhões, pode subir mais 132 milhões até ao fim ano. A UNESCO revelou a terrível estatística de que cerca de 1,52 bilião de alunos estão fora da escola em todo o mundo e que quase 10 milhões de crianças podem nunca mais voltar à escola após o bloqueio do COVID-19.

Ninguém ficou ileso. E, portanto, ninguém deve ficar sem imunidade ao vírus e à graça da resiliência que a vacina traz consigo. É por isso mesmo que a vacina é um direito humano de todos. A equidade na vacina não é apenas uma questão de saúde pública, é uma questão de justiça social e de sobrevivência colectiva.

Ninguém estará protegido contra COVID-19 até que todos estejam. Não haverá recuperação económica ou social para ninguém, em nenhum País, a menos que priorizemos uma recuperação global igualitária da saúde.

As vidas humanas são iguais em valor, não importa a lotaria geográfica do local de nascimento. Todos, repito – todos! Cada ser humano, não importa onde viva no mundo – precisa e merece acesso a vacinas que salvam vidas.

O nacionalismo em volta da vacina é uma catástrofe moral. A história nos julgará com severidade se não empregarmos todos os recursos à nossa disposição e alargarmos os limites da nossa imaginação para garantir que as vacinas estejam nos braços de quem precisa, de Maputo à Cidade do México e à Mumbai.

Juntos, precisamos continuar a reimaginar a nossa maneira de ser:

  • Uma renúncia da Organização Mundial do Comércio (OMC) à proteção de propriedade intelectual para produtos médicos relacionados ao COVID é imprescindível.
  • As empresas farmacêuticas devem entender que as vacinas são um bem comum e não uma mercadoria apenas para o seu lucro. Exorto-os a ouvir o clamor mundial por preços sem fins lucrativos das doses de vacina e de outras ferramentas da COVID-19 durante a pandemia.
  • Não podemos operar como habitualmente o fazemos. Temos que normalizar as práticas comerciais incomuns – aumentar a capacidade de fabrico, compartilhar a propriedade intelectual e licenciar vacinas para outras empresas maximizarem o abastecimento.
  • Governos, sector privado, multilaterais e filantropos precisam se unir para aumentar a solidariedade e aumentar o financiamento da COVAX.
  • E a COVAX deve fornecer informações oportunas e transparentes aos Países destinatários sobre os preços, bem como o fornecimento esperado e cronogramas de entrega.

Uma catástrofe moral não deveria acontecer. Devemos actuar com responsabilidade colectiva e solidariedade como uma família humana para garantir que cada um de nós possa receber a vacina contra COVID-19. Não ousemos negar a nós próprios e às gerações vindouras a dignidade de uma vida saudável e de uma vitória sobre a COVID-19.

Álvaro Taruma inicia a sua escrita em 2014, com a publicação de textos em jornais e em revistas moçambicanas. É autor de duas obras literárias, nomeadamente Para uma Cartografia da Noite (2016), com 91 páginas, divididas nas seguintes partes: Breves “Anoitações” de um Sonâmbulo; Vigílias; Amor: Dia, Depois Noite; Impressões e Assombros. A outra obra literária é Matéria para um Grito (2018), tem 109 páginas e é composta por três partes: Panfletos contra o Silêncio; A cidade de todos os Náufragos e Um Homem despede-se de si. Em ambos trabalhos o autor sugere a indicação das obras e dos autores moçambicanos e da literatura universal que o inspiraram na escrita, através de epígrafes e de dedicatórias.

Nasceu na província de Maputo, Ilha de Inhaca. Formou-se em Sociologia e Antropologia e ainda em Ensino de Português. Em 2016 ganhou uma menção honrosa no Concurso literário “10 de Novembro”, que celebra o aniversário da Cidade de Maputo. Foi vencedor do prémio BCI de literatura em Moçambique, edição de 2018. Muito cedo granjeou a simpatia da crítica no seu país, que o considera um dos melhores poetas da nova geração[1] de escritores, pela qualidade da sua obra.

São sobretudo o sonho, a noite e a vida dos moçambicanos que norteiam a sua primeira obra literária, considerada como autoficção e que é composta por alguns textos que, de algum modo, dialogam com os do escritor moçambicano Eduardo White (1963-2014), um dos mais qualificados da língua portuguesa. Esse diálogo se estabelece não apenas através da eleição da escrita autobiográfica, como também da escrita sobre o sonho e a morte, da crítica a determinados modelos democráticos que têm lugar no seu país, do governo do dia e ainda da escolha da metapoesia e da prosa poética como pano de fundo da sua escrita literária.

As diferentes preocupações com Moçambique podem ser sistematizadas através da representação que o poeta faz, ao colocar um sujeito poético que afirma:

 

Entristeço-me sempre que me revejo neste trapezista solitário no circo cada vez mais vazio e assustador, de onde só se aplaude os astutos malabaristas do jogo da democracia. Assusto-me, e é com esse susto que me fulmino cada vez mais que se avariam os motores da razão dos nossos governantes. E quase me é suicida esta vontade súbita de caminhar sobre a estreita corda que é o chão do meu país, regado pelo sangue que se derrama sempre que se calam frente à ecuménica mesa do diálogo.// Moro de vagar, em cada vez que piso este traço sideral que é o húmus da minha nação […] (TARUMA, 2016, p. 85)

 

Há um exercício de cidadania que faz o poeta, sugerindo a ideia de que, no seu país, há dificuldade em denunciarem-se irregularidades cometidas por governantes. Quanto ao que alude e que pode ser conferido entre as pp. 85 e 87, poucos moçambicanos se abrem a denunciar diferentes atrocidades, tais como a fome, a miséria, por receio de represálias por parte de quem detém o poder.

A poesia de Taruma é de carácter político. O poeta chega a criticar a existência da kalasnikov, símbolo que faz parte da bandeira nacional.

Ao mostrar a sua desilusão pelo país, o sujeito poético, na obra acabada de referir, chega a utilizar expressões fortes como: “cemitério de loucos”, para designar o país; […] “desejo erótico de acrescentar, em frente à primeiríssima lera desta terra (Maputo), o ú para depois apartar a sílaba inicial, e seguidamente repetir-lhe o nome no feminino, a ver se lhe enfio no cu” […]; …“frenético mijo”, etc cf. p.86; linguagem similar a que Eduardo White utilizou nas obras nas quais teceu duras críticas ao seu país, a saber O País de Mim (1999); As Falas do Escorpião (2002) e O Homem, a Sombra & a Flor e Algumas Cartas do Interior (2004).

Álvaro Taruma ensaia nessa sua primeira obra, de diferentes maneiras, a criação metapoética, da qual destacarei aquela que dialoga com a obra de Eduardo White. Diz o poeta,:  […] “terrorista pode ser quem tem um lápis apontado a uma folha. Bastam três versículos de um qualquer livro para que a morte chegue (ridícula como uma carta de amor) […]// Neste país, onde escrever é crime, eu escondo o meu diário como quem esconde sua munição” (TARUMA, 2016, p. 23).  Este trecho faz lembrar dois outros de Eduardo White, na sua obra A Mecânica Lunar e a Escrita Desassossegada (2011), quando critica os seus colegas escritores e a si próprio, pelo oficio da escrita em Moçambique:

 

Vocês cospem na poesia como vos é costume cuspir num serviçal. Pagam pouco com medo de que vos limpem muito lixo que sois. […] // Vocês fazem livros como fazem calças e vestidos com rigor e o glamour da hâute coture e, muito embora assim, não sabem a merda que os veste. […] (WHITE, 2011, p.47).

 

Não há dia em que a escrita não me venha bater à porta. Não há dia em que não se vire para mim e me diga em tom jocoso: Bom dia, idiota. […] // Vai pentear bonecos, respondo-lhe eu […]. E a desenvergonhada ri-se, enquanto me acobardo […]. (Ibidem, p. 55)

 

A metapoesia é o cerne do livro Matéria para um Grito (2018), obra na qual, em grande parte, o autor reflete sobre o processo da escrita, questões sociais em Moçambique e sobre as mortes sem causas claras. Sobre esse processo de escrita, apresento como exemplo o que afirma o poeta, no poema da p. 22: “Trabalha a palavra/ mesmo que não a digas, flua./ Este é, de todos, o mais árduo/ofício: o lírico gume do silêncio”. Ou ainda: […] “(escrevo, pois, com a pátria de joelhos como quem reza, à cata de moedas imaginárias)”, cf. 27.

Nesse último poema referido, há mais uma marca biográfica. O poema é intitulado “Cemitério dos afogados”, pp. 27-28, e leva a seguinte epígrafe: “Aos meus irmãos náufragos na ilha de Inhaca”. O poeta dedica esse poema aos seus conterrâneos. Recorre ainda a marcas que simbolizam Moçambique, pelo recurso à utilização da expressão “ventos de Setembro”, que lembram os ventos sul típicos dessa altura do ano. São os ventos que têm lugar entre Agosto e Setembro em Moçambique, os referidos nhinguitimo(s), no conto de nome idêntico, da autoria de Luís Bernardo Honwana.

Ao fazer referência a esses ventos, o poeta reclama a pouca atenção social na gestão da província de Maputo. O sujeito poético criado fala a partir da ilha, para alguém que está no continente, lugar com mais vantagens, embora seja um espaço com muitos problemas como a morte sem causa, enquanto que a ilha depende, no seu todo, de mantimentos vindos da parte continental: “fala-me desses ventos de que não sei senão breves rumores, dessa cidade onde a morte é um espelho, um espetáculo que cruza a remos e tu voando como uma bala, uma vela rasgada, um dissenso naufrágio”[…] TARUMA, 2018, pp. 27-28). Com o poema também presta homenagem a alguns naufragados na ilha. Na sua obra é recorrente o ceticismo do poeta quanto aos destinos do país, tal como se pode ver nas palavras do sujeito poético: […] “conta-me daí uma pequena mentira porque cá a verdade é de aquietados motins: um fardo de medo sobre as costas do mundo, sobre os livros, sobre as mesas gastas à fome, sobre a vida que escolheste nessa margem submersa da nuvem: o reduto das coisas líquidas” (TARUMA, 2018, p. 28).

Esse trecho remete-nos à ideia de precariedade da vida em Moçambique, algo que é recorrente em quase toda a obra Matéria para um Grito. Aliás, o poeta utiliza a poesia para denunciar a perda de valores morais e as matanças no país. Há muitos crimes não explicados. O poema intitulado “Vento imóvel (a um país)” é disso exemplo. Nele, o poeta faz referência a comentadores políticos que levaram tiros em Maputo, por defenderem a democracia e por apontarem os males na política do governo-dia. Além desses, o poeta faz menção a pessoas que foram mortas pela mesma causa.  O poema, epigrafado por uma frase de Leonard Cohen, remete à espera da chegada de um milagre:

 

[…] Eu quero que as pessoas se fodam! Ou melhor, eu quero que as pessoas se expludam. […] O que ouves nas canções de Leonard Cohen (waiting for the miracle to come)? Não ouves nada: zarolho de ouvidos e outras coisas! Não ouves a trombeta soar sob o signo da morte? Não ouves o grito dos prisioneiros sobre a muralha sitiada? Cardoso, Macuácua, Mcuane, Sistac, Salema…são apenas um nome sob a trágica emboscada do silêncio […]. (TARUMA, 2018, pp. 54-55)

 

O poeta denuncia ainda, nesta sua segunda obra, os males e desigualdades sociais, com recurso a um sujeito poético que se coloca em diferentes transportes públicos, anda pela cidade e diz o que vê. Os títulos dos poemas descrevem a marca e o tipo de transporte pelo qual o sujeito se desloca, bem como a rota que faz pela cidade de Maputo e arredores: “ADB-100 MP[faixa azul]/Rota: Anjo-Voador –Xipamanine (vamos ganhar tempo passageiros), p. 91; “APP-500 MC [Faixa Amarela]/ Rota: Praça dos Combatentes – Baixa ( Via  Compone)”, pp.93-94; “AEK-627 [Faixa Verde]/Rota: Zimpeto-Museu (se recalmar desce)”, pp.95-96; “O DITO DO COBRADOR DESDENTADO [Chapa desconhecido]/(Voz em off: amuyiveee, amuyivee, khomani amuyiveee!)”, p. 97, entre outros.

No primeiro poema são descritas as diferenças sociais e comparadas as vivências entre as senhoras com elevado estatuto social, as que usam vestidos de seda, afirma o poeta, versus as que vendem roupas no mercado informal. No segundo, é descrita a insensibilidade das pessoas abastadas, perante a pobreza urbana. O poeta chega a dizer que o seu modo de vida explica o amor que tem por estátuas. No terceiro, há uma crítica a valores morais. E no quarto há uma crítica à governação do país e à bajulação dos que nele acreditam.

São duas obras bem conseguidas as do autor apresentado e que mereceram uma boa classificação da crítica.

 

REFERÊNCIAS

TARUMA, Álvaro. Para uma cartografia da noite. Maputo: Literatas, 2016.

________________ . Matéria para um grito. Maputo: Cavalo do Mar, 2018.

WHITE, Eduardo (2011). A mecânica lunar e A escrita desassossegada. Maputo: Texto Editores, 2011.

 

 

* Sara A. Jona Laisse. Docente na Universidade Politécnica. Contacto saralaisse@yahoo.com.br

[1] Há marcos socio-históricos na História da Literatura Moçambicana, que dão como adquirida a ideia da existência das seguintes gerações de escritores moçambicanos: a primeira, a dos combatentes da Luta de Libertação Nacional, os cultores da Poesia de Combate; a segunda, a dos “jovens da Charrua”, que começaram com as suas publicações nos anos 80, rompendo com a estética literária anterior, a da poesia panfletária; e uma nova vaga de escritores, a maioria dos quais começa a publicar nos anos 90, a chamada nova geração de escritores.

O Valgi andava esquecido dos compromissos que deixara em Porto Amélia.  Pudera! O emprego temporário na loja do Bhai dava-lhe algum entretenimento e um salário que lhe permitia sobreviver nesta cidade selvagem. Claro que, uma vez e outra, recordava-se da esposa Mariana e dos filhos, com aquela saudade que o remetia a silêncios de meditação e de tristeza. Esses eram momentos raros e fugazes, porque aqui, como diria o Poeta “outros valores mais altos se alevantam”. E alguns destes centravam-se na pessoa da Eva, de quem cobrava benefícios, físicos e emocionais, mais daqueles do que destes. Ela era a companheira com quem partilhava dos tempos livres, mormente os fins-de-semana, ora em passeios pelos bairros do Alto-Maé, da Malhangalene e da Polana, ora a assistir a filmes de amor no cinema Tivoli.

A Eva vivia numa cabana de quarto e sala, parte dum vasto componde, situado a alguma distância da cantina do Guro. Ela gozava duma privacidade para a qual lutara com algum afinco. Umas amigas preguiçosas e oportunistas haviam tentado juntar-se a ela, para se evadirem dos pagamentos de rendas e da compra de rancho. Ela foi sempre firme nisso: “prefiro viver sozinha do que ter problemas com amigas”. Chegara a Lourenço Marques fazia três anos, vinda da Maxixe. Tal como outras emigrantes aventurara-se para a cidade para procurar um emprego que a lançasse para um outro futuro. Os dias passavam e nenhum dos sonhos mostrava sinais de poder materializar-se em tempos mais próximos. Conseguira uma colocação na Fábrica de Confecções Sabrina, na Avenida do Trabalho, a curta distância do terminal das carreiras dos Transportes do Sul do Save. Nesse recanto fazia primazia da sua liberdade, aí construía e descontruía projectos. Até aquele dia em que viu o Hussene Valgi. Durante aquela conversa bem animada sobre capulanas na loja do Bhai achara-o um rapaz bem humorado e respeitoso; enfim, o tipo de amigo que gostaria de ter tido desde que chegou à cidade. Daí que não conteve o convite instintivo para aquela cerimónia de pedido em casamento da prima Rossana. Hoje são mais do que amigos. São, isso são, unha-com-carne, o que a chaleira está para a sua tampa. Seria, talvez, alguma paixão exacerbada pela necessidade duma companhia? Ou esta que, por ser premente, os colocara lado a lado como cúmplices na trincheira dos que lutam por um sucesso em terra desconhecida e hostil? Fosse qual fosse o motivo, disfrutavam do prazer duma companhia mútua, tranquilamente partilhada.

Com o advento da Páscoa as multidões aprestavam-se para as festividades do Carnaval. Este era dos eventos cíclicos que marcavam a vida dos habitantes dos subúrbios, os quais traziam outro alento espiritual, renovavam as ilusões por uma vida cheia doutras grandezas.

Era Domingo e a noite fora duma frescura invulgar para aquele mês de Fevereiro. Valgi demorou-se a descolar do corpo da Eva. Adormeceram no embalo do relaxamento, num sono sem pesadelos, depois de festivos empolgamentos e efusões na cama.

Ia a caminho das vinte e duas horas quando o Valgi despertou. O “Heróis do Mar” fora emitido pela Hora Nativa, para assinalar o fim da transmissão, fazia algum tempo e nenhum deles o escutou.

“ Que horas são?”, perguntou, perturbado pela vertigem do despertar.

“ Vai para as dez horas”, disse a Eva, a consultar o despertador. “É melhor dormires aqui, porque já se fez tarde e é perigoso andares por estes caminhos que estão cheios de bandidos”.

“ Não posso, tenho que ir. Tenho muita coisa ainda para preparar para amanhã”, disse o Valgi já em pé, a vestir-se.

E meteu-se na penumbra dos becos do Guro. Internou-se pelas traseiras deste estabelecimento. A sua intenção era a de alcançar o largo caminho que liga o Vulcano ao bazar do Xipamanine. Mas eis senão quando, da dobra da esquina duma residência escutou uma voz autoritária.

“Pára onde estás senão disparamos”. Ergueu os olhos e viu, com assombro, muito acima dos seus olhos, as figuras de dois cavaleiros uniformizados de agentes da Polícia Montada. E não se moveu. O coração, tum-tum!…tum-tum!…, parecia que lhe saltava da boca.

O que se seguiu foi uma revista às roupas e um esmiuçado interrogatório sobre: ”…a tua identificação…donde vens a estas horas da noite?…para onde vais?…”; enfim, uma investigação que era o preâmbulo duma sessão de tortura, a mesma a que se submetem os prisioneiros. Porque de prisioneiro ele já se tratava. E assim foi tratado. Ataram-lhe as mãos com uma corda, com nós firmes e apertados. A outra ponta foi ajustada à sela de um dos cavalos. Puseram-no entre os dois animais, deram às esporas e reiniciaram aquela marcha de patrulhamento pelos bairros do Chamanculo, com passo vagaroso, interrompido aqui e acolá por uma breve paragem de auscultação de movimentos e ruídos estranhos que se escutassem na atmosfera da noite.

Assim, o Valgi foi companheiro dos agentes da Polícia Montada naquela longa expedição que cobriu toda a zona do Guro, do Mateus Serra ao Muvumbi, da cantina do Mário ao Zundap, do Grémio até à Maria Caldeira, do Mbongolwene ao Fajardo. Cruzaram-se com outras brigadas que patrulhavam o Tlhavane, o bairro Indígena, o Mendes; enfim, todo o Xitala Mati.

 

“ O que Deus faz, o homem desfaz”, disse a Mariazinha numa tentativa de esfriar a hilariedade que provocara o esquecimento da “história da moça” a que se propusera a narrar.

“ Lembram-se do Xigubo xa Filipe? Dessa vez também trabalhámos aqui que nem umas escravas a bainhar capulanas, como foi da vez da história da santa Aurora”, recordou-se a mãe Dorothy. Viera-lhe à memória um outro evento, sucedido muitos meses antes do assassinato da Munhuana, que é como ficou conhecido o caso da irmã Aurora.

“ Quem pode esquecer aquilo? Aqui nesta terra acontece cada uma!…”, disse a Mariazinha entre dois suspiros.

Do auditório o Valgi era o único que desconhecia o episódio que, do mesmo modo que o da Munhuana, abalara as consciências e a tranquilidade dos habitantes dos subúrbios.

E eis aqui, pela boca da Mariazinha, para redimir-se da amnésia temporária, a narração das razões para a atribuição do nome Xigubo xa Filipe àquela capulana.

“ Como é uso e costume aqui nesta terra, o começo da época de canhu é marcado por festividades. O lugar central para essas celebrações é em marakwe , em Gwazamutine. Um dia vou contar a história de Gwazamutine. Só que nem toda a gente pode deslocar-se a Marracuene. Muitos preferem  cumprir os rituais em locais não muito distantes das suas comunidades. É o caso de Ka-Massaca, na Moamba; de Gwaxine, na Katembe, de Nkalanga, Salamanca e Porto Henrique. E muitos outros povoados espalhados por aí .

As celebrações de Gwaxine eram já tradicionais. Todos os anos tinham aí lugar rituais em que se prestavam homenagnes e tributos aos antepassados e se agradeciam as dádivas com eles agraciaram os vivos. Compareciam altas individualiades provenientes de regiões vizinhas, e até de alguns subúrbios de Lourenço Marques. Dentre os convidados destacava-se o grupo de xigubo de Filipe, assim chamado porque o seu capitão era um cidadão de nome Filipe que vivia no bairro Indígena. Ele era um ás naquela dança. Não havia ninguém que a executasse como o faziam os elementos daquele grupo. Era até convidado pelos chefes brancos da Administração do Concelho para se exibirem nas grandes festas da cidade ou quando chegasse à cidade algum membro importante do governo da Metrópole.

Depois das homenagens, encabeçadas pelo famoso curandeiro “Nengue Wa-Nsuna”, todos os agrupamentos exibiram as suas habilidades. Nem de longe, nem de perto aqueles poderiam chegar aos calcanhares do grupo do Filipe. Desta vez ele trouxera  na comitiva uma meia dúzia de crianças que dançaram que foi um regalo. Nesta modalidade ele era um campeão indiscutível. Uma vez mais, ganhou aquela competição de danças tradicionais com todo o merecimento e justiça.

Mas, há sempre um mas, alguém não digeriu bem a vitória do Filipe. Havia uns surdos murmúrios do caudilho do grupo de Gwaxene que, embora se excedesse em novos números, estava muito aquém dos níveis dos dançarinos do Filipe. Porque nestas coisas é como em tudo: quanto mais te destacares, mais convites vais receber das autoridades. E isso equivale a viagens e a dinheiro. O sucesso duns é dor dos outros. Sempre assim foi, e assim sempre será.

No fim daquela tarde as multidões começaram a dispersar. Só os que tinham bebido demasiado permaneceram espalhados no chão a dormir. Outros desapareceram nas matas à volta para, sabe Deus para quê!… Aqui, só para fazer uma pausa: vocês sabem a quantidade de escândalos que acontecem durante estes encontros para consumo de canhu? Pois fiquem a saber para terem mais cuidado. O canhu, está provado, estimula o corpo para o sexo. Dizem os assimilados que conhecem bem a Língua Portuguesa que é afro…afro… afro quê mesmo? Afridisíaco! Ah, é isso mesmo.

“ Hê-hê, tia Mariazinha! É bom saber isso e é pena que se produza canhu só uma vez por ano…e por pouco tempo!”, galhofou o Valgi. “Dessa eu não sabia”.

“Pois então ficas a saber. Nessas sessões escândalos nunca faltam. Conforme se diz e já se provou, o sumo de canhu tem o efeito de estimular a vontade para ter sexo. Alguns homens e mulheres quando já estão embriagados não querem outra coisa; metem-se aí pelos matos para continuar “a festa”. Diz-se até que estes actos são já parte das celebrações, são tolerados e esquecidos por todos.”

“Eu não vou nessa tradição, não posso aceitar isso da minha mulher, ela a deitar-se com outros homens e depois dizer: desculpa-me lá Hussene, foi por causa do canhu. Isso esquece, tia Mariazinha!”, o Valgi agita-se desconfortado, a pensar no que andará a esposa a fazer em Kariacó na sua ausência já prolongada.

“ Olha lá Mariazinha, contas a história do Filipe ou não?”, a mãe Dorothy a avivar a memória da colega, muito conhecida pela frequência nos lapsos da mesma.

“ Ah, sim. Então depois das celebrações os participantes começaram a dispersar. Cada família tomou o seu caminho. Os que viviam longe embarcaram nas camionetas e seguiram para os seus destinos. Todos iam a cantar, a comentar  sobre o sucesso do evento. O Filipe e a sua comitiva foram levados ao ancoradouro que era o terminal dos barcos que fazem as viagens Lourenço Marques-Katembe e vice-versa. Mas eis que, às tantas, o céu começa encher-se de nuvens. Nada fazia prever que fosse chover. O dia fora tão claro e quente que ninguém poderia imaginar que fosse terminar daquela maneira. Já se ouvia o som de trovoada que vinha lá dos lados de Changalane e aproximava-se da baía, talvez a caminho da cidade. E começou a chover a sério. Os céus encheram-se de relâmpagos, o mar embraveceu. A comitiva do Filipe embarcou nos catembeiros, ansiosa por chegar  à cidade o mais rápidamente possível. As ondas do mar cresceram de altura e chocavam com muito ruído umas contra as outras. Parecia que no fundo tinha xitukulu-mukumba. Os barquinhos em que aqueles viajavam pareciam de papel. Eram jogados para esquerda e para a direita, sem tomar direcção certa. As pessoas que estavam em terra no ancoradouro nada podiam fazer; limitavam-se a erguer as mãos sobre as cabeças, para manifestar receio por aquilo que poderia acontecer. E aconteceu o imprevisto daquela catástrofe. Uma onda gigante caiu sobre o barco que transportava o Filipe, a esposa e os seis acompanhantes, e submergiu-os nas águas da baía sem nenhuma possibilidade de salvação”.

“ E os outros barcos?”, perguntou o Valgi.

“ Embora com muita dificuldade os outros barquinhos chegaram a salvo à outra margem . Os que neles viajavam salvaram-se todos”.

“ Isso cheira-me a feitiço! Como é que o mau tempo foi logo escolher o Filipe e os principais dançarinos? Ná, alguma coisa houve!”, céptico, o Valgi via doutro ângulo a causa ou as causas da tragédia.

“ Claro, especulações sobres os motivos do acidente, ou quem o causou, correram em todo o subúrbio e mesmo aí fora nas localidades. Apontava-se o dedo ao chefe do grupo do Gwaxene, que rivalizava com o do Filipe.

“A inveja faz destas”, pronunciou-se uma jovem cliente que se juntara aos costureiros, a aguardar pela conclusão do embainhamento dumas capulanas de farda para o pedido de casamento duma prima chamada Rossana, a ter lugar no sábado  seguinte. E falava com conhecimento de causa. Durante os preparativos para aquela cerimónia tivera sérias confrontações com uma amiga, ou dita amiga, uma presunçosa, mentirosa e traiçoeira que, abespinhada por não ter sido escolhida para capitanear as cerimónias, andava a beliscar-lhe a reputação. Problemas de rivalidades que envolviam pretendentes e namorados. Viu naquela uma excelente oportunidade para demonstrar à rival que também tinha os seus recursos, e rapazes era o que menos lhe faltava, ora que essa!. Foi quase que por instinto que disse:

“ Senhor Valgi, se quiser participar no pedido da minha prima pode sentir-se convidado. É da maneira que fica a saber como se fazem as cerimónias de pedido de casamento cá entre nós”.

Valgi ergueu os olhos de surpresa e relanceou-os pelos das colegas. A Mariazinha encorajou  com um assentimento de cabeça. É como se dissesse: “aceita”.

Valgi suspirou. Deitou a vista à Mariazinha, de quem julgara adivinhar um aparente interesse em criar e aprofundar alguma amizade. Na sua apreciação masculina, ela era detentora duma figura que no geral poder-se-ia considerar atractiva, provida de sólidos “argumentos” físicos; “…embora muito distraída e já quarentona, não é pêra para se deitar fora!”, segredara aos seus botões naquela primeira avaliação, feita durante os primeiros contactos ali na loja.

“ Podes contar comigo. Estou cheio de curiosidade em saber como essas coisas se passam por cá”, deste modo Valgi anuiu ao convite da cliente.

O nome dela era Eva, ninfa de poisos inseguros, porém cheia de encantos e seduções.

 

O filho do falecido vovô Madala chamava-se Hussene Valgi. Andava desesperado porque estava num beco sem saída com a quantidade e a gravidade dos problemas que viera encontrar em Lourenço Marques, e dos que deixara atrás. Primeiro foi a grande surpresa pelas circunstâncias da morte do pai. Este acabara como um animal de rua, enterrado numa cova, misturado o seu cadáver com o duma rapariga que, estava visto, o seduzira e levara-o a praticar aquela imoralidade. E como poderia dar-lhe um enterro decente, conforme recomendavam as normas da religião muçulmana que era a dele, se as ossadas de ambos estavam misturadas naquele caixão? Se regressasse a Porto Amélia quem iria cuidar da campa no Cemitério de Lhanguene? Seria uma cruelidade deixá-lo ao abandono, a apodrecer esquecido e desprezado por todos nesta terra estranha. Contudo, se se deixa estar por aqui como iria resolver as pendências que deixara lá na terra, onde os tios estavam prontos a abocanhar as propriedades cheias coqueiros e os barcos que a família possuía?  Tinha, e este era de todos o problema mais grave, o seu lar no bairro de Paquitequete onde a esposa, a dona Mariana, e os dois filhos menores viviam. Abandoná-los era a última coisa que iria fazer.

Consultou o senhor Bhai e deste recolheu conselhos dum homem adulto, ponderado e que também vivera os seus dramas.

“ Olha, Hussene, aguenta aqui por algum tempo para a tua cabeça refrescar. Depois vais tomar a decisão que achares acertada. Correr não é chegar. Se quiseres podes ficar lá atrás na despensa da loja e ajudar as costureiras ali na varanda a bainhar roupas. Assim vais aprender a fazer alguma coisa até arranjares um melhor emprego”, disse o Bhai ao jovem Valgi. Aquela era uma oferta a que não poderia voltar as costas. O espírito do pai estava a protegê-lo. Para quê recusar esta prenda generosa, feita com tanta espontaneidade?

Assim, sentou-se ao lado das modistas a embainhar saias, a colocar “estampas” nas calças rotas de operários, a coser rendas nas capulanas mukume ni vemba. Com elas tagarelava e contava coisas lá do norte distante. Delas aprendeu as primeiras palavras do dialecto ronga. Claro que primeiro ensinaram-lhe obscenidades e pediam para ele as repetir em voz alta. E riam-se a bandeiras despregadas, todas contorcidas de gargalhadas com a inocência dele. Em cortesia e alto sentido de humor saíra ao pai; tal e qual!

Ao fim de três meses depois da sua chegada achou que poderia assentar na cidade, alugar uma casa e mandar vir a família para se lhe juntar. Seria o começo duma nova vida. Aceitou o desafio e deitou as mãos à obra.

A aproximação da quadra festiva trouxera outra animação em todos os bairros da cidade. Nos terminais, desde os “Transportes Oliveira” aos “Transportes do Sul do Save do Sá, do “Teresa Lino & Filhos” ao “Manuel Antunes”, passageiros era o que menos faltava. Os autocarros circulavam para os seus destinos com as lotações esgotadas. Era gente que se dirigia ao campo, aos seus  lugares de origem, ou eram os que daí provinham para visitar os parentes residentes na cidade.

Multidões acotovelavam-se nos formigueiros das lojas do Xipamanine. Fregueses entravam e saíam das mesmas desde o amanhecer ao anoitecer. Regressavam às ruas ajoujados de sacos e cestos de compras.  Era necessáro levar alguma recordação para os que não puderam deslocar-se à cidade, para exibir prendas e roupas domingueiras  para os dias das festas. Sem falar nas extravagâncias consentidas pelo décimo-terceiro vencimento.

Foi desta época em que nas lojas do Bhai e da Dona Cacilda, baluartes de vendas de capulanas na Rua do Zixaxa, as mulheres se empurravam para adquirir os últimos lançamentos no mercado daquela especialidade. E uma daquelas era uma denominada Aurora.

“ Estou aqui convosco já faz um tempo, mas nunca vi uma capulana a ser procurada desta maneira”, disse o Valgi às colegas, que mal conseguiam um minuto de folga no embainhamento de roupas.

“ O quê?, Nem parece que vives nesta terra!”, disse a mãe Dorothy, uma das mais antigas costureiras da loja. “Então não sabes da história da irmã Aurora?”.

Valgi confessou a sua ignorância sobre a tal história que culminava com o aumento do negócio de capulanas ali na zona, ou qual seria a relação entre os dois eventos.

“ Então escuta, porque só assim é que ficas a saber”, disse a Dorothy.

“ Conheces o posto de Saúde da Munhuana? Fica ali na avenida Caldas Xavier, perto da Igreja com o mesmo nome. A Aurora era uma moça que veio não se sabe donde e foi internada no Convento da Missão da Santa Ana da Munhuana para fazer o curso de freira. Como se faz com todas as reparigas que ali ingressam, ensinam-lhes profissões comoa a da enfermagem ou do magistério. A Aaurora foi destacada para trabalhar no posto de saúde, ao lado doutras enfermeiras já formadas e experientes.

Era ela que dava vacinas aos bebés, purgantes às crianças mais velhas e tratava as nossas feridas. Era admirável ver a atenção e o carinho com que essa rapariga lidava  cos pacientes. Tinha sempre na boca uma palavra de encorajamento, um sorriso que nos aliviava dos nossos sofrimentos: uma santa! Havia até quem dizia que ela era uma  enviada de Deus  para nos mostrar o caminho da humildade, paciência e de generosidade para com os nossos semelhantes. Posso dizer que não há em nenhum bairro aqui da cidade que não conheça ou tenha sido paciente da irmã Aurora.

“ Hoje em dia há pouca gente assim. Só malandragem! Pergunta a mim que te vou contar muitas histórias dos meus tios lá em Porto Amélia”, interrompeu o Valgi, a recordar-se  das atribulações causas pelos parentes lá na terra natal.

“Pois então, e como todas as pessoas cheias de bondade não duram muito tempo, aconteceu o que foi aquele escândalo que foi a morte dela”.

“Alguma doença ou quê?”

“ Se fosse doença era ainda o menos. Ela foi assassinada”.

“ Como e porquê?”, admirou-se o Valgi, com a testa enrugada. Como podia isso suceder a alguém que dedicara a sua juventude a cuidar do próximo, e merecer o fim que a colega referia?

“ Numa noite dessas, a irmã Aurora vinha do Instituto Víctor Ribeiro onde frequentava um curso de dactilografia. Até nem era muito longe do Lar onde vivia com outras noviças. Nessa noite resolveu fazer um corta-mato pela “Padaria Saipal”, ao lado do cemitério de São Francisco Xavier. Nem se sabe a que horas aquilo aconteceu, mas o que se diz é que foi surpreendida por um grupo de malaítha  que a carregou e puxou para aquelas matas que se encontram atrás do cemitério. Aí os bandidos fizeram e desfizeram dela. Violaram e mataram-na, coitada!”

“ Por Allah, que brutalidade!”, Valgi não se conteve  de exclamar.

“ Isso não foi nada. A irmã Aurora andou desaparecida durante três dias. No convento não tinham a mínima ideia donde ela teria ido depois das aulas. Algumas pessoas afirmaram tê-la visto nas proximidades da Saipal, mas depois disso perderam-lhe o rasto. Outros juravam categoricamente que “ah!, essas raparigas são sempre  assim: com o sofrimento lá no Lar resolveu fugir e neste momento já anda muito longe daqui. E dá para jurar que fugiu com um homem…”, enfim, maledicências  de gente má porque a Aurora era incapaz disso. Via-se e toda a gente sabia que a moça era bem comportada, senão não teria ficado tanto tempo com as irmãzinhas”.

“ Aí já estás meter água, ó Dorothy”, cortou a tia Mariazinha, outra das costureiras, uma linguaruda que só Deus é que sabe onde é que maledicência dela irá chegar. “Repara que a Aurora era uma rapariga como as outras. Já foste menina e sabes o que passámos quando tínhamos a idade dela. Dezanove anos de idade não é brincadeira nenhuma para uma moça. Também tens filhas, tens que compreeder isso. Acho que às tantas ela sentiu as mesmas necessidades que qualquer uma de nós aqui. Isso dos sacrifícios de que falam os padres e as freiras é masé papaia podre. Quando o corpo pede a mente cede e, vai daí, é só veres as miúdas grávidas. Não é qualquer mulher que aguenta aquilo”.

“ Não questiono isso, estou a falar duma pessoa que todas conhecemos e respeitamos pelo exemplo que sempre deu, a nós e às nossas filhas”, redarguiu a Dorothy.

“ Vou-vos contar o caso duma moça que…”, ia contrapor a Mariazinha para dar mais ênfase ao seu argumento. Assim, à margem, devo declarar que as costureiras do Bhai costumavam, como é uso e costume nas conversas entre senhoras, falar ao mesmo tempo e entenderem-se; ao contrário dos homens em que numa conversa cada um fala por sua vez mas não se entendem.

Hei, espera aí comadre, deixa lá aqui a mãe Dorothy acabar a história da Aurora”, cortou  o Valgi, a tentar arbitrar a discussão, por desconhecimento daquela regra.

“ Como vinha dizendo, o desaparecimento da Aurora pôs metade da cidade em alvoroço. Já ninguém sabia o que fazer ou onde procurar. A notícia foi anunciada na Hora Nativa, até veio no jornal e pedia-se a quem soubesse do paradeiro dela para informar a Polícia ou lá na Missão. Tudo em vão!”.

“ Se calhar mataram e enterraram”, aventou o Valgi.

“ Isso seria o menos. Aqueles bandidos, não satisfeitos com o que fizeram, rasgaram-lhe a barriga e o peito e tiraram de lá o fígado e o coração. Dá para imaginar?”.

“ Ná, não dá, nem para imaginar, nem para acreditar!”.

“ Pois acredita porque é verdade. Foi assim mesmo. Extrairam-lhe esses órgãos como usualmente fazem esses malaithas, esses magaizas vindos da África do Sul. Levaram essas partes com eles a fim de fazerem remédios. Mas uma morte não se esconde. Às tantas começou-se a sentir um cheiro esquisito e nauseabundo  vindo dali das moitas, das traseiras do cemitério de São Francico Xavier, que era onde a tinham violado e assassinado. Também havia um grande movimento de cães que iam lá devorar os restos do cadáver dela”.

“ Morrer e acabar comida por cães, é mesmo demais! Ela não merecia isso, depois do tanto que fez pelas comunidades. Não há direito!”, Valgi de novo, a condenar e a lamentar um fim tão trágico quanto injusto. “É o que eu sempre disse: os bons morrem cedo, os maus duram quase uma eternidade, Deus me perdoe!”.

“Quando os padres e as populações souberam do escândalo o choro foi geral, todo o subúrbio ficou de luto. Ninguém falava doutra coisa, nem ninguém acreditava quanta malvadez poderia haver no espírito dalgumas pessoas. A Aurora tivera a bênção de Deus, fora escolhida para vir viver no nosso meio e dar-nos as lições que o Evangelho ensina. E morreu cricuficada por praticar o Bem. Ela é a única santa que aqui existiu e viverá para sempre nos nossos corações”, disse a mãe Dorothy. ”Se os padres a propuseram para ser santificada, para nós os pobres ela é já uma santa. Demos o nome de Aurora a esta capulana bonita que estamos aqui a bainhar. É a nossa homenagem àquela que acima de todos se manifestou como profeta que veio para nos iluminar com exemplos de simplicidade, de generosidade e de amor ao próximo.

“ Que história!”, exclamou Valgi com um suspiro. “Mãe Mariazinha, conta lá então a estória da tal moça”.

“ Qual moça?”, admirou-se a Mariazinha a erguer a cabeça.

A resposta foi um coro de gargalhadas.

“ Só a Mariazinha!…”, disse o Valgi a menear a cabeça, divertido com a falta de memória da colega.

 

*in “Caderno de memórias, vol II”, 2015.

 

Quando os tamancos se comunicaram com o chão da terminal rodoviária da “junta” na periferia da cidade de Maputo, produziram um estrépito chamativo. O jovem que os calçava não se importou com os olhares folgazes de que era alvo.

Foi um dos últimos a desembarcar do autocarro interprovincial proveniente de Chókwè na província de Gaza.

Os seus admiradores miravam-no curiosos e deixavam escapar uma risada, o recém-chegado percebeu que criava impacto no seio das pessoas próximas.

– Onde apanho um chapa para a baixa? – questionou para um dos utentes da terminal rodoviária

Caminhou sereno segurando uma mala velha e pesada, usava um chapéu de palha com abas pequenas, a jaqueta de couro castanho desgastada e ligeiramente pesada descaía no ombro direito, exactamente do lado da mão que segurava a mala. A camisa de capulana com as cores amarelo e vermelho era suplantado pelo casaco, as calças eram de caqui verde-escuro.

Não demorou para embarcar no chapa, os passageiros abriram alas para deixa-lo passar admirando suas vestes, uma moça vagou o lugar e o ofereceu.

– Obrigado! – proferiu com um sorriso alegre no rosto.

O chapa marchava velozmente ultrapassando os outros carros, este malabarismo perigoso agradava a Carlos Wena que vinha pela primeira vez a cidade de Maputo com a mente repleta de sonhos que pretendia realizar. Vinha animado depois de receber o convite do seu primo que triunfara na grande metrópole.

O desembarque na baixa da cidade deixou-o atónito, olhava para cada canto da cidade intimidado pelos monstros de cimento que se erguiam por todo lado, os carros que circulavam velozmente dum lado para outro deixavam-no desorientado. Ficou parado por um tempo, estudando o ambiente que morava ao seu redor, temia dar um passo em falso que podia comprometer a sua chegada a grande cidade.

Posicionou a sua mala no chão, sentou sobre ela e procurou organizar as ideias, já passavam das 15h00.

Uma turba de petizes em gozo de férias escolares deu com o alegórico personagem de Carlos, pararam e olharam-no maravilhados, riam e trocavam conversa.

Já descansado pegou na sua maleta e iniciou a caminhada seguida de perto pelos meninos que multiplicaram as suas risadas agora que o viam em movimento.

A sua derradeira jornada seria até a casa do primo no bairro suburbano da polana caniço nos arredores da cidade.

Os meninos depois de consumirem momentos de alegria gratuita partiram para outras brincadeiras.

A vitrina com letras garrafais do nome do estabelecimento avivaram sua mente e recuperou uma imagem que guardava num canto especial da sua mente.

O jovem forasteiro entrou para o estabelecimento comercial, abeirou-se do balcão, descansou a sua mala no chão.

– Sim, se faz favor? Investiu o balconista.

Ainda distraído, o recém-chegado apreciou o ambiente que por ali morava durante um tempo e cabisbaixo falou para o balconista.

– Quero falar com o rei – disse convicto.

O balconista vigiou demoradamente o estranho cliente, e ainda perplexo perguntou:

– Como disse?

– Quero falar com o rei – repetiu o forasteiro seguro do que buscava.

Pela indumentária e o gesto meio aparvalhado, o atendedor ajuizou que o homenzinho devia estar desprovido de sanidade mental. Então decidiu embarcar na brincadeira.

– Meu senhor, somos um estado semipresidencialista, isto para dizer que temos um presidente que por coincidência foi reeleito a bem pouco tempo. – gabou-se o balconista dos seus dotes políticos.

– Mas eu quero falar com o rei! – insistiu sereno, o estranho cliente.

– Meu jovem, nós, a República de Moçambique não é uma monarquia. – frisou o balconista cada vez mais convicto dos seus saberes.

– Meu senhor, saiu na televisão a dizer que o rei chegou, até falam em inglês “the king is here” – assegurou Carlos sereno de que a sua explicação poderia elucidar o balconista.

Já meio irritado com a insistência parva do cliente, o atendedor procurou ignorar a investida do recém-chegado e deu atenção a um outro cliente.

Um curioso que destrinçava o diálogo entre o balconista e o pomposo cliente, processou a pretensão de Carlos, levantou-se e o abordou.

Depois de uma breve intersecção verbal, o curioso pousou teatralmente uma garrafa no balcão, Carlos abriu os olhos e largou um sorriso rasgado, segurou a garrafa que o ofereciam e agradeceu imensamente aquele anjo que soubera interpretar as suas aspirações.

– Eu sabia que o rei estava aqui! Afirmou felicíssimo – Muito obrigado mano.

E então bebeu, bebeu prazerosamente a cerveja.

 

Basta olhar para o nosso passado literário (escrito) para perceber que a literatura moçambicana teve sempre uma participação nos problemas do seu tempo e meio. Com esse mesmo gesto, é possível denotar que as influências de outros povos, com os quais o português transmite uma ideia (bem ou mal concebida) de irmandade, esteve sempre assente no nosso panorama literário. Sobre isso vários escritores já se expressaram e se houvesse tribunal para esses casos, alguns, pela humildade e sinceridade, admitiriam ter sido “copistas” da caligrafia de escritores brasileiros, por exemplo, na redação dos seus textos. Aliás, há até espaço para suspeitar que muitos deles, sobretudo os da geração Charrua, importaram um batalha que já havia sido iniciada e bem travada no panorama literário brasileiro através da Semana de Arte Moderna, de 1922.

Por estarmos numa altura em que se lê a parte e se subentende o conteúdo do todo a partir dessa parte, permitam-me destacar: vejo esse fenômeno histórico da nossa literatura com bons olhos. Melhor, foi “maningue nice” que assim tenha ocorrido. O que na verdade ocorreu foi inspirarmo-nos na forma como uma batalha que era também nossa foi conduzida. E o fizemos com mestria.

Esta introdução algo interpeladora de um momento específico da literatura moçambicana vem-me a mente por estar a denotar que há uma tendência, ainda em miniatura, de importar uma batalha bastante ferrenha no contexto literário brasileiro (pelo menos ao que me parece) que é atinente a perscrutação dos níveis de melanina de quem escreve para depois partir-se para a adjectivação: poeta/escritor negro ou branco.

Naquele contexto e pelo que me parece, essa batalha de (re)afirmação negritudinista faz todo sentido sobretudo pela antítese que se está a criar. Ora, ainda que os níveis de empatia para com a causa defendida por um bom número de escritores daquelas latitudes estejam altos, creio que nos seja inapropriado, neste tempo e meio, aglutinarmos aquela causa às nossas, se é que existem, ou mais, se delas (as causas) __ enquanto escritores __ precisamos. Mas essa é outra conversa.

Ainda que se diga que ao autor cabe a expressão e que depois do ponto as lides são da estética da recepção, valerá recordar que o autor é também leitor dos mundos e mundividências do seu tempo e meio. Ao que, uma veleidade quase ferrenha de perscrutar ou aguçar os níveis de melanina na escrita soará a qualquer coisa extemporânea sobretudo aos olhos de quem não fizer este paralelismo com outras realidades, considerando apenas o facto de já termos vivido um momento em que tal se mostrou necessário, actual e actuante. Portanto, se temos armas, travemos batalhas que sejam do nosso tempo e meio.

A palavra cultura têm origem do termo em latim colere, que significa cuidar, cultivar e crescer. Cultura é também compreendida como englobando e aludindo aos comportamentos, tradições e conhecimentos de um determinado grupo social, incluindo a língua, as comidas típicas, as religiões, música local e/ou artes.

Enquanto escrevia este artigo, por coincidência um amigo postou no FaceBook a imagem da nossa primeira bandeira nacional, da então República Popular de Moçambique. Enquanto comentavamos o facto dos jovens não (re)conhecerem a bandeira, um jovem  de nome Deoclécio Ricardo David fez um comentário interessantíssimo, que passo a citar na integra:

“Ilustre Leonardo, apesar de não ser determinante para percebermos o fundo da questão, gostava de dizer que muito pouco se faz para a transmissão da nossa história aos mais jovens. Decerto, você e o Samuel são de uma geração anterior a minha, mas é inegável que há um enorme problema de auto-estima pela nossa história. E isso é criado por se passar a ideia de que a história apenas foi feita por alguns e só é lembrada para homenagear a alguns. É preciso que um jovem da minha geração tenha uma consciência elevadíssima para ter sentido de pertença, pois ninguém se preocupa em espevitar tal auto-estima. Eu sempre me perguntei: a comemoração das nossas efemérides não é inclusiva. Exemplificando, é um luxo entrar numa praça de heróis. É luxo ter determinados livros relativos à nossa história. Muitos deles relatam o que aconteceu, mas não os fundamentos por trás do que aconteceu. E aí por diante. Isto tudo para dizer que não me surpreende o desconhecimento.”

 

Wow     !!!!!

A bandeira é um dos elementos representativos da soberania e da independência de uma nação.  Embora seja uma bandeira antiga (em bom rigor, nem chega a ser tão antiga assim, pois a nossa própria nação é relativamente jovem). Como explicar que os jovens não a (re) conheçam?  

Quando fiz a minha primeira visita à  Bélgica, fiz uma visita ao palco da Batalha de Waterloo. Claro, estava bastante entusiasmado por poder visitar o local que teria acolhido tal batalha, que por sinal não me diz respeito, mas que no entanto estudei no meu próprio país, sendo de realçar que, para tal visita turística tive que pagar pelo bilhete de acesso. E sabem uma boa? Nunca visitei nenhum local no qual tenha decorrido algum momento histórico e/ou marcante de batalha no meu próprio país. Vergonhoso, não?

 

                   Consequências da cultura estrangeira na nossa economia

Um grande número de países estrangeiros (principalmente as grandes nações ocidentais) têm a tendência a promover ou mesmo impor sua cultura aos outros países (principalmente os ainda em vias de desenvolvimento), penso eu que uma parte do interesse seja essencialmente econômico. Ora vejamos, o desenvolvimento de um país depende dos bens e serviços que produz e vende, no entanto esses bens e serviços só podem ser produzidos e vendidos se houver consumidores. Para vender um produto precisamos promover, claro. As empresas brasileiras, por exemplo, produzem e vendem novelas que consumimos de maneira exagerada (deveras exagerada, penso eu). Mas o que não nos apercebemos é que nas novelas os brasileiros fazem promoção de suas praias, produtos de beleza, música, gastronomia e outros. Assim também fazem os ocidentais  quando promovem seus vinhos, cidades, futebol, culinária. Consequência disso é que quando pensamos numa praia para visitar, tem de ser Copacabana e não Murrebwe, quando pensamos em uma cidade de sonhos, a nossa imaginação viaja a Paris e não a Matola ou Chimoio, um produto para pele, claro, aquele que vimos na novela e não o nosso Mussiro*, roupa tem de ser aquela marca que o artista estrangeiro usa e não a da Tereza Chiziane, mentor tem de ser Bill Gates ou Jack Ma e não o Dr. Lourenço de Rosário ou Daniel David.

É  daí que poucas empresas que promovam marcas locais notórias são criadas em Moçambique e por moçambicanos, pois, se o que nos agrada ou o que estamos habituados é produzido no estrangeiro, porque então pensar em produzir localmente? Porque “perder tempo e energia” a criar empresas e marcas em Moçambique?

Evidentemente que não precisamos, vamos apenas esperar que eles produzam e nos tragam.

É preciso perceber que como seres humanos que somos, tudo que fazemos em repetição torna-se hábito e todo hábito tarde ou cedo torna-se cultura.  Sim, estamos aos poucos a perder nossa identidade cultural e a adoptar outras influências exógenas à nossa realidade.

Como fazer com que Moçambique use sua cultura para o seu desenvolvimento econômico

A Cultura nos ensina a perceber e valorizar as diversas formas de ser, estar, de fazer, pensar, expressar, comer, beber, diria mesmo de andar e sorrir e viver de uma forma que nos é particular. O desenvolvimento é um projeto de transformação que visa evoluir. Daí que cada sociedade deve desenhar seu próprio projecto de desenvolvimento a partir de seus sonhos, necessidades, meios e respeitando a sua própria identidade.

 Tudo passa por um processo de (re)educação que deve almejar  cultivar nos moçambicanos a ideia de que o “made in mozambique é o melhor. Durante muitos anos, e penso que tenha começado no período colonial, nos foi ensinado que tudo que vem de fora é de melhor qualidade. Acredito que chegamos em um  momento da nossa história em que devemos promover a formação intelectual dos moçambicanos desde os primeiros anos de vida. Esta formação identitária deve incidir sobre a nossa cultura, pois creio ser fundamental para o desenvolvimento das nossas capacidades cognitivas.

Se quisermos que os nossos filhos digam o“made in mozambique” é o melhor, então eles têm de ter orgulho de serem moçambicanos. Ter orgulho é algo que aprende-se, não ocorre por mero acaso. Aprende-se quando estudamos sobre os nossos heróis; sobre como e quem desenhou a nossa bandeira; quando no programa escolar estão incluídas visitas aos museus de história nacional; quando passeamos nas nossas cidades e vemos prédios desenhados por           arquitectos moçambicanos;      quando aprendemos sobre a origem e os fundadores do pandza*; quando aprendemos quem foi Fanny Mpfumo; quando crianças aprendemos o que é munhance*.

A título de exemplo: se quando crianças ensinarmos aos nossos filhos o que é munhance*, ao chegarem a fase adulta      não só vão ganhar interesse em consumir mas também em produzir este produto. Imaginem quantos empregos e milhões de dólares fariam os produtores de munhance apenas em Moçambique? E quanto poupariamos em milhões de dólares na importação de azeite de oliva português?

Para criarmos precisamos de ter uma visão global de quem somos, e o nosso passado é o nosso melhor espelho. É com conhecimento do nosso passado que nossa racionalidade é realmente vivida e percebida. Eis a razão e a urgência de divulgarmos a nossa cultura como oportunidade para a criação de emprego e para que um dia os nossos filhos possam dizer  de boca cheia: “temos orgulho de sermos moçambicanos”;“somos desenvolvidos” ou “made in mozambique     é o melhor. EU ACREDITO.

 

*Munhance – óleo feito na base de mafura (origem shope – sul de moçambique).

*Mussiro – planta medicinal (moçambicana) usada para combater as manchas da pele.

*Pandza – estilo musical moçambicano resultante da fusão de ritmos tradicionais do sul do país      e de ritmos de música moderna urbana.

 

Recomendação de livro para o mês de Março 2021: Construí o meu futuro – Bruno Pinto

Samuel Gerson Andrisse é especialista em recrutamento e autor do livro “Be ready for your next job interview”

 

Não se sabe ao certo de que avaria humana foi-se desenterrar a desmedida tolice, a coragem para a tão ridícula ridicularização de um bairro tão normal como qualquer outro. Com tanto com que o povo tem para se ocupar, perde-se tempo cavando diferenças que, ao fim do dia, são feridas do mesmo corpo. Nkobe não fica nesse lugar distante que, aparentemente, não cabe no mapa de Moçambique. Nkobe roça o nariz de todos, o coração de todos. Navega no sangue do drama diário de qualquer moçambicano de gema.

Não é preciso tirar os sapatos, dobrar as calças e sair de qualquer que seja a cidade para contemplar o caos. Dêem a volta aos prédios dos centros urbanos e, antes que lhes pareça tudo lindo, por conta das bacias parabólicas penduradas aqui e ali, por causa da pintura e das grades envernizadas de uma ou de outra flat, por força de aparelhos de ar condicionado montados numa ou noutra parede, mergulhem de cabeça erguida pela escuridão das escadas, pela obsolência dos elevadores e pela barracalização dos terraços. Isso é apenas prelúdio.

Vamos, agora, para a área de serviços, aquele submundo em que se lava a roupa e para onde se despejam vertiginosamente as águas de qualquer andar. E porque em alguns prédios inoperante está o sistema de canalização, os moleques descem com bidões cá para baixo, onde se luta pelo precioso líquido. Quando empregados não houver, descem as filhas e os filhos da senhora, resmungando de orelha a orelha, com medo de entortar a coluna ou de partir as unhas. Nesse espaço comum, já há muito que rebentou o sistema de esgotos que o colono deixou: o lixo faz a festa aos olhos do luxo. Arregaço as mangas do coração e despejo com a bacia do teclado esta outra realidade: aqui não pára o bate-boca. Ora porque uns pilam matapa no quinto andar, ora porque outros tocam música alta no sétimo… Ora porque uns fazem fumaça no terceiro andar, ora porque um maluco, como se acusam, mal estacionou a viatura no rés-do-chão. Que confusão!

O mais palhaço desse circo todo é o nkobemaníaco que sequer tecto próprio tem para morar. E fica a rir-se de quem ousou adquirir um espaço, longe da saia da mãe, e construiu o seu sonho, não importam os detalhes da obra nem da comunidade. Antes vale mergulhar nas águas indo para a casa própria a continuar um eterno bebé de mãe, com mulher ou filhos na casa alheia. É mais honrosa a pobreza material própria que um emprestado luxo em nome da civilização. Ou, por acaso, tem a cidade metros quadrados parar albergar a todos?

No país real, o drama social é o refrão que ecoa de lés a lés e faz a gente perder as cordas vocais. Nossa voz muda esbarra nas paredes do extremo vermelho e da magna escolinha da 24 de Julho, sem direito de, sequer, tocar na sombra dos móveis. Inútil é tentar estereotipar os lugares e as pessoas, que nada mais são do que vítimas das políticas do Estado, ou da ausência destas, que dizem respeito aos serviços básicos. Somos, no fundo, pontas da mesma cobra, sem veneno; asas da mesma águia, sem bico; barbatanas da mesma sardinha, caçadas por impiedosos tubarões do mar da vida.

Em suma, não há zona de marandzas, bairro de molwenes, área de bandidos, reduto de feiticeiros, banda dos atrasados. Há um Moçambique real que clama por melhores condições: de saneamento do meio, de vias de acesso, de transporte, de abastecimento de água, luz eléctrica, etc. Ao apontarmos o dedo para Nkobe, há quatro dedos que se viram contra nós, fazendo-nos lembrar que nenhum sujo se pode rir do mal lavado.

 

Joaquim Oliveira

I

Não sei se vós quereis ouvir agora, esta voz

que à vós a mão estende, em busca da arte

de escrita real mas bela e pura. Sem mancha

da mimese que na dos outros se prende.

Busco a fúria na arte criada outrora, por Noronhas,

Noémias, Knopflis, Whites. Ó meu verso por

aqui ande! Em rectas letras andaram Craveirinhas

e Kalunganos no Combate. Despidos de tal ornamento

mas com heroísmo. Ó noite oiça-me e dê-me fúria

de dizer em ornamentada arte para que não transborde

a tinta em prol desse heroísmo ou africanismo caviar.

 

II

Amo indiscretamente as já vigentes decoradas formas

de fazer e sentir a arte. No mapa-múndi. Estaria

despreparada para o belo, a razão que visse

alienação no seio destas sérias coisas.

Sedeadas no saber ser e estar de qualquer alma

que se preze! Ah! Que brotem as forças em nós.

Do intersecionismo. E que do nativismo

se desprendam! O livre e não fantasioso pensar

que me faz ser. Sugere que fique esta mensagem

em todos os que ainda na escuridão andam.

Com humildade sem sombra arrogante sugiro-vos:

falemos de nós pensando no mundo, e dele em nós.

 

III

Predisponho-me ao heroísmo pela beleza no escrever,

que as palavras facilmente constroem, quando desenhadas,

revelando-se ditadoras na grafia […] mas em arte […]

democratas semanticamente! Se as falas tornam-se

em poesia quando se harmonizam com o belo e

cinicamente exigem a descoberta do que dizem, quero

que transportem a mente humana a um obscuro labirinto.

Cujas paredes, para uma saída a conduzem. Entre minhas

palavras, quero que caminhem paralelamente: o concreto

e o abstracto. O sonho e a realidade. O afro, o ocidental

e o oriental. Falando o mesmo dizer. Através do qual

se possa reciclar uma escurecida mente. E, por deferência,

se possa dar algo além do prazer às massas que da escuridão

estão libertas. E que vão ganguissando as atmosferas mais iluminadas.

 

A beleza não faz o amor, é o amor que faz a beleza.

Tolstoi

 

Até 2019, Mauro Brito publicou dois livros de poesia: Passos de magia ao sol, pela Escola Portuguesa de Moçambique, e O luminoso vôo das palavras, pela Kuvaninga Cartão d’Arte. Desta vez, o escritor aparece em livro com um conto que coloca a rapariga e a mulher como protagonistas da vida e do que isso pode sugerir.

O título do mais recente livro de Mauro Brito é A estranha metamorfose de Thandi, ilustrado pelo artista plástico Samuel Djive. Esta é uma história de amor entre mãe e filha, Mbali e Thandi, personagens agrestes que constantemente enunciam lições universais, atinentes às circunstâncias domésticas e até mesmo comunitárias.

Thandi é um menina cujo corpo é preenchido de porções consideráveis de barro, consequência de certas acções da mãe quando esta estava grávida. Por isso, a menina não deve deixar-se molhar pela chuva tão relevante para a sementeira. Todavia, sem querer, na tentativa de salvar um celeiro com produtos, Thandi molha e começa a passar mal. Numa sequência de eventos bem encadeados, aí institui-se, na verdade, uma narrativa instigante, a qual, tendo a criança na mira de uma eventual intenção textual, deve envolver qualquer adulto em imprescindíveis metamorfoses.

Com doses anacrónicas assinaláveis, ora antecipando o futuro da narrativa (prolepse), ora recuando ao passado importantíssimo para o presente das personagens (analepse), A estranha metamorfose de Thandi exibe um narrador cuja vocação não se limita a contar uma história formidável. O narrador de Mauro Brito tem um discurso esclarecido, essa perspicácia omnisciente na manipulação psicológica do leitor, com recurso ao que as personagens sentem, anseiam, perspectivam ou temem. Há aí um enunciador do discurso muito atraído por conduzir viagens pelo tempo, pelos arquétipos culturais de uma comunidade possível e, claro, pelos espaços às vezes feitos de esperança intermitente.

A escrita deste conto destaca um autor atento ao pormenor do que serve no enchimento do universo diegético, sempre carente de cor e sensibilidade: “A brisa carregava o pólen das flores. O orvalho ainda cintilava por cima das folhas das árvores. O conselheiro já se tinha acomodado num tronco de árvore e tentava ressuscitar uma fogueira já vencida pela madrugada, enquanto observava a natureza a espreguiçar-se” (p. 13). Numa passagem posterior: “No novo dia, a Lua ainda emprestava o seu encanto ao céu azul-cinza quando o Sol, como uma flor amarela, sobrevoou lentamente os campos, até galgar o horizonte, mais tarde que o habitual. Talvez por isso, o orvalho ainda se estendia sobre as folhas como uma película fina” (p. 18).

É assim em A estranha metamorfose de Thandi. Além de uma história repleta de imaginação, subtil, o conto de Mauro Brito estimula uma aventura pela obediência e pelos efeitos perniciosos causados pelo inverso disso. Aí há, seguramente, uma tentativa consciente (ou não) de o autor fortalecer a autoridade dos pais e/ou encarregados de educação em relação aos filhos. No entanto, sem aquele desfecho já gasto sobre a moral nas histórias infanto-juvenis. Brito foge a isso ao mesmo tempo que constrói a beleza dos cenários, dos impasses narrativos e dos suspenses fundamentados no amor recíproco entre Thandi e Mbali.

Este conto é sobre as metamorfoses de Thandi, é certo, e também sobre tantas outras metamorfoses da existência decorrentes das escolhas ou das decisões que se tomam. Em 31 páginas Mauro Brito lembra que para cada acção há uma consequência. Ainda assim, sugere o conto, o que eventualmente é um fim, pode apresentar-se como oportunidade. As personagens desta história são determinadas: vencem a dor, o medo, a angústia e o ressentimento. Tudo em prol de uma voz que, se for ouvida, ensinará o leitor a amar nesta época estranha.

 

Título: A estranha metamorfose de Thandi

Autor: Mauro Brito

Editora: Escola Portuguesa de Moçambique

Classificação: 16

“O romancista não é nem um historiador, nem um profeta: é um explorador da existência”. Milan Kundera

Adelino Timóteo Zuca, o cronista da vida

Tomei conhecimento que José dos Remédios lançaria a obra O Horizonte e a escrita, abordando oito (8) livros publicados por Adelino Timóteo. Este último já palmilhou a picada dos imortais. Convenhamos, ambos, desfrutam dessa nobreza que consiste em sermos felizes e superiores ao que éramos antes.

Adelino Timóteo Zuca. Longe de mim qualquer pretensão de atrapalhar o leitor. Zuca é nome de família. Timóteo também é de família, porém, coreograficamente, artístico, imutável e de fácil memorização. Tive a oportunidade de ler e reler algumas das suas obras, ele que é irmão gémeo, de uma família de quatro irmãos e engravidado de prémios nacionais e internacionais, pela sua criatividade. Nós, os de Macurungu, Mulungu, Nação Pária, Apocalipse dos predadores, Os oito maridos de dona Luiza Michaela da Cruz e Cemitério dos pássaros. Desconsegui, por alguma razão, os restantes. Dificilmente os encontros à venda.

Adelino Timóteo. Falo desse irreverente, audacioso, ousado jovem escritor que tanto orgulha a nova fornalha de escritores do pós-independência. Ele nos recorda que vivemos todos sob o mesmo céu, porém, nem todos com o mesmo horizonte. Apesar de não o conhecer fisicamente – nem importa, pois, as oportunidades ainda não proporcionaram – imagino alguém que tenha mais de dois metros de altura, peso de fazer inveja, cabeça fresca e atenta. Daqueles jovens do Macurungo que merecem respeito, pela veia contestatária. Sempre o achei um cidadão comprometido, que não sabe fingir, nem se esgota em temáticas da actualidade e desse passado sempre presente. Conheço a sua obra. Aliás, prosélita e vertical. Assumo que ele se dedica de corpo e alma naquilo que faz. Deve ser obcecado naquilo que melhor sabe fazer. Vou lendo e adivinhando seu carácter, por vezes, revelando alguma fúria, outras, profunda infelicidade, desamparo, perdição, mas, acima de tudo, total dificuldade em se resignar às omissões, displicência e ao próprio destino.

Os alicerces da narrativa em Adelino Timóteo se confundem com esse espólio que teima não desvalorizar o passado recente. Adelino se confunde entre o pintor de quadros e o de palavras. Alguém que bebeu talentos, virtudes, manias, mas que não se liberta de vaidades positivas. Como diz Marcelo Panguana, em Conversas do fim do mundo, “se quisermos aflorar um pouco a biografia do Adelino, facilmente, poderemos constatar que é uma espécie de motorista de longo curso, plural na forma como se identifica com a literatura, a pintura, o jornalismo e a arte de saber viver, isto é, de saber ser e estar”.

Concordo, até que este jovem e interventivo escritor tem essa enorme coragem e capacidade que o tornam peculiar, embrenhando-se, de forma extraordinária e criativa na radiografia do seu país, detectando os seus males, o que nos apoquenta, mas principalmente, sugerindo as terapias, no exorcizar de fantasmas, no expurgar de preconceitos e verdades atiradas para baixo do tapete. Ele procura o melhor em cada uma, e em todas às pátrias.

Adelino Timóteo revela uma paixão irreparável e indiscutível sobre a religião. Essa relação entre a fé em Deus e os espíritos dos antepassados. Revendo a crónica dedicada à sua Mãe, Maria Elisa Timóteo Zuca, redescobri essa ligação intrínseca sobre à reivindicação dos valores africanos assentes na tradição africana. Ele faz alusão, intermitente, entre o cristianismo e o património cultural, imaterial africano, que nós adoramos designar como superstição. Os seus romances desaguam, deliberada ou sem intenção, nesses curandeiros que lidam com obuses e estabelecem contactos entre vivos e antepassados. Estes personagens que acrescentam valor ao imaginário associado às crenças tradicionais.

A escrita de Adelino Timóteo torna evidente essa preocupação pelo ser feminino, colocando as personagens femininas no centro da narrativa, nessa tentativa de veicular cenários catárticos, como refere José dos Remédios, que elevem a imagem da mulher. Assim, não admira essa importância que dá a virgindade, como esse símbolo de pureza, maculando-a, ao mesmo tempo que tem a traição como algo muito comum. A violência doméstica está presente em Adelino Timóteo.

Este autor ou o senhor das “narrativas timoteanas” fez uma revelação fascinante. Escreve, compulsivamente, escreve oito horas por dia, como se o mundo precisasse de suas palavras para carburar e oxigenar às almas. A sua narrativa tem um percursor, Heliodoro Baptista. Adelino se transfigurou como fiel discípulo. Heliodoro Baptista, saudoso e incontornável poeta, quebrou silêncios, fez greves de fome e atrapalhou o poder instituído, com o livro Nós joelhos do silêncio. Quanta falta deve fazer a nova geração de escribas.

Quem sai aos seus não degenera, assim dizia um velho provérbio. Adelino Timóteo, então, tem esse espelho como referência. Ficou bem mais fácil revê-lo e entender sua trajectória. Qualquer um deles tem o mérito de tentar, sempre, corrigir a vida ou o destino. Assim são os ousados escribas que repudiam a ementa, não vivem de clichés e detestam o que lhes é colocado como verdade absoluta. Libertaram-se das amarras maquiavélicas usadas pelos fascínios do populismo barato.

Os horizontes de José dos Remédios

Com agradável surpresa, recebi das mãos de José dos Remédios um exemplar do livro O horizonte e a escrita ainda com cheiro de pão quente, à semelhança do pão que motivou e inspirou escritores e poetas, como Suleiman Cassamo, no seu livro O regresso do morto. Esse pão que alimentou “Laurinda, tu vai mbunhar”. O pão e a escrita caminham lado a lado. Alimentando os mendigos das leituras, os espíritos dos sedentos. Tamanha generosidade teria um preço. Conversamos sobre o lançamento e a possibilidade de dizer duas palavras. Essas tarefas dos iluminados Gilberto Matusse, Teresa Manjate, Almiro Lobo e outros.

Em meio da pandemia, dos desafectos, deste mundo que se cansou de todos nós, logo pensei nessa imagem discursiva intervencionista e inconformada que acima referi, nesse intrincado universo das nossas debilidades, no revisitar desta cultura e seus devaneios. Pensei nos horizontes dos nossos horizontes sombrios, desgarrados e já sem brilho.
O horizonte e a escrita pareceu-me, logo no começo, esplêndido e, esteticamente, fascinante. Fez-me recordar aquele provérbio que dizia, os homens são como os livros, devemos tomá-los pelo seu valor e não pelo aspecto. Eu tomei este livro, nessa dupla dimensão. Uma reflexão e crítica amadurecida, descomprometida, e isenta de alienações. Uma edição criativa e pouco convencional.

Concordamos todos que, na narrativa, predominam duas dimensões essenciais. A primeira, atinente a cronologia dos eventos, e a segunda, cristalizada no tempo do discurso. Assim, tem sido a literatura moçambicana. Abundante, fugaz, soberba, em alguns momentos, escassa, melindrosa, menos conseguida, em outros, porém, dinâmica e versátil. Repleta, agora, de novos autores criativos e interventivas editoras, mais reconhecidas internacionalmente, espaços de língua portuguesa, o que confere e traduz outra qualidade, postura e um nicho de mercado mais apetecido e desdobrável. Porém, esta literatura carece de análise crítica.

Carecemos de críticos apaixonados, incisivos e descomprometidos. Fazem falta esses advogados literários. Aqueles cuja missão confere uma outra dimensão e pujança a escrita. Os ditos que, no universo da literatura produzida, revelam as debilidades, os exageros, os contornos de obras mais elaboradas e estruturadas. A crítica literária, não importam as épocas e os períodos históricos, transportam consigo essa missão transformativa, destapam méritos duvidosos, recolocam as verdades na meritocracia e a relevância do rigor. Por carecer destes atributos, igualmente, me distancio dessa função e missão. Evito que esses laços afectivos e a proximidade atrapalhem leituras correctas, me afastem de juízos de valor, olhares precipitados, enfim, conclusões menos justas e conseguidas.

Em José dos Remédios vejo uma promessa para Moçambique, que merece encorajamento e espaço. Nessa pesquisa e no esgravatar de argumentos literários. Este autor que agora devo assumir como promessa confirmada para a literatura e jornalismo deste país, evidencia o que já sabemos faz tempo. Aliás, ele se socorre e recorre a Yves Reuter (1996) quando argumenta que toda a história é história das personagens, ainda que a manipulação dos eventos caiba ao narrador. Enredo e personagens exprimem, ligados, os intuitos do romance, os significados e valores que o animam. Complementa António Cândido et al. (1995).

José dos Remédios, abastecido e munido de algum traquejo e tarimba na arte, literatura e dramaturgia, nasceu presenteado de múltiplos talentos. Faz de tudo um pouco. Desse pouco, quase tudo. Possui inúmeros ensaios publicados na imprensa. Neste livro, O horizonte e a escrita, se aventurou na espinhosa missão de rever criticamente Adelino Timóteo. Antes, fez o mesmo, com um ensaio sobre a poesia, complexa poesia, de Noémia de Sousa.

Mergulhou, livre de qualquer enfermidade, na análise narrativa de Timóteo. Teve essa equilibrada missão de rever este “cronista da vida” com uma paciência de ouvires, fazendo uma leitura fielmente retractada, resignificando as metáforas, acantonando as sombras desse passado que jamais pode ser presente, rebuscando esses alicerces de um olhar apaixonado pelo país e pelo seu povo, muito para além das nuvens negras que, misteriosamente, habitam em suas entranhas.

Relendo a crítica do José dos Remédios, recordei-me da passagem que descrevia a travessia ao Mediterrâneo, do romance A virgem da Babilónia. Impressiona essa articulação. Impressiona essa travessia do Egipto até a cidade da Beira, passando pelo deserto, pela Somália, Sudão, Tanzânia e etc. A travessia que faz o país desaparecer. A Nação serve-se de amuleto que lhe permite caminhar mais de 10 km em meia hora. Aqui as analogias aos nossos emigrantes que caminham mais de mil quilómetros no percurso Moçambique e a África do Sul. Quais serão os novos amuletos?

Adelino Timóteo e José dos Remédios se vestem de preocupações literárias que mexem com o tecido social moçambicano. Usam recursos alegóricos, umas vezes irónicos e outros sarcásticos, para rever essa realidade contaminada. No final, eles, nem por isso, são autores de histórias com desfechos emocionantes e fascinantes, nem com final feliz de encher a alma e conto de fadas. Por sinal, até são melancólicos, porém, preparados para um novo recomeço. Assim, são as pessoas que acreditam e nós acreditamos nesta nova geração. (X)

Um projétil voava a uma velocidade de 715 m/s fuzilando o ar no percurso que efectuava em direcção ao alvo que devia estar a trinta metros de distância.

Os populares das redondezas alarmados com o som do fuzil procuravam averiguar o que estava a acontecer.

Um agente da lei devidamente uniformizado e empunhando uma AK 47 seguia no encalço um civil que já se distanciava notavelmente, o policial quando viu que não alcançaria o exímio corredor decidiu disparar o segundo tiro.

A competição disputada numa pista de pavê teve início no mercado da Munhava e era executada por dois indivíduos o que seguia na dianteira e o que vinha no seu encalço.

O som do balázio serviu de estímulo para o corredor de vanguarda acelerar seu passo e alcançar a escola primária completa Amílcar Cabral e ai perdeu-se na multidão.

A bala ricocheteou na plataforma de um camião e perdeu a sua direcção inicial continuando o seu percurso incerto.

Estafado o corredor perdedor desistiu e ofegante buscou descanso no chão de argamassa de uma loja de um comerciante indiano.

O tiro depois de suas peripécias acrobáticas. Parou, parou maldosamente no corpo de um menino que voltava da escola e antes de soltar o segundo gemido seu corpo caiu no chão de pavê, o sangue que jorrava do seu peito avermelhou o livro de português da 5ºclasse.

O primeiro popular chegou e testemunhou a partida do menino, outros se juntaram e lamuriaram o fatídico incidente.

Inquiridores descontentes desencadearam uma pequena sublevação iniciando as buscas para apurar a causa da morte do menino aluno da Escola Primária completa Amílcar Cabral.

Encontraram o polícia homicida involuntário e iniciaram as averiguações.

“Foi um acidente” – protestou o agente da lei

“ Assidentii, estamos fartos de vocês” – imperou a voz de uma senhora.

O segundo pretexto furado emanado pelo polícia para justificar o balázio mortal foi rematado com as costas das mãos de uma senhora, a cara do homem movimentou-se da esquerda para direita.

“Agredir um agente da autoridade é punível por lei” – determinou o homem de uniforme.

Outra bofetada voou e a cara do polícia Constantino balançou outra vez. Quando sentiu o caso mal parado empunhou a sua arma despoletando ainda mais a fúria dos munhaveiros que espancavam-no por todo lado. Um ex-guerrilheiro desmontou prontamente a AK 47 e as peças do artefacto mortal ficaram expostas no chão.

“Esse uniforme não serve para nos humilhar, torturar e matar” – discursou um munhaveiro.

Uma mão forte arranco-lhe a camisa deixando mais a merce da justiça popular.

Dois pilotos que voltavam da “bacia” depois brincadeiras acrobáticas junto à margem do sistema de drenagem das águas pluviais montadas pelo município regressavam empurrando os seus pneus com ajuda de dois paus.

Em nome da nova justiça social um dos pneus foi confiscado e colocado no pescoço do polícia que tinha sido amarrado junto a um poste, procuravam incendiar o pneu mas não conseguiram atear o fogo. O petróleo doado por um comerciante anónimo não serviu para iniciar a fogueira.

Um txopelista que conduzia animado o seu veículo transportando um passageiro parou e decidiu prontamente ceder um mililitros de gasolina que tinha como reserva.

Longas labaredas envolveram o corpo do homicida, populares ululavam ante o espectáculo macabro.

Marejado de lágrimas o larápio testemunhava o aniquilamento do agente da lei, jurou que jamais voltaria a surripiar.

A imprensa popular documentava o facto fotografando e escrevendo sobre o que sucedia, difundindo nas redes sociais.

O corpo do menino continuava no chão coberto por uma capulana, as páginas do livro de português ensanguentado esvoaçavam ante o vento leve que soprava nessa tarde de quinta-feira.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

…vi Salatiel Matchazi cantando e dançando “vadhla voxe” de Jeremias Ngoenha e engoli pela goela adentro todo encantamento do mundo que ainda degustava na boca. Aquele saltitar e vigor para marchar pela “causa comum era duma incredulidade espantosa não pela vontade com que o fazia porque a hipocrisia caia-lhe tão bem quanto a túnica que trazia para cobrir o rechonchudo abdômen. Nunca a frase “um homem sem barriga é um homem sem história” fizera tanto sentido. De facto, Salatiel Matchazi era um homem de histórias com panos para manga.

Oito horas e quarenta e três minutos marcava o relógio fixado na parede da sua sala bem ao lado do quadro “Tatuagens D’Alma” de Naguib, quando a secretária, de entre outros expedientes, fez-lhe chegar um pedido de autorização para a realização de uma marcha em manifestação contra o alto custo de vida e a ineficaz distribuição de renda na vila municipal de Samsanga. «Belíssima iniciativa!» anuiu…para o espanto da secretária que só deu entrada a tal pedido por mera cortesia profissional porque para ela «não autorizo» era o único deferimento possível de ter do mais respeitado e competente edil jamais visto naquelas latitudes, que Salatiel Matchazi dizia ser.

Eu que não sou de marchas, gravito na minha própria bolha e não ligo a mínima para lamúrias, fitei-me no soslaio de uma rua para vender água aos manifestantes como quem vende lenços no velório ou armas na guerra. Pelas palavras possíveis de ler nos banners dos manifestantes evidenciava-se «pão para toda gente»; «vocês são porque nós somos por isso dêem-nos pão»; «corrupção zero ou corruptos fora»; «chega! Assim não dá mais». Ler estas palavras ao som de «vadlha voxe» e «lafamba bicha», de Jeremias Ngoenha, que se fazia ecoar em corro, avivava uma réstia de esperança para repor a transparência e justiça governativas que Salatiel Matchazi e sua conclave haviam mandado às favas em prol dos seus apetites e credos.

Nos semblantes dos integrantes da manifestação rodopiava o suor com que regavam a sua penúria no dia-a-dia laboral e se promiscuia com as lágrimas drenadas por um coração já em quebranto porque a vida em Samsanga sabia mesmo a fel. Cá entre os meus botões ressignifiquei as palavras dos manifestantes e senti a legitimidade da dor e justeza daquela busca por um interlocutor no edifício do conselho autárquico de Samsanga. Eis, então, que a incredulidade ganha forma na figura de Salatiel Matchazi marchando com os populares e, pelo punho direito, segurando a extremidade de um banner em que era possível ler «cumpram as vossas promessas».

Em Janeiro, e na ressaca das festanças não autorizadas pelas autoridades e do pandemónio na fronteira de Lebombo, arrancou o campeonato nacional de futebol, Moçambola-2021, num contexto atípico da COVID-19.

Em teoria, era tudo lógico. Na prática, havia, e à semelhança do que acontece em todo o planeta, que se criar todas as condições sanitárias para que o futebol não se transforme num campo de propagação do novo coronavírus.

Esfregou-se as mãos. Jubilou-se com o pontapé de saída da prova mor do futebol indígena. Cerrou-se o punho. Afinal, o futebol é o ópio do povo.

Foram três jornadas disputadas sem que os intervenientes do Moçambola, incluindo o autor destas linhas, fossem submetidos a testes, tal como preconiza o protocolo sanitário definido pelas autoridades de saúde. Assobiou-se para cima.

Pontapearam-se as recomendações da Organização Mundial de Saúde e da FIFA para a retoma segura do futebol.

Colocou-se em risco à saúde das pessoas, mesmo num cenário em que os casos da COVID-19 dispararam no país e há registo de vários óbitos.

Nas vésperas da 4.ª jornada, e num cenário em que já se falava, nos bastidores, da suspensão do Moçambola, devido ao não cumprimento do protocolo sanitário, a Federação Moçambicana de Futebol anunciou um valor monetário de 100 mil dólares para testagem de todos os elementos envolvidos na prova.

O plano era tão simples para os dirigentes: testar, na 4.ª e 5.ª jornadas, os jogadores, as equipas técnicas, os árbitros, os apanha-bolas, entre outros elementos ligados ao futebol, 72 a 48 horas antes da realização dos jogos.

Depois, os testes seriam feitos de forma aleatória. Tudo o que podia correr mal aos que decidiram avançar para o Moçambola sem testes correu ainda pior. Na última comunicação à Nação, o Presidente da República, Filipe Nyusi, anunciou a suspensão do campeonato nacional de futebol e dos treinos das equipas por 30 dias.

Nyusi justificou esta medida pelo facto de não se estar a testar os intervenientes do campeonato, alertando ainda que não se pode fingir que a COVID-19 não existe.

“Queremos cortar a transferência do vírus de uma província para a outra. Por outro lado, nem sequer são realizados testes no Moçambola. Vimos, depois dos testes realizados pelo Ferroviário de Lichinga, que quase metade da equipa não viajou. Isto significa que este problema existe e nós estamos a fingir que ele não existe. Vamos cortar um pouco e voltaremos a jogar. Estamos interessados que se jogue e já estava a animar o campeonato”, argumentou Filipe Nyusi.

Há, para todos os efeitos, uma percepção generalizada de falsa promessa de realização de testes às autoridades de saúde e ao Chefe de Estado.

Mais do que isso, provamos que não estamos, nem tão pouco, organizados para dar passos gigantescos para o profissionalismo.

Ora, como foi possível a Liga Moçambicana de Futebol, a Secretaria de Estado de Desporto e a Federação Moçambicana de Futebol – instituições que desde o início acompanharam todo este processo – permitirem o arranque do Moçambola sem a criação de condições básicas para o efeito?

Que responsabilidades carregam todos aqueles que deixaram de lado a componente saúde pública para se jogar à bola?

E não nos venham com a retórica de que, inicialmente, os testes de despite da COVID-19 seriam a custo zero face às dificuldades financeiras apresentadas pelos clubes.

Nem tão pouco.  Falhada, claramente, a perspectiva do Ministério da Saúde em assumir os custos dos testes, devia-se, e muito bem, encontrar soluções para viabilizar os mesmos.

E, uma das soluções passava, na minha óptica, por a Federação Moçambicana de Futebol, fazendo uso do Fundo Solidário da FIFA para mitigar os efeitos da COVID-19, canalizar a “mola” aos clubes ou até mesmo à Liga Moçambicana de Futebol para testar os jogadores, treinadores, árbitros, enfim, todos os intervenientes.

Não era, no meu entender, preciso esperar que a corda rebentasse para se fazer mais um arranjo, dos vários a que estamos habituados nesta esfera desportiva.

Por que motivo, quando se apercebeu que seria oneroso para o MISAU assumir os testes, sobretudo, com a subida de casos, a FMF não disponibilizou logo dinheiro para se evitar a exposição da desorganização que reina no futebol moçambicano?

A Federação Moçambicana de Futebol está interessada em se jogar, cremos, até para que os potenciais jogadores chamados à selecção tenham ritmo competitivo.  Temos, em Março, dois jogos importantíssimos diante do Ruanda e Cabo Verde que podem ditar a qualificação para o CAN. Precisamos, por isso, de jogadores com aceitável ritmo competitivo para alcançarmos resultados satisfatórios.

Mas voltamos ao início. Discutiu-se, antes, e com tons de irritação, o valor a ser atribuído aos clubes pela Federação Moçambicana de Futebol, no âmbito do Fundo de Apoio Solidário da FIFA alocado aos seus associados para mitigar o impacto da Covid-19, neste caso USD 1 milhão da discórdia.

A FMF disse que apenas ia dar dinheiro aos clubes que cumpriram com os requisitos de licenciamento. Com razão, quanto a nós, até porque os clubes têm que ser mais sérios, organizados e com olhos postos no profissionalismo. Depois de um processo nebuloso, com mais contras do que prós, os 14 clubes que disputam o Moçambola reclamaram ter concluído o mesmo tendo direito a 1.2 milhão de meticais cada.

Não queríamos discutir o valor, em si, alocado aos clubes. Queremos, isso sim, abordar o processo de licenciamento que foi de difícil parto e aceitação com muitos clubes a torcerem o nariz para a sua implementação.  É preciso perceber que, se quisermos sair deste mar de improvisos e estender de mãos ao Governo para viabilizar o Moçambola, tal como aconteceu há anos, precisamos ser proactivos. Pensar grande, dimensionar os clubes para uma perspectiva empresarial.

Não podemos ter casos de clubes que se dizem terem cumprido os requisitos de licenciamento, mas não conseguem pagar salários aos jogadores e muito menos descontam para o Instituto Nacional de Segurança Social (INSS). É patético que jogadores reclamem de falta de alimentação antes de disputarem uma partida, tal como aconteceu no Textáfrica de Chimoio.

Redigi um texto emotivo e demasiado espontâneo quando Calane da Silva, nosso professor, aniversariou os três quartos de séculos, dessa generosa longevidade, marcantes passagens e vivências culturais. Têm sido anos intensos e profícuos de inevitáveis intervenções em prol do fascinante mundo das artes e letras e do jornalismo. Calane aniversaria, no mesmo dia que o artista plástico Naguib. A vida fez deles irmãos consanguíneos de sonhos, imaginação e fantasia. A complementaridade do signo libra que confere impulso emocional e tatua as identidades através das distintas épocas históricas.

Com ambos desenvolvi e privei, nos últimos anos, uma relação que perpassa a amizade ou convívio fraternal. Tornou-se viral e se situava nesse plano de múltiplas excentricidades e cumplicidades. Calane acreditava que ainda poderíamos agregar valores às crianças e jovens. Sentia que o capitalismo selvagem, dos novos tempos, os excluirá, sem apelo e nem agravo. Essas gerações bebiam o pecado do descaso e omissão. Educação poderia ajudar, defendia Calane. Educar gerações não significava, tão somente, ingresso. Teria de ser acesso. Crianças e jovens são minha matéria-prima e, confesso, continuo céptico sobre o futuro de muitos, até sobre o presente de poucos.

Retomar as cumplicidades, neste pequeno texto, não pode e nem deve, em nenhuma situação, ser entendido como uma homenagem ou louvor à sua obra e memória. Antes, tem de ser interpretado como uma forma de desmascarar a omissão e a displicência que acompanham os criadores artísticos e os talentos que criam e recriam este mosaico étnico, racial, social, cultural e, estranhamente, literário do país.

Calane era um samoriano convicto, porém de coração dilacerado pelos sucessivos falhanços de fazer uma nação reconciliada e com valores. Também Samora, deixou um país à beira do caos e do opróbrio. Mas, Calane era também um monoteísta. Com sangue miscigenado hindu e português, ADN africano, ele nasceu católico e professou a religião de forma convicta e leal. Lealdade que tipificou sua vida e amizades. As relações e matrizes cruzadas que fizeram dele um muçulmano reconvertido. Mas, a sua espiritualidade o transformou em espírita. Procurava a pureza do altruísmo e a força e poder da luz e do sol. Parte como líder espírita de um grupo que criou e, quem sabe, experimentará outras esferas espirituais, nos próximos anos, sentado à direita do Pai.

Quis fazer um texto sem recorrer, forçosamente, às suas características, gostos e vontades. Um texto de reencontro com Craveirinha e Gulamo Khan, Ricardo Rangel e Fanny Pfumo, com Malangatana e tantos outros, com quem ele conviveu e foi feliz. Este texto, então, seria uma espécie de penhorado agradecimento por tantos caminhos e obras que ficarão como legado.

Decidi rever um texto que ele compartilhou, o qual eu deveria ler, obstinadamente e sem tréguas. Marcelo Rubens Paiva, brasileiro, que Calane não conheceu, mas que respeitou, como respeitou a todos com a mesma simplicidade e cordialidade. Numa das passagens, o texto recordava “Apesar de você, as cores do arco-íris continuarão as mesmas, estarão sempre entre o céu e a terra e continuarão emocionantes e lindas”.

Temo que, com a sua ausência, esse amor com as cores de arco-íris, continuará tão infinito e contagiante. Sem limites. Imaginativo e apaixonado pela fantasia, pedia, sempre, que observássemos tudo com olhares apaixonados, como se tudo fosse tão lindo e fascinantemente rejuvenescido.

Calane era, pois, essa espécie de Júlio Verne. Esse novelista e poeta francês, cujo nome original foi adulterado, Jules Gabriel Verne 1828-1905. Júlio Verne foi dramaturgo, poeta e ensaísta, cuja obra se configurou como a mais traduzida em toda a história. Fazia predições, em seus livros, sobre o aparecimento dos novos avanços científicos. Sonhou em passar 40 dias no fundo do mar e a ciência criou os submarinos. Invejou a liberdade dos pássaros e imaginou que o ser humano voaria e, até, transportaria carga, algo que os pássaros não conseguem fazer. A aviação deu azo a estas predições. Calane era um pouco este arquitecto das palavras que não deveriam ser esquecidas nos gabinetes e nem nos cacifos ou estantes.

Em tudo que já foi dito e, eventualmente, será escrito, retomo suas duas últimas aparições públicas na Universidade Pedagógica do Maputo. Aqui estudou e se converteu em professor, mentor e guia de centenas de estudantes pelo país afora. A UP-Maputo era o seu predilecto projecto de unidade nacional que a independência trouxera e o cativará infinitamente.

A UP-Maputo decidiu homenagear o Professor e médico Fernando Vaz. Completava só noventas Primaveras, exuberantemente, dedicadas à sua medicina, cirurgia médica e compaixão para com seus pacientes. 90 Anos de formação e educação de profissionais de saúde. Calane da Silva usou e abusou da graciosidade de sua voz e fez as honras da casa. Deixou que as palavras se transformassem em armas que libertam as ideias progressistas. Pelas suas palavras e abraços, agora tão raros, foram revistos os momentos azuis de uma revolução que agora virou vermelha. Ali estavam a sua Xicandarinha e Malanga, fervilhando as memórias da Lenha do Mundo, de Fernando Vaz e de todos nós.

Meses mais tarde, replicou a dose durante as celebrações dos 150 anos de Mahatma Gandhi. Cerimónia inusitada e de rara beleza espiritual e intelectual. Um momento indescritível e de contagiante emoção. Calane vestiu-se de branco, encarnou Gandhi, gesticulou a pureza da paz, liberdade da palavra e reconciliação. Exercitou Yoga e fez meditação transcendental. Espalhou seu perfume poético e fez acreditar num amanhecer sem ódios, sem tiros, na mão plena de bondade e no coração altruísta.

Por instantes, sentimos que Gandhi estava ali, visitando Moçambique, falando da sua luta pacífica, no dom da bondade. Ghandi visitará Moçambique e os privilegiados desfrutarão dessa bênção. Nunca mais voltamos a fazer yoga e nem meditamos. Alguns, quem sabe, ainda devem fazer. Inesquecível Calane. Todos nós, com uma peça de roupa branca, sem muita certeza das cores do nosso sangue e vontades.

Ao Calane, ficou essa enorme dívida educacional, literária e jornalística. Um penhor que só o tempo saberá pagar e retribuir. Aqui fica, então, esse pedido de desculpas pelas nossas incapacidades, fraquezas e omissões, por não sabermos reconciliar o país, não sabermos transformar os sonhos das crianças e jovens, pela incapacidade de proporcionar um novo amanhecer para todos, ávidos de oportunidades e respeito pela diversidade. Uma pátria de valores e liberdades respeitadas. Também, devemos por não termos sido céleres e mais assertivos para lidar com esta traiçoeira pandemia, covarde e assassina, Covid-19, que rouba de nós, o melhor de nós mesmos. Perdoe-nos por ter-te desacompanhado e te deixado no meio do povo para o qual você sempre viveu.

Neste momento da Páscoa, fica, apenas, essa vontade de reler no poema dos olhos das crianças, o amor e a reconciliação, acreditar que essa maldade vai desaparecer. Queremos essa luz esplêndida em nossos corações, para que amanhã seja um outro e novo dia.

Segundo o dicionário brasileiro www.dicio.com.br, Racismo seria um conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças, entre as etnias.
Na altura eu era assistente em recrutamento e fui convidado para apoiar a Gestora de Comunicação no processo de recrutamento de um (a) assistente de comunicação para o seu departamento. Uma negra (preta se preferir) e outra mulata (café com leite ou mestiça), foram as últimas escolhidas do shortlist. A negra veio ter comigo e disse “eu sei que vocês vão escolher a outra porque é mulata”. Por outro lado a dita mulata (que não estou muito certo que seja, pois parece de origem indiana, enfim…), sorriu e foi sentar-se à espera que fosse chamada para a entrevista. No final adivinhem quem escolhemos, pois claro, a mulata. Foi para a entrevista confiante, sorriu, mostrou gestão de suas emoções, não foi racista e ainda por cima mostrou que tinha competência para o cargo. Nada melhor do que ter este tipo de candidato como colega, pois não?

Se eu tivesse a inteligência que tenho hoje, nem teria perdido meu tempo entrevistando a moça negra que por sinal não era nada má. Moral da história: eu e a minha colega, que conduzimos o processo de recrutamento e contratamos a mulata acabamos deixando a empresa e sei que a mulata é hoje a Communication & Image Manager na mesma empresa, sinal de que fizemos good job.

Será raça um critério de discriminação ao mercado de emprego em Moçambique?
Com expecção da Bélgica onde meu trabalho é efectivamente recrutar Africanos (na sua maioria negros) para África, em Moçambique nunca me foi recomendado escolher pessoas pela cor de pele, sexo ou etnia e também nunca pude presenciar escolhas de candidatos baseado nesses critérios. No entanto já ouvi, notadamente numa passagem da música do músico Azagaia onde diz “vais para empresas tipo bancos e não encontras nem um negro”.

Não estou em posição para afirmar que o racismo no sistema laboral é inexistente pois não estou na cabeça dos outros profissionais para saber que critérios usam efectivamente, no entanto, sei que como seres humanos que somos, fomos programados para pensarmos geralmente negativo. Encontrar justificações e culpados para a situação em que nos encontramos, principalmente quando esta é má, é evidentemente melhor do que procurar soluções favoráveis para sairmos dessa situação. Aceitar que não temos competências técnicas e/ou os soft skills necessários para o posto é impensável para muitos de nós, pois aceitar implica voltar para casa e pôr-se ao trabalho (ler, investigar, procurar uma formação que possa colmatar a lacuna). Neste caso é melhor culpar a raça, apelido, idade, sexo, etnia e isso por apenas alguns minutos pois o resto do tempo deve ser consagrado a beber txilar e reclamar que o estado não ajuda e que nos outros países é melhor (como se tivéssemos conhecimento desses tais países).

Como fazer face a questão do racismo

Nós como humanos transmitimos às outras pessoas, uma imagem de nós, projetada a partir do que nós mesmos achamos de nós mesmos. E é a partir dessa imagem que nós somos tratados e julgados. A boa nova é que podemos mudar a forma que nós nos vemos.

A procura de emprego é um dos maiores desafios que enfrentamos na vida. Saber que vamos conseguir o trabalho significa, potencialmente, que as nossas preocupações financeiras serão eliminadas, poderemos fazer planos de vida e ganhar uma certa dignidade. Saber que a entrevista pode correr mal, cria pânico, e a confirmação deste prenúncio faz com que nos sintamos estagnados, fracassados, temos vontade de desistir de tudo e ir para lugar incerto. Quem nunca esteve nesta situação?
É certamente por este sentimento que mesmo antes da entrevista começamos a procurar justificações caso não consigamos o trabalho, pois ouvir “NÃO” é realmente doído, principalmente quando nos falta comida na mesa. Como é o caso de muitos de nós, infelizmente.

A solução passa por uma boa preparação. Como para todos os encontros que sejam desportivos, amorosos ou viagens, a preparação é primordial. Quando nos preparamos para uma entrevista de trabalho ou mesmo para uma reunião de negócios, o nosso estado de espírito é o mais importante, saber que somos capazes e que vamos sair do encontro vitoriosos é a chave do sucesso nestes meetings.

No processo de preparação para além das suas competências técnicas, Informe-se sobre a cultura da empresa, pois nas suas respostas poderá dar inconscientemente, informações suplementares ao entrevistador; veja o endereço da empresa com antecedência de maneira que chegue a horas e sem estresses; prepare antecipadamente a sua indumentária de acordo com a cultura da empresa; leve consigo alguns CV’s caso sejam necessários; prepare seus argumentos em adequação à cultura da empresa ou ao entrevistador; sorria e elimine todas as ideias pré-definidas sobre raça, etnia, idade, apelido, sexo; seja autêntico e original; responda as questões com entusiasmo como se já tivesse sido contratado.

As empresas estão para fazer lucros. Este é o objectivo central de todas as empresas e contrariamente ao que muitos pensam, as empresas precisam mais “dos bons candidatos” do que o contrário. Daí que elas não vão recrutar pessoas incompetentes que tenham cor clara ou mais escura. A cor não vai ajudar as empresas a atingirem os seus objectivos financeiros. Então, quando for a entrevista, mostre que é bom no que faz e esqueça todas as ideias pré-definidas. Se não conseguir passar na 1ra, 2nda ou mesmo 3ra entrevista, tente novamente sem desistir, melhore suas competências todos os dias e sem perder entusiasmo espere pela sua vez.

Recomendação de livro para o mês de Fevereiro: ” Empreendedorismo e Desenvolvimento de Negócios” – António Sendi

Samuel Gerson Andrisse, é especialista de recrutamento e autor do livro “Be ready for your next job interview”

Está a tornar-se viral no país alguém anunciar, em grupos de WhatsApp ou noutras redes sociais, a morte de uma figura pública ou de anónimos, evocando o Coronavírus, quando, na verdade, essas pessoas estão vivas e nem sequer se encontram infectadas.

Este tipo de notícias cai com muita naturalidade no seio da sociedade, pois, numa altura destas, pode esperar-se tudo. Lamenta-se pelo sucedido. Gera-se um ambiente de medo, pânico e de incerteza sobre quem será a próxima vítima.

A dor e a consternação tomam conta, imediatamente, dos amigos, familiares, vizinhos, colegas de serviço, admiradores, enfim, de pessoas muito próximas ou que conviveram com o fulano.

A mentira só é descoberta quando no meio de muita tristeza, há quem, com alguma frieza, resolve procurar a confirmação do caso.

No último fim-de-semana, aconteceram dois ou três episódios que me deixaram sem chão e completamente gelado. É que deparei-me, num dos grupos de Whatsapp, com a informação que dava conta de que Dom Dinis Sengulane nos tinha deixado vítima da covid-19.

Tal aconteceu quando acabava de ver imagens televisivas relacionadas com o seu programa denominado “Vida Plena” que passa aos domingos num dos canais privados da TV em que ele aparecia.

Confesso que fiquei bastante chocado e tentava digerir a notícia quando soube de outros membros do grupo que afinal ele está bem vivo e que quem morreu foi o seu irmão Moisés Sengulane. Triste.

Ao tentar refazer-me do susto, eis que num outro grupo de Whatsapp, um sujeito que se identificou como sendo jogador do Clube de Chibuto, apareceu como que a confirmar a morte do presidente do clube, Yunusso Valente Albino, igualmente vítima da covid-19.

Deixei-me cair na ratoeira porque era alguém muito próximo do dirigente do clube em causa. Infelizmente, mais uma vez estava em presença de uma brincadeira de mau gosto praticada por indivíduos IRRESPONSÁVEIS e sem escrúpulos. Pessoas que nada têm a fazer na vida que não seja inventar mortes.

Para fazerem acretidar-nos nas suas invenções, evocam sempre, como motivo de falecimento, o coronavírus. Antes destes dois casos, circulou, em quase todos os grupos de que sou membro, e não são poucos, a informação da morte do sociólogo Gulamo Taju. Teve que ser ele próprio a entrar em alguns dos grupos e desmentir a notícia. Vejam só até onde as coisas chegaram.

Outros casos semelhantes acompanhei, com tristeza, durante a semana passada, envolvendo alguns anónimos que, entretanto, não morreram coisíssima nenhuma, o que é, no mínimo, desagradável.

Os mentores destas falsas notícias brincam com os sentimentos das pessoas. Mexem com os corações de todos nós já cheios de preocupações e com a nossa sensibilidade. Desestabilizam todo o mundo.

Antes de postarem este tipo de coisas, deviam pensar um pouco sobre o impacto negativo que isso representa no seio da família do visado. Da sua comunidade. Do seu bairro. Dos seus amigos, vizinhos e colegas de serviço. Coloquem-se no lugar de todas estas pessoas.

É preciso ter muita coragem para anunciar a morte de alguém que nem sequer está doente. Criar pânico e agitação nas pessoas e divertir-se com isso.

Os responsáveis por estes anúncios de mortes falsas, quando localizados, devem ser denunciados às autoridades para que sejam punidos exemplarmente e através deles, desencorajar futuros casos.

Aliás estou espantado que até hoje a Polícia não tenha iniciado uma aturada investigação para prender estes malandros. Afinal porque é que nos obrigaram a registar os nossos números nas operadoras de telefonia móvel? Não era para, em caso de necessidade, rastrear um e outro número e chegar aos criminosos, burladores e outros? Se é isso, de que é que estão à espera?

Pulula, nas redes sociais, todo o tipo de criminosos, em particular burladores, que tentam, a todo o custo, enrolar pessoas honestas e tirar-lhes dinheiro, usando muitos esquemas. Desde fulanos que enviam mensagens aleatoriamente, dizendo: “envia aquele dinheiro para este número de Mpesa”. Alguns com transferência pendente, caem nessa ratoeira e enviam o dinheiro para uma pessoa errada. Às vezes são valores altos.

Outros pedem que lhes enviem alguns valores em nome de pessoas amigas ou chefes hierárquicos para resolver certas preocupações urgentes. Que os beneficiários do apoio não podem pedir pessoalmente porque estão reunidos, etc. etc.

Conheço pessoas que também caíram nessa armadilha. Houve um caso que envolveu o nome de um ministro que, consultado depois da burla consumar-se, disse que não tinha sido ele a solicitar a ajuda. Quinze mil meticais foram-se num lapso.

Como estes, há muitos casos criminais que rolam, de diversas formas, nas redes sociais e que alguém tem que se encarregar de parar com estas brincadeiras. Crimes que têm estado a lesar muita gente. É tempo de a polícia levar a sério esta situação. Já temos uma lei que aborda os crimes cibernéticos, uma boa base para actuar.

Quem fala de burla, pode falar de indivíduos que brincam com a imagem do Presidente da República. Usam algumas plataformas para denegrir a imagem de algumas pessoas. Gente que coloca em circulação documentos oficiais, a exemplo de decretos e outros, antes de serem divulgados por vias normais.

Algumas dessas coisas ultrapassam a fronteira da brincadeira e são autênticos actos criminais puníveis por lei. Tudo ocorre à luz do dia, dai que a polícia não nos venha dizer que està à espera que alguém submeta uma queixa para poder actuar.

Os factos são tão evidentes que chegam a dispensar qualquer tipo de denúncia. O que falta mesmo é a acção policial. Mãos a obra rapazes! Mostrem-nos serviço. Protejam-nos contra os crimes cibernéticos, pois é para isso que pagamos impostos. Façam a vossa parte com zelo e profissionalismo e nós, contribuintes, faremos a nossa para que não vos falte o salário.

Mais um ciclone atravessa o nosso país, afectando, directamente, as províncias do centro, em particular, Sofala, Manica e Zambézia. Ainda nem sequer nos refizemos das anteriores tempestades de 2019, como foram os casos do Idai e Kenneth e, mais recentemente, do ciclone Chalane, e teremos de lidar com os efeitos nefastos do Eloise. Estes são momentos perturbadores, preocupantes, duros e, até, demasiado violentos. Precisamos de força, coragem e muita fé para enfrentar estas crises e manter acesa a chama da esperança. Temos de continuar fortes e resilientes, e saber erguer a cabeça, em todos os momentos.

A natureza, principalmente na época mais quente do ano, no Verão, gera ciclones que afectam Moçambique, países vizinhos e, sobretudo, as ilhas que se encontram no Oceano Índico. Um fenómeno natural, e que está dependente das condições climatéricas para evoluir e se tornar mais ou menos agressivo.

Hoje, em particular, me recordei daquela mãe e concidadã, da província de Sofala, que perguntava num vídeo, muito divulgado pelas redes sociais, “afinal por onde andou o vento ao longo de todos estes anos”? Indagava ainda se o vento não tinha outro caminho por onde passar que não fosse a Beira: “- Beira é o caminho do vento?”

Estas são questões legítimas, justas e apropriadas. Cada um de nós deve parar para questionar e entender que mudanças foram operadas no clima nos últimos anos. Uma reflexão que nos induz a aceitar que o planeta terra e, particularmente Moçambique, já não são os mesmos. Estão muito diferentes. Os padrões climáticos apresentam alterações radicais a cada dia que passa. Umas vezes demasiado quentes e outras, muito mais frias que o normal. Temos agora chuvas mais intensas ou, muitas vezes, nem sequer temos chuva. A estiagem se tornou mais prolongada e mortífera. Tudo como parte dos fenómenos El Niño e La Niña. Também temos as tempestades que aumentaram, quer na regularidade, como na intensidade. São as mudanças climáticas que o próprio ser humano tem ajudado e influenciado.

No grupo de países mais expostos aos efeitos das mudanças climáticas, que incluem as ilhas do Índico e outros países litorâneos, Moçambique faz parte e, infelizmente, tem sofrido bastante. As nossas províncias costeiras, em particular, são afectadas, tornando a vida das populações ainda mais complicada, difícil e desesperante. Este é o preço da nossa localização geográfica. Sempre nos beneficiamos, ao longo da história, desta localização. Ter o mar próximo foi sempre um grande privilégio. Todavia, em alguns momentos, sofremos com os ciclones e com a subida das águas do mar, nas cidades costeiras e situadas abaixo do nível das águas do mar. Esta localização transformou-nos no “caminho do vento” e em vítimas do seu poder de destruição.

As mudanças climáticas significam e representam o pouco cuidado que temos com a natureza. Ao longo dos anos, o processo de industrialização consumiu recursos naturais, de forma indiscriminada. Foram destruídos ecossistemas inteiros, florestas e diferentes espécies de árvores. Foram poluídos os rios e os oceanos. Quando o ser humano tomou consciência, começou a limitar o uso dos recursos do planeta. Assim, foram criados os diferentes acordos, sendo o acordo do clima o mais importante. Também nós, como país, temos, por vezes, algumas obrigações e, nem sempre as respeitamos. Continuamos a destruir e a cortar a nossa floresta, fazemos queimadas descontroladas, destruímos os habitats e os ecossistemas. Não respeitamos, nunca, a voz da natureza. Esquecemos que a natureza tem o seu tempo próprio e aprendermos, ao longo de várias gerações, a valorizar esse tempo.

Quando os seres humanos deixam de respeitar a natureza e seus ecossistemas, quando a poluição ocorre em grande escala, quando emitimos dióxido de carbono (CO2) em quantidades insustentáveis, quando o uso de combustíveis fósseis ultrapassa os níveis do aceitável e quando aumentamos a geração de resíduos domésticos e hospitalares, a terra, também, encontra as suas formas para responder e dizer que ultrapassamos os limites e ela não se consegue reciclar. Assim, ela se manifesta de forma destruidora. Este desrespeito tem acontecido com as actividades económicas e industriais, realizadas em muitos países, sobretudo, nos mais desenvolvidos. Temos culpa, todos nós, como humanidade.

As alterações climáticas serão, por conseguinte, uma realidade incontornável, se o comportamento humano não for alterado. Teremos, como seres humanos, de reaprender a conviver com a natureza. Saber escutar, muito bem, aquilo que ela nos pretende revelar.

As mudanças climáticas têm um impacto, ainda mais trágico, junto das mulheres, que são responsáveis pela gestão das respectivas famílias, da terra arável e dos outros recursos existentes à volta de suas residências. Sempre que ocorrem cheias ou secas, nós testemunhamos imagens das televisões, reportando o drama de centenas e milhares de mulheres, mães, fugindo e procurando abrigos seguros, transportando suas crianças e seus parcos haveres. Estas imagens são dolorosas, desumanas e violentam-nos. Esta instabilidade tem degradado, ainda mais, o já frágil tecido social moçambicano. Testemunhamos esse drama e a consequente desestruturação dos agregados familiares e, igualmente, instabilidade social nessas regiões.

No ano passado, avaliei o impacto das mudanças climáticas na vida das mulheres moçambicanas. Fi-lo de forma consciente, como mulher, mãe, avô, e como cidadã que tem trabalhado e apoiado algumas famílias no campo, nos últimos anos. Quis dar a entender que estas mudanças climáticas têm empobrecido e ampliado o nível de carência, desigualdade social e indigência de muitas famílias. Mais importante ainda, quis ajudar a explicar o fenómeno das mudanças climáticas e instruir essas mulheres e irmãs sobre como se protegerem e assumirem atitudes de menor risco. A intenção era a de auxiliar estas mulheres a terem uma atitude positiva em relação a sua própria vida, aos locais onde residem e onde trabalham a terra para sustentar as suas famílias.

Portanto, temos de aceitar que a questão das mudanças climáticas exigirá novas estratégias e abordagens. Neste momento, temos sido reactivos.  Quer dizer, temos a capacidade de prever e identificar a chegada das tempestades e ciclones. Isso, permite que nos abriguemos, com alguma segurança. Porém, isso não basta. Teremos de ser proactivos. Por outras palavras, encontrar formas correctas de explicar, educar e transmitir conhecimento às crianças, aos jovens, mulheres e à sociedade, sobre o significado destas mudanças climáticas.

Todos os pesquisadores, estudiosos e professores que estudam e investigam estes fenómenos precisam de ajudar a sociedade a adoptar modelos e estilos de vida diferentes e mais resilientes. Sobre este grupo, recai essa responsabilidade de educar, formar e informar. Educar, passando uma informação esmiuçada e fácil de ser entendida e interpretada. Formar, passa por criar grupos pequenos que, de forma permanente, junto das áreas de risco, ajudam as lideranças locais a tomar as decisões mais correctas, junto das suas comunidades. Informar as comunidades sobre novas formas e modelos de convivência, escolha de locais mais seguros, com actividades agrícolas certas, para não perderem todos os haveres a cada ano que passa. Portanto, este é um tempo especial para a nossa comunidade académica, para os membros do governo, que fazem as estratégias e desenham os planos de contingência. Não podendo fugir das mudanças climáticas, teremos, com certa urgência, de evitar que as comunidades percam os seus poucos haveres, o seu gado caprino, bovino e etc., que amealham com esforço, mas que desaparece a cada chuvada e ciclone. Já somos demasiado pobres para não valorizarmos cada um dos nossos sacrifícios consentidos. É tempo de conceber e implementar estratégias de mitigação mais abrangentes e mais vigorosas.

Será importante, também, que continuemos atentos ao novo coronavírus, também conhecido como Covid-19. A Covid-19 é uma doença causada por um vírus muito pequeno e simples, que se reproduz de forma parasitária. Apesar da Covid-19 já ser melhor conhecido, tendo, inclusivamente, uma vacina, o certo é que continua matando e de forma indiscriminada. As infecções do coronavírus causam doenças respiratórias leves ou moderadas, mas, em muitos casos, começam a ser mortais para os pacientes acometidos por outras patologias. Alguns cientistas também acreditam que o novo coronavírus se disseminou pelo mundo em virtude da acção destrutiva e invasora do ser humano contra a natureza.

Os possíveis impactos do coronavírus estão longe de ser determinados e conhecidos. Para além das mortes em massa, em quase todos os países, sabemos que o coronavírus reduziu os impactos ambientais, provocados pelas indústrias, sobretudo, pela redução e restrição das viagens aéreas e marítimas, que resultaram na redução do uso de combustíveis fósseis e, consequentemente, na emissão de dióxido de carbono.

Porém, nesta altura em que olhamos para a natureza e tentamos compreender os efeitos das mudanças climáticas, teremos de continuar firmes, seguindo as orientações das autoridades de saúde para não sermos infectados pelo covid-19.

Estou muito solidária com o sofrimento de todos afectados por este ciclone Eloise e, tal como no passado, a nossa organização, a FDC, continuará dando seu apoio, dentro das nossas capacidades e escassos recursos disponíveis. Às mulheres, em particular, enfrentaremos juntas esta situação e as dificuldades pelas quais vocês têm passado. Muita força para todos!

 

Graça Machel

 Presidente da Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC)

 

 

Esta é a segunda vez que escrevo uma carta para si e espero que encontre algum tempo para a ler. Sei que o senhor tem muito que fazer e pensar. Muitos problemas por resolver. A guerra no centro e norte, a problemática de coronavírus, só para citar alguns exemplos.

Ainda na semana passada, o senhor decretou novas medidas de prevenção contra o coronavírus. Recuamos para os tempos em que quase tudo estava fechado. Cinemas, salas de teatro, piscinas públicas, ginásios, praias, discotecas, barracas da venda de bebidas alcoólicas e bares. Parte da economia está parada.

É que as pessoas são muito desobedientes, senhor presidente. Gostam de ser policiados. O pior de tudo é que não confiam em nada. Conhecem tão bem as limitações do nosso sistema nacioanl de saúde, quase a atingir o colapso. Camas para doentes com covid-19 quase a esgotar. No sector privado já está.

O senhor é um homem cheio de boas intenções. No final do ano, brindou os moçambicanos com aquela sua decisão de reabrir barracas e bares. Aquela foi a máxima. Foi como que largar um passarinha. Abrir, de repente, os calabouços e dizer aos reclusos para fugirem sem olhar para atrás. É o que vimos. Barracas assaltadas de gente a beber e a expor-se ao risco de contrair o coronavírus.

Não acha que o momento foi impróprio para tamanha decisão? Bom, vamos esquecer. É que coincidiu com o final do ano caracterizado por altas temperaturas, com a euforia à mistura e o regresso em massa dos nossos compatriotas da África do Sul, um dos paises mais afectados pela covid-19 em África. Pessoas que entraram no país sem teste que comprova que estão livres da doença.

Excelência, concorda comigo quando digo que a medida tem a sua cota-parte nesta grande escalada de contaminações no país, em particular na cidade de Maputo? Não estou longe da verdade, não acha?

Senhor presidente, gostei das medidas que anunciou, mas, como sabe, elas em sí não vão resolver nada. O comportamento humano será determinante. Algumas até deviam ficar de vez. Por exemplo, por regra, os bottles stores não estão autorizados a vender bebidas geladas, nem que os seus clientes bebam no local. Mas o que vemos é o transformar destes em autênticos bares, à luz do dia, e a registarem enchentes. Onde andou a inspecção, este tempo todo, para corrigir este atropelo?

Outra coisa, senhor presidente, é que na região Austral de África não se vende bebiba alcoólica aos domingos. Os bottle stores não abrem. Quem quer tomar uma bebida tem que ir a um restaurante ou bar. Nós somos os únicos, senhor presidente, em que tudo fica ao bel-prazer dos donos dos bottle stores. Para começar, abrem todos os dias e fecham a hora que quiserem, num claro vazio do poder.

Acredite, senhor presidente, que somos também os únicos em que se permite beber na via pública. Circular com garrafas de cerveja ou de outro tipo de bebida na mão. Isso é impensável na África do Sul e noutros países da região.

Talvez por isso que os sul-africanos não nos respeitam. Quando chegam aqui, fazem e desfazem a seu bel-prazer e, inclusivamente, lançam o lixo pela janela do seu carro em andamento porque sabem que nada lhes vai acontecer. No seu país não fariam isso nem por bricadeira. Triste não é? Pois é.
Excelência, agora, sim, os polícias acordaram. Andam às dezenas nas ruas da cidade de Maputo, e não só, a fiscalizar o cumprimento das medidas anunciadas. Sabe que eles são chamados de “Mahindras”? Já não são cinzentinhos.

Alguns deles estão a fazer boladas. Pensam mais no seu bolso do que propriamente no que se deve fazer. Admitem o inadmissível. Deixam passar atropelos à lei em troca de dinheiro. Coisas de Moçambique!

Há outra coisa que me preocupa senhor presidente. Ouvi bem o que o senhor disse. Li e reli as 21 medidas que anunciou. Não há nada que diga que os polícias têm que apreender produtos, nomeadamente bebidas alcoólicas de infractores.

Quer me parecer que há algum excesso de zelo. É que os “Mahindras”, desejosos em mostrar serviço aos seus chefes, “prendem” bebidas, no lugar dos prevaricadores. Tudo ao contrário. Ficam, assim, processos-crimes por instruir e enviar ao tribunal para a sua responsabilização. Já agora digam lá para onde é que levam as bebidas “presas”?

Caro presidente, desculpa pelo alongar da carta. Quando me emociono, não paro de escrever. Mas só mais umas coisinhas. O senhor disse que no meio da semana, os restaurantes passavam a fechar as 20:00 horas. Tudo bem.

Mas sabe que na última sexta-feira, dia da entrada em vigor das 21 medidas contra a covid-19, restaurantes da Julius Nyerere continuavam com clientes até às 20:30? Violaram o decreto do Conselho de Ministros logo no início. E ao que parece os “Mahindras” não andam por lá, pois estão ocupados em vasculhar os subúrbios. A história dos filhos e os enteados.

É verdade, o senhor completou, na semana passada, um ano, o primeiro neste seu segundo mandato. Aproveito, desde já, felicitá-lo por isso. Quase todo o mundo está a coleccionar os seus feitos, num ano em que o coronavírus quase paralisou a economia do país, baixando as perspectivas de crescimento para os níveis muito reduzidas.

Uns dizem que o senhor fez chegar água potável à sua aldeia ou comunidade. Para os outros, é a energia. Há os que destacam o seu papel no processo de busca da paz que dominou o seu primeiro mandato. Enfim, há um esforço no sentido de juntar peças para sustentar a tese de que o seu desempenho foi positivo.
Buscam realizações numa situação em que parte significativa das empresas, unidades hoteleiras e outros sectores fecharam as portas, despediram centenas de trabalhadores e algumas delas até hoje não retomaram as suas actividades devido ao coronavírus, cujo número dos infectados está a subir dia-pós-dia e de uma forma assustadora.

É um exercício que decorre ante a guerra em Cabo Delgado que ofusca quase tudo e começa a baralhar as contas e a obrigar às petrolíferas envolvidas nos projectos de exploração de gás natural do Rovuma a mudar de planos.

Uns, adiaram, até agora, o anúncio do investimento definitivo. Outros, como a Total, estão a reduzir os seus efectivos de pessoal no terreno com a ameaça de ataque por parte dos terroristas e os ataques da Junta Militar de Mariano Nhongo que continua a mata cidadãos indefesos, destroi e saqueia bens públicos e privados.
Mesmo para terminar esta minha carta, gostaria de saber se há alguma novidade no diálogo com Mariano Nhongo? Parece-me que o senhor se zangou com ele ao lhe dar um ultimato, sábado passado, para entregar-se às autoridades antes que seja tarde.

Confesso que fiquei surpreendido com o ultimato. É que nas vésperas do final do ano, o homem anunciou uma trégua e disponibilizou-se a iniciar, na segunda-feira da semana seguinte, um ciclo de diálogo com o governo para os mesmos objectivos. De lá a esta parte, não se disse mais nada. Será que chegou a haver contactos com ele? O que terá acontecido ou falhado? Cadê o diálogo?

Bem vistas as coisas até parece que o senhor está a lhe fazer pagar pela mesma moeda já que quando foi a sua vez a decretar a trégua, ele virou-lhe as costas e no dia segunte atacou algumas viaturas.

Mas, senhor Presidente, se me permite gostaria de lhe dizer que mesmo assim devia ter aceite o diálogo com ele. Sabe porque? Muito simples. É que o líder da auto-proclamada Junta Militar não tem nada a perder. Tarde ou cedo será desmobilizado, desarmado e reintegrado na sociedade.
O mesmo já não acontece com o seu governo a quem cabe a responsabilidade de proteger ou garantir a segurança ao cidadão. Sucede quer as pessoas estão a ser sistematicamente mortas e os bens, públicos e privados, saqueados ou destruidos. Ainda não notou que os ataques de Nhongo e companhia estão a afectar a economia. O seu programa de governação. Cria um desgaste da imagem do país.

Bom, termino por aqui desejando-lhe sucessos neste novo ano. Sucessos na governação. Sucessos no meio familiar e na busca de apoios para acabar com o terrorismo em Cabo Delgado. Não é motivo de vergonha que Moçambique seja alvo de terroristas. Não estamos a inventar a roda neste assunto.
Não sei por que razão, mas demoramos muito a reconhecer que são eles, os terroristas, que nos atacam. Agora temos que dizer a todos o que se passa no terreno, incluindo a nós também moçambicanos. Com os parceiros, temos que ser claros sobre o que queremos para que possam pedir autorização aos seus parlamentos para nos ajudar.

Senhor presidente, o senhor foi felicitado, semana passada, quando nomeou e empossou o General Eugénio Mussa para o cargo de Chefe de Estado Maior-General das Forças de Defesa de Moçambique. Dizem que o senhor acertou em cheio, que ele é bom no comando.

Acredito que como ele deve haver mais generais que dirigiram ou participaram nas anteriores guerras e que têm muita experiência ou conhecimento sobre a forma de ser e estar numa guerra, incluindo os que pertenceram à guerrilha da Renamo, hoje membros do exército moçambicano. Eles podem ser úteis na definição de estratégias militares e não só. Não acha senhor presidente? Bom, até mais.

Registo, com satisfação, o crescimento do sector cultural do país. Há muitos jovens a dedicarem-se à música. Uns, partem do nada e abraçam a carreira. Outros exploram o seu talento na matéria que despertou na sua participação em grupos corais das igrejas. Outros passaram pelas escolas de especialidade para o saber fazer na música.

Por conta disso, há muita diversidade na produção musical. Pessoas que aparecem a canta, tão bem, em programas de televisão dedicados a novos talentos, mas sem apoio para gravar as suas músicas. Outros que já atravessaram essa barreira e, com o seu próprio esforço, conseguiram gravar e hoje contam com alguma fama no mercado. São convidados a actuar em espectáculos musicais, casamentos ou nas casas de pasto.

O que me parece preocupante neste momento é a qualidade das músicas que são produzidas. Somos dados a consumir, no mercado, obras bastante pobres em termos de mensagem. Os seus autores canta e não dizem absolutamente nada de importante.

Por outro lado, há músicas que metem vergonha. Que não dá para escutar em família. Com todo o respeito ao trabalho do artista, não vejo, por exemplo, um chefe de família tocar, em sua casa e na companhia da sua esposa e filhos, a música “yababuluco”. Pode ter até boas batidas e ser popular, mas é, quanto a mim, desastroso.

Tentei apurar o significado de “yababuluco”. Analisei a música em todos os ângulos e cheguei à mesma conclusão que da maioria dos moçambicanos. Que é o pénis que bate nas calças, tanto que alguns, ao dançar, já embriagados, têm a tendência de arrear as calças. Imagens similares têm estado a circular nas redes sociais. Incrível.

Na tentativa de desdramatizar o assunto, há quem diga que se trata de dinheiro que está a bater nas calças, o que, quanto a mim, é menos provável.

Outros, cantando, dizem “Hikombela a ku loywa” ou seja “estamos a pedir que nos enfeiticem”, pedido dirigido aos seus vizinhos. Os autores da música dizem-se cansados de viver bem. Que coisa! Há pessoas que gastam rios de dinheiro nos curandeiros. Investem o seu tempo a frequentar igrejas. Procuram melhores profetas da praça. Tudo isto em busca de salvação porque a sua vida não anda como deve ser. Que estão a ser enfeitiçados. Surpreendentemente há quem se dá ao luxo de pedir publicamente, através da música, para que alguém se encarregue de o fazer música. Que coisas!

Estes são apenas alguns exemplos de um conjunto de músicas bastante pobres em mensagens e despidas de qualidade, em circulação no mercado musical moçambicano. Com este tipo de obra intelectual, os seus autores, entre músicos e produtores, revelam uma autêntica preguiça do ponto de vista de concepção da letra. Dão a ideia de que não sabem qual é o seu papel ou responsabilidade que recai sobre eles na sociedade. É preciso entreter, sim, mas, acima de tudo, educar o público.

A música é um instrumento poderoso através do qual o autor faz passar mensagens, quer sejam críticas ou conselhos sobre como devemo-nos comportar no dia-a-dia. Alguns optam por cantar factos reais sobre, coisas que aconteceram com eles, para que possam servir de exemplo para a maioria. Outros, cantam sobre o amor, como é o caso de Mr Bow, Humberto Luís e Cia. Há músicos que interpretam, nas suas letras, questões sociais a exemplo do falecido músico Fernando Chiure e outros.

O papel de educador estende-se aos outros artistas. Cada um com a sua arte, comunica com o público. Encontramos mensagens interessantes em trabalhos de pintura plástica. Nas obras de escultura, na dança e na poesia.

O artista Malangatana Valente Nguenha, o poeta José Craveirinha e outros participaram na Luta Armada de Libertação Nacional, na clandestinidade, usando a sua arte como instrumento de guerra contra o colonialismo português em Moçambique. Através das suas obras faziam passar mensagens a ilustrar a revolta do povo moçambicano contra o jugo colonial e pagavam caro com isso.

Se querem ser músicos respeitados na sociedade, não produzam só por produzir a música para figurar na pauta musical moçambicana. Antes de tudo, pensem um pouco no que querem transmitir através da vossa música. Façam uma auto-avaliação para verificar até que ponto é que a mesma pode ser um contributo na educação ou moralização da sociedade.

Que sejam vocês próprios a fazer auto-censura do vosso próprio trabalho, expurgando o que não vos valoriza como músicos. Não valoriza a cultura e o país em geral. Não nos obriguem a ter saudades da comissão que analisava as músicas antes de irem ao ar. Ela que foi desmantelada com a entrada em vigor da Constituição da República de 1990 que introduz a liberdade de expressão e de imprensa.

É que nessa altura, algumas músicas eram chumbadas. É verdade que algumas era por razões políticas porque tecnicamente não havia problemas. Não passavam porque a mensagem nelas contida não era politicamente correcta. Mas outras é porque não tinham qualidade.

Que sejam vocês próprios a fazer o papel da referida comissão para que tenhamos música de qualidade em todos os aspectos. O segredo é que olhem para a música não apenas como instrumento de diversão, mas também de educação das massas. Como músicos arrastam consigo centenas de seguidores e estes esperam de vocês algo exemplar e construtivo. Comportem-se!

O ano é 2021. Depois das felicitações que auguram um ano próspero, chegam-nos, a partir das duas margens do Atlântico, pombos-correios e a correspondência que nos trazem não nos surpreende mas desola-nos e convida-nos a reavivar Mikhail Backtin, Júlia Kristeva e os tratadistas do famigerado Convênio de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas adoptado em 1886.

Realmente, a surpresa é de longe o que nos acomete nestes dias. Não é para menos: temos também poeira por sacudir e lá pelo piso em que o tapete pousa, vemo-la promiscuindo-se com actas de prêmios, matérias para litígios que resvalaram pelo também salutar acordo entre cavalheiros, enfim, é matéria para outra conversa.

Atemo-nos à desolação a que todos estamos acometidos sempre que desponta uma acusação de plágio mesmo que tal se faça entre a troca de acusações em que o acusado só o é quando no diálogo assume o papel temporário de receptor. A nós outros basta a auscultação do disse que não disse para abandonar a conversa e atentar-nos ao que realmente é material: a ter acontecido, é grave para um sistema literário que se quer sério. Neste caso, não nos referirmos, especificamente, ao da “banda do semba” e sim ao fenômeno em si que é, antes, humano e remonta as primeiras vivências do homem de tal forma que não é ao acaso que Eclesiates 1:9 sentencia: nada há que seja novo debaixo do sol.

Dirão os mais dados a suspeitas que nem Bakhtin nem Kristeva, ao falar de dialogismo e intertextualidade, respectivamente, não criaram apenas tornaram-se copistas daquele livro bíblico. Que se diga, para os radicais não foi algo novo a julgarmos pela intencionalidade. Ora, do ponto de vista de revolução conceptual, é até uma heresia questionar o contributo daqueles conceitos.

Deixem-me abandonar este ecletismo sob o risco de, num ano ainda em embrião, ser-me vestida a beca de advogado do diabo e coloquemos os traços nos ts: a intertextualidade é sublime; o plágio é vil; a disposição de textos sem registo nem possibilidade de arquivo que sirva de evidência é imbecil.

Benditos são estes tempos em que as redes sociais e outras plataformas virtuais permitem que os autores a seu modo e gosto se façam conhecer no mercado literário. Tristemente, nem tudo são rosas. Quantos textos são publicados em plataformas virtuais sem sequer registo? Quantos pseudoautores publicam textos alheios sem assinatura e a cultura do “share” os “canonisa” como sendo legítimos criadores? Quantos plágios ocorrem e minguam no simples facto de não haver evidências sobre a legitimidade das lamúrias do queixoso?

A estas podia, caro leitor, acrescer outras questões se lhe tivesse ocorrido um texto igual ou se pela via do plágio assinasse este mesmo texto mas como de praxe nestas “bandas” resolvíamos isso “cá entre nós”. Novamente, esta conversa não é para hoje.

Estas mesmas questões não só desnudam o nosso desaire pelo “like” sem nos atentar ao perigo da expropriação dos textos por farsantes como também reenvia a nossa conversa ao apelo que se devia fazer norma por parte da Sociedade Moçambicana de Autores no sentido de, primeiro, esclarecer aos incautos sobre as nuances da propriedade intelectual (ou direitos de autor, para ser mais específico) e, segundo, dinamizar o processo de registo dos produtos da criatividade e do engenho humano.

 

Segundo www.infopedia.pt mudança pode ser definida como sendo: “acto ou efeito de mudar; “introdução de novidade no modo habitual de fazer algo”; “processo pelo qual algo ou alguém se torna diferente do que era”; “alteração, modificação, transformação”.

Diante da inovação rápida do mundo tecnológico, as empresas e as pessoas estão em constantes mudanças. Nas empresas podemos definir mudanças como sendo processo que visa atingir novos objetivos. As razões, que motivam a necessidade de uma mudança em ambiente empresarial, podem ser de nível tecnológico, operacional, estrutural, estratégicos, econômicos ou  sociais.

O controle de assiduidade dos colaboradores, usando um sistema de “Finger print”, era o novo projeto da empresa. Gerson, confio-lhe a gestão deste projeto: disse-me o meu manager na altura. Depois de meses a percorrer a empresa para a montagem das máquinas, cuja a instalação havia sido confiada a uma empresa Sul-Africana, chegou o momento de colocar o projecto em prática. O resultado foi quase nulo, mais de 80% dos colaboradores não aderiram à solicitação da direção. Os meus colegas diziam: “Gerson, tuas máquinas” quando se referiam ao sistema

 Hoje, acredito que o  fracasso deste projecto foi resultado da minha  incompetência, na altura, na gestão de projectos, aliada a falta de conhecimento sobre relações humanas. Minha arrogância e vontade de me sentir importante não me permitiram ter lucidez suficiente para compreender que eu representava apenas uma parte mínima do projecto. Recordo-me que por vezes passavam colegas e perguntavam “Gerson, Khasi amulungu ayentxa yini”?* Fazendo referência ao técnico sul-africana que montava as máquinas. E eu não respondia ou respondia torto (“estória” de criar suspense; me dar importância).

 Ao nível do Governo moçambicano também já vimos vários projetos fracassarem, como é o caso do projeto  “jatropha” pensado pelo sua excelência Armando Guebuza. Me lembro de ver na televisão que todas as vezes que o ex-presidente falava do projeto, falava como projeto próprio, no qual nós o povo devíamos apenas seguir. Embora o fracasso do projecto não esteja  apenas ligado à questão de gestão, resta um exemplo de projeto em que os principais actores são incitados apenas a seguir e não a colaborar.

Resistência à mudança

Os seres humanos são os únicos seres vivos com a capacidade de racionalizar uma mudança de vida. Nós temos  capacidade de mudar a nossa maneira de ser, de estar,  de adquirir novos hábitos e costumes, mudar lugar, de parceiros, de alimentação ou mesmo de aprender novas línguas antecipando necessidades. Enquanto que os outros seres vivos, não racionais, mesmo quando mudam, geralmente o fazem em resposta a um estímulo externo (p. ex uma alteração ao seu meio) ou obedecendo a códigos genéticos e instintos. No entanto, nós seres humanos somos muito resistentes quando se trata de fazer mudanças, sejam a nível privado ou profissional. Somos muito apegados aos nossos hábitos, costumes e principalmente cultura (organizacional incluso). Os hábitos são um tipo de memória consolidada nos nossos cérebros e que nos permitem realizar certas atividades de maneira quase inconsciente. Nossa resistência a mudanças vem de um lado das nossas “crenças” mas também do “medo”. As nossas crenças são geralmente criadas e consolidadas durante a infância. O medo de novo nos paralisa, o medo faz com que sejamos apegados às nossas crenças como forma de nos protegermos do sofrimento, esta é uma das características inatas dos seres humanos.

 Como gerir com sucesso um processo de mudança

Para efectuarmos da maneira acertada qualquer tipo de mudança no seio da empresa  a escolha do gestor do projecto é primordial, sem esquecer que as “outras partes envolvidas” devem ser consultadas antes, durante e depois da implementação do projeto.

Um processo de mudança nas empresas deve ser bem analisado. Primeiro saber se a mudança é necessaria:  se os resultados actuais são satisfatórios não existe necessidade de efetuar qualquer tipo de mudança, salvo excepções. No entanto, podemos medir os riscos e ameaças do projecto para saber se realmente vale a pena mudar ou não. Em seguida é preciso passar por um processo de comunicação, que visa sensibilizar as partes envolvidas a se engajarem no projecto, é nesta altura em que o gestor do projecto joga um rol importante. Suas qualidades em gestão de pessoas e sua capacidade de comunicação serão colocados à prova. Assim que as partes envolvidas se sentem confortáveis com a mudança, ou percebem a sua importância para o sucesso da empresa, juntos e em equipe pode se planejar o processo de mudança na empresaCapacitação e treinamento são uma parte importante do processo, pois por mais que o projeto seja bom, se os colaboradores não estiverem preparados para usar a nova tecnologia p.ex, o projecto poderá resultar num fracasso. implementação, monitoria dos resultados e  ajustes vem a seguir e nesta altura também, o trabalho em equipe é necessário para o sucesso do projeto.

Quando um processo de mudança nas empresas segue mais ou menos estas directrizes, as chances de sucesso são consideráveis.

Mudar faz parte da vida. Conforme envelhecemos, adquirimos novas experiências e vivências, nossa mente expande, nossas ambições profissionais, bem como as pessoas, evoluem, a mudança é natural e não deveríamos ter medo. Os passos, acima referidos, para um processo de mudança eficaz no seio das empresas, podem servir para fazer mudanças nas nossas vidas (privadas e profissionais), obviamente com algumas alterações. Não é fácil, mas é possível sair de uma situação profissional e pessoal desastrosa se implementarmos com coragem os métodos que convém à situação, associados de persistência, consistência e sobretudo de muita fé. É sim possível conseguirmos o trabalho dos nossos sonhos ou empreendermos na área que desejamos, assim como ter uma vida privada próspera.

Para terminar gostava de  dizer que mudanças fazem parte de um ciclo de vida. Se nós não mudarmos, as coisas mudam é inevitável. Iniciamos um novo ano que se apresenta próspero, depois de um 2020 inédito. 2020 foi um ano cheio de desafios mas também de muito aprendizado. Já iniciamos e teremos de dar continuidade a um processo de mudanças nas nossas vidas privadas e profissionais, temos de ter coragem para as enfrentar, como diz o nosso prestigiado artista  Stewart Sukuma no seu mais recente single “acreditar que tudo vai ficar bem” e eu acrescento dizendo que: “juntos somos capazes”! É assim que temos de enfrentar os desafios que 2020 deixou ao nosso Moçambique em quase todos os  domínios. Bom ano de 2021 a todos moçambicanos.

 

*Gerson, o que o branco está a fazer afinal? (changana: língua do sul de moçambique)

Recomendação de Música a escutar em Janeiro de 2021: “Acreditar – Stewart Sukuma”

Samuel Gerson Andrisse

Especialista de recrutamento

Autor do livro “Be ready for your next job interview”

 

 

“Dom Quixote da Mancha”, de Miguel de Cervantes, escrito no século XVII, é tido como o romance fundador da literatura europeia. O livro que o leitor tem em mãos não é fundador da literatura moçambicana, nem mesmo da ciência política moçambicana. É um livro sem esse peso histórico, mas que corre o sério risco de, um dia, ter que assumir peso idêntico. Ele percorre os meandros da ciência política, da ética, da religião, da ciência económica, da teoria de gestão e do realismo mágico do nosso quotidiano para inaugurar um género literário. Trata-se dum género que faz um assalto sistemático e erudito à complacência e desmonta de forma implacável os alicerces duma narrativa que vê Moçambique onde ele não está e, provavelmente, nunca estará, sobretudo se ele não se emancipar desses alicerces que fundamentam essa narrativa e servem como correntes à imaginação e inteligência dos moçambicanos.

É um género desconcertante. A mão que empunha a pena através da qual o livro ganha substância e existência, é a mão duma mente erudita tímida que pela modéstia com que expõe o seu pensamento profundo até parece ter vergonha de ser o veículo de verdades que ninguém quer ver, ouvir ou mesmo contemplar. Os temas são complexos, a sua fundamentação revela um autor lido, mas a mensagem, a sua mensagem central, parece clara como as águas das Cataratas de Namaacha quando ainda não tinham desistido do País como parece ser o caso agora. É a mensagem que nos diz que Moçambique não é o que pensamos ser e, por isso, o seu futuro não vai ser necessariamente a realização do sonho que confundimos com a sua idealização. Moçambique, insiste a mensagem deste livro, é o que está enterrado nos argumentos dos livros que lemos sem entender. É o que se precipitou pelas fendas duma estrutura económica e política mundial que se insinua como a negação de si própria. É, como escreve o autor, a confusão entre legalidade e justiça, estradas e desenvolvimento, que faz do que nos tem sido dito como sendo o caminho para a prosperidade o caminho para a perdição. Para Moçambique ser, os moçambicanos precisariam de desenvolver e cultivar o hábito de ler contra a corrente, justamente o exercício a que se entrega o autor nestas linhas que misturam o sentido do ridículo que dá a verve à escrita de Mia Couto, a redacção obsessiva e sem fôlego de Ungulani ba ka Khosa e o encantamento que faz a escrita de Paulina Chiziane.

“Dom Quixote da Mancha”, o romance, foi festejado na Europa após a famosa Revolução Francesa como a manifestação literária da improvável, mas não impossível situação em que uma pessoa está do lado da razão numa sociedade equivocada. Em cada linha que compõe esta reflexão fascinante sobre vários aspectos da nossa sociedade, o autor deste livro vai tecendo argumentos que tornam essa ideia cada vez mais plausível. O alicerce é a tese central do livro que se insinua como uma sentença: Moçambique não existe. Os recursos intelectuais e políticos de que dispomos para pensar Moçambique constituem-se como uma negação desse exercício e, por isso, o que urge fazer, é repensar os próprios termos que tornariam o pensamento possível. Não é que esse Moçambique realmente não exista. Existe numa versão específica, a versão cantada pelos Ghorwane naquela sua composição que mostra um mundo virado de avesso, o mundo em que ladrão persegue polícia, doente foge do hospital, deficiente físico recusa muletas, etc. Persistir na ideia de desenvolvimento evocada por este Moçambique é cultivar o quixotesco no lugar de despertar do estupor conceitual que nos entorpece.

Os maus hábitos de pensamento que nos devolvem um Moçambique pronto-a-vestir são uma espécie de prisão. Só quem procura refúgio na liberdade do pensamento crítico é que logra a liberdade. É preciso estar confinado para evitar a prisão gigantesca que é o mundo ilusório da verdade simples, o mundo feito dos bons e dos maus cujo reconhecimento se faz facilmente porque a intuição ética não se constitui na nossa vivência, mas sim numa narrativa normativa que nos faz reféns felizes da promessa dum mundo melhor. A crítica a isto faz o conteúdo deste novo género literário. É uma leitura contra a corrente e, por isso, crítica. O género procura recuperar o que nunca existiu, ou se existiu, apenas como fantasma de si próprio assombrando o nosso futuro.

O autor diz, de forma mordaz, que vamos precisar de nos sentarmos para aguardarmos serenamente pela chegada desse futuro melhor. Quem tem a perspicácia de dizer isto deve estar sentado num lugar muito privilegiado. Aos seus olhos a sociedade deve ser uma espécie de panóptico, opaca para quem está de fora e totalmente incrustável para quem está lá dentro. Nunca fez tanto sentido sair da sociedade para melhor a ver. Nunca fez tanto sentido prestar atenção ao ridículo para entender o sério. Nunca fez tanto sentido ser quixotesco para aferir a gravidade de viver num País onde o juízo fácil transforma a razão fátua no modelo privilegiado de abordagem do destino de milhões de pessoas.

Este é um livro para os fortes de espírito, para aqueles com o dom da introspecção, para os que protegeram a sua mente dos desvarios da razão indolente. É um livro para aqueles que não querem sucumbir ao canto das musas do discurso de desenvolvimento que se reproduz no sacrifício de indivíduos no altar onde razões estruturais deviam estar a arder. É preciso lembrar, e ter sempre presente, que Miguel de Cervantes escreveu o prólogo do livro que inaugura a literatura europeia numa cela. Se tivesse sido moçambicano, o seu romance teria sido chamado “O Senhor (B’ava) Quixote da Machava” para inaugurar a leitura do grotesco que faz a nossa existência.

Basileia, 4 de Outubro de 2020.

 

*Prefácio do livro Chova xitaduma (crenças, paradigmas e doutrinas mutáveis), de Paulo Zucula. O livro estará nas livrarias na próxima semana.

As histórias de superação de vida, em Moçambique e no mundo, se sucedem. Algumas se mediatizaram, porém, a maioria, continua anónima e reservada. Vencer faz parte do ser humano. A maior beleza da superação tem sido o positivismo, as acções de fé, esperança e a auto-estima. Farida Gulamo, a mulher que veste o rosto e espírito do associativismo, em Moçambique, faz parte desse distinto grupo dos que demonstram tenacidade e sagacidade, muito para além do comum. Uma trajectória de dificuldades e privações, contudo, de requintadas e memoráveis vitórias.

A superação pode ser entendida como uma opção. Não importa o estado de saúde ou físico. As pessoas podem escolher entre dar importância as decepções e enfatizar as falhas e deficiências, vivendo com amargura e tristeza ou, pelo contrário, lidar com os problemas e encarar esses momentos como aprendizagem e tempos de responsabilidade para sua própria felicidade. Assim tem sido a Farida Gulamo. Por vezes, incompreendida e desacreditada, ela tem liderado processos e associações que lutam pela equidade, pelos direitos humanos e pelo respeito institucional, de forma incontestável, ao longo de mais de 50 anos.

Com a história do maior génio do século XX, o criador da teoria da relatividade, Albert Einstein, que foi considerado um mau aluno e completamente inútil, pela maioria dos seus professores, se aprende a lição da persistência, do valor da luta pelos sonhos. Farida Gulamo nasceu no Ilhéu, na primeira capital de Moçambique, naquele célebre hospital que, em 1952, foi tido como a maior estrutura hospitalar da África ao sul do Sahara. Depois, a vida lhe ensinou a lutar pelos seus sonhos, nunca virar a cara à luta, nem depender de quem quer que seja.

O associativismo e a luta pela inclusão social dos grupos excluídos, em Moçambique, certamente, possuem várias motivações e rostos. Alguns, mais visíveis e outros menos. Diferente das histórias das epopeias ou das grandes batalhas, das lutas emancipatórias e das vitórias sobre a dominação estrangeira, o associativismo se respalda em cidadãos de boa vontade, com forte capacidade de liderança, com pendor de agregar valor às suas pretensões e, sobretudo, com essa facilidade mobilizadora, modificando as percepções e os preconceitos.

Tal como os escritores, os principais líderes associativistas transportam, no seu DNA, a responsabilidade de transmitir, à sociedade, valores fundamentais de luta e persistência, bem-estar social, convívio salutar, equidade, igualdade de direitos e a melhoria das condições dos grupos excluídos e minorias. Os nomes por detrás destes movimentos são marcantes e fundamentais nas mudanças de políticas públicas, postura governativa e uma resposta às suas demandas.

A génese do associativismo e da luta pelos direitos humanos e pelos direitos das minorias é diversificada, remonta ao período de ocupação estrangeira colonial que, inclusivamente, condicionou o seu surgimento. Eduardo Mondlane foi associativista e, à semelhança de tantos outros, corporizou os movimentos incipientes, no país. Nos últimos anos, o associativismo abarca, grosso modo, redes de indivíduos e pequenos círculos sociais nas igrejas, escolas e bairros, liderados por jovens. Se é verdade que todos pretendem institucionalizar e obter reconhecimento governamental ou das ONGs, elas são, ainda, dependentes de apoios financeiros de organizações internacionais, apesar de suas agendas e dos grupos que representam.

Farida Gulamo que, em 2020, colheu as suas 75 risonhas Primaveras, esteve na base da criação da Associação dos Deficientes de Moçambique (ADEMO). Assumiu o cargo de secretária executiva e, apoiada pelo governo, expandiu a associação para todos os cantos do país. Fê-lo, na época, 1989, com o apoio de um outro cadeirante, o saudoso Jorge Tinga, persistente e multifacetado, que este ano nos deixou e, com muita saudade. Portanto, eles fazem parte dos anais do associativismo moçambicano.

Farida Gulamo, esta persistente e dotada mulher, destemida e de fortes convicções, tem sido um exemplo de uma activista social que virou referência, obrigatória e incontornável e que contribuiu, de forma abnegada e exemplar, na luta dos deficientes por uma integração e reconhecimento. Ela se desdobra entre os activistas da educação, do género e dos deficientes. Nessa condição, participou em diferentes fóruns mundiais, visitou vários países e ergueu bem alto a bandeira de Moçambique, em conferências especializadas.

Este ano, com sua entrega e de todos seus colegas, voltou a realizar a assembleia-geral da ADEMO, depois de mais de 14 anos de inactividade. Fê-lo em momentos de pandemia da COVID-19, quando o mundo parece ter virado as costas à humanidade. Diante do resguardo e ausência de apoios, ela quis provar aos colegas que a vida tem de continuar e, sobretudo, que eles não estavam esquecidos. Farida veio para o mundo numa condição física normal. Por conseguinte, tem um chip que a faz pensar em normalidade, de forma permanente. Assim, decidiu sair à rua, solicitar apoios e reactivar a ADEMO. Remar na contramão da inactividade e ajustar o seu mindset às novas normalidades. ADEMO terá de funcionar descentralizada, com eleições democráticas dos seus gestores, mas, ao mesmo tempo, com maior diversificação de suas fontes de receita e financiamentos.

Recentemente, ela abriu sua alma e falou-nos nessa trajectória de luta e afirmação de identidade, de sofrimento e exclusão. Reviu os difíceis tempos da Namaacha, onde fez uma das dezenas de formações, como monitora. Não se esqueceu da rigorosidade do Inverno que debilitou ainda mais seus músculos locomotores. Recordou-se de memórias salutares, dos tempos de infância nos quais, mesmo com as muletas, jogava à bola e participava de outras brincadeiras com seus amigos de bairro. Sem exclusão e total solidariedade. Aliás, foi assim como cresceu, como frequentou os liceus, o magistério primário, a faculdade de ciências de educação e outras.

O seu sonho foi sempre de seguir medicina. Mas, os condicionalismos forçaram a seguir a carreira de educação. De uma família de enfermeiros, teve dois irmãos e três filhos, um deles já falecido. Trabalhou em diferentes instituições e províncias. Ministério da Educação e no Instituto Nacional de Desenvolvimento de Educação (INDE), em escolas em Quelimane, Inhambane, Chokwé e Maputo. Sua luta tem sido a de não aceitar a discriminação e o preconceito. Este é o sentimento que passa aos seus colegas e amigos, de todo o mundo. Ela levanta, com orgulho, a ADEMO e todas as associações de cegos e amblíopes de Moçambique.

Uma das suas maiores alegrias pode ter sido à de chegar a independência deste país, que ama, já com 30 anos de idade, amadurecida e com sonhos. Sonhava num novo estágio na sua vida. Sonhava com um país sem discriminação e com tolerância.  Um país de oportunidades, de paz e de fraternidade.

Ainda vai viver para ver um novo arco-íris e, sobretudo, um país reconciliado e com uma educação moderna e utilitária, uma juventude responsável e com empregos, casa e com seus direitos respeitados. Um país sem fome e onde todos serão tratados da mesma forma e com o mesmo respeito. Um pais de todas as utopias e reconciliações. Estes são os sonhos de uma sonhadora militante. (X)

 

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